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bbc.com Eleições com fake news?: Uma semana dentro de 272 grupos políticos no WhatsApp mostra um Brasil dividido e movido a notícias falsas Juliana Gragnani Da BBC News Brasil em Londres 27-37 minutos Image caption Reportagem passou uma semana acompanhando 272 grupos políticos públicos no WhatsApp e elencou desinformação encontrada na rede | Ilustração Brum Acompanhar dezenas de grupos políticos no WhatsApp é uma experiência um tanto surreal. Links, vídeos, imagens e

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bbc.com

Eleições com fake news?: Umasemana dentro de 272 grupospolíticos no WhatsApp mostra umBrasil dividido e movido a notíciasfalsas

Juliana Gragnani Da BBC News Brasil em Londres

27-37 minutos

Image caption Reportagem passou uma semana

acompanhando 272 grupos políticos públicos no WhatsApp

e elencou desinformação encontrada na rede | Ilustração

Brum

Acompanhar dezenas de grupos políticos no WhatsApp é

uma experiência um tanto surreal. Links, vídeos, imagens e

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áudios são compartilhados caoticamente por diversas

pessoas ao mesmo tempo, quase impossibilitando a leitura

de quem recebe na outra ponta.

Com ajuda de um sistema desenvolvido por pesquisadores

brasileiros, passei sete dias acompanhando 272 grupos no

aplicativo.

Meu objetivo era entender a lógica de distribuição do

conteúdo político que chega a milhões de pessoas

diariamente pelo WhatsApp, principalmente no período

eleitoral.

Em uma semana, vi:

Muita desinformação, como imagens no contexto errado,

áudios com teorias conspiratórias, fotos manipuladas,

pesquisas falsas

Ataques à imprensa tradicional, como capas falsas de

revistas e falsa "checagem" de notícias que, de fato, eram

verdadeiras

Imagens que fomentam o ódio a LGBTs e ao feminismo

Uma "guerra cultural" organizada, com ataques

sistematizados a artistas em redes sociais

Áudios e vídeos de gente comum ou de gente que se

passa por gente comum, mas com identidade

desconhecida, dando motivos para votar em um candidato

Mas qual é o peso dessa desinformação circulando no

WhatsApp durante as eleições?

A rede é a mais difundida entre eleitores brasileiros,

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utilizada por 66% deles, ou 97 milhões de pessoas,

segundo a pesquisa Datafolha divulgada nesta semana.

Chega a ser maior do que o Facebook, usado por 58% dos

brasileiros que votam.

Segundo o próprio WhatsApp, 120 milhões de brasileiros

usam o aplicativo. E muitos, principalmente das classes C,

D e E, aderem a planos de celular com pacote restrito de

dados, mas com WhatsApp gratuito graças a um acordo

com as operadoras. Isso significa que acabam tendo

acesso à internet somente por meio do aplicativo, ou seja,

sem possibilidade de clicar em links ou verificar na rede a

origem da informação.

Ao menos no Brasil, o WhatsApp deixou de ser apenas um

aplicativo de mensagens instantâneas. É uma rede social

também, com grupos públicos, desordenados e

extremamente dinâmicos de até 256 integrantes nos quais

se entra por meio de links divulgados em sites ou em redes

sociais. Pessoas do Brasil inteiro que não se conhecem

conversam pelos grupos. É bem diferente, portanto, dos

grupos privados de famílias, amigos, colegas.

Por isso, reitero: acompanhar dezenas de grupos no

WhatsApp é uma experiência surreal.

Ao ligar o celular pela manhã, às 10h, contabilizo 13.698

novas mensagens. Eu havia desligado o celular na noite

anterior. Em 12 horas, mais de treze mil mensagens foram

enviadas em 28 grupos públicos.

Direito de imagem Reuters

Image caption Segundo Datafolha, eleitores de Bolsonaro

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usam mais redes sociais (81%), que eleitores de Haddad

(59%)

O grupo que bate o recorde é o "Debate Político": 1.793

mensagens enviadas durante a noite e madrugada. O

grupo tem 166 participantes com DDDs que vão do 11 ao

99. Tem gente de São Paulo, Minas, Rio, Paraná, Espírito

Santo, Rio Grande do Sul, Brasília, Bahia, Pará, Maranhão,

Alagoas, Ceará e Pernambuco. Tem até alguns usuários

nos Estados Unidos.

Mas a dinâmica do grupo é o oposto do que seu nome

propagandeia ("de debate só tem o título!", me disse um

dos integrantes do grupo, o estudante potiguar Renan

Bezerra dos Santos, 17). Não há debate, senão usuários

bombardeando o grupo com um sem número de textos,

links, imagens e vídeos, sem descanso, sem troca de

ideias.

Ao menos é um grupo democrático, apesar de focado nos

dois extremos da disputa: apoiadores de Bolsonaro

publicam conteúdo a seu favor ao mesmo tempo em que

recebem material pró-Lula e Haddad.

Para facilitar meu experimento, utilizo o "Monitor de

WhatsApp", um sistema criado pelo professor Fabrício

Benevenuto, do departamento de Ciência da Computação

da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e

mantido por ele e seus alunos.

O sistema acompanha 272 grupos públicos de WhatsApp

por meio de celulares destacados só para isso e mostra as

imagens, links, vídeos e textos compartilhados nos grupos.

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O pesquisador decidiu compartilhar o sistema com a

imprensa, que passou a ter um canal para monitorar o que

até então era um desconhecido universo de desinformação

na rede. Não há coleta de dados pessoais dos

participantes.

Alguns dos grupos monitorados: "Jair Bolsonaro 2018",

"Lula Presidente", "O Brasil com Ciro". Tem até um "Cabo

Daciolo Presidente". A maioria dos grupos reúne

apoiadores de um só lado, formando uma rede de bolha

que pouco se comunica no nível dos grupos, mas que

permeia diferente setores conforme o conteúdo se espalha

pelos milhões de grupos conhecidos e parentes.

Há mais grupos sobre Bolsonaro (são 33) do que o

restante. Isso gera, no pesquisador, uma preocupação com

o desequilíbrio do estudo. No entanto, pode indicar que, de

fato, haja mais grupos políticos sobre o candidato no

WhatsApp. É impossível saber ao certo, já que o aplicativo

não divulga o total de grupos existentes.

Dados do Datafolha, no entanto, jogam luz sobre essa

dúvida: respondendo à pesquisa nesta semana, eleitores

de Bolsonaro foram os que mais declararam usar alguma

rede social – 81% -, ante 59% dos eleitores de Haddad.

Também foram os que mais disseram ler notícias sobre

política no WhatsApp. São 57% dos eleitores de Bolsonaro,

enquanto só 38% dos eleitores de Haddad disseram se

informar no aplicativo sobre política.

Direito de imagem Getty Images

Image caption Pesquisador brasileiro criou sistema que

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acompanha grupos públicos do WhatsApp no Brasil

Por isso, o resultado do meu experimento mostra mais

notícias falsas publicadas por um polo, o do lado de

Bolsonaro. Mas sabemos que há notícias falsas produzidas

pela esquerda que circularam também, como as de quando

Bolsonaro foi esfaqueado.

Na ocasião, há um mês, foram difundidas em grupos, por

exemplo, áudios e imagens dizendo que o ataque tinha

sido armado – porque não havia sangue, porque os

médicos que lhe atenderam estavam sem luvas ou ainda

porque o presidenciável havia sido registrado sorrindo e

entrando de pé no hospital, muito embora essa última cena

tivesse acontecido no mesmo dia, mas antes do ataque.

Como bem sabemos, Bolsonaro foi vítima, sim, de um

esfaqueamento.

Para chegar aos grupos que monitora, Benevenuto

automatizou uma busca por links de grupos de WhatsApp

com palavras-chave ligadas a política. Ou seja, a entrada

em grupos políticos é tão imparcial e abrangente quanto

possível.

Minha jornada de sete dias começou na

segunda-feira, dia 24 de setembro

Link falso para o Datafolha

O link mais divulgado do dia, compartilhado 45 vezes em

29 grupos, é de uma suposta pesquisa do Datafolha: "Sua

opinião é muito importante para nós! Participe da pesquisa

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e confira os resultados das eleições hoje".

Image caption Na segunda-feira, link mais compartilhado

nos grupos monitorados era pesquisa falsa do Datafolha;

site depois saiu do ar

Essa, para mim, como jornalista, é fácil. Imagino que seja

um link falso porque sei que não há pesquisas do Datafolha

conduzidas online. Uma simples busca confirma minha

hipótese: digito "Datafolha WhatsApp" no buscador e o

primeiro resultado é uma reportagem informando que os

links do Datafolha compartilhados em grupos são falsos.

O link original com a notícia falsa já está fora do ar – e é

impossível, portanto, averiguar a quem pertencia e com

que objetivo foi criado.

Imagens contra direitos LGBT e de mulheres

Também vejo que usuários compartilharam em grandes

quantidades imagens contra direitos LGBT e de mulheres.

No sistema, temos: fotos de Haddad com drag queens (9

grupos), a foto de um casal de homens e um deles beijando

um menino, insinuando que se trata de pedofilia (7 grupos

– e a foto, na realidade, é de um casal gay americano com

seu filho), uma imagem de um protesto feminista criticando

a nudez das mulheres (6 grupos) e a foto de dois homens

dando um beijo – sendo que um está vestido como Jesus

(5 grupos).

Uma montagem muito compartilhada mostra o rosto de

Lula e, ao lado, o número 17 – que é de Bolsonaro, não do

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PT, de número 13.

Image caption Fotos com montagens circulam nos grupos;

uma delas é de Lula com o número errado, de Bolsonaro,

para votar na urna

Terça-feira, 25 de setembro

'Linchamento virtual'

No manhã seguinte, o conteúdo mais compartilhado do dia

é um link, enviado por 62 pessoas em 46 grupos. É o vídeo

da cantora Daniela Mercury convocando "mulheres contra

Bolsonaro". O vídeo, enquanto escrevo isso, tem 3,2

milhões de visualizações, 24 mil curtidas e 1,2 milhões de

descurtidas.

A mensagem mais compartilhada do dia explica a

quantidade enorme de descurtidas, uma "campanha de

deslike" organizada: "Rumo aos 2 milhões!" "Vamos dar

dislike nos vídeos dos artistas rounet's EleNão. Clica no

link, vai aparecer o vídeo e você clica na mãozinha �� A

diferença do �� para o �� é gigantesca".

Image caption Apoiadores de Bolsonaro organizaram

tabela com descurtidas em vídeos de artistas do

movimento #EleNão

Nos próximos dias, a campanha continuará, pedindo

inscrição no canal do PSL, partido de Bolsonaro – "nesse

momento perdemos para o PT em número de inscritos".

Pede também para que usuários descurtam vídeos de

comerciais de empresas estrelados por artistas como

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Anitta, para fazê-los "perderem patrocínio".

Uma tabela sistematizada circulará para contabilizar o

número de curtidas e descurtidas de cada artista. "Vamos

fazer ela perder o patrocinio, só assim esses artistas

sentirão de verdade qual nossa força!"

Quarta-feira, 26 de setembro

Ataque à imprensa

Ataques a veículos de imprensa são frequentes. Vão desde

de mensagens que tentam alavancar conteúdo falso com

frases como: "Isso a imprensa não dá", "Isso a mídia

esconde" até a grotesca falsificação de notícias.

No terceiro dia, acompanhando os grupos, vejo que três

capas de revistas tradicionais no Brasil - Veja, Época e

Exame - são, juntas, compartilhadas em 17 grupos. As

"reportagens de capa" das três mostram o mexicano

Gerardo de Icaza, diretor do Departamento para a

Cooperação e Observação Eleitoral da OEA, assumindo

"fraude nas urnas a favor do PT".

Image caption Mais montagens: na quarta, 26, o boato

mais difundido é contra a imprensa, com capas falsas de

revistas brasileiras

Os criadores de notícias falsas se apropriam de formatos

de notícias reais para dar respaldo à mentira e confundir

quem confia nos meios tradicionais. Sendo jornalista,

consigo identificar isso rapidamente. Esta é outra notícia

falsa facilmente desbancada em uma rápida pesquisa. Não

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é capa de nenhuma das três revistas.

Neste dia, há outro ataque à imprensa: seis outros grupos

receberam uma mensagem de uma pessoa que dizia

trabalhar na editora Globo, dizendo que a cúpula da

empresa havia se reunido para orientar atrizes para se

posicionar publicamente contra Bolsonaro nas redes. "A

Globo teve um contrato bilionário com o PT e há décadas

financia a campanha do Lula", diz o texto. A mensagem

tem os típicos sinais de alerta de conteúdo enganoso:

alega algo bombástico sem citar fonte.

Quinta-feira, 27 de setembro

Futurologia enganosa

Decido dar esse nome para outro tipo de mensagem falsa

que tenho observado circular nos grupos. Mensagens e

áudios alertam para o que "vai acontecer nos próximos

dias", principalmente na imprensa. Em um exercício de

futurologia enganosa, os criadores de notícias falsas

parecem criar algumas delas preventivamente.

Esse tipo de notícia falsa também confere à mensagem um

ar premonitório de quem "está por dentro", embora as

"previsões" sejam de coisas que qualquer um conseguiria

prever. Outras, por outro lado, são claramente uma

invenção de coisas que nunca vão acontecer – mas a

mensagem é transmitida e, mesmo que não aconteçam, o

estrago pode já ter sido feito.

Image caption Circulam também mensagens com

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'desinformação preventiva', ou seja notícias falsas sobre

coisas que ainda nem aconteceram

Alguns exemplos:

A mensagem da pessoa que trabalharia na editora Globo

diz: "Ainda vão vir muitos outros atores, apresentadores e

ex-BBBs, mas será aos poucos, 2 ou 3 por dia, para não

ficar muito 'na cara'."

Um texto extremamente difundido sobre uma entrevista

supostamente autorizada pela Justiça com Adélio Bispo, o

homem que esfaqueou Bolsonaro, diz que, nos próximos

dias, ele falaria que o atentado foi uma armação. Dizia

também que "essas declarações mentirosas vão ao ar 2

dias antes da eleição" e "a mídia comunista vai bombardear

o 'mito' na TV". O texto pede para o usuário compartilhá-lo

ao máximo para "salvar o Brasil". O apelo para máximo

compartilhamento para "salvar o país" é uma técnica usada

com frequência. A mensagem circulou em ao menos 45

grupos na segunda-feira, em forma de texto e imagem, e

na quinta, ainda tinha fôlego.

Sexta-feira, 28 de setembro

Bolsonaro 'nazista'

A notícia de que o general da reserva Hamilton Mourão,

candidato a vice-presidente de Bolsonaro, havia criticado o

13º salário, fora divulgada no dia anterior. Era provável,

então, que o assunto fosse tema do conteúdo espalhado

pela oposição.

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Em poucos grupos, começam a circular imagens sobre o

assunto, sempre associando Bolsonaro ao nazismo.

Exemplo: uma charge em que Mourão diz "vamos acabar

com o 13º salário do trabalhador!" e um Bolsonaro – com

bigode de Hitler – responde "Isto era segredo! Você não

consegue ficar calado?"

Em outro grupo, uma imagem diz "Proposta de 'Bozonazi'

de acabar com 13º e adicional de férias é para depois de

eleito. Era sigilo de campanha. Mourão só antecipou". Uma

terceira: "O governo militar do Bozo nem começou e já

temos um desaparecido. Paulo Guedes...", em referência

ao economista que participa da campanha do PSL.

Ou seja, parte das mensagens mistura piada,

descontextualização com conteúdo difamatório como a

ligação de Bolsonaro a Hitler. No caso do 13º, Bolsonaro

havia desautorizado seu vice dizendo que se tratava de um

artigo protegido por uma cláusula pétrea da Constituição e

que, portanto, não poderia ser revogado. Alguns

especialistas dizem que a cláusula pétrea que protege "os

direitos e garantias individuais" impediria uma emenda que

derrubasse o 13º.

Image caption Padrão de áudios que circulam no

WhatsApp: conversa entre 'amigos' que parece ter sido

vazada fala bem de candidato | Ilustração Brum

Sábado, 29 de setembro

Áudios de 'gente como a gente'

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No penúltimo dia acompanhando os grupos, fica clara a

técnica do áudio "intimista", ou seja, de alguém "gente

como a gente" que demonstra simpatia por um candidato -

algo que ouvi durante a semana inteira.

Observei alguns padrões que só ficaram claros quando

observei as mensagens em conjunto:

Os narradores são, em sua maioria, homens

Homens que contam histórias banais da vida real – alguma

situação que teria acontecido com eles e que envolve

algum candidato

Usam maneiras muito informais de endereçar o ouvinte,

como se o conhecesse, como se aquela mensagem

inicialmente tivesse como destinatário um amigo e "caiu na

rede"

E que vivem situações impossíveis ou quase impossíveis

de serem checadas

Minha hipótese é que esse tipo de áudio provoca

familiaridade, proximidade e simpatia – até para mim,

enquanto analiso esse conteúdo e escuto as gravações.

Image caption Áudios que circularam ao longo da semana

no WhatsApp tinham padrões como voz masculina e

intimidade com interlocutor

Dos áudios que mais circularam ao longo da semana,

temos:

O taxista carioca – que não sabemos se é taxista ou não –

trabalhando durante as manifestações (no protesto contra

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Bolsonaro, havia "cheirão de maconha" e "geral bebendo";

já no favorável ao candidato só "o povo de bem mesmo,

quem não gosta de sacanagem"). "Eu vi isso, não foi

ninguém que me contou, não, eu tô aqui na pista

trabalhando", diz. Seu áudio começa com ele dizendo:

"C..., Valverde, hoje eu tô trabalhando só nas

manifestações."

O motoqueiro mineiro – que também não sabemos se é de

fato um motoqueiro ou não – que conta ter entrado numa

loja da Boticário em Lagoa Santa (MG) e assustado a

atendente porque estava de capacete. "Mas quando ela viu

que eu estava com a camisa do Bolsonaro, ela já

tranquilizou na mesma hora. 'Bandido não anda com

camisa do Bolsonaro, não.'" "Olha pra você ver, cara, que

interessante, a imagem que o cara que já passou pela

sociedade (...) Olha o diferencial, véi. Que coisa boa." Esse

começa o áudio dizendo: "Fala, Zé Teo, beleza? Aqui, olha

que interessante, cara". (Detalhe: liguei para a loja da

Boticário em Lagoa Santa. Já ciente do áudio, uma

funcionária da loja disse que a situação narrada nunca

aconteceu.)

O turista carioca em Cuba – a essa altura não preciso dizer

que não sabemos se é um turista carioca em Cuba ou não

– que diz que tudo o que conversou "lá com o povo é

exatamente o que estamos vivendo agora no país", em um

tom alarmista. O tal turista começa a contar sua história

assim: "Porra, Jorge, fui lá naquela merda para ver como é

esse esquema aí de abrirem para o turismo".

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O turista carioca no Chile – "Ô, Léo", começa o áudio, "Fui

pro Chile esquiar e encontrei com três americanas com

mais de 60 anos". O narrador diz que as mulheres falam

que o presidente americano Donald Trump "é um babaca,

parece uma criança", mas que é "bom governante" e quem

não gosta dele são "quem fuma maconha, os artistas, os

que moram com os pais". O narrador diz, então, que a

mesma coisa vale para o Bolsonaro. "Eu odeio o Bolsonaro

e vou votar nele!", diz, com humor. A primeira vez que eu

ouvi o áudio, por meio do sistema, foi na segunda-feira,

compartilhado em 20 grupos. O áudio teve fôlego de quase

uma semana.

É impossível verificar a origem de um áudio no WhatsApp.

Image caption No fim de semana, houve uma guerra de

versões sobre as manifestações a favor e contra Bolsonaro

Domingo, 30 de setembro

Guerra de versões das manifestações

O fim de semana foi marcado por uma disputa de versões

sobre as manifestações contra o Bolsonaro, no sábado, e a

seu favor, no domingo, circulando no Facebook e Twitter.

Era de se esperar que as narrativas fossem parar no

WhatsApp.

Um vídeo compartilhado por 22 usuários em 19 grupos

mostra a avenida Paulista, em São Paulo, coberta de

manifestantes usando verde e amarelo. A mensagem que

acompanha o vídeo diz: "A Globo admitiu ao vivo que

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manifestação pró Bolsonaro é a maior da história". No

vídeo, a jornalista da GloboNews afirma que a Polícia

Militar "acabou de atualizar que o número de manifestantes

na Paulista chegou a um milhão", enquanto as imagens

eram mostradas.

Até parecia crível. Mas uma busca rápida pelas palavras-

chave seria suficiente para desmonta a versão. "Protesto 1

milhão Globonews", digito no Google. Era um vídeo de

março de 2015 e o protesto era contra Dilma Rousseff.

Em um dos grupos de que faço parte, um usuário

compartilha a capa do jornal O Globo, cuja foto principal

era do protesto contra Bolsonaro na Cinelândia. A

mensagem que acompanha: "Foto do Globo de hoje

mostrando a Cinelândia cheia... ao fundo o prédio que

desabou a (sic) seis anos atrás, intacto! kkkkkk Ainda bem

que eles são burros". Um segundo usuário envia vários

emojis batendo palma. Não há uma reação dos outros

integrantes do grupo, não há conversa. Mais gente cola

outros links por cima. Não dá para saber o quanto ela foi

lida ou absorvida ou repassada pelas outras pessoas.

A foto publicada na capa do jornal O Globo era verdadeira.

Image caption A capa do jornal O Globo é verdadeira; falsa

é a versão de que a foto do jornal estava incorreta - quem

circulou o lugar onde deveria haver um prédio estava

incorreto em sua versão

"Foi num afã que enviei", justificou depois em conversa

comigo o técnico de informática paulistano Cleber Machado

Leão, de 41 anos, o usuário que mandou a notícia no

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grupo. "Eu recebi a notícia, que me ganhou e me

convenceu porque, de fato, era o que parecia que estava

acontecendo, eu achava que estavam tentando inflar o

protesto, então resolvi correr esse risco."

Questionado sobre por que não corrigiu o erro ao descobrir

que havia compartilhado uma informação falsa, ele disse:

"Perdi a referência de qual era o grupo em que eu tinha

enviado". Leão, eleitor de Bolsonaro, participa de "uns 40

grupos" para "sentir o termômetro político" da população.

"Não dá para se informar muito nos grupos porque tem

muita notícia falsa e tem muito ruído", afirma. "Mas, nos

grupos, eu consigo ver mil pessoas falando e, por isso,

acabo conhecendo mais opiniões que eu não conheceria

durante o dia, quando eu não consigo ver tanta gente."

Quase todas informações falsas que eu encontrei durante

os sete dias já haviam sido checadas pela imprensa

brasileira. Bastava procurar por palavras-chaves no

buscador.

Para o professor Fabrício Benevenuto, os grupos públicos

podem ser "uma porta de entrada para a desinformação

dentro do WhatsApp".

Por meio do projeto em que os monitora, diz, abre uma

"pequena fresta" para ver o que está acontecendo nesse

ecossistema. Com pessoas bem engajadas dentro dos

grupos públicos e com a facilidade de repassar

mensagens, a hipótese é que elas repassem as

informações dos grupos públicos para os privados. "E aí

em diante vai espalhando dentro de toda a rede do

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WhatsApp", diz o pesquisador.

Direito de imagem Reuters

Image caption Para especialista, pessoas tendem a confiar

mais em informação de WhatsApp repassada em grupos

privados porque vem de pessoas confiáveis

Nos grupos privados, acrescenta, a informação é

repassada por alguém que é amigo, vizinho, parente. "Você

confia na pessoa que te passou aquilo e passa a acreditar

naquela informação, e não na que foi transmitida pela

grande mídia", afirma Benevenuto, que defende uma ação

do WhatsApp que crie soluções tecnológicas impedindo a

disseminação de informações falsa no aplicativo.

Seu sistema está sendo usado por jornalistas do

Comprova, projeto de verificação de notícias com 24

veículos de comunicação brasileiros liderado pela Abraji e

pelo laboratório de pesquisa First Draft News, ligado à

Harvard.

Na avaliação de Yasodora Córdova, pesquisadora da

Digital Kennedy School e do First Draft News, de Harvard,

que trabalha com o Comprova no Brasil, a desinformação

que circula no WhatsApp, de forma geral, é a mesma que

circula em outras redes sociais. O problema não é a rede,

diz ela, é o que foi "varrido para debaixo do tapete" na

sociedade brasileira que, segundo ela, está na Idade da

Pedra em termos de debate público.

E o que o país precisa para combater desinformação?

Educação, fontes de informação confiáveis e locais,

concessões de meios de comunicação menos enviesadas.

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"O WhatsApp só adicionou escala para esses problemas."

Questionado, o WhatsApp afirmou, via assessoria de

imprensa, que esses grupos públicos "compõem uma

porcentagem muito pequena de utilização do WhatsApp" e

que 90% das mensagens enviadas são entre duas

pessoas. "A maioria dos grupos tem dez ou menos

pessoas."

Direito de imagem Getty Images

Image caption A cena de um linchamento em Tripura, na

Índia, por causa de um boato espalhado pelo WhatsApp; no

país, aplicativo limitou para 5 pessoas o máximo de

encaminhamentos que um usuário pode fazer

Também afirmou que a empresa está trabalhando com

entidades de checagem de fatos no Brasil, como o

Comprova. Além disso, o aplicativo criou um marcador que

mostra que a mensagem recebida foi encaminhada por

outra pessoa e não escrita originalmente por ela e fez "uma

campanha de educação em larga escala no Brasil e em

outros países sobre desinformação".

Segundo a empresa, ela também começou a testar um

limite de encaminhamento de mensagens no WhatsApp –

na Índia, depois que notícias falsas compartilhadas no

aplicativo levaram ao linchamento de inocentes, foi imposto

um limite de encaminhamento para 5 pessoas por usuário.

No Brasil e no mundo, o limite é de 20 pessoas.

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