Download - Woody Allen - Cuca fundida
W>odvAllen
10m
ESSsC
CUCA FUNDIDA
WxxJyAII
cuca
fundidaTraducoo de Ruy Castro
Tiliili) da original cm ingles:
GETTING EVEN
CopyriRl»©mfifi. 1967. I')C>K, 1969. 1970, 1371 hy Woody Allen.Pane tins tiahilhoi rcproduiiJos ncsie livro furam publicadoi ]ida primcin
vci em "'The New Yorkci". Publicadu cm poniiKUcs nifdianic acoido com
Random House, Inc.
Deunho da Capa: Edgar Vusijues
iradusJn: Ruy Castro
re»i»Io: Francisco Marquts da Rocha
Dirnios para a lingua puiiUK""3 adquiridos torn
cictusividacU pm L&I'M Ed I Lores Lid a.
Rui Nova Yorquc. 306. 90 D00 ■ Pono Alcgrc ■ BS
Riu Graniie do Sul
Invcrnode 197B
no Brasil
UM LAPIS NA MAO E
UM ESPINHONO DEDO
Ruy Castro
Houvc um grande escriior amcricano, chamado
Nmlianael West, quc titiha um cspinho no dedo.
Geralmentc nan doia. So quando ele escrevia -- porquc
era o dedo quc ele usava para escrevcr. Se voces leram O
Dia do Ga£inhoto, devem ter percebido. O quc tern isso
a ver com Woody Allen? Para dizer a vcrdudc, nada,mas eu niio resisti a teni.ac.ao dc citar Nachanacl West.
Pcnsando hem, os dois tern Lima toisa em comum:
ambos se cspccializaram em vender neuroses. A diferen-
ga c quc Wesr custou a enconirar quem comprasse.
(Morreu em 1939, depois de pubHcat quatro livros que
ninguem leu, c ceve de espcrar ate que o cinema o
rtxlcscobrisse, cm 1973. para gozar de uma merecida,
pcirem efemera gloria posiuma.) E Woody Allen, voces
sabem.
Woody Icvou apenas alguns anos para fazer
sucesso da noite para o dia. Mas [ambcm nao foi facil.
Como quase lodo o mundo. ele comegou de baixo e
cusiou a dccolar. Afinal, nao dcve tcr sido brincadciranascer no Brooklyn, cm 1935. e dc uma familia pobrc.
Uma das poucas vantagens da pobreza cade que voccnao precisa escovar os dentes quatro vczcs por dia.
Quando as coisas mdhoraram urn pouco, scu pai tcntouobrigtf-lo a estudar violino, mas Woody foi safvo pelos
vizinhos, que se rcvoltaram com tanto sadismo. Anosdcpois, jii csiudantc, foi rejciiado na equipc dc xadrcz
da cscola, por causa dc sua altura. Como se nao bastasse,foi cxpulso de duas faculdades -- na primeira vez, sob a
acusacSo dc ter sonhos er6ticos durance a aula de cpis-remologia; na segunda, durance urn exame dc meta-fTsica, porquc o professor o flagrou olhando para a alma
do aluno scmado ao scu lado.
A panir de 1952, comcgou a cscrcver piadas
para comicos dc cabare e televisao. As piadas cram tao
mclhores que os comicos quc, apenas 12 anos depois,
em 1964, Woody teve permissao para subir ao palco e
dizc-las clc mesmo. No dia de sua estrcia, tcvc um
ataquc agudo de stage fright durante o cspecaculo e
perdeu a fala, mas ninguem nocou -- codos riram assimmcsmo. Essas coisas consagram um acor, mas o dono do
cabare nao achou assim: demiciu Woody e subsihuiu-o
por outro SLijeico. quc hoje esca vendendo barbacanas
para colarinhos na esquina da Rua 82 com a Rua 83, cmNova Iorquc. (Esui bcm. eu sei que essas ruas nao fazcrm
esquina, mas e por ah.)
Woody nao se apertou, Tanto quc ate se casou
com a moca que seu pai lhe havia escolhido. Natural-
mente nao deu certo. "Minha mulhcr era rigorosaraenteinfaniil", confessou Woody. "Um dia eu estava toman-do banner na banheira e cla afundou todos os mcusbarquinhos scm o menor mocivo."
Em 1965, ele teve a idcia para aqucle filme O
Que tj Que Ha, Gatinha? (What's New, Pussycat?).
Escrcveu o rotciro, us diSlogos e o seu papcl que, na-
turalmente, devia ser o principal. No entanto, osprodutores roubaram-lhe o papcl e emfregaram-no aPeter Sellers, muito mais bilheieria na epoca. Woody
teve dc contentar-se com um papel secundSrio, com oqual raubou o resto do filmc. Hoje, Peter Sellers eobrigado a aceltar os papfiis quc Woody Allen recusa.
O resto da historia voces conheccm. Woody
cometou a cscrcvcr, dirigir c intcrpretar os seus filmes e
a nao deixar que mais Rlngueon desse palpitc nelcs. Essesfilmes, por enquanto, sao Um Assaltante Bern Trapalhao
(Take die Money and Run, 1969), Banan;is (1970), TudoQuc Voce Queria S-iber Sobre Sexo (Everything You
Always Wanted To Know About Sex, 1972), O
Donninhoco (Sleeper, 1974), A Ultima Noite de Boris
Gmshuiko (Love and Death, 1975) c Noivo Neurotico,
Noiva Nervosa (Annie Hall, 1976). E, e claro, escrcveu
tambcm Sonho de um Sedutor (Play ii Again, Sam,
1973), quc deixou pani Herbert Ross dirigir, e aparcceu
num papcl serio em Testa-dt-Ferro por Acaso (The
From, 1976), dingido por Martin Ritt. Mas, depois dos
Osiares de mclhor Hlrne, melhor direcao e melhor
roteiro que ganhou com Noivo Ncurorico, nemliollywood pcrmirira que Woody Allen tiabalhc sob asordens de otitra pessoa.
Todu terga-fcira a none, elc pode scr ouvido
tocando clarinete com sua b'anda de dixieland num
clubinho mTnimo deNova lorque, chamado Michael'sPub. Eu disse ouvido, e nao visto, porque Woody se
escondc por tras da tuba. As pessoas sabem que aquele e
o Woody Allen, porque ha um cartaz na porta di/endo
isso. O mais engracado e quc clc coca hem, embora
dixieland seja aquclc npo dc miisica que so tcm graga
para quern esta tocando. Nao importa, as pcssoas lotam
o Michael's Pub, porqtic esperam que, a qualquer
momento, Woody tire o clarinetc da boca e diga alguma
coisa engracada, Mas elc nunca diz. E c a! que as pessoas
acham mais engracado ainda, porque pensam que elcCStfi se fingindo de seno. Mas, na minha opimao, o
unico que esta vendo uma graca louca naqmlo cudo e o
propno Woody. E, voltando ao clannctc, elc realmente
toca bem, mas sua unica coisa cm tomum com Benny
Goodman sao os oculos.
No meio de tudo isso, Woody ainda acha tempo
para colaborar com ccrta freqiicncia para a revista New
Yorker. Se voces conhecem o New Yorker, sabeni que e
uma das revisias mais cinques do muiido. Nos uhimos
50 anos, o sonho de todos os grandes escritores ame-
ricanos foi o de escrcver para cla. Alguns de seus co-
laboradores fixos foram Edmund Wilson, Dorothy
Parker, Robert Benclilcy, S. J. Pcrclman, Shirley Jackson,
Christopher Isherwood, Irwin Shaw, Thomas Wolfe,
John Updike. Seus cartunisLas cram James Thurber, Peter
Arno, Charles Addams e — devo acrescentar, ou sera
covardia demais? Saul Steinberg. Truman Capote
comecou la - - como boy. J. D. Salinger tambem co-
mecou la, apanhando o centeio que Harold Ross, o
editor, deixava cair no chao. Pois bem: e nessa revistaque Woody Allen publlCOU os contos que fazem pane
deste livro.
Nao penscm que escrever seja uma atividade
secundana para Woody. Seu primeiro sonho na vida nao
foi o dc ser o novo Chaplin ou Kcaion, mas o dc ser o
novo Benchlcy ou Perelman. Se continuar insistindo, v;ti
conseguir. Acham que e facil? Pergunicm a MillorFcrnandes, LuTs Fernando Vcrissimo e Ivan Lessa, que
sfio os melhores humoristas brasileiros deste momento.
Eles tern segrcdos que nao seriarn capazes dc revclar nem
se espetados a parede por um critico estruturalista. No
caso dc Woody deve Ecr sido ainda mais difkil, porque
Benchley ja morrcu e Perelman 6 muito cioso dc seus
truqucs. Portanto, Woody foi obrigado a aprcndcr rudo
sozinho. Mas nao se preocupem, elc esta indo muiio
bem.
Dc "Viva Vargas", por excmplo, saiu a historia
para Bananas. Varias situagOcs dcste OU daquele conto
recorrem ncste ou naquclc filmc. Elc nunca joga nada
fora, no que faz muito bem, nesses tempos mcio
rucos. O forte dc Woody sao as parodias. como voces vao
descobnr. E nao torcam o nanz, porque Don Quixote
lambem era uma espeeic dc ])ar6dia. Bem, vejamos
agora. Woody Allen sera um escritot profundo ou
profundamente eiignu,ado? Tanto faz. Ha quern ria deMark Twain e chore lendo John Steinbeck, por mais que
isso parcc.a ndTculo. Na minha opiniao, devia ser o
contrario.
Ah, sim, aquela liiscoria do Nathanael West.
Atho que Woody Allen tambcm tem um cspinho no
dedo, provavelnientc debaixo da unha e ja bem
inflamado, c devc doer muito. Mas nao em mini. E foi
por isso que cu mesmo ri muito enquanto iraduzia estes
contos.
INDICE
O Cara ;j
Os Rois de Metterling 27
A Morte Bate a Porta 35
Uma Espiada no Crime Organizado 51
Minha Filasofia ... 57
A Historia de Uma Grande Jnven^ao 63
Como Realfabetizar um Adulto 69Conlos Hassidicos 75
Correspondencia entre Gassage e Vardebedian gj
Refiexoes de um Bern — Alimentado gj
OsAnos 20Eram UmaFesta 99
Conde Dracula 105
Um Pouco Mais Alto Por Favor 113
Canversacdes com Helmholz J2J
Viva Vargas! 120
Descoberta e Uso do Respingo Imaginario 139
As Memorias de Schmeed 743
OCara
Eu estava tranqililamentc cm mcu cscrit6rio,limpando os restos dc polvora do mcu 38, c imaginando
qual scria o mcu proximo caso, Gosto muito dessa
profissao dc dctetlve particular e, embora cla me obriguedc vez cm quando a ter as gengivas massagcadas com
urn macaco dc auiomovcl, o aroma das abobrinhas ate
que faz a coisa valcr a pena. Scm falar nas mulhercs, nas
quais nao costumo pensar muito, exceto quando cstou
rcspiraiido. Assim, quando a porta do mcu escritorio sc
abriu e uma loura de cabdos compridos, chamada
Heather But kiss, en trail rcbolando e dizendo que posava
para dclcrminadas rcvistas c que prctisava de minha
aiuda, minhas glandulas salivares passaram uma terceira
e ;nclcraram. Estava de minissaia e usava uma camiseia
justa, linlia mais curva do que uma cabcla cstatistica c
seria capaz de provoiar uma parada cardtaca ate num
caribu.
13
"O que quer que eu faga, meu bern?" —
pcrguntei logo, para nao criar maiores iniimidndes.
"Quero quc encontre uma pcssoa."
"Um;i pcssoa desaparecida? Ja icntou ;i poli-cia?"
"Nao cxatuinemc, Sr. Lupowiu."
"Podc me chamar de Kaiser, meu bem. OK,quem 0 o cara?"
"Dcus."
"Deus?"
"Isso mesmo. Dcus. O Criador, o PrincTpio dcTodas as Coisas, o Oniscicntc, Oniprcseiue c Onipoicn-te. Qucro quc O entomrc para mini."
Olhcm, ja live alguns malucos no cscrimrioantes, mas, mm uma forma ffsica daqnelas, vocc c
obn^ado a ouvir.
"Por que qucr quc cu ce encontrc Dcus?"
"Isso c da minha coma, Kaiser. So qucro quc Oencontre."
"OIhe, meu bern, acho que vote procumu odciciive errado."
"Por que?"
"A menos que vote me de os dados."
"Esia bem, eu dou", ela rcspondcu, mordis-cando ligeiramente o I5bio inferior e levancando a saiapara ajusiar as meias. la no alto das coxas, so porquc viu
14
quc eu estava olhando. Natuntlmente, fiz dc conta que
nSo vi.
"Vamos jogar limpo, meu bem" —cu disse,
implaciivel.
"Bem, a verdade c — cu nao poso para revista
nenhuma."
"Nao?1'
"Nao. Nem meu nome e Heather Butkiss.
Chamo-me Claire Rosensweig e sou esmdamc dc fi-
lusofia. Historia do Pensamento Ocidcntal, voce sabe.
Tcnbo quc cntrcgar minha ccsc ace Janeiro. Sobrc 2
rcligiao ocidental. Todos os metis colegas escao pre-
parando ccscs espcculativas. Mas, na minhn, quero ter
otatewi. O Professor Grebanier dissc que se aljutem
provar alguma coisa, ganhara nota maxima. E papal
dissc quc me dana um Mercedes se eu conscguisse."
Abri um maco dc Lucky Strike c um pacotinho
de chicletcs e enfiei um de cada na boca. A historia dela
estava comecando a me interessar. Inielectiialoide
mimada, Corpo nota 10: e um QI que eu gostaria deconhecet melhor.
"Podc me dar uma destrit,So de Deus?"
"NuncaOvi."
"Entao como sabe que Ele cxisce?"
"Isso compete a vote descobrir."
"Oh, que otimo! Qucr dizer que vote nao sabecomo e a cara Dele e nem por ondc devo comecar?"
"Para dizer a verdade, nao. Embora eu suspeite
que Ele esteja em toda pane. No ar, nas flores, cm voce,
15
em mini — tatvez ate nesta cadeira."
"Estou entendendo." Ela era pantefeta, Tomeinota mentalmente daquilo c promcti que iria dar uma
cspiada por ai - - por 100 dolares ao dia, mai.s as des-
pesas e um convite para jantar. Ela sorriu e disse tudobcni. Dcsccmos juntos pclo clcvador. Esrava ficando
escuro la fora. Podia ser que Deus existisse, mas o certo c
que havia naqucla cidade um bando dc caras que iriam
tt'ntar me impedir dc enconrraMo,
Minha primeira pista era o Rabino Itzhak
Wiseman, que ha tempos me devia um favor por eu tcr
desfobeno qucm estava esfregando came de porco em
scu chapeu. Desconfiei dc que havia algum perigo
iminente, porquc ele esiava apavorado quando oprocure!.
"E claro que Este de quem voce esra falando
existe, mas nao posso ncm dizcr Seu nome, scnilo Ele
me fulminacom um raio. Nao consigo entender por que
alguns sao tao sensfveis quanto a um simples nome."
"Ja O viu alguma vez?"
"Se eu O vi? Voce deve estar maluco. Posso me
dar por feliz quando consigo ver meus necos. "
"Entao como sabe que Ele existe?"
"Que pcrgunta mais cretina! Como cu podcria
usar um terno caro como esse se Ele nao cxistisse? Olhe
aqui, sinta o tecido. Carlssimo! Como posso duvidar de
sua existencia?"
"Mas s6 isso?"
"E voce acha pouco? E o Velho Testamento, oque acha que c? Um SUplemento esportivo? E como acha
16
quc Moiscs cunduziu os hebrcus para fora do Egito?Sapaieando c gritando oba? E podc me acreditar: eprcciso rnais do quc um alisador de cabelo para domar ascmdas cncapeladas do Mar Vermelho c reparti-las aomcio. E precise poder!"
"Qucr dizer quc o Homcm c durao, hem?"
"Durissimo. Mais do quc vote pensa."
"E como sabe disso tudo?"
"Torque nos somos os clcitOS. Cuida de nos
como dc Scus filhos c, alias, estc e um assunto quealburn dia ainda vou discuiircom Ele."
"O quc vote paga a Elc para scr um dos clci-tos?"
"Niio posso respondcr."
E foi isso aT. Os judeus cstavam codos nocsqucma. Sabem, aqucla vclha io^ada dc pagar pro-tcfiSo. Toma la, da ca. E, pelo quc o Rabino falava, Elclomava mais do quc dava. Peguei um taxi c fui aoDanny, um salao dc bilharcs na 10.' Avcnida. O gcren-
te era um sujcitinho raquttico c ligeiramente morrinha.
"Chicago Phil csifl por aqui?" - pcrguntci.
"Qucm esta querendo saber?"
Agarrei-o pelas lapclas, no quc devo tcr tam-bem agarrado alguma pele.
"O quc vote perguntou, seu merda?"
"Estd l:i iick fundos", ele rcspondeu, rnudandosubiiameme dc atitude.
17
Chicago Phil. Falsificador, assalranre dc bancos,
meliante tristementc celebrc e arcu confesso.
"O Cara nSo cxistc, Kaiser. O rcsto c convcrsa
fiiida. Cascata pura. Essa histona dc Chcfao c farol. Na
rcalidade, e uma quadrilha mteira quc age cm Scu
nome. A maior partc sicilianos. Internacional, sacou?
Mas scm cssa dc dizer quc urn deles c O Cara. So se for
o Papa."
"Gostaria dc talar com o Papa", arrisquei.
"Posso vcr isso pra voce", respondeu, me
dando uma piscadcla.
"O nome Claire Roscnsweig significa alguma
coisa pra voce?"
"Nao."
"E Headier Butkiss?"
"Buikiss? Hei, claro! E aquela oxigenada quc
esiuda meiafisica."
"Mciafisica? Ela dissc filosofia!"
"Esiava mentindo. E professora dc metaffsica.
Andou transando por uns tempos com urn professor dc
filosofia."
"Panteista?"
"Nao. Empiricism, se bem me lembro. Um
reacionario. Rejeitou compleiamenic Hcgcl ou qualquer
omra meiodologia dialetica."
"Um daquclcs, nao e?"
'Isso mesmo. Antigamcntc, tocava bateria num
18
trio de jazz. Depois sc viciou em Positivismo Logico.
Quando isso tambcm mixou, tenrou Pragmatismo. A
ultima noticia que ouvi dele foi a de que tinha roubado
uma fortuna para fazer um curso de Sdiopenhaucr naUniversidade de Columbia. A quadrilha anda arras dele
— para pegar suas apostilas e vcnde-las por bom prcco."
."Obrigado, Phil."
"Va por mim. Kaiser. O Cara nao existe.
Branco total. En nao passaria mcrade dos cheques sem
fundo ou engrupiria os outros, como faco, se tivesse a
menor sensacilo da autenticidade do Ser. O univcrso e
estritamentc fcnomenologico. Nada e etcrno. Tudo e
sem sentido."
"Quern ganhou o 5.° pareo?"
"Santa Baby."
Tomei uma ccrveja numa birosca chamada
O'Rourke's e tentei juntar as pontas, mas nada lifjava
com nada. Socrates tinha se suicidado - - pclo menos,
era o quc corria pelas bocas. Cristo fora assassinado.
Nietzsche pirara de vez. Sc o Cara realmcnte cxistisse,
nao qucria que ninguem rivessc cencza. E por que
Claire Rosenswcig teria mentido? Sera que Descartes
estava terto? O univcrso era mesmo dualfsrico? Ou a
razSo cstaria com Kant, que condicionou a existencia dc
Deus a certos padroes morais?
Aqucla noitc fui jantar com Claire. Dez mi-nutos depois dc pagar a conta, ja estavamos na horizon
tal e voces podcm pensar o que quisercm, desde quc se
trate de Pcnsamenio Ocidcmal. Ela teria ganho me-
dalhas dc ouro cm varias provas olimpicas, inclusive salto
com vara e 100 metros dc peito. Em seguida, deitou-se
no travesseiro ao meu lado, ocupando tambem o meu
19
travessciro com sua cabcleira, Aixndi um cigarro e,enquanto olhava para o teto, perguntci:
"Claire, e se Kierkegaard estivesse certo?"
"Sobre o que?"
"Sobre i) conhecimento, o verdadciro conhe-
cimento. E se dependesse d;i nossa fe?"
"Isso e absurdo."
"Nao seja tao racional."
"Nao e.siou sendo racional, Kaiser."Ela tam-
bem acendeu um cigarro. "Nao me venha com esse
papo ontologico, Pelo menos agora. Nao esrou com
saco."
Ela cstava perturbada. Quando me intlinei para
beijii-la, o telefonc tocou. Ela aiendcu.
"E pra vocc."
A voz do outro lado era a do Sargenio Reed, da
Homicidios.
"Continue procurando Dcus?"
"Continuo."
"0 ral Onipresence, Onisciente e Onipotente?Criadar de Todas as Coisas e tal e coisa?"
"Ele mesmo."
"Alguem com cssa descrigao pin ton no nc-
croteno. Venha dar uma nihada."
Fui correndo. Quando cheguei la, nao civc
duvidas: era Ele. E, pelo Seu aspecto, cinlia sido um
20
trabalho professional. Bad um rapido papo coin o tira depiantao.
"Ja estava mono quando O trouxcram", clc
disse.
"Onde O encontraram?"
"Num armazem do suburbio."
"Alguma pisca?"
1 'Trabalho de um existcncialisca. Isso e obvio.''
"Como sabem?"
"Scm metodo, aleatorio, como se nao Seguisse
nenhum sistema. Puro impulso."
"Um impulso irrcsistivel?"
"E isso af. Logo, voce c um dos suspcitos,
Kaiser."
'■Eli??? Porqutf?"
"Todo mundo sabe como vocc sc sentia sobrcElc."
"Es:;i tcrto, mas isso nao qucr dizcr qu'e eu O
tenha matado."
"Por enquanto nao, mas c um dos suspcitos."
La fora, na rua, respird fundo c tentci clarcar a
tabeca. Tornci um taxi para Newark c, lit chegando,
caminhei mais um quancirao c cmrci num rcstaurantc
Ualiano chamado Giordino's. Claro, numa mesa dosfundos, la estava Sua Santidade. Era o Papa, scm du-
vida. Sc[itado cnire dois caras que eu ia liuha vistonuma lista de Mais Procurados.
21
Elc mal lcvantou os olhos de scu fettucine.
Apenas disse:
"Scmc-se." Estcndcu-me o anel. Abri meu
melhor sorriso, mas nao o beijei. Ele ficou dcsaponcado
e eu achci otimo. 1 a 0 para mim.
"Esta servido de fettucine?"
"Obrigado, Sancidade. Mandc brasa."
"Nao quer nada? Nem salada?"
"Acabci de comer."
"Como quiser, mas depois nao se queixe. O
tcmpcro aqui e otimo. Ao concrario do Vaticano, onde
nao conseguem fazcr nada comivel."
"Pretendo ir direto ao assunto, Ponrifice. Estou
a protura de Deus."
"Pois veio a pessoa certa."
"Quer dizer que Ele existe?"
Os cres riram muito. O cara ao meu lado disse:
"Que gracinha! O rapaz quer saber se Ele existe!"
Procure] uma posigao mais confortavcl na ca-
deira e depositei todo o peso do meu pe sobre seu dedo
mindinho. "Desculpe". Mas notei que elc tinha ficado
uma onga. O Papa cominuou:
"Claro que existe, Lupowitz. Mas eu sou o
unico que se comunica com Ele. Sou o Scu porta-voz."
"Porquevocc, meuchapa?"
"Porque so eu uso essa tunica vcrmelha."
22
"Esse roupao ai?"
"Nao zombe. Toda a manha, quando me levan-
to, visto csta tunica c penso comigo: Estao falando com
Ele! O habito faz o monge. Pense bcm: se cu andasse
por at, de jeans e rabo-de-cavalo, acabaria sendo preso
por vadiagem."
"Qucr dizcr que e tudo cascata. Nao existe
Deus."
"Nao sei. Mas que difcrcnca faz?"
"Vote nunca pensou que a lavanderia podia
atrasar a enirejja da sua tunica, rornando-o igualzinho a
nos?"
"Uso sempre o servigo urgente. Vale a pena, so
pra garantir."
"Claire Roscnswcig qucr dizer alguma coisa?"
"Claro. Trabalha no Departarncnto de Cicncias
de uma faculdadc dessas por at."
"Ciencias, vocc disse? Obrigado!"
"Obrigado por que?"
"Peia resposra, Ponttfice."
Peguei o primeiro taxi (o qual foi o quarto ou o
qulnto), e me mandci. No caminho parei cm mcu
escritorio c chequci algumas coisas. Enquanto dirigia
para o apartamento dc Claire, juntei as pegas do quebra-
cabec.a e, pela primcira vez, elas se ajustaram. Quando
Claire abriu a ports, usava um peignoir diafano e parecia
grilada.
"Dcus morreu! A poltcia esteve aqui. Escao tc
23
procurando. Acfaam que o criminoso foi urn existen-cialista."
"Nada disso, mcu bem. Foi vocc."
"Corta essa, rapaz."
"Foi vocc quern o matou."
"Quc histona e essa?"
"Voce mesma. Ncm Headier ButklSS nem
Claire Roscnsweig, mas simplesmenrc Dra. EllenShepherd."
"Como descobriu meu nomc?"
"Professora de fTska na Universidade de Bryn
Mawr. A mais jovem catednitica dc todos os tempos porla. Nas ferias deste ano ligou-se a um batcrisca de jazz,
viciado em filosofia. Ele era casado, mas isso nSo aimpediu. Passou com ele uma ou duas noites e achouque cstava apaixonada. Mas nao deu ccrto porque
AIgu£m se intcrpos entre voces: Deus. Sacou, men bem?
■Ele acreditava no Cara, mas voce, com a sua menteesiritameme cientifica, precisava ter certeza."
"Nao e nada disso, Kaiser. Eu juro!"
"Assim voce fingiu estudar filosofia porque isto
Ihe daria uma chance para eliminar certos obstaculos.Livrou-sc dc Socrates com terra facilidade, mas atDescartes entrou em cena c vocc serviu-sc dt- Spinozapara vcr-se livrc de Descartes. Mas quando Kant apa-
rcceu, vocc descobriu que linha de livrar-se dele tam-bcm."
"Voce nao sabe o que csta dizendo."
"Entxegou Leibnitz as baratas, mus isso nao
24
bastava, porque vocc sabia que se algucm acrcditassc em
Pascal voce estaria pcrdida, e assim tinha dc livrar-sc
dele lambcm. Mas foi aT que voce comctcu um crro,
porque confiou em Martin Buber. E o erro foi o dc que
ele acrcditava cm Deus.. Portanto, vocc mesma tcve dematar Dcus."
"Kaiser, vocc esta louco!"
"Nao, meu bem. Vocc sc fingiu dc pantefsta e
isto Ihe deu accsso a Eie — se Ele cxistisse, como cxiste.
Foi com vocc a festa de Shelby c, quando Jason cstava
distratdo, voce O matou."
"Quern sao Shelby c Jason?"
"E que difcrenc.a faz? A vida c absurda assim
mesnio."
Ela comccou a trcmcr.
"Kaiser, voce nao vai me entregar, vai?"
"Claro que vou, meu bem. Quando Deus e
mandado para o pijama-de-madeira, algucm tern depagar a conta."
"Oh, Kaiser, vamos fugir juntos. So nos dois!
Vamos esquecer essa historia dc filosofla c nos dedicar-
mos, quern sabe, a semantical"
"Nada feito, meu bem. Ja csta decidido."
Ela dcbulhou-se em lagrimas ciiquanto descia as
algas de scu peignoir c, num instantc, eu estava diante de
Lima Venus nuacujo corpo parecia dizer: Pcguc-mc —
Sou toda sua. Uma Venus cuja mao dircita me Fazia
cafune nos cabelos, enquanto sua mao csqucrda me
apontava uma .45 na DUCa. Desviei-mc com um sopctao
25
c esvaziei o meu .38 cm scu Undo corpo antes quc cla
puxasse o gatllho. Delxou cair a arma e fez uma cara dc
quem nSo estava acreditando no quc acabara dc acap-
tccer.
"Comu foi capa2 dc fazcr isso, Kaiser?"
Ela estava rnorrendo depressa, mas amda tivc
tempo de dar-lhe o golpc dc miscricordia.
"A manifestaeSo do universo como uma i
complexa cm si mesma, cm oposigao a csiar no interior
ou no exterior do proprio c vcrdadciro Scr, c, incrcn-
temente, um nada conceitual ou um Nada cm relagao a
qualqucr forma abstrata dc cxistencia, dc cxistir ou de
tcr cxistido pcrpciuamcntc, scm cstar sujcita as leis de
fiskalidade, dc movimento on dc idcias rclativas a
aniimateria ou a falta de um Ser objetivo ou a um Nada
subjetivo."
Foi uma dcfinic;ao sutil, mas acbo que ela
cntendeu muito bem antes dc morrer.
Os Rois de Metterling
Venal & Filhos, Editorcs publicaram ftnalmcn-
te o esperadTssimo primeiro volume dos rois de roupa de
Metterling (Rois de Roupa Reunidos de Hans
Metterling, Vol. I, 437 pp., mais XXXII paginas de
introducao; com index; $18.75), ennquecido por um
cmdito ensaio do celebre especialista em Mctterling,
Gunther Eisenbud. A decisao de publitar esta obra
separadamente, antes da conclusao da monumental
oeuvre de quatro volumes, e oportuna e inteligcntc,
acabando de vcz com os boatos de quc Venal & Filhos,
tendo ganho a burra do dinheiro com os romances,
pec.as, anotagoes, diarios e cartas de Metterling, estariam
apenas insistindo em raspar o fundo do cofre. Como
se cnganaram esses fofoqueiros! Com cfeito, o primeiro
rol de roupa de Metterling,
ROL N." 1
6 cuecas
4 camisctas
27
6 pares dc mcias azuis
A camisas azuis
2 camisas brancas
6 lengos
Sem goma,
c uma perfeita introducao a cscc genio confu-so, conhendo por seus contemporancos como "o Bruxodc Praga". EstC rol foi rascunhado na cpoca cm quc
Mcttcrling cscreveu As Confissoes de um Queiio
Monsiruoso, obra dc imprcssionante importance
filosofica, na qua] prova qucKani nSo apenas se enganousobrc o univcrso como tambcm nunca pagou uma uonta.
A avcrsao dc Mcrtcrling a goma £ tlpica daquele tempo
e, quando a tintutaria dcvolveu-lhc cudo cngomado, cleficou deprimido e rabugento. Sua senhoria, FranWeiscr, relatou a amigos quc "Hen Merterling passa
dias imciros trancado no quarto, I;tmuriando-se porquccngomaram suas camisas". E, como sabemos, Breucr ja
havia cnunciado a rclacao entrc ccroulas cngomadas e aconstantc sensagao dc Mcncrling, dc cstar sendo comen-
tado na vizinhanca porhomensdepapadas (Metterling:Psicose Paranoico-Depressiva e os Primeiros Rois,
Zciss Editora). O tema da incapacidade de scguir
instrucocs aparccc tambem na unica peca dc Mctterling,Asm a, na ccna em que Nccdlcman serve por engano a
Valhalla uma bola dc tcnis amaldicoada.
O obvio enigma do segundo rol,
ROL N.°2
7 cuecas
5 camisetas
7 pares dc mcias prctas
28
6 camisas azuis
6 lengos
Sem goma,
consiste aos sere pares de meias pretas, pois, como c
publico e nosorio, Mettcrling tinha uma fanatka prc-
ferencia pelas azuis. Dc fato, a simples mencao de uma
cor difcrente em bastante para enfurece-lo e, certa vcz,
chegou a desfcitcar Rilkc porque o poeta manifestara um
relativo apreco por mulheres de olhos castanhos.
Segundo Anna Freud ("As Meias de Metterling como
Exprcssao da Mae FSlica", Journal of Psychoanalysis,
nov. dc 1935), sua inesptrada mudanca para meias mais
escuras devcu-se a um desaponiamcnto no' "Incidence
Bayreuth". Pareee que Metterling espirrou escanda-
losamente duraiue o primciro ato dc Tristao, fazendo
voar longe a peruca de um rico freqiiemador da opera
sentado a sua frcnie. A placcia se revoltou, mas Wafiner
o delendeu, torn a sua hoje cliissica observagao dc que
"Todo mundo espirra". Mas, no mesmo instantc,
Cosima Wagner prormmpeu cm lagnmas e acusou
Mcnerling de sabotar a obra de seu marido.
Que Metterling estava dc olho em Cosima
Wagner, e mais do que sabido, porque nuiRuem ignora
o faio de que elc tomou-lhe a mao uma vvz em Leipzig
c, dc novo, quatro anos depois, no Vale do Rubr. Em
Dani/ig, referiu-se maiiciosamente a sua tibia durante
uma ifmpcsiade, e foi ai que Cosima dccidiu nunca
mais ve-lo. Voliando para casa completamcntc cxausto,
Meiicrling esireveu Os Pensamentos de uma Galinlia
e dedicou o manuscrito original aos Wagners. Quando
estcs usaram o manuscrito para calgar uma pcrna de
mesa, Metterling embirrou c passou a usar meias pretas.
Sua criada implorou-lhc para que se maiuivcsse fie I ao
29
azul ou pclo mcnos temasse o marram, mas Mctterling
rcspondeu-lhe com grosscria: "Cale a boca, sua porca! Equc tal mcias xadrez, hem?"
No tcrcciro rol,
ROL N.° 3
6 lencos
5 camisetas
8 pares dc meias
3 lencois
2 fronhas,
a roupa dc cama e mcncionada pcla primcira vez.
Mctterling tinha grandc afeicao por roupas de cama,
particularmcnte fronhas, que elc e sua irma, quandocriangas, usavam para cobrir a cabeca ao brincar dc
fantasmas, ate o dia em quc cic despencou do pcnhasco.
Mctterling gostava dc dormir cm lencois limpos, a
excmplo de sens personagens dc ficcao. Horst Wasser-
man, o scrralhciro impotcntc dc File de Herring,
comere assassinio por causa de urn lencol mal lavado, e
Jenny, cm O Dedo do Pastor, so aceita ir para a cama
com Klincman (a quem cla odcia, porqtie ele besuntou
sua mae com mameiga) porquc assim iria "dormir cntre
Icncois macios". Foi uma pena que a tinturaria nunca
tivesse satisfeito as exigentias dc Metterling com sua
roupa dc cama, mas prcsumir, como fc7. Pfalrz, que foi
isio quc o impcdiu dc termmar Aonde foste, Cretino
e absurdo. Metterling dava-se ao luxo de lavar fora seus
lencois, mas nunca sc tomou dependente dc uma lavan-dcria.
O que impediu Mcctcrling de concluir sua
30
planejada obru poctita foi urn romance frustrado, de
que ha indicates no ce"lebre 4." rol:
4." ROL
7 cuecas
6 tencos
7 pares dc mcias pretas
Sem goma
Urgentissirao
Em 1SH4, Metterling conheceu Lou Andreas-
Salomc c, a partir dat. passou a exigir que sun roupa
fosse lavada diariamentc. Na verdade, os dois fbfamapresencados por Nietzsche, que disse a Lou quc
Metterling tanto podia scr um genio quanto urn (diota eque cornpetia a ela descobtir. Naquela fipoca, o servico
Litgentissinio comecava a sc tornar popular nas lavan-derias do Coniinente, princtpalmente eotre inteleciuais,e a inovagao entusiasmou Mctierling. Primeiro, porque
era pontual, e Metterling era fanauco por pontualidadc.
Chegava sempre adiantado a qualqucr encontro
algumas vezes, ate varios dias adiantado, e de tal formaque tinlia de ser alojado num quarto de hospedes. Lou
tambem adorava reccber trouxas de roupa limpa diariamentc. Parecia uma crianca com um brinquedo novo,
levando Metterling para passear no bosque e la abnndo aultima remessa. Ela simplcsmcnte amava seus lencos e
camisetas, mas <> de que mais gostava eram suas cuecas.
Chegou a escrever a Nietzsche que as cuecas deMetterling era ;i eoisa mais sublime que fa. tinha visto,
nisto incluindo Assim Fatava Zaratustra. Nietzsche
fazia de coma que nao sc importava, mas sempre teve
ciunies das ceroulas dc Mctterlling e confidenciou a
31
amigos quc achava isto "hegeliano ao extremo". LouSalome c Metterling scpararam-se apos a Grande Fomede Melado, dc IHHG, e, enquamo Mctterling esqucccuLou, ela nunca se refez do choque.
O 5." rol,
ROL N." 5
6 camisctas
6 cuecas
6 lencos,
sempre tntrigou aos cstudiosos, principalmentc por causada total ausencia de meias. (Dc fato, Thomas Mann,anos depois, ficou tao obcecado pclo problcma queescreveu uma pega inteira a respcito, As Peugas deMoists, que acidcntalmente dcixou cair denrro dc um
bociro.) Por quc tera este Mcttcrling, dc rcpenrc, eii-minado as meias de seu rol scmanal? Niio porque, comoacreditam alguns scholars, aquilo fosse um indicio desua iminentc insanidadc, embora a essa altura Metterling ja comegasse a dar sinais dc um comportamento
estranho. Um desses sinais era a mania de que cstavasendo scguido ou que csrava scguindo alguem. ChegOUa revclar a amigos a cxistencia de um piano sinisuo,urdido pclo govcrno, para roubarseu queixo. Em outraocasiao, dc ferias em Jena, passou quatro dias intciros
sem dizcr outra palavra scnao "berinjela". No en tamo,esses ataqucs eram csporadicos e nao justificam a falta das
meias. Nem a sua admirac.3o por Kafka, quc, por umbreve periodo, tambem parou de usar meias por causade um semimento de culpa. Mas Eisenbud DOS asscguraquc Metterling continuou a usar meias. Apenas dcixoudc manda-las para a lavanderia! Por quc? Porque, nessa
32
epoui, elc contratou uma nova criada, Fran Milner, qucofcrcccu-se para lavar suas mcias no tanque — um gcsio
que o comoveu dc tal forma quc ele Ihe deixou coda a
sua foriLina. a qual tonsistia dc um chapeu preto c umabolsa dc fumo. Ela serviu dc modclo para o pcrsonagcmdc Hilda em sua alcgoria cftmica.O Nenem de MamaeBrand i.
Evidcntcmcntc, a pcrsonalidadc dc Mcttcrling
comejou a ir para a cucuia cm 1894, se se podc dcduziralgurna coisa do 6." rol:
ROL N.° 6
25 Icngos
1 camiseta
5 cuecas
I mcia,
c nao chega a surprccnder o fato de que, ncsta cpoca,
elc comcgou a fazer analisc com Freud. Metterling
conheccra Freud anos airas em Vicna, quando ambosestivcram prcsentcs a uma rcprescntagao de Edipo Rei,
da qual Freud sain carrcgado e suando frio. Suas scssocsforam agitadas c Metterling muito agressivo, sc c quc
podemos confiat nas anota^oes de Freud. Ceria vezamcagou engomar a barba de Freud c dizia frcqiien-
tcmentc que ele Ihe Icmbrava seu tinmrciro. Gradual-
mentc, o cstranho relacionameuio dc Mettcrling com
seu pai comecou a vir a tona. (Os estudiosos dcMettcriing conbecem bem o seu pai, um insignificante
runcionaria pOblico que se comprazia cm liumilha-lo,comparando-o a uma salsichaO Freud relata um sonhofundamental quc Mettcrling Ihe tcria descrito:
33
"Estou jantando com alguns amigos quando
cntra um homcm puxando uma cravcssa de sopa por
uma coleira. Acusa minhas ceroulas de tnucao e, quando
uma scnhora tenta me defender, sua lesta despenca da
cabcqa. Atho isto engragado no sonho c rio. Em scguida,
todos comecam a rir tambem, cxceto meu timureiro,
qut me olha com ar severe e comega a despejar mingau
de aveia nos ouvidos. Entra meu pai, apanha no chao a
testa da tal mulher e foge com ela. Corre ace a praca,
gritando; 'Finalmcnte! Finalmente! Uma testa so para
mini! Agora nSo preciso dcpcndcr do cstupido do meu
filho!' No sonho, isio me deprime e sou acomeiido por
um intenso desejo de bcijar a roupa suja do Burgomes-
tre." (Aqui o pacicnte comcca a tliorar e esquecc o resto
do sonho.)
Com o que deprcendeu deste sonho, Freud
pode ajudar Metterling c os dois tornaram-sc bons
amigos nas boras vagas, embora Freud nunca sc atrcvesse
a dar-lbe as costas.
No Volume II, pelo que se anuncia, Eisenbud
analisara do 7." ao 25." rol, inclusive os anos em que o
proprio Metterling lavou a sua roupa suja e o pateiico
desentendimento com o chines da esquina.
34
AMorte Bate a Porta
Pcqa cm 1 ato
(A acao da peca se passa no quarto de Nat Ackerman, na
uta mansao em Kew Gardens. O quarto e atapetado. Hauma cama de casa/ e uma etwrme penteadeira. Amobilia e as cortinas sao luxuosas. Nas'paredes, diversosquadras e un: barometro de nao muito bom gosto.Mi'mca suave enquanto a cortina sobe. Nat Ackerman
(5! anas, calvo, ligeiramente gordo, proprietario de umaconfeccao) estd deitado na cama, acabando de ler ojornal do dia seguinte. Esta de roupao e chinelos, e le aluz de urn pequeno abajur preso no espa/dar da cama. Equase meia-noite. De repente, ouve-se urn barulhoestranho e Nat se levanta e vai ateaJane/a.)
Nat: Que diabo estii havendo at?
{Subindo desajeitadamente pe/a janela, aparece uma-xombria ftgura embufada. O intruso usa urn capuznegro e uma roupa justa, tambem negra. O capuz cobre
sua cabeca, mas nao seu rosto, o qua/ aparenta meia-
idade e e branco como gesso. Parece-se um pouco com
Nat. Arfa audivelmente, passa uma perna pelo parapeito
e desaba dentro do quarto.)
Morte (claro, quern mais podia ser?): Dcus
do ecu, quasc quebrei o pesco^o!
Nat (de olhos arresalados): Quem e voc6?
Morte: A Morte.
Nat: Quem?
Morte: A Morte, po! Escucc - - posso me sen-
tar? Quasi: fui para o bddeu. Olhe so como cstou
tremendo.
Nat: QUEM E VOCE?
Morte: A Morte, que diabo! Podc me arranjar
um copo dtigua?
Nat: Morte? O que voce quer dizercom Morte?
Morte: Esta cego, rapaz? Nfto cstii vendo o
capuz preto c a cara branca?
Nat: Estou.
Morte: E hoje c Dia das Bruxas?
Nat: Nao.
Morte: Entao en so posso ser a Morte. Posso
tomar um copo dagua? Mineral com gas, de prefcrencia.
Nat: Escute, se isto for alguma piada...
Morte: Que piada? Olhc aqui, vocfi nao 0 Nat
Ackerman, 57 anos, morador na Pacific Street, 118? So
se eu tivcr trocado os endtrccos. AgUerna al. (Cata nos
36
bolsos um cartao, le-o em voz alta. Confere. )
Nat: 0 quc vote qucr comigo?
Morte: O que eu quero? Que pcrgunta mais
id iota!
Nat: Devc haver um engano. Estou em perfeitasaude.
Morte: Sei, sei. (Olhando em volta.) Bonitolugar, e'ste aqui. Voces mcsmos o decoraram?
Nat: Contratamos uma decoradora, mas nostambem ajudamos.
Morte (conternplando um quadro na pa-
rede): Adoro crianc.as de olhos esbugalhados.
Nat: Olhc, ainda nao quero morrer.
Morte: Voce nao quer morrcr? Por favor, nao
comece com isso. Ainda estou zonzo com a subida.
Nat: Qua! subida?
Morte: Subi pels calha. Estava teniando fazer
uma entrada sensational. Vi as janelas abertas, voce
lendo o jornal c achei que valia a pena tentar. Era so
subir pela calha e entrar com um certo —■ voce sabe...(Estala os dedos.) So que, bem no meio do caminho,
prendi o pc nuraa trepadeira, a calha quebrou, fiqueipendurado por um fio e minha capa- comecou a rasgar.Agora chega de conversa. Vamos embora. E.sta noite estaterrlvel.
Nat: Voce qucbrou minha calha?
Morte: Nao, n3o quebrei. So a cntortei um
pouco. Voce nao ouviu quando cu despenquei la de
cima?
37
Nai: Estava lendo.
Morte: Devia ser uma leitura muito absorvcn-
tc. (Pega o jornal que Nat estava lendo.) PIRA
NHAS FLAGRADAS PUXANDO FUMO. Posso Ic-
var isso?
Nat: Ainda nao tcrminei.
Morte: Olhc... Hmmm... Nao sci cxatamcntc
como lhc dizcr, xara...
Nat: Por que nao tocou a campainha la
embaixo?
Morte: Podia ter feito isto, mas o que voce ia
achar? Entrando pcla janela, pelo menos fica mais
ccatral. Sacume? Vocc nunca leu Fausto?
Nat: O que?
Morte: E se voce tivesse visitas? Toco a cam
painha, encro em cena e voce esta scrvindo drinqucs a
uma pessoa imporcante. Com que cara cu fico?
Nat: Olha, meu chapa, ja esta muito tarde.
Morte: Tambem acho. Bern, vamos?
Nat: Vamos pra onde?
Morte: Pra Morte. Aquclc lugar, sabc, nc? As
Profundas. La ondc o Judas perdeu as botas. (Olhando
para o proprio joelho.) Puxa, me cortci fcio. Era so o
que faltava: pegar uma gangrena logo no primciro dia
dc trabalho.
Nat: Espere um minuto! Paxiso de tempo,ainda nao estou pronto!
38
Morte: Desculpc, mas nao da. Gostaria de
ajudar, mas a hora e essa.
Nat: Mas nao pode ser! Acabo de fechar umnegocio com 500 butiqucs!
Morte: Qual a diferenca, um mtsero dinhei-rinho a mais ou a menos?
Nat: E, voces nao se importam! Devem ter
todas as despcsas pagas, nao e???
Morte: Como e, vamos ou nao vamos?
Nat (olhando-o de alto a baixo ): Ainda nao
acredito quc vocc scja a Mortc.
Morte: Por quc nao? Estava esperando qucm?
Rock Hudson?
Nat: Nao, nao e isto.
Morte: Desculpc sc o desapontci.
Nat: Nao se desculpc! Sabe, e que sempre acheiquc vocc fosse... um pouco mais alto, sei la...
Morte: Tcnho I metro e 60. Esta bom para o
mcu peso.
Nat: Voce se parecc um pouco comigo...
Morte: E com quern queria que eu me parcces-
se? Afinal, eu sou a sua Morte!
Nat: Me dc mais algum cempo! Talvez mais umdia!
Morte: Nao da pc.
Nat: So mais um dia! 24 horas!
39
Morte: Para que mais um dia? 0 radio disse
que vai chover amanha.
Nat: Sera que nao podiamos entrar num
acordo?
Morte: Porexemplo?
Nat: Voce joga xadrez?
Morte: Nao.
Nat: Mas certa vez eu vi um desenho seu jogan-
do xadrez!
Morte: Nao podia ser eu, porquc nao jogo
xadrez. Biriba, sim.
Nat: Voce joga biriba?
Morte: Se eu jogo biriba? Sou o rei da biriba!
Nat: Entao vou te dizcr o que vamos fazcr...
Morte: Nao venha fazer nenhum trato comigo!
Nat: Vamos jogar biriba. Se voce ganhar, eu
vou com voce agora. Se eu ganhar, voce me da um
tempinho — so um dia. Ta fechado?
Morte: E quern tern tempo para jogar biriba?
Nat: Vamos nessa. Se voce e assim tao bom...
Morte: Olhe, ate que cu gostaria...
Nat: Ora, nao seja desmancha-prazeres. Uma
meia-hora, no maximo.
Morte: Esta bem, mas cu nao devia...
Nat: Vou pegar as cartas ja, ja!
40
Morte; Mas so um pouquinho, hem? Pelo
mcnos, vai me relaxar.
Nat (trazendo ciirtas, lapis e bloco): Vote
vai sc arrepender.
Morte: Cale a boca, ja estou convencido. Agora
dc as cartas e me traga a mineral que eu pedi. Que
diabo, um estranho entra cm sua casa e voce nao Ihc
oferece nada para beliscar!
Nat: Tcnho umas batatinhas fritas la embaixo.
Morte: Batatinbas fritas! E sc fosse o Presidcn-
tc? Tambcm Ihc ofcrecia batatinhas fritas?
Nat: Mas voce nao 0 o Presidcnte.
Morte: De.
(Nat da cartas e abre uma trinca.)
Nat: Vamos jogar a um ccntavo o ponto, para
ficar mais iiucrcssante?
Morte: Por quc? Nao esta mtcrcssante que
chegue?
Nat: Jogo mcllior a dinheiro.
Morte: Esta bem, Newt.
Nat: Nat. Nat Ackcrman. Nfto sabe nem mcu
nome?
Morte: Newt, Nat, quc difercnga faz? Estou
com dor de cabeca.
41
Nat: Vai pcgar a mesa?
Morte: Nao.
Nat: Entao comprc.
Morte (examinando a propria mao ): Rains,
nao tenho nada quc preste.
Nat: Como c o negocio la?
Morte: Quc negocio?
Nat: A Morte.
(Durante todo o dialogo sefiuinte, eles
compram e descartam .)
Morte: E como devia ser? Dormc-sc o tempo
todo.
Nat: Ha alguma coisa depois da vida?
Morte: Aha, voce esta guardando os valetes!
Nat: Existe alguma coisa depois da vida?
Morte (ausente): Vote vai ver.
Nat: Ah, quer dizer que vou ver alguma coisa?
Morte: Bem, acho quc eu nao devia ter dito a
coisa desta maneira. Vamos, comprc.
Nat: £ dificil arrancar uma rcsposta de voce,hem?
Morte: Estou jogando biriba.
Nat: Esta bem, entao joguc?
Morte: E, enquanto isto, estou tc dando uma
carta depois da outra.
42
Nat: Nao fiquc ulhando o quc estou apanhan-
do.
Morte: Nao estou olhando. Qual foi a ultima
s eu joguei al?
Nat: O quatro dc cspadas. Estii pronto para
carta quc eu joguei at?
barer?
Morte: Qucm dissc quc eu estou pronto para
bater? So perguntei qual tinha sido a ultima carta!
Nat: il eu so perguntei se havia I it algumacoisa
para mini vcr!
indo?
Morte: Joguc.
Nat: Me diga alguma coisa. Para ondc estamos
Morte: Quc historia c essa dc nos? Vocc c
qucm vai. Bate com a caheca no chao c pronto.
Nat: Nao brinque. Doi muito?
Morte: Um segundinho so.
Nat: Iiunvcl! (Suspira.) Depois dc um con-
irato com 500 butiques...
Morte: Ah, fmalmcme uma canastra!
Nat: Vocc batcu?
Morte: Nao, so fiz uma canasira.
Nat: EntSo, qucm bate sou eu.
Morte: Voce estii brincando.
Nat: Nao. Voct pcrdcu. Vou pegar o mono.
Sem crocadilho.
43
Morte: Merda. E eu achando que voce estavaguardando os valetes!
Nat: Vamos la, joguc, cnquanto eu examino o
morto. Bato com a cabega no chao, n5o e isso? Nao
posso bater com a cabega no sofa?
Morte: Nao. Joguc.
Nat: Porque nao?
Morte: Porque nao! Po, deixe-me concentrar!
Nat: Mas por que tern que ser no ch3o? Por que
nao no sofa?
Morte: Esta bem, vou fazer o possivel. Agora,
podcmos jogar?
Nat: £ isso que cu estava dizendo. Voce melembra Moe Ixifkowitz. Elc tambem e teimoso
Morte: Eu lembro Moe Leifkowitz. Essa e boa!
Eu, uma das figures mais aterrorizantes do universo, IheIc-mbro Moe Leifkowitz! O que clc faz? Forra os vesti-dos?
Nat: Coitado dc voce para forrar vestidos comoelc. Leifkowitz ganha 80 mil dolares por ano! Enfcitcs,
guarnigoes, faz de tudo. Mais uma canastra real.
Morte: O que?
Nat: Mais uma canastra. Vou bater. O que voce
tern?
Morte: Futebol.
Nat: Esta eu ganhei.
Morte: Se voce nao falasse tanto.
44
{Dao as cartas de novo e continuam o
iogo.'l
Nat: O que voce quis dizer ha pouco quando
dissc que cste era o seu primeiro trabalho?
Morte: O que voce acha?
Nat: Como o que eu acho? Entao ninguem
morreu antes?
Morte: Claro que morreram. So que nao fui eu
quern os levou.
Nat: Entao quern fbi?
Morte: Outros.
Nat: Entao ha outros?
Morte: Claro! Cada um vai de um jeito.
Nat: Eu nao sabia disto.
Morte: E por que deveria saber? Quem voce
pensa que e?
Nat: Que historia 6 cssa? Ent5o n2o sou nada?
Morte: Nao cxatamente nada. Voce e o pro-
prietario dc uma confecgao. Por que deveria conhecer os
misterios da cternidade?
Nat: Ah, e? Pois fique sabendo que eu ganho
muito dinhciro. Formei mcus dois filhos. Um trabalha
em publicidadc, o outro se casou. Esta casa c minha.
Tenho um carro do ano. Minha mulher tern o que quer.
Nao sei quantas empregadas, casaco de pele, ferias, o
diabo a quatro. Nestc exato momento, esta viajando,
para visitar a irma. Eu deveria me reunir a ela semana
que vem. Entao, pensa que eu sou algum duro?
45
Morte: Esta bem, esta bem. Nao seja tao sen-sfvcl.
Nat: Qucm c sensivel?
Morte: E qucm foi quc me insultOU primeiro?
Nat: Eu tc insultei?
Mortt;: Vocc nao dissc quc CStava desapontado
cbmigo?
Nat: E o que queria quc cu fizesse? Quc dessc
uma festa pcia sua chegada?
Morte: Nao c isso. Rc-firo-mc a mim. Dissc quc
cu era nanko, que era isso e aqutlo.
Nat: Eu dissc quc voic sc parecia comigo.Estava so pensando em voz alta.
Morte: EstS bcm. dt logo essas cartas.
(Os do is continuani a iogar, enquanto a
miisica diminui e as lu?.cs vao se apagando ate a
escuridao total. Luz.es voltam a se acender aos
poucos. PasSOU-SC algum tempo e o iofio acabou.
Nat esta fazendo as contas. )
Nat: Sesscnta c oito... 150... Bcm, vote pcr-deu.
Morte (ofhando desanimado para o ba-
ralho): Eu sabia que nito devia ter destartado aquelcnovc. Merda.
Nat: Entao, nos vemos arnanha!
Morte: Que historia e essa dc me ver amanha?
Nat: Ganhei mais um dia. Agora, deixe-me empaz.
46
Morte: Voce estava falando serio?
Nat: Tratou, esta rratado.
Morte: Eu sei, mas...
Nat: Nao tern mas, nem mcio mas. Ganhei 24
horas. Volte amanha".
Morte: Eu nao sabia que estavamos jogando a
valer tempo.
horas?
Nat: Pior pra voce. Devia ter prcstado atcngao.
Morte: E o que eu vou fazcr pelas proximas 24
Nat: E o que me importa? O fato c que eu
ganhei mais um dia.
Morte: Mas o que vou fazcr? Vagabundcar
pelas ruas?
Nat: Arranje um hotel e va ao cinema. Tome
uma cerveja. Nao crie caso.
Morte: Some esses pontos dc novo.
Nat: E, alem disso, voce me deve 28 dolares.
Morte: O que?
Nat: E isso ai, bicho. Olhe aqui. Leia.
Morte (revirando os bolsos): So tenho uns
trocados. Mas nao 28 dolares!
Nat: Aceito cheque.
Morte: Mas nao tenho conta em bancos!
Nat (para a plateia): Estao vendo contra quern
estou jogando?
47
Morte: Podc me processar. Como vocc querquc eu tcnha uma coma no banco?
Nat: Esta bem, de-me o que vocc river c fica
por isso mesmo.
Morte: Escutc, eu preciso dcsse dinheiro!
Nat: Pra que?
Morte: Que pergunta e esta? Vocc esta indo
para o Alem!
Nat: E dai?
Morte: Isso flea longe pra chuchu!
Nat: E dai?
Morte: E a gasolina? E os pedagios?
Nat: Esiamos indo dc carro???
Morte: Voce vai descobrir. (Agitado.) Olhc
aqui, Vou voltar amanba, e voce tem de me dar a chancede ganbar aquele dinheiro de volta. Se nao, estou ri-gorosamence frito.
Nat: O que voce quiser. Mas vamos dobrar a
parada, ou nada. Pode ser ate que eu ganhc mais umascmana ou mes. E, do jeito que voce joga, talvez atealguns anos.
Morte: Enquanto isco, nao tenho onde cair
morto.
Nat: Ate amanha.
Morte (sendo levado ate a porta:) Ha um
bom hotel por aqui? Que diabo, nao tenho dinheiro.Vou ter dc dormir no parquc. (Pega o jornal.)
48
Nat; Rua! E me devolva o jornal. (Toma-o devolta.)
Morte (saindo:) Fui um idiora cm rcr topadoaquclc jogo. Dcvia tc-lo pcgado e saido.
Nat: E aiidado na hora dc dcscer. O tapctc estasolto no primciro dcgrau!
(Nesta deixa, ouve-se um barulho terrivel.Nat suspira, v;ii ate a mesinha-de-cabeceira e pe^ao telefone.)
Nat: A16, Moc? Sou cu. Escute. Nfio sci se iscoroi urna brincaddra dc mau gosto, mas a Morte estcvcaqui. Jogamos um buraquinho... Nao, a Morte! Emcame c osso. Ou algugm que estava qucrcndo sc fazerpassar pela Morte. Mas, se;a quern for, Mac, que ba-baca!
DESCH O PANO
UmaEspiada
no Crime Organizado
Nao c segfcda que o crime organizado nosEstados Um'dos lucra mais de 40 bilhOcs de dolarcs poraim. O quc nao c nada man, prindpalmcntc quando se
considers quc a Mafia «:isra muito pouco ern despesas decscmorio. Informacoes dc cochcira asscguram quc a CosaNostra nao despendeu mais quc scis mi! dolares no anopassado cm papel rimbrado e ainda menos cm clipes.Alan dsso, mantcm apenas uma sccrctaria, que fazlodo o trabalho de datilografla, e sua sede limita-sc aires salmhas, quc, nas horas vagas, sao alugadas a umagafieira.
No ano passado, o crime organizado foi rcspon-savcl dircto por mais dc mil crimes, c os mafiosos par-ticiparam indiretamemc dc inumcros outros, dando
carona aos assassinos ou emprcstando-lhes suas capas dechuvas. Outras atividades ilegais praticadas pelos mem-bros da Cosa Nostra cnvolvcram jogo, trafico dc drogas,
51
prostituigiio, scqiiestros, vigance por atacado e o irans-
portc dc um enorme golfinho, dc um Estado para outro,
com fins imorais.
Os tcmaculos desse impcrio da corrupcao
chegam ace ao propno Govcrno. Ha apcnas alguns
meses, dois tubaroes da Mafia, atualmcnte sob processo,
passaram a noite na Casa Branca, cnquanto o Presidentc
ia dormir no sofa.
Historia do crime organizado nos Estados
Unidos
Em 1921, Thomas Covcllo, o Ac.ougueiro, e
Ciro Santucci, o Alfaiate, tentaram organizar os varios
agrupamentos laciais do submundo com o objetivo de
tomar Chicago dc assalto. O piano foi cancelado quando
Alberto Corillo, o Positivista, assassinou Kid Kipsky
trancando-o num armario e sufocando-0 ao aspirar todo
o ar quc bavia dentro at raves de um canudmho. O irmao
dc Lipsky, Mendy (vulgo Mcndy Lewis, vulgo Mendy
Larsen, vulgo Mendy Vulgo), vingou a morte de Lipsky,
seqiiestrando o irmao de Santucci, Gaetano (cambem
conhecido como Toninho ou Rabino Henry Sharpstein),
c dcvolvendo-o vanas scmanas dcpois em 27 moringas
difercntes. Isto marcou o inicio dc um banho de sangue.
Dominick Mione, o Hcrpctologista, alvejou
Lucky Lorenzo (assim alcunhado quando uma bomba
que disparou cm scu chapcu n;1o conscguiu mata-lo). Na
revanche, Coriilo e scus homens scguiram Mione ate
Newark e iransformaram sua cabeca num instrumento
de sopro. A esta altura, a quadrilha Vitale, chefiada por
Giuseppe Vitale (na vida real, Quincy Baedeker),
preparou-se para agambartar toda a faisifica^ao de
bebidas no Harlem, a quai era dingida por Larry Doyle,
o Irlandcs — um sujeito tao desconfiado que nao dava as
52
costas a ningucm cm Nova Iorquc c, por isso, andav;i
pelas ruas gir:indo, rodopiando constantemcnte. Mas
Doyle foi assassmado quandn uma famosa emprcsa dc
especulacSO i mob Mi aria rcsolveu consr.ru ir um espigao
justamente ondc ficava sen esconderijo. Seu principal
assecla, Little Petey Ross (tambfim conhecido como Big
Pctey Ross), tomou o scu lugar e rcsistiu as invesridas dc
Vitalc, chegando ate a atraT-lo a uma garagem aban-
donada do centro, sob o pretcxto dc que ali se realizava
um baile a fantasia. Scrn suspcitar dc nada, Vitale
adentrou o recinto fentasiado como um rato gigante e
foi imediatamente letheado por varias metralhadoras.
Lciiis aic a morte an scu chefe, os homens dc Vitale
viraram rapid amen tc as casacas c adcriram a Ross,
inclusive a propna noiva de Vitale, Bea Morctti, famosa
chacrete c csrrela da Broadway. Bea acabou se casando
com Moreni, cmbora mats tardc lenha pedido o divot-
cio, sob a acusacao de que clc a teria besuntado com
dctcrminada pomada.
Tcmcndo uma intcrvcncao federal, Vincent
Columbrarn, o Rei da Torrada, pediu iregua. (Colum-
braro controls tao rigidameme o mercado de torradasproduzidas em Nova Jcrsci que uma simples palavra suaseria capaz dc cstragar o cafeda manba dc 2/3 do pais.)
Os membros do submundo foram convocados a umrcstaurante em Perth Am boy, ondc Columbraro or-
denou que todas as quizumbas mternas acabassem cque, dali para frentc, todos passasscm a sc vestir na
moda c parassem com csse negdcio dc se esgueirar
por viclas cscuras. Os bilhetes aic cntao assinados com osfmbolo da mao negra deveriam ter o cratamento dc
"Atenciosamente", e todn o tcrritnrio seria dividido
igualmente, cabeodo Novajcrsci a mae de Columbraro.
Assim nasccu a Mafia, on Cosa Nostra. Dois dias depois,
53
Culunibraro cnirou na banlu-ira para refrcscar-se e ha 46
anos nunca mais foi visto.
Organtza^ao da quadrilha
A Cosa Noscra e esmittirada como qualqucr
governo ou grande emprcsa ou como qualqucr
quadritha, o quc da na mcsma. A testa dc tudo, esta ocapo di tutli capi, ou ehefe dc todos os chefes. Asreunifies S3o fcitas na sua casa, e elc e rcsponsavel pclo
gclo c pelos salgadinhos. A (aha de uma coisa ou dc
ouira ixnplica cm morte instanianca. (A mortc, por
sinal, e uma das piores coisas quc podcm acontcccr a um
membro da Cosa Nostra. Talvcz por isso, muicos pre-
firam pagar uma rnulta.) Abaixu do chefe dc todos os
chefes, CStSo naturalmente os chefes, cada qual coman-
dando uma zona da cidadc corn sua "familia". As
familias da Mafia uao consistem dc mulher e filbos
quc COStumam ir a circos ou piqucmqucs. Sao formadas
por homens dc cara fechada, cujo maior prazer na vida cvcr quamo tempo ccrtas pessoas conseguem sobrcvivcr
no lundo dc um no antes dc comccarcm a cngolir agua.
O rito dc miciacao na Mafia c bastame com-
plicado. O membro a scr admindo c levado a um quano
escuro com os olhos vendados. Faiias dc mclao sao
colocadas cm scus bolsos c dc £ obrigado a pular pclo
quarto num pc so, gritando "Ula-la! Ula-la!" Em sc-
guida. todos os membros da coniissione fazem bilubilu
no scu laliiu inferior — alguns ale duas vc7xs. O suplkio
seguinte c derramar avcia na cabt\a do inidance. Sc elc
protcstar, sera executado. Mas, sc disscr, "Que bom!
Adoro avcia!", sera retcbido como um irmao. Eniao
lodos o bcijarao na face e apenariio sua raao. A partirdai, tcra dc obcdcccr as seguimes obriRacoes: nao comer
iilu, nao cacarejar e nao matar ningu^m chamado Vito.
54
Conclusoes
O crime orgamzado e uma desgtaca em nosso
pats. Enquanto a maioria dos jovens dcixa-sc iludir pcla
apareme vida facil du carreira criminal, os vcrdadciros
criminosos sao obrigados a trabalhar lioras a fio, geral-
menie cm edificios scrn ar condicionado. Idcntificar os
criminosos e nosso dever. Podem ser reconhecidos pelo
feto dc usarcm abotoaduras espalhafatosas e pclo habito
de continuarem almogando tranquilamcntc, mesmo
depois qut a pessoa ao scu lado e atingida por uma
bigorna. As mclhorcs manciras dc combaier o crime
organizado sao:
1. Dizcr aos criminosos quc voce nao csta cm
casa;
2. Chamar a policia sempre que um membro
suspeito da lavandcria italiana do scu bairro comec.ar a
cantar pcrto da sua porta;
3. Grava^ao telefonica.
A gravagao iclefonica nao podc scr Icgalmente
apllcada dc forma indiscnmmada, mas sua cficicncia e
ilustrada aqui por csta iranscncao dc uma convcrsa entrc
dois chefes de quadrilha 03 area dc Nova lorque, cujos
eclefones foram gravados pelo FBI.
Anthony: A16? Rico?
Rico: A16?
Anthony: Rico?
Rico: Nao estou ouvindo!
Anthony: E voce, Rico? Nao cstou ouvindo!
Rico: O quc?
55
Anthony; Voce esta me ouvindo?
Rico: AI6?
Anthony: Rico?
Rico: A ligacao esta pcssima!
Anthony: Esta me ouvindo?
Rico: Aid?
Anthony: Rico?
Rico: A16?
Anthony: Tclcfonista, a ligac.ao csta pessima!
Telefonista: Desligue e disquc outra vez, por
favor.
Rico: A16
Com todas essas provas contra eles, AnthonyRotunno, o Robalo. e Rico Panzini, foram condenados c
cstao atualmente cumprindo 15 anos cm Sing Sing porposse ilegal de salame.
56
Mhiha Filosofia
Qucrcm saber como comccci a dcscnvolvcr
minha filosofia? Foi assim: Minha mulher, ao convidar-me para provar o primeiro suflfi de sua vida, deixou
cair acidentalmente uma fatia dele no meu pc, fraturan-do com isso diversos artethos. Medicos foram chamados,raios X tirados c, depois de examinado do tornozelo aos
pes, mandaram-mc ficar de cama durance urn mes.
Durame a convalescence, dediquei-me ao estudo dos
maiores pensadorcs ocidentais — uma pilha de livros
quc eu havia reservado justamente para uma oportu-
nidade dessas. Desprczando a ordem cronologica, co-
mecci por Kierkegaard e Sartre e depois passei rapi-
damente para Spinoza, Hume, Kafka e Camus. Nao me
entediei ncm um pouco, como supunha. Ao contrario,
fiquei fascinado pela lepidez com que esses genios
demoliam a moral, a arte, a erica, a vida e a morte.
Lcmbro-me de minha reac,ao a uma observacao (como
sempre, luminosa) de Kierkegaard: "Toda relacao quc
57
sc relation;! consigo mesrna [ou scja, consigo mesma)deve icr sido constituida por si mesma ou cntao porouira." O conccito trouxc lagrimas aos metis olhos. Puxa
vida! — pensei - - isso 6 que e scr profundo! {Eu, por
cxcmplo, sempre tive dificuldadcs na cscola com aquclc
classko tema de composicao, "Mcu Dia no Zoologico".)
E verdadc quc a fra.se commuava complctamentC
jmomprcensivel para mim, mas quc imponava isto,
desde quc Kierkegaard esuvesse sc divertindo? De
subito, convencido de quc a meuifisica era a obra quc eu
esiava destinado a eserevcr, tomei papel e lapis e co-
mecei a rascunhar minhas primeiras reflcx5es. O rra-
balho progrediu depressa, c em apenas duas tardes —com intcrvalo para uma soncca c para assistir a urn
desenho animado — conscgui complctar a obra filosofica
quc, seglindo espcro, nao sera divulgada antes dc minhamone ou aic o ano 3000 (o que vier primciro), e a qual
me garancira urn lugar dc honra cntrc os maiores pen-
Sadores da Mistoria. Eis aqui uma pequena amostra do
tesouro inielcciua! que dcixarci para a humanidade —
ou pclo menos, ate a chcgada da arrumadeira.
1. Critica do Horror Puro
Ao formular qualquer fiiosofia, a pnmeira
consideracao semprc devc scr: O quc nos podcmos
conhecer? Isio e, o qu^ podemos tcr cencza de tonhecer
ou de saber que conhcccmos, desde que scja algo co-
nhcctvel, c claro. Ou sc-ra quc ja esquecemos c estamos
apenas torn vergonha dc admuir? Descartes rocou 0
problema quando escrevcu: "Minha mente nunca
podcra conhecer meu corpo, cmbora tenha ficado bas-
tame Tniima de minhas pcrnas." E, antes quc me
esqucca, por "conbccivcl" nao me rcfiro ao quc pode
ser conhecido pcla percepi;ao dos sentidos ou ao quc
podc ser captado pela mente, mas ao que se pode garan-
tir ser Conliccido por possuir aquela caractenstica que
chamamos dc Conbecibihdadc pc!o Conhecimento —
cnibora nem todos esses conhecimenios possam scr ditos
na frcme dc uma scnbora.
Sera quc podcmos realmcnte "conheccr" o
universo? Mcu Dcus, se as vezcs ja c dificil sairmos de
um cngarrafamcnio! O problema, no fundo, c: ha
alguma coisa !a? E por que? E por quc tern quc fazer
tamo barulho? Finalmt-me, nao hil diivida dc que um:i
caracterfsricfl da "realidade" c a dc quc fhe faita subs-
tancia. Nao qucro dizer com isso quc cla nSo ten ha
subsiancia, mas apenas que !he falia. (A realidade de
que cstou falando aqui c a mcsnia que Hobbes des-
crevcu, so que um pouquinho mcnor.) Logo, o dito
cariesiano "Pt-nso, logo cxisto" seria melhor expresso
na forma de "Olhe, la vai Edna com o saxofonc!" Do
que se deduz que, para conbecer uma substancia ou
uma idcia, dcvemos duvidar dela c, ao duvidar, chc-
gamos a percebcr as caratteristicas quc cla possui cm scu
estfldo finito, as quais sao "por si mcsmas" ou "de si
mcsmas" ou dc qualqucr outra coisa que nao tern nada
a ver. Se isto ficou claro, podcmos deixar a epistemo-
logia dc lado provisoriamcnte, c mudar dc assunto.
2. A Dialetica Escatolofiica como um Meio
de Combater o Herpes
Podemos dizer que o universo consistc dc uma
substancia, e a esta subsiantia chamarcmos de "atomos"
ou, quern sabc, de "monadas". Dcmocrito chamava-a
de atomos. Leibnitz prcfcna "monadas". Fchzmente, os
dois nunca se encontraram, sc nao teriamos pancadaria
da grossa. Estas "partkulas" foram acionadas por
alguma causa ou principio subjacente, ou talvcK ccnham
apenas resolvido dar uma voltinha. O fato c que ja c
59
tarde para fazer qualquer coisa a respeito, cxccto pro-
vavclmente escovar os denies quatro vezes ao dia. Isto,
naturalmentc, nao explica a imortalidade da alma. Nao
implica sequer a existencia da alma nem chega a me
tranqtiilizar quanco a sensacao de escar sendo seguido
por urn guatemalteco. A relacao causal cntre o principio-
motor (i.e., Deus, ou uma ventania) e qualquer conceiro
teologico do ser (em outras palavras, o Ser) e, segundo
Pascal, "tao ludrica que nem chega a ser engragada".(Ou seja, Engrac/ada.) Schopenhauer chamou a isto "o
vir-a-ser", mas seu medico diagnosticou-o simplesmentecomo alergia a penas dc ganso. No fim da vida,
Schopenhauer tornou-se amargurado por este conceito,
ou talvez tenha sido pela sua cresccnte suspeita de que
nao era Mozart.
3. O Cosmos a 5 Dolares por Dia
O que e, entao, o "belo"? A fusao da har
monia com a virtude? Ou da harmonia com qualquer
outra coisa que apenas rima com Virtude? Se a harmonia
se tivtsse fundido com urn alaudc, o mundo seria muito
mais tranqiiilo. A verdade, como se sabe, e a bcleza —
ou "o necessario". Isto e, o que e bom ou possui as
caracteristicas do'"bom" resulta na "verdadc". Se isto
nao acontecer, pode ter certeza de que a tal coisa nao e
bela, embora possa ser ate a prova dagua. Comeco a me
convencer de que tinha razao, e que tudo devia rimar
com alafidc. Ora bolas.
Duas Parabolas
Urn homem aproxima-se dc um castelo. Sua
unica cntrada esta guardada por hunos ferocissimos queso o deixarao cntrar se ele se chamar Julius. O homem
tenta subornar os guardas,oferecendo-lhes o seu estoque
de figados e moelas de galinhas. Nao recusam nem
60
aceiiarn a oferta - - apenas torccm o seu nanz como sc
elc fosse um saca-rolhas. O homern argumenta qui1
prcusa entrar no castelo, porque csta levando uma ce-
rtiula limpa para o imperador, Os guardas dizem nSo
ouira vez e o lumitm comeca a dancar Charleston, Eles
parecem apreciar sua agilidade, mas logo sc irritam
porque sc iembram da maneira pela qual o govcrno cstatratando os Indios. Ja scm folcgo, o lionicm desmaia c
morre, scm nunca tcr visto o imperador c dc-vendo a
uma loja de eletrodomfisticos um piano que havia com-
prado a prazo.
Rccebo uma mensagem para entregar a um
general. Galopo, galopo e galopo, mas o quartel do
genera! parccc cada vcz mais distante. De repente, uma
pantera negra gigante salta sobre mim e devora mcu
coracao c cerebni. £ claro que isso cstraga definitivamen-
te a minlia noite. Por mais que cu corra, ja nao consigo
cliegar ao general, o qual vcjo a distancia, dc cuecas,
murmurando a palavra "noz-moscada" contra sensinimigos,
A for ism os
£ impossTvel encarar a propria morte objeti-vamente e assoviar ao mesmo tempo.
O univcrso nao passa dc uma idOia passageira na
mentc dc Deus -- o que c um pensamento duplamcnie
desagradavel se vocc river acabado de pagar a entrada da
sua casa propna.
Nao ha nada dc mal com a vida ctcrna, dcsdc
quc vocc esteja convenientemente vescido p;ira ela.
Imaginem se DionTsio ainda cstivesse vivo!
Ondc iria comer?
Nao apenas nao cxisic Deus, como tente
encontrar um bombciro num fim dc scmana.
62
AIBstoria de
Uma Grande Inven?ao
Eu cstava fotheando uma rcvisca cnquanto
csperava que Joseph K., meu mastim, voltasse dc sua
trudicion-.il scssao das tercas-feiras com um rerapeuta quc
cobra 50 dolarcs por uma hora de 50 minmos — um
vctcrinario junguiaoo quc vcm tcntanclo convcncc-lo dc
quc suas bochechas nao sao, neccssariamente, um
intonveiiicnte social -- quando, de repentc, perpasso os
olhos por uma frasc ao pc da pfigina e quc me chamou a
atcagSo como um anuncio de sutia. Era uma simples
noiinha, com um daquelcs tiiulos como "Acreditc se
Quiser" ou "Vocc Sabia Quc", mas sua magnitude mearrcbutou torn ;i grandeza dos priincnos atordes da
Nona de Beethoven. Dizia; "O sandulche foi invcotadopclo Guide de Sandukhe". Abismado por esta reve-
lagao, li c rcli o topico c fui aie acomctido dc tnvolun-
lario tremor. Minha mente rodupiava, ten can do ima-
ginar os sonbos, csperangas e obstacutos quc devcm tcr
cnriquciuio a invencao do primciro sandukhe. Ollici
63
pela janela c, ao contemplar as corrcs dos arranha-ceus,senti mcus olhos umedecidos ;io cxpcrimentar uma
sensac.ao dc etcrnidade, dcfinicivamcnte convencido doinsubstituivei lugar do homem no univcrso. O homcm
— quc inventor! Os rascunhos dc Da Vinci avultaram aminha frente, rabocos das mais alias aspiragocs da ra^a
humana. Pensci cm Aristoteles, Dante, Shakespeare. OPrimeiro Folio. Newton. O Messias de Handel. Monet.O Imprcssionismo. Edison. O Cubismo. Stravinsky. E =mc2...
Tentando gravar uma imagem mental doprimeiro sandufche avaramente comervado numa ge-
ladeira no British Museum, passei os tres meses scguintcs
escrevendo uma breve biografia do seu grande inventor.Embora meus conhecimefltos de Historia scjam um
pouco precarios e minha capacidadc descritiva aindamais mambembe, espero ter capturado ao menos a
cssencia desse gfinio tSo esqueeido, e que essas notasesparsas inspircm um verdadciro historiador a retomar omeu trabalho.
1718: Nasce o Conde de Sandufche, de umafamilia riquissima. Scu pai esca cuforico por ter sidonomcado fcrreiro de Sua Majestadc - - posicao dc quc
desfrutara durante anos ale descobrir que sua fungao
consiste apenas cm ferrar cavalos, qtiando eniao demite-
sc amargurado. Sua mac c uma simples Hausfrau dcongem alcma, cu;os monotonos menus consistcm ba-
sicamentc de toucinho e mingau dc aveia, embora as
vezes demonstrc uma ligeira tmaginafiSo tulinaria aoprcparar um passavel cha de canela.
1725-35: Frequents a escola, onde aprendelatim e a montar. Na hora do recreio demonstra pela
primeira vcz um notavel intcressc por frios, principal*
64
mcnie fatias fininhas dc rosbife e presunto. No fim do
curso, isso tornou-se uma obsessao e, embora sua tese dcgraduagao, "Analise e Fenomenos Anexos dos Acepi-
pes", provoquc algum inieresse entre os professores, elecontinua a scr vista pelos colcgas como um sujeitoestranho.
1736: Entra para a Universidade dc Cambridge,
a pedido dos pais, a fim dc estudar retorica e metafisica,
mas dcmonstra pouco intcresse por ambas. Constan-temente revoltado com as convengoes do mundo aca-
dfimico, e acusado do funo dc algumas fatias de p2o edc realizar experiencias imorais com clas. Finalmcntetaxado como hcrcge, e cxpulso da univcrsidade.
1738: Renegade por todos, parte para os palscscscandinavos, ondc por tres anos dedica-se intensamente
a uma pesquisa sobre qucijos. Impressiona-se com a
enorme variedadc de sardinhas quc passa a conhecer eanota em scu bloco: "Estou convencido dc que ha uma
perene realidade, alem de tudo quc o Iiomem ja rea-lizou, na simples justaposic.ao de aiimentos. Simplifi-
car". De volta a Inglaterra. conhece e casa-se com NellSmallbore, filha dc um vcrdurciro. Ela Ihc ensinara tudosobre alfaces.
1741: Vai viver no campo, as custas de uma
pequena hcranga, deixando freqflentemente de almogarou jantar a fim de economizar dinheiro para comprarcomida. Sua primcira obra terminada - - uma fatia dcpao, oucra fatia de pao cm cima desta c uma fatia de
pcru em cima de ambas - ■ fracassa miseravelmcntc.Dcsapontado, rctorna ao laboracorio e comeca tudo denovo.
1745: Apos qmuro anos dc trabalho insano,convence-se finalmentc de que csta as vespcras do suces-
65
so. Numa ixrimonia dc grande solenidade, exibc para
seus pares unva nova teYitativa: duas fatias de peru com
uma fatia dc pfio no meio. A obra e rcjeitada por todos,exceto por David Hume, que presscntc naquilo a
iminencia dc algo importamc e o encoraja. Estimuladopela amizadc do filosofo, rctorna ao trabalho com vigor
re n ovado.
1747: Ja scm dinhciro, nao podc mais se dar ao
luxo dc pesquisar com pcru ou rosbife, e passa a tra-
balhar com prcsunto, quc c mais barato.
1750: Na primavcra, faz a dcmonsr.rac.ao de trcs
fatias de presunto empilhadas consecutivamente, o que
airai ligcira atenc.5o, principalmcmc nos mcios intclcc-
tuais. Mas o grande pdblico continue indiferentc. Trcsfatias de pao, uma cm cima da ouLra, provocam algum
comentario c, embora um esiilo maduro ainda nao esrcja
a vista, e procurado por Voltaire, que o convida a visita-
Iq.
1751: Viaja a Franca, ondc Voltaire Ilic informa
quc- tambcm chegou a alguns interessantcs rcsultados
usando pao e maioncsc. Os dois tornam-sc amigos ciniciam uma correspondSncia quc tcrminara abrupta-
mente1 porque Voltaire fnara sern selos.
17^S: A crescente acc-iiacao dc suas cxperiencias
junto a opiniiio publics [{.■suit:! num convitc da Rainlv.i
para prcparar "algo espcvial" que e!a possa beliscar com
i) embaixador espanhol. Passa a trabalhar dia e noitc,
rasgando centenas de rascunhos, mas finalmente - - us4:17 da madrugada dc 27 de abril dc 1758 -- cria umaobra que consiste de varias fatias de presunto guarne-
cidas por duas fatias dc pao, uma cm cima e outra
cmbaixo. Num atimo dc- inspiragSo, asperje mostarda
66
sobre a obra. O achado faz scnsagao — e, desde entao, aRainha o encarrcga dos menus de sabado.
1760: Com-urn succsso depois do ourro, cria os
"sanduiches", assim chamados cm sua homcnagcm,
rcalizando imaginosas combinacoes dc rosbife, galinha,lingua e praticamente codos os frios conheridos. Naocontente cm rcpctir formulas ja tcmadas, busca novasidcias e cria o sanduichc-viagcm, pclo qua! rccebc aOrdem da Jarreteira.
1769: Vivendo agora numa mansao, e visitadopclos maiorcs homens de seu tempo: Haydn, Kant,Rousseau c Benjamin Franklin param cm sua casa,
alguns dcliciando-sc com suas notaveis criacoes, outrosrccusando-sc a uma simples dentada.
1778: Embora fisicamentc decrepito, continua abuscar novas forraas e L-screve cm seu diario: "Tcnhotrabalhado durantc a madrugada e rcsolvi torrar ossanduichcs a Hm de mante-los qucntcs". No fim doano, seu sanduiclic abcrto causa auccntico cscandalo porsua franqueza.
1783: Para cclcbrar seu 65." anivcrsario, inventao hamburgucr c visiia as grandes capiiais do Ocidcntc,prcparando pcssnalmentc os sanduichcs em (eatrosidiantc de cnormes platcias entusiasmadas. Na Alc-nianha, Goerhe sugcrc que elc sirva os hamburgucresdentro de pges rcdondos - ■ idcia que o Condc apro-veim. Sobre o autor dc Fausio, elc escreve cm seudiario: "Grande cara, csse Goethe". A frase dcixaGoethe encantado, embora os dois, mais tardc, venham
a romper intclccdialmentc devido a uma discordanciasobre os conccitos dc bem-passado, rnal-passado e aoponto.
67
1790: Numa retrospcctiva de sua obra cm
Londres, sente-se mal com dores no pcito c c quase dado
como mono, mas recupera-sc o suficiente para super-
visionar a criagao de um sandufchc de salsicha por um
fjaipo dc talentosos discfpulos. O langamento do san-
duiche na Italia provoca disturbios c, durantc seculos, o
futuro cachorro-quente commuara incomprccndido,
exceto por alguns critieos.
1792: Contrai um bacilo raro ao apertar a mao
dc Koch, o qual deixa dc tratar a tempo e morre. Seu
velorio e reaUzado na Catedral de Westminster e mi-Ihares dc pcssoas vao levar-Ihe suas ultimas dcspcdidas.
Durante o cntcrro, o grandc poeta alemao Hoclderlin
resume a sua obra com essas palavras imortais: "Nossa
divida para com cle e ctcrna. Elc livrou a humanidade
da rcfei^ao qucnte".
68
Como Realfabetizar
urn Adulto
A quamidadc de folhetos sobre cursos dc
o de adultos que insiste em entulhar minha cor-
respondencia ja me convenceu dc que devo estar cm
alguma lista especial' de analfabetos. Nao que eu estejame queixando. Ha coisas nesses foihetos que me deixam
tao fascinado quanto num iat;ilogo dc acessorios para alua-dc-mel cm Hong Kong, enviado a mim ccrta vcz por
engano. Scmprc que Icio um deles, tenho vontade dc
largar tudo e voltat correndo pura a escola. (Fui expulso
da faculdade ha muiios anos acras, vTtima de ccnas
uiusacoes infundadas, nSo muito difcrentes das que
mandaram um conhecido personagem para a cadeirael6trica.) Ate agora, no entanto, continue uma pessoa
precariamentc educada, mas ligeiramente chegada a Hear
imaginando folhetos rfpicos desses tais cursos. Comoesie:
Teoria Economics: Aplicacao sistematna c
avaliacao ctttica das conceitos analfticos hasicos da teoria
economica, com cnfase na aplicasSo do dinhdro e porquc ter dinheiro c uma boa. Coeficiente fixo das fungOesdc producfto, curvas de custo C rendimento c nao-con-
vexidade dos lucros, tudo isro no primeiro semcsire. No
scgundo scmcstrc, concentrar-nos-emos no controlc dos
gastos, na artc dc fazer trocos e cm como manter a
carteira recheada. O Scrvico de Reccita Federal scni
estudado, c os alunos mais avan^ados scrao instrufdosquanto a mancira corrcta dc prcenchcr urn formulario dc
deposito bancario. Os ouiros topicos inclucm: Inflacao c
Depressao - - quc tipo de roupa usar em cada uma —
Emprestimos, Lucros e como Fugir scm Pagar a Aposta.
Historia da Civilizacao Europeia: Dcsdc a
dcscobcria de um eoipo fossilizado no banheiro mas-
culino de um rcstaurante a bcira da csrrada em Nova
Jcrsci, passou-se a suspeitar quc, cm ccrta cpoca, Europa
c America do Norte foram ligadas por uma faixa dc terra
que mais tardc afunciou ou tornou-se Nova Jcrsei, ou
ambas as coisas. Isto abre novas perspecrivas sobrc a
formagao da sociedade curopeia c pcrmite aos histo-
riadores conjeturar por quc ela se dcsenvolvcu numa
regiao quc tcria ficado muiio mclhor no lugar c!a Asia.
No mesmo curso e tambcm cstudada a razao pcla qual
se decidiu promover a Rcnasccnca na Italia.
Introducao a Psicologia: Tambcm conhccida
como a tcoria do componamcnio humano. Por qucalgumas pessoas sao classificadas dc "pcssoas maravi-
lhosas", cnquanto outras vocc tem simplcsnicntc von-
tadc de esganar? Havera uma scparac.ao cntre a mente e
o corpo c, nesse caso, qua! sera preferivcl ter? Tcmas
como agressao e rcbcliao ser5o discutidos. (Os alunos
particularmcnte interessados nesses ramos da psicologia
podcrao cspccializar-se postcriormcncc num dos scguin-
tes topicos: Iruroducao a I-Iostilidade; Hosiilidade
70
Intermedifiria; Ira Avangada; Fundamcntos Teoricos doOdio.) Sera dada especial consideragao ao cstudo do
consciente como opcao ao inconscicnic, como vanas
sugestBes fiteis a rcspeito de como ficar consciente.
Psicopatologla: Dirigido a comprcensao dc
obsessBes c fobias, inclusive o medo dc ser subitarncnte
capturado c redieado com pate de caranguejo; relutancia
em rebater saques dc volei; incapacidade dc dizcr a
palavra "j;tquetao" na preseiica de senhoras.
Filosofia I: De PlatSo a Camus, todo o mundo
sera esuidado, com enfase nos seguinies topicos:
Etica: O impcrativo cacegorico, c como fazer
com que ele funcione a seu favor.
Estetica: Sera a aric o cspclho da vida? Sc nao,
que diabo e?
Metafisica; O que acontecc a alma depois da
morte? Como e que ela sc arranja?
Episiemologia: Sera o conbccimcnto conhcrfvel?Sc nao for, como podcriamos conhccc-lo?
Absurdo: Por que a cxistencia c freqtientcmente
considerada tao tola, panicularmcnrc para homens que
usam sapatos dc duas cores, bico fino? Multiplicidade e
uoicidadc serao estudadas em suas rtlagocs com a ou-
iricidade. (Os .alunos que se graduarcm em unicidade
scrao promovidos a duplicidade.)
Filosofia XXIX-B: Introducao a Dcus.
Confronio com o Criador do universo atraves de pes-
quisas de campu e conversas torn o proprio.
Nova Matematica: A matcmatica cradicional
foi rccemcmentc tornada obsoleta pcla sensacional
71
descobcna dc que ha scculos estamos cscrcvendo o
numero cinco ao contrario. Isto conduziu a uma rea-
valiacao da concagem como urn meio dc chegar dc 1 ate10. Estudo dos conceitos avancados da algebra buliana e
fad I rcsolugao dc equagSesanteriormente insoluveis, soba amcaga dc lapas c pestococs.
Astronomia Fundamental: Estudo detalhado
do universo e dos cuidados na sua Hmpeza. O sol, que e
feito dc gases, podc explodir a qualqucr momento,desiruindo todo o nosso sistema planctario; o que fazcr
neste caso. Mais ainda: como identificar as diversas
constelagoes, tais como a Ursa Maior, o Cisnc, Sagitario,assim como identificar as 12 estrelas que formam
Liimides, O Vcndedor de Ccroulas.
Biologia Moderna: Quais sao as fungSes do
corpo e ondc elas podem scr geralmentc encontradas.
Analise do sanguc e explitacao complcta dos motivos
pelos quais a [iiclhor coisa a fazcr e dcixa-lo correr pelas
vcias. Dissccacao de uma r3 pelos cstudantcs e com-
paracao entre o seu aparelho digestivo e o do homem,
com a ra saindo-se por sinal muito bem, exceto quando
ternperada com curry.
Leitura Dinamica: Este curso aumentant a
velocidade de sua leitura paulatinamemc ate o fim do
perTodo, quando entSo o aluno sera obrigado a ler Os
Irmaos Karama/.ov cm 15 mmutos. O mctodo consistc
em correr os olbos pcla pagina diagonalmentc e ignorar
tudo, exceto os pronomes. Em pouco tempo tambcm os
pronornes sao dim in ados. Gradualmcnte o aluno c
encorajado a cochilar. Disseca-sc uma ra, chega a pri-
mavera, as pessoas morrem e casam, e Pinkerton nao
volta para casa.
72
Musicolofiia III: O aluno c eosinado a tocar
"Atirei o Pau no Gato" numa flauunha dc crianca,progride rapidamente ate o "Concerto dc Brandcnbur-
go" e depois retorna lentamente a "Atirei um Pau no
Gato1'.
Apreciacao Musical: A fim dc "ouvir" cor-
retameme uma grand e pec.a musical, deve-sc: 1) co-
nhecer a cidadc natal do compositor; 2) distinguir um
rondo dc urn scherzo e saber encenar ambos. A postura
tambem c importantc. Nao vale rir durance a cxccucao,
a menos quc o compositor tenha tcntado ser engra£ado,
como cm Till Eulenspiegel, quc chega as raias da
piada musical (cmbora ao trombone scjam rcscrvadas asmclhorcs passagens). O ouvido tambcm devc scr
educado, pelo fato dc scr um dos orgftos mais facilmcntcenganaVeis, podendo ate scr confundido com o nariz,
dependendo da posicao dos alto-falantes numa sala.Out]os topicos: a pausa dc quairo CompaSSOS c scu
potencial como arma. poluica; o canto gregoriano c as
cspccics dc macacos que COnseguiarn scguir o ritmo.
Como Escrever uma Peca: Todo drama £
conflito. O dcsenvolvimcnto do personagem uinibcm c
muito importante, bem como o quc clc diz. Os alunos
aprendem quc falas longas e chatas nao funcionam
muito bem, ao passo que falas curtas c "engracadas"servem mclhor ao propSsito do amor. Explora-sc tam-
hem a psicologia simplificada da plaicia: Por quc umapcc.a sobrc um vclho c dclicioso personagem cbamado
Voxinho ncm semprc results tao interessantc cm teatro
quanto sc cuncentrar na nuca dc algucm c ten tar fazc-lo
sc virar apenas pcla forca do pensamento? Outros
interessantes aspecros da bistoria do teatro sao exami-
nados. Por cxcmplo, antes da invcncilo do grifo, as
man.ac.ocs do diretor costumavam ser confundidas com
73
dialogos, scndo comum ouvir grandcs atores dizendo em
pleno palco: "John se levanta e atravessa a cena". Isto,
oaturalmente, criava certos cmbaragos e, no minimo,
pessimas criticas nos jornais. O fenomeno c analisado cm
dctallics c os alunos aprendem como evitar este erro.
Lcilura cxigida: Shakespeare: Seria Ele Quatro
Mulheres?, dc A.F. Shulte.
Introducao a Assistencia Social: Um curso
projetado para instruir o assistcnte social interessado em
trabalhar nos suburbios e favclas. Alguns topicos su-
gcridos: como transformar quadrilhas de plvetes cm
rimes dc basquciebol, e vice-versa; playgrounds como
mcio dc prevengao do crime e como fazcr de um dehn-
qiicnte cm potencial um aqualouco; discriminacao
racial; lares dcsirmdos; o que fazcr em caso de ser
atingido por uma corrente de bicideta.
Yeats & Higiene — Estudo Comparativo:
A pocsia dc William Butler Yeats analisada em funcao
dos cuidados com os dentes. (Curso abcrto a um numero
limiiado dc alunos.)
74
Contos Hassidicos
Um horncm viajou ace Sclma a fim dc buscar o
conselho do Rabino Ben Kaddish, o mais sanio dos
rabmos c talvcz o maior sabio da era medieval.
"Rabino", pcr^umou o homem, "onde posso
encontrar a paz?"
O Hassid olhou-o de alto a baixo e disse:"Dcpressa, atras dc voce!"
O homem virou-se para olhar e o Rabino Ben
Kaddish acertou-o bem no cocoruto com um castical.
"Esta paz chc^a para vocc?", perguntou com
Lima ris:idinha, ajustando seu barrcte.
Neste conto, fez-se uma pergunta se?n sentido.
Nao apenas a pergnnta nao tern sentido, coma Lmnbem
nao tern o homem que viajou ate Selma para faze-la.Nao que ele estivesse lao longe de la, mas por que nao
75
ficou quieto no seu canto? Por que ficar importunando o
Kabino Ben Kaddish, como se este jd nao ttvesse bastan-
tes amohfoes? A verdadc e que o Rabino jd estava por
aqui com esse lipo de gente e, como se nao bas/asse,
andava tambem envolvido num caso de patcrnidadc
i/icita. Portanto, a moral des/a historia e que o lal
homem nao tinha man o que fazer senao vagabundar
pelo deserto e dar no saco dos ou/ros. Assi'm, o Rabino
simplesmente deu-lhe um cacete, o que, segundo o
Pentateuco, e uma das maneiras mats sutis de demons-
trar preocupafdo.
Numa versao ligeiramente similar deste mesmo
conto, o Kabino sobe freneticamente sobre o bomem e
esculpe-lhe a historia de Ruth em seu nariz.
O Rabino Raditz, da Polonia, era um homcm
Ivaixinho c com uma barba imensa, de quem se diz queseu senso de humor inspirou varios pogroms. Um dc
seus disclpulos perguntou: "De quem Deus gostava
rnais— Moises ou Abraao?"
"De Abraao", elc respondeu.
"Mas foi Moises quern conduziu os israelitas a
Terra Prometida", rctrucou o discipulo.
'' Esta bc-m, cntao foi Moises'', concordou o
Rabino.
"Agora compreendi, Rabino. Foi uma pergunia
idiota", disse o disctpulo.
"Nao apenas isio, mas voce c um idiota, sua
mullicr e uma mceskeit e, se nao parar de me torrar a
patientia, esta cxiomungado!"
Ih
Aqui o Rabino esolicitadoa fazer um julgamen-
to de valor entre Moises e Abraao. O que nao e nadafacil, principahnente para um bomem que nunca leu a
Biblia e que esta apenas enganando. E o que signified a
palavra "mats"? O que e mats para o Rabino podia sermenos para o bomem, e vice-versa. Par exemplo. o
Rabino gosla de dormir com a barriga para cima. O
bomem gostaria de dormir em cima. da barriga do
Rabino. O problems aqui e obvio. Deve-se tambem
observar que, segundo o Pentateuco, torrar a paciencia
de um Rabino e um pecado tao grave quanta ficar
afagando plies com oulra intenfao senao a de come-los.
Urn homem quc nao conscguia arnmjar casa-
tnento para sua fcissima filha procurou o Rabino Sliim-
mcl, da Crac&via. "Mcu coracflo pesa de dor", dissc cle
ao Revcrendo, "porque Dcus me deu uma filha fcia."
"Muito fcia"? pcrguniou o Rabino.
"Sc ela sc deicasse numa bandeja ao lado dc umbacalhau, ningucm saberia a difcrenga."
O siibio meditou por longo tempo e finalmentc
perguntxm:
"Quc cspccic dc bacalhau?"
O homem, .surprcso com a pergUDta, pensou
rapido e rcspondcu:
"Dinumiirquts."
"Uma pena", disse o Rabino. "Sc fosse um
bacalhau portugucs, da talvcz uvesse alguma chance."
77
Bis at uma fdbu/a que ilustra bern a tredia das
qualidades transitorias, tais como a beleza. A garota separecia com um bacalbau? Por que nao? Ja viram
afgumas mu/beres andando impunemente na praia?
Parecem-se ou nao com bacalhaus? E, mesmo que seja
assim, nao serao todas betas aos olhos de Deus? Talvez.
Mas e verdade que, se uma garota parece mats atraente
numa travessa de bacathoada do que num vestido de
noiva, podem ter certeza de que eta nunca sera muito
fetiz. Curiosamente, a propria esposa do Rabino Shim-
mett foi acusada de se parecer com uma tuta, mas ape?ias
de rosto — e mesmo assim por causa de uma tosse
mcessante, embora a relacao en/re uma coisa e outra me
escape.
O Rabino Zcvi Chaim Israel, um csrudioso
ortodoxo do Pemateuco e homem que dcscnvolveu aarte da lamuria a um nivcl sem preccdenr.es no Ociden-
tc, foi unanimememe considerado o homcm mais sabio
da Rcn:tscenga pelos seus discipulos hebreus, os quaistocaiizavam 1/16 de 1% da populagao. Certa vez,
quando se dirigia a sinagoga para celcbrar o sagrado
fcriado judcu em comemoragao a renegagao de Deus aqualquer tcntacao, uma mulbcr parou-o no caminbo cfcz-lhc a segumie pcrgunia:
"Rabino, por que somos proibidos dc comer
carne de porco?"
"Ue! Somos?", retrucou o Rabino, incredulo.
"Argh!"
Esta e u?na das vdrias historias hassidicas que
tratam das leis hebraicas- 0 Rabino sabe que nao se devecomer porco; mas esta pnuco ligando porque, no fundo.
78
ele adora came de porco. E nao apenas isto, como
tambSm se diverte preparando ovos de Pascoa. Em
sitma, nao da muita bola para a ortodoxia tradicional e
encara o pac/o de Dens com Abraao como uma mera
formalidade, De fato, nunca ficou mttito claro por que a
came de porco foi proscrita pela lei hebraka, e a/gunsestudiosos acreditam que o Pentateuco apenas sugeriu
que nao se amiesse porco em certos restttunnites.
0 Rabino Baumcl, urn scholar dc Vitebsk,
dctidiu jejuar cm proiesto a uma lei que proibia os
jucleus russos dc usarcm sandalias fora dos guctos.
Duranic quatro mescs, o santo homem permancceu
deiiado num caire, olhando para o tcio e rccusando
alimeniagao de qu-jlquer cspecic. Seus pupilos ccmcram
por sua vid-.i e, entao, ccrto dia, uma mullicr aproximou-
se dc scu Icito c, indmando-sc ate SCU ouvido, pcrgun-
tou: "Rabino, qual era a cor do cabelo de Ester?" O
Rcvcrcndo virou-sc lenlamente c a encarou: "Vcjam so o
que ela me pcrguntou! Mai conscgue imaginar a dor dc
cabec.a provocada por quatro meses scm comer!" Com
isso, ok pupilos do Rabino escoltaram-na pcssoalmence
ate a sukkah, onde cla comeu da cornucopia da fartura
ate se fartar.
Este e urn sutil tratamento do problema do
orgulho e da vaidade, parecevdo implicar que Jejuar e
um engano dos grosses. Principalmente jejuar com o
estomago vazio. 0 homem nao provoca sun propria
infslicidade, e Parece fato que sofrer so depende da
vontade de Deus, embora nem eu entenda por que Ele
si3 diverte tanto com isto. Certas tribos orlodoxas
acreditam que o sofrimento e a unica forma de reden-
cJo, ao passo que os estudiosos mencionam um culta dos
79
essenios, o qualconsists em sair por ai dando cabegadas
nas paredes. Deus, segundo os ullimos Hvros de Moises,
e benevolent*, embora haja a/guns assuntos em que eleprefere ndo interferir.
O Rabino Yekel, dc Zans — o mclhor orador domundo ate que um gentio roubou-lhe as ceroulas —
sonhou durante tres noites consccutivas que, se viajasscate Vorki, la encontraria um grande tcsouro. Assim,
depois de beijar mulher c filhos, botou o pe na cstrada,
garantindo que estaria de volta em 10 dias. Dois anos
depois, foi encoiurado perambulando pclos Urals e
efetivamente ligado a um panda. Meio morro de fome edc fno, o Rabino-foi levado de volta para casa, onde
conscguiram ressuscita-lo com uma sopa quentc e um
cachecol. Em scguida, deram-lhc algo para comer.
Depois do jantar, ele comou sua historia: A tres dias de
Zans, foi capturado por nomades selvagcns. Quando
descobriram que era judcu, forgaram-no a remendar seus
fezes c a lavar seus albornozes. Como se isto ja nao fosse
humilbante, despejaram molho azedo em suas orelhas e
vedaram-nas com cera. Finalmente, o Rabino cscapou e
dirigiu-se a cidadc mais proxima, indo acabar nos Urais
porque tinha vergonha de perguntar o caminho.
Depois dc contar sua historia, o Rabino levan-
tou-sc c foi para a cama, tncontrando debaixo do traves-
seiro o tesouro que tinha ido procurar. Estatico, ajoe-
Ihou-SC e agradeceu a Dcus. Tres dias depois, voltava aosUrais, so que desta vez fantasiado de coelho.
A pequena obra-prima acima ilustra amplamen-te os absurdos do misticismo. O Rabino sonhou tresnoites segutdas. Os Citico Livros de Moises sublraidos
80
dos 10 Mandamtfitos deixam tres. Cinco menos osirmaos Jaco e Esau, igual a tres. Foi urn raciocwio
parecido com este que levou o Rabino Yitzhak Ben Levi,o grande mhtico judeu, a passar 52 dias seguidos mer-
gulhado em Aqucduto e ainda vir a tona dizendo queestava com sede.
81
Correspondencia entre
Gossage e Vardebedian
Men Prezado Vardebedian;
Fiquci sumamente aborrccido hoje ao cxaminara
corresporidcncia c encontrar minha carta de 16 dc sc-
tcmbro, contendo meu 22." movimento (cavalo a quartado rei), fechada c devolvida ao rcmetente devido a um
pcqueno equfvoco no enderego - - mais precisamente a
omissSo do SCU nomc e residencia, alem da completafalta dc sclos. Embora nao scja segredo que cu tenha
comciido alguns enganos no mcrcado dc capitals, cul-
minando no ja mencionado 16 de setembro, quando a
queda a zero nas a^ocs dc dctcrminada tirma rcduziumeu corn-tor tambem a zero, nao estou ofcrcccndo esta
explicacSo como desculpa a minlia sesquipcdal negligfin-
tia C inepcia. Pcrdoe-mc. O fato dc vocc rcr deixado dcnotar a aust-ncia da carta rcvela uma pequena disirac.5o
tambeni dc sua pane, 0 que prefiro crcditar ao seu
excesso dc zclo. Todos nos crramos. A vida c assim — eo xadrcz tambem.
Portanto, apontado o erro, passcmos a retifi-
cag5o. Sc fizer a gentilraa dc depositar mcu cavalo na
quarca casa do rci, acho quc poderemos continuar nosso
jogo mm mais precisao. O anuncio de cheque-mate fcito
por vocfi em sua carta desta manha passa a ser, por
conseguinte, urn alarma falso, c, se recxaminar as po-
sic.ocs a luz da descobetta dc- hoje, notara quc c o seu rci
quc csia as vcspcras do male, cxposto c indefeso, na alca
dc mini dos incus bispos. Como sao irorncas as vicissitudes desta pequena guerra! O destino prcga-nos pec,as
surpreendentes, nao? Mais uma vez, cogo-lhe aceitarminims sinceras dcsculpas por gesco tao descuidado caguardo ansiosamcnie o scu proximo movimcnco.
Ancxo SCSUC mcu 45." movimento: Mcu cavalo
toina a sua rainha.
Sinceramente,
Gossage
Gossage:
Rccebi sua carta contendo o 45." movimento
(scu cavalo toma minha rainha?), juncamcnie com sua
longa cxplicagao a respc-iio dc uma clipsc cm nossa
correspondfincia. Deixe-mc vc-r sc entendi perfcitamen-
te. Scu cavalo, que removi do cabulciro ha varias se-
manas, cstaria agora -- scgundo vocc -- na quarta casado rei, devido a uma carta pcrdida no corrcio ha nadamenos quc 23 movimciuos. Nao notci qualquer irrc-
gularidade na altura, e lembro-me perfcitamente do scu22." movimento, o qua! foi torrc a sexta casa da rainha,
logo depois cstrac.alhada por um infeliz gambito de sua
pane.
Ncstc momento, a quarta casa do rei esta
oiupada pela minha torrc e, como voce pcrdeu os
84
cavalos — nao obstante a sua carta — nao posso com-
prcendcr com qual deles voct prctende me tomar a
rainha. Como a maioria das suas pegas esta bloqueada,acrcdito que, no fundo, voce qucria dizer que o seu rei
deveria ser movido a quarta casa do meu bispo (sua
unica possibilidade) — o que ja tomei a liberdade de
fazcr, acresccntando antecipadamente meu 46.° movimcnto, no qual eu capturo a sua rainha e ponho o seu
rei em cheque. Agora sua carta tornou-sc mais clara enosso jogo pode prosscguir.
Atcnciosamente,
Vardebcdian
Vardebedian:
Acabo de analisar sua carta, contendo urn
escranho 46.° movimento, no qual sou convidado a
remover minha rainha de Lima casa que ela nao ocupava
ha 11 dias. Atraves de paciente exame, creio ter loca-
Uzado a causa da sua confusao. A presenga de sua torrena quarta casa do rei e tao impossTvel quanto a existencia
de dois flocos de neve pcrfeitamente iguais. Remcta-se
ao seu nono movimento no jogo e vera claramente que a
sua torre ja foi ha muito capturada. Na realidadc, foi
aquela ousada combinagao de sacrificio que destrogou oseu centra e custou-lhe ambas as torres. Logo, o que elascontinuam fazendo no tabuleiro?
Para sua consideragao, oferego-lhe minha versaodos faLos: Aquele turbilhao de troca de pegas por volta
do 22.° movimento dcixou-o ligeiramentc confuso e,na sua luta desespcrada para conservar as posigoes,deixou de notar a ausencia de minha carta habitual emoveu suas pegas duas vezes consecutivas, o que lhe deu
uma vantagem, digamos, injusta, nao aclia? Mas o que
passou, passou, e repassar todos os nossos movimentos
85
scria tedioso e diffcil, para nSo dizer impossivcl. DaT,
at red t to quc a melhor mancira dc rctificar a partida scria
conccder-me a oporcunidade dc dois lances consecutivosdcsta vcz. O quc seria mais do quc justo.
Em primciro lugar, portanto, tomo o scu bispo
com mcu peao. Entao, como isso desprotegc a sua
rainha, capturo-a tambcm. Acho quc agora podcmosprosseguir.
Sinccramcnre,Gossagc
P.S.: Anexo segue um diagrama tnostrando exatarnentea atual posic.ao das pecas no tabulciro, para seu govcrno.
Como pode vlt, o scu rei csta acuado, desprotegido e
sozinho no centra. Boa sortc..
G.
Gossage:
Ten do recebido sua ultima carta, a qual nao
piima cxatamciuc pela cocrcucia, posso ver agora o
motivo dc toda a confusflo. Pclo diagrama anexo, con-clui quc ha scis scmauas csiivcmos jogando duas partidas
de xadrcz complctamcntc difcrcntes - - cu, dc acordo
com nossa corrcspondcncia; c vote, dc acordo com os
seus proprios conccitos, os quais infringem todos os
sistemas conhecidos-. O movimento do cavalod supos-
ramentc perdido no correio, tcria sido imposstvel no22." movtmento, ja quc a peca estava cntao colocada
num tan to da ultima fila, sendo quc D movimento
descrito por vocc o tcria atirado exatamente sobrc abandeja dc cafe ao lado do tabuleiro.
Quanto a pcrmitir-lhe dois lances consecutivos a
fim dc compensar por um teoricamente extraviado —
86
vocc dcvc cstar brincando, bicho. Posso conccder-lhe o
primciro movimcnto (a tomada do bispo), mas nao o
scgundo e, ia que agora c minha vez, retalio tomando a
sua dama com minha torrc. Sua observacao dc que ja
nao tenho as torres pouco significa, pois basta corrcr os
olhos pclo tabuleiro para ve-las firmes em suas casas,
espcrando para atacar com habilidade e vigor.
Finalmcnte, o diagrams com o qual vocc fan
tasia a sua vcrsao do jogo Icmbra mais uma concepcao
enxadristica digna dos Irmaos Marx, e nao daquela
prcciosa obra que me penencia, O Xadrez Segundo
Nimzowitsch, que voce afanou de minha cstante no
ultimo tnvemo, escondendo-o sob o sueter de alpaca,
como pudc observar com o rabo do olho. Sugiro que
cstude o diagrams que estou cnviando anexo c rcarrume
o seu tabuleiro de acordo, para que possamos chegar ao
final da pariida com algum grau dc prccisao.
Esperancosamente,
Vardcbcdian
Vardcbcdian:
Scm qucrcr complicar uma operacao ja de si
complcxa (tomci conhccimento de que uma recentc
doenca deixou a sua ferrca constituicao ffsica e mental
provisoriamente abalada, provocando um pcqueno
descompasso com o mundo real como o conliecemos),
devo aproveitar esta oponunidade para desemaranhar
nossa trama antes que cla chegue a uma conclusao ir-
rtmediavelmente kafkeana.
Tivcssc cu imagmado que voce nao seria ta-
valhciro o suficiente para permitir-me dois lances con-
secutivos, nao icna, no 46." movimcnto, tornado o seu
bispo com meu peao. Segundo o seu proprio diagrama,
87
alias, essas duas pecas estao colocadas dc forma a lornar
impossTvcl tal movimcnto, limiiados como cstamos as
normas estabelecidas pela Fcdcracao Mundia! dc Bridge,e nao pcla FederasSo Estadual dc Boxe. Sem duvidar de
que sua intcngao foi construiiva ao tomar minha rainha,devo argumentar firmcmenie que so o desastre pode
Suceder quando voce se arroga um arbitrario poder de
densao c comega a bancar o ditador, mascarando como
manobras taricas o que nao passa de descarada agressao
- comportamento que voce proprio dcplorou em nossos
lTderes pollticos ha poucos meses, no seu ensaio OMarciues de Siide e a Nao-Violencia.
Infelizmente, com a progressao tomada pclojogo, ja nao pQSSO calcular cxatamente em qua! casa deve
ser colocado o cavalo que vocfi surrupiou, c sugiro que
deixemos aos dcuses a decisSo, permitindo-mc fechar osolhos c joga-lo dc novo no tabulciro, concordando cm
accicar qualquec lugar em que ele venha a cair. Talvez
acrescente um pouco mais de calor ao nosso pcqueno
cmbate. Meu 47." movimento: minha corrc capture o
seu cavalo.
Sinceramente,
Gossage
Gossage.
Muito funosa a sua ultima carra! Bern intcn-cionada, concisa, contendo lodos os clementos que, em
ccrtos grupOS, poderiam passar p(ir um cfeito altamcnte
comunicativo, mas que, cm oucros grupos, seriam
classificados imediatamente por aquilo que Jean-PaulSartre gosta dc se rcfenr como o "nada". O que mais
aflora a pSgina c um vivldo sentimento de descspcro,
lembrando-nos os dianos deixados pclos exploradoresperdidos no Polo ou as cartas dos soldados alcmaes em
Stalingrado. Chega a scr fascinante a maneira pcla qualos sentidos sc desintegram quando confroncados com a
dura realidade, e de como atacam as ccgas, devastando
miragcns c servindo-se dc precSrios cscudos contra oarrasador assalto da existftncia bnita!
Scja como for, mcu amigo, dcdiquci a melhof
parte da scmana passada a dcsvcndar o miasma dc alibislunaticos que vocc chama dc "sua corrcspondcncia",tcntando ajustar as coisas para quc nossa partida tcrminc
bcm e de vcz. Sua rainha ja era. De-lhe adeuzinho. Damesma forma, suas duas torres. Esqueca um dos bispos,porque ja o tomci. O outro esta tao impotcntcmcntc
prcso a um dos cantos do tabulciro, longc do tcrrcno dc
ajSo do jogo, quc seria mclhor nao contar com cle, paranfio sc dcccpcionar.
No quc sc refcre ao cavalo que vocc indiscu-tivclmcntc pcrdcu, mas quc sc recusa a admitir, ja o
coloquci na unica posii;ao conceblvel, assim concedendo-Ihe o maior numero dc oponunidadcs dcsdc quc ospcrsas invcntaram o jogo. O cavalo jaz agora na setima
casa do mcu bispo e, sc as suas facuidadcs dc obscrvac.ao
nao cstao totalmciuc obliteradas, uma simples contem-
placao do tabulciro dcmonstrara quc csta cobic,ada casabloqueia agora a unica forma que o scu rci teria decscapar das minhas garras. Interessante como a suadesmedlda ambicao acabou resultando cm meu cxclusivoproveito! O cavalo, ao forear sua reemrada no labulciro,Fecha a sua unica salda!
Meu movimcnn) v: rainha a quinta do cavalo.Preparc-sc para o mate no proximo lance.
Cordialmcnte,Vardebcdian
89
Vardebcdian:
H evidente que a tensSo cxigida na dcfesa de
uma seric dc absurdas posicSes enxadnsticas abalou
profundamcmc o dclicado cqmlibrio do seu aparato
psfquico, tornando dcbi! a sua comprcensao dc ccrros
fcnomenos. Nao tenho alternative exceto cncerrar a
nossa partida nipida c impicdosamentc, aliviando a
tcnsao antes quc vocc fiquc dcfimtivamciuc imbfcili-
zado.
Cavalci - - sim, o cavalo! - - a sexta da rainha.
Cheque!
Gossagc
Gossage:
Bispo ii quinta da rainha. Mace!
Lamcnto quc a partida icnha sido demais para
voce, mas, sc isco Ihc serve dc consolo, varios outros
campcocs lanibcm se rendcram ao obscrvar minba
tccnica. Sc quiscr revanebe, sugiro quc tentcmos jogar
logomania, uma ciencia rclaiivumcnte nova para mim e
quc ainda nao domino com tanta facilidade.
Vardebedian
Vardcbcdian:
Torre a oiiava do cavalo. Mate!
Longe de atormcnta-!o com ultcriorcs dctalbcs
sobrc men male, por acrcdiiar na SU3 honcstidadc biisica
(um dia, alguma forma dc tcrapia tomprovara o que
digo), accito dc bom grado o scu dcsafio em logomania.
Vamos ao jogo. Como vocc jogou com as brancas no
e portanto desfnuou da vanragem do pnmciro
90
movimcmo uivesse cu adivinhado as suas limitagocs e
Ihe teria conccdido os dois primeiros movimcntos), agora
c ;i minha vcz de comegar. As scte Ictras que acabo deVirar SSO O, A, E, J, N, R t Z -- urna combinacao tao
iufcliz que, so por si, c urn aval de minha integridade.
Felizmente, no entanto, um extensive vocabulSrio,acoplado ao meu interessc por esotcrismo, permiriu-medar uma ordein etmol6gica aquilo que, aos menos le-trados, parttcna apenas uma garatuja. Minha primeira
palavra fi ZANGHRO. Confira. O escore, ncstc momen-ro, c de 116 a 0, a meu favor.
Agora e sua vcz.
Cordialmcnte,
Gossage.
91
Reflcxoes deUm Bern-Alimentado
(Depois de ler Dostoievskie um desses livros de
dicta durante uma viagem dc aviao.)
Sou gordo. Tcrrivclmcnte gordo. Sou o sujcico
mais gordo que eu conhego. Tcnho quilos sobrando cm
cada ccntimctro do mcu corpo. Mcus dcdos sao gordos.
Meus pulsos sao gordos. Mcus olhos sao gordos. (Ja
imaginaram olhos gordos?) Dcvo estar com umas ccn-
tenas dc quilos dc exccsso. A carnc iransborda cm mimcomo marsh mallow dc um sundae. Minha cintura
provoca ohs de incrcdulidade cm todo mundo que me
vc. Nao ha a mcnorduvida, sou bcm gordinho. Agora
— pergumara o Icicor — ha vancagcns ou desvantagcns
em se ter a compleigao flsica de um mapa-mundi? Niio
pensem que cstou brincando ou falando por parabolas,mas a gordura, por si prapria, esta acima da moral
burgucsa. Gordura c simplesmentc gordura. Que a
gordura cenha qualqucr valor em si ou que seja um mal
ou digna dc pens c, natural men tc, uma piada.Absurdo! o que e a gordura, afinal, scnao uma mcra
acumulagao dc quilos? E o que sao quilos? Apenas uma
93
dc celulas. Podc uma celula ser moral? Ou
ela esta acima do bcm c do mal? Quern sabe? —sao raopcqucninhas! Nao, amigo, nunca devemos distinguir
entrc o bcm e o mal na gordura. Devemos nos educar
para encarar a obesidade scm cmitir julgamcntos de
valor, ncm dassificar cstc gordo de "um bclTssimogordo" ou aqucle dc-"um pobre gordo".
Vejam o caso de K. Era de tal forma porcino
quc nao passava por uma porta sem a ajuda de um pe-
de-cabra. Na realidade, K. nunca cogitaria ir dc uma.sala a ouira scm sc despir por completo e passar man-
tciga no corpo. Imagine) perfcitamente os insultos que
devc ter suportado ao passar entrc bandos de molcques.Aposto que foi agrilhoado por gritos de "Casas daBanha!"
E entao, um bclo dta, quando K. ja niio podia
suporcar mais, resolveu fazer dicta. Dicta, por quc nao?
Primciro coriou os doccs. Dcpois, pao, alcool, amidos,
massas, molhos. Em suma, K. abandonou tudo aquilo
quc lorna um homem incapaz dc dar o lago no saparo
scm a ajuda dc um comoraonista dc circo. Aos poucos,comegou a cmagrcccr. Rolos dc banha despencaram de
scus bra^os c pcrnas. Tempos dcpois, quando sc julgou
no ponto, fez a sua primcira apari^ao publica com scu
novo corpo. E, cu dina aic, um corpo fisicamente
acracntc! Parccia o mais feliz doa liomcns. Eu disse
"parccia", Dczoiio anos dcpois, na cama para morrcr,com a febre assolando lodo o seu fragil corpinho, ele foi
ouvido gricando: "Minha gordura! Quero minha gor
dura! Por favor, enchain os meus bolsos de pcdras! Que
idioia cu fui. Emagrecer! Dcvo ter sido tentado pclo
Demonio!" Bcm, cicio que a moral da historia esta mais
do quc cvidente.
94
Imagino quc agora o leitor cstcja se perguntan-
do. Esta bem, sc voce c gordo como um capado, por quc
nao cntra para um circo? Porque — e admito quc con-
fcsso isto Hgeiramente envergonhado — nfio posso sair
de rasa. Nao posso sair dc casa. Nao posso sair dc casa
porque nao consigo vesur as calgas. Minhas pcrnas sao
grossas demais. Contem mais carnc moida do que todas
as lanchonetes da cidadc. Dcvo tcr uns 12 mil harnbur-
gucrcs cm cada pcrna. Uma coisa e ccria: sc minha
gordura pudesse falar, ceriamentc falaria da cnorme
solidao dc um homem - - com, talvez, algumas breves
mdicacocs sobre de como fazcr barqmnhos dc papcl.
Cada quilo do mcu corpo goscana dc scr ouvido,
inclusive nitus \4 qucixos c papadas. Minha gordura e
miltnar. So a barriga dc minha perna ja viveu quase
isso. Minha gordura nao c mais fchz, mas t auicncica. A
pior coisa quc pode haver C gordura calcifitada, mas nfio
sci se o agouguts ainda costumam vc-ndc-la.
Mas dcixem-mc toniar-lhcs como cngordci.
Porque c claro que nao nasci gordo. Foi a rehgiao que
me tornou assim. Houvc uixia cpoca cm que fui magro
— bem magro, Tao magro, na realidade, quc sc algucm
me charnassc de gordo, seria imediatamcnic chamado
dc ccgo. E magro conunuci ate um dia -- crcio quc no
dia dos meus 20 anos — cm que cu estava lomando cha
com torradas com mcu tio num restaurante. Mcu cio me
pcrguntou: "Vocc acrcdua t-m Dcus?" Nao cntendi.
"E, se atredita, quanto acha que cle pesa?" - - insistiu.
E, assim dizendo, tirou uma longa e luxurianu1 iiaforada
de seu charuto, com aquele jcito cultivado c s()fisticado
que so elc sabia tcr. explodindo cm scguida num accsso
de tosse tao violcnto quc achci que fosse tcr hemorragia.
'Niio, nao acrcdito em Deus", respondi.
"Porque, se cxiste Deus, diga-mc, titio, por que cxistc a
miseria c a calvieie? Por que alguns homens passam pela
vida imunes a milharcs dc inimigos mortais de sua raga,
enquamo outros sao acomeudos de uma enxaqueca
capaz dc durar semanas? Por que nossos dias sao con-
tados, e nao, digamos, dispostos cm ordem alfabetica?
Rcsponda-mc, ritio. Ou sera que o choquei?"
Eu sabia que nao corria perjgo, porquc nada
scria capaz de chocar aquele homem. Certa vez ele vira,
com seus proprios olhos, a mae do scu professor de
xadrez ser currada pelns turcos e so nao achou o incidence divertido porquc levou muito tempo.
"Meu querido sobrinho", respondcu, "Deus
cxistc, apesar do que voce pensa. E digo-lhe mais: esta
em toda a partc. Ouviu? Em toda a partc!"
"Em toda a partc, titio? Como podc tcr tanta
eerteza disto se nao sabe ao certo nem se nos existimos?
E verdade que, ncsic cxato momento, estOU tocando a
sua vcrruga com meu dedo, mas nao scria isto uma
ilusao? E se a vida inteira nao passasse de uma ilusao?
Por cxcmplo, ha certas seitas de santos no Onente con-
vencidos de que nada cxistc fora dc suas mentes, execto,
e claro, um aviao para os Estados Unidos. Suponhamos
que todos nos cstcjamos sozinhos e condenados a vagar
ao leu num universo indiferente, sem espcranga de
salvagao, ncm qualqucr pcrspectiva alcm da miseria, da
morte e da vazia rcalidade do nada cterno. E at, como
ficamos?"
Vi logo que tinha provocado uma profunda
imprcssao cm meu tio, porque ele disse: "E voce ainda
se pcrgunta por que nao c convidado para as festas!
Morbido desse jeito!" Como se nao bastasse, acusou-mc
de nihilismo e, com aquele seu jeito cntico, tTpico dos
96
senis, acrescentou: "Dcus ncm scmprc esta onde O
procuramos, mas cu Ihc afirmo, qtierido sobrinho, queElc esta cm toda a partc. Ncssas torradas, por exemplo!"E, com isso, levantou-se e saiu, nao scm antes deixar-mesua bfingao c uma conta mai's cara que uma passagem deaviSo.
Vultci para casa imaginando o que elc estariadizcndo ao afirmar que "Elccstacm todaaparte. Nessaslorradas, porcxcmplo." Mcio com sono a esta altura, fuitirar uma soncca. E foi cntao que tivc um sonho que
mudaria minha vida para scmprc No sonho, cstoucaminhando pclo campo quando noio que estou comfomc. Esia bem, mono dc fome. Vcjo um restaurante ecmri). Pe£O blfe com fritas. A garconctc, que me lembra
minha senhoria (uma mulhcr totalmente insipida,parccia com um iTquen, desscs bem pcludos), tenta me
convcnccr a pedir a salada de galinha, que nao csia
cheirando bem. Enquanto convcrso com a mulher, cla setransforma num faqueiro dc 24 calberes. Quase morro
ilc Canto rir, o que, dc repentc, me fa2 chorar e final-mente me causa uma scria infeccao no ouvido. O salao
parecc brilhar intensamenic c uma figura se aproxima
num cavalo branco. E meu caiista. Caio no chao cheio deculpa c- irmorso.
Foi assim o meu sonho. Acordei com umatremenda sensagao de bem-estar. Estava ate otimista.Tudo se toniara claro.Afrasc de meu tio reverbcraincessamemente no Tntimo da minha cxiscencia. Fui aCOZinhfl c tomccci a comer. Comi tudo que estava avista. Bolos, pacs, carnes, frutas, legumes. Chocolates,
vcrduras, vinhos, peixe, massas, sorvctcs c salsichas. SeDeus esta em toda a partc, conclui, csta tambem na
comida. Logo, quanto mais comer, mais deTsta metornarei. Impclido por este subito c incomrolavel fervor
97
-
religioso, empanturrei-me como um fanatico. Em scis
mcscs, tinha me tornado o mais samo dos santos, com
um coracao totalmcnte devotado as prcccs e um esto-
mago quc parecia estar sempre alguns quilometros a
minha frente. A ultima vez em quc vi mcu pe foi numamanhS de quinta-feira cm Vitebsk, embora, pelo que
me consta, continua no mesrno lugar. Quanto maiscomi, mais cngordei. Emagrecer tcria sido a suprema
hcrcsia. Ate mesmo um pecado! Porquc, quando voce
pcrdc 10 quilos, prczado Icitor (cstou prcsumindo quc
voce nao scja tao gordo quanto cu), podc cstar perdendo
os melhores 10 quilos da sua vida. Podc cstar perdendoos !0 quilos quc concern o seu genio, a sua humanidade,
o seu amor e honestidade ou, quern sabe, apenas um
irrelevante pneuma*tico na cintura.
Sci o que voce deve csiar dizendo agora. Esta
dizendo quc tudo isto contradiz tudo o que eu havia di-
toantes. Ecomose eu csrivessc, de repente, acribuindo
valores a uma montanha de came ncutra. E isso mesmo,
c dal? Nao sera a vida uma comradiqao cm si? A opiniao
de uma pessoa sob re a propria gordura podc mudar
como as estacQes do ano, como a cor do cabelo e como a
propria vida. Porque a vida e tran.sforma(;ao c a gordura
e vida, assim como e tambcm a mortc. Estao vendo? A
gordura c tudo, A menos, c claro, quc voce esteja com
excesso de peso.
98
Os Anos 20
EramUma Festa
Vim a Chicago pela primeira vcz nos anos 20,
para assistir a uma luta. Ernesc Hemingway vcio comigo
e ficamos hospedados na academia dc Jack Dempscy.Hemingway tinha acabado dc cscrever dois contos sobre
boxe, e, enibora eu e Gertrude Stein tivesscmos achado
quc estavam bonzinhos, ainda prccisavam de algumas
mcxidas. Dei um gozada em Hemingway sobre o ro
mance que ele estava escrevendo e rimos a valer c nos
divertimos um bocado e entao calcamos as luvas de boxce ele me acertou o nariz.
Naquelc inverno, Alice B. Toklas, Picasso e eu
alugamos uma villa no sul da Franga. Eu estava rcvisan-
do as provas do meu romance, quc ja era considerado o
grande romance americano, mas as letras eram tao
miudinhas quc nao consegui chegar ao fim dele.
Toda a tarde, Gertrude Stein c cu costumavamosprocurar objetos raros nos antiquarios, c lembro-mc de
99
Ihe Kir pciguniado se ela achava quc eu dcvia continuar
escrevendo. Com aquele sl-u jeito tipicaracnre obtfquoquc nos encantava a todos, ela disse "Nao", o que
naiuralmente qucria dizer sim. Portanio, cmbarqucipara a Italia no dia seguinrc. A Italia me lembrava
Chicago, principalmentc Veneza, porquc ambas as
cidades tern canais c suas ruas sao chcias dc estatuas e
catcdrais construtdas pelos maiorcs artistas do Renas-
cimento.
Naquclc mes, fbmos ao estudio dc Picasso cm
Aries, quc encao ainda era chamada Rouen ou Zuriquc,
ate que os franceses a rebatizaram cm 1589 sob Lufs, 0
Vago (LuTs foi um rei bastardo do seculo XVI, que nao
dava collier dc clia a ningucm). Picasso cstava justamen-
te comecanclo o que depots scria conhecido como sua
"fase azul", mas, como parou para tomar cafe comigo e
com Gertrude, sua "fase azul" so comegQU, na reali-
dade, uns 10 minutos depois. Durou quatro anos.
PortantO, nao creio que aquelcs 10 minutos tivesscm
fcito muita difcrenga.
Picasso era um sujcito baixinho que andava de
maneira engracada, pondo um pe na frentc do outro ate
completar o quc costumava chamar dc "passos". RIamos
muito, mas, por volta dc 1930, o fascismo comecou a
crescer e ja quasc nao havia do quc rir. Gertrude Stein eeu cxaminavamos os quadros de Picasso com muitorigor, e Gertrude era da opiniao de quc "a arte, qual-
qucrane, nao passa de uma exprcssao dc alguma coisa".
Picasso nao concordava e rcspondia: "Nao me encha o
saco. Deixe-me almogar." Acho que ele tinha razao.
Pelo menos almocava regularmcnte.
O estudio de Picasso era cotalmente diferente do
dc Matise. Enquanto o de Picasso era uma basunca,
100
Matisse manrinha o scu cm perfeita ordcm. Vice-versa
rambem.Em setembro daquele ano, Matisse aceitou umaproposm para pintar urn afresco, mas, com a docnca dc
sua mullui", nao p6dc tcrmmaro trabalho e, por isso, eles
tiveram dc se contentar com papcl dc parede. Lembro-
me dc tudo isso perfeitamente porquc foi logo antes
daquele invcrno quc passamos num pequeno aparta-
mento no norte da Sutga, ondc a chuva tem o estranho
habito de comccar c, dc repente, parar. Juan Gris, o
cubista cspanhol, convenceu Alice Toklas a posar parauma natureza morta e, com a sua caracteristica conccp-
c,ao abstrata dos objetos, coniecou a qucbrar-lhc a cara e
o cesto do corpo para reduzi-lo as formas geomctricas
basicas, mas nunca chegou a concluir a obra porque a
policia intcrveio. Gris era um cspanhol provinciano, e
Gertrude Stein dizia sempre que so um vcrdadciro
espanhol podia tcr feito o quc cle fez; tcntar criar obras-
primas a partir do nada e ainda falar cspanhol ao mesmotempo. Era realmcntc um dcslumbre.
Rccordo-mc quc, ceria tarde, estavamos sen-
lados num bar de lesbicas no sul da Franga, com nossos
pes conforiavclmente insialados no parapeito da varan-
da, a qual ficava no none da Franca, quando Gertrude
Stein disse: "Estou enojada". Picasso achou muito
engraeado e Matisse e eu tomamos isso como uma
cspeeie dc senha para irrnos a Africa. Sete semanas
depois, no Quema, encontramos Hemingway, ja bronze-ado e de barba e dominando totalmente o estilo seco e
descritivo quc o caracterizaria. Ali, no chamado con-
tinente negro, jactou-se umas mil vczes de terqucbrado
caras dc uns c outros.
"Que quc ba, Ernest?", perguntei. Hemingway
falou iongamente sobre a matte c a aventura, daquelejcito quc so ele sabia c, quando acordci, c!c ja havia
101
armado a barraca e estava fazendo uma cnormc fogueirapara cozinhar alguns tira-gostos dc dois ou trcs defames
quc acabara dc abater. Bnnquei com clc sobrc sua barbac rimos a bega e tomamos conhaquc c entao calcamos as
luvas dc boxe e ele acercou meu nariz.
Naqucle ano voltei a Pans para falar com um
compositor europeu, magnnho c ncrvoso, dc nariz
aquilino c olhos incrivelmcnte rapidos, c quc um dia se
tornaria Igor Stravinsky c, mais tardc, scu proprio
melhor amigo. Hospedci-mc na casa dc Man c Sting
Ray, e Salvador Dali aparectu varias vezes para jantar,
sendo quc ccrto dia Dali rcsolvcu dangar a danga do
ventre, o que foi um enormc succsso, prindpalmcnte
porquc clc cstava com dorcs dc prisao-dc-ventrc.
Lembro-mc dc quc, uma noitc, Scott Fitzgerald
c sua mulhcr Zclda rcsblvcram voltar para casa dcpois dc
uma agitada festa dc reveillon. Estavamos cm abril.
Havia trcs meses que nao ingcriam nada scnao cham-
panha e, na semana anterior, cinham, despencado com
sua limusma de um rochedo de 30 metros, caindo no
oceano, apenas para pagar uma aposia. Os Fitzgerald
cram autcnticos, isto ningucm podc ncgar. Eram pessoas
muito simples e, quando Grant Wood convidou-os a
posar para o scu "Gotico Americano", ficaram simplcs-
mentC encantados. Mas, pclo que Zclda me contou,
Scott vivia deixando cair o forcado.
Nos anos scguintes, cu c Scott ficamos cada vez
mais amigos e muicos acrcditam que elc renha bascado o
protagomsta de seu ultimo romance cm mim c quc cu
tcria bascado minba vida no protagonista dc scu romance anterior, e o resultado c que eu acabci sendo proces-sado por um pcrsonagem de fiegao.
102
Scott tinha serios problemas para discipline scu
Liabalho c, cmbora ambos adorassemos Zclda, chegamos
a comlusao dc quc cla produzia um efeito ncgativo cm
seu trabalho, reduzindo a sua producao de um romance
pur ano a uma esporadica reccita anual de peixe e a uma
sent dc vTrgulas.
Finalmentc, em 1929, fomos todos juntos a
Espanha, onde Hemingway aprcscntou-me a Manolete,
o qual era tSo sensivel quc chegava a parecer efeminado.
Usava coTisrantcmcntc calgas justas dc toureiro e, oca-
sionalmeiKe, sako alto. Manolete ers um grande arcisca,
dos maiorcs. Se nao tivesse se tornado um cxccpcional
toureiro, possuTa tanta graga que teria ficado famoso no
mundo inteiro como guarda-livros.
Divertimo-nos a valcr na Espanha e viajamos e
escrevemos e Hemingway levou-me para pescar atum e
pesquei quatro latas e rimos muito e Alice Toklas per-
guntou-me se eu estava apaixonado por Gertrude Stein
pDiquc havia-lhe dedtcado um livro dc pocmas. embora
os pocmas fosscm dc T.S. Eliot e eu disse que sim, que a
amava, mas quc a coisa nunca ciana certo porque eta era
muito intclij-ente para mim, c Alice Toklas concordou, e
entao calgamos as luvas de boxc e Gertrude Stein acertou
meu nariz.
103
Conde Dracula
Em algum ponto da Ttansilv&nia, Dracula, o
monstfo, dorme cm scu caixao forrado de cetim,csperando pela noiic. Como a exposicao aos raios solares
faz-lhc mai a pelt, podendo ate dcstruf-lo, ele se man-
reni protcgido na sua tumba, a qual ostcma, juavadoem
prata, o name dc sua famllia. Chega enrao a hora das
trcvas e, guiado por scu mintculoso mscinco, o demonio
emerge da seguran<;a dc seu cstondenjo c, assumindo as
pitvorosas formas tin morcego ou do lobo, erra pclas
redondezas, bebendo o sanguc dc suas vfnmas. Final-
meme, ames que desponttm no ceu os primciros raios
de scu afquiinimigo, o sol, clc volta ao jazigo e dormc, a
cspcra dc que o ciclo rccomece.
Neste momento clc comeca a se mexcr. O baler
de suas palpcbras e a reacao a uni insiinio secular c
inexpliiuvel dc quc 0 sol csta se pondo e que chega a sua
hora. Esta particularmente sedento csta noire e,enquanio permanete denado, ja totalmentc despcrto,
105
vestido com sua capa negra por fora c vcrmclha pordcntro, aguarda que a noitc a tudo cnvolva para quc
abra a pcsada tampa do caixao. Entremcntcs, decidequais setao as suas virimas aquela noite. Por quc nao o
padeiro c sua mulher? Sao suculcncos, disponiveis e
ingenuos. A lembranca do desavisado casal, cuja con-
fianca ele cultivou cuidadosamente, excita dc manciraquase fcbril a sua sede de sangue, c elc mal podc cspcrar
mais alguns segundos para sair em busca de sua presa.
E, de repente, ele sabe quc o sol se pos. Como
um anjo do inferno, levanta-sc rapidamente e, cransfor-
mando-se num morcego, adeja diabolicamentc ate acabana de suas vicimas.
"Condc Dracula! Mas que surprcsa agradavel!",
diz a mulher do padeiro, abrindo a porca e convidando-
o a cmrar. (Claro que elc ja rcassumiu a forma humana,
usando de lodo o seu charme para disfargar intericoes taomalevolas.)
"O que o traz aqui tao ccdo?", pergunta opadeiro.
"O seu convite para jantar, naturalmcnte", elercsponde. "Espero nao ter cometido um cngano.
Tfnhamos marcado para esta noite, nao?"
"Sim, para esta noite, mas ainda e rneio-dia!"
"Como disse?" — perguntou o Condc, con-fuso.
"Ou veio para assistir conosco ao eclipse?"
"Eclipse?"
"Sim. Estamos tendo eclipse total."
106
"OQUE?"
"O eclipse foi previsto para dois minuios dcpoisdo mcio-dia. Deve estar termmando. Olhc pcla jancla."
"Oh! Acho que estou frico!"
"Como?"
"Com licenca, tenho quc me retirar..."
"Comodissc, Conde Dracula?"
"Preciso ir — ahhh — oh, mcu Deus...'.' — C
freneticamente agarra a maganeta da porta.
"Ja esca indo, Conde? Mas o senhor acabou de
chegar!"'
"Eu sci — mas — acho quc me cnganci..."
"Conde Dracula, o senhor esta tao palido!"
"Estou? Devo estar precisando dc ar fresco.Olhtm, foi um prazer rcvc-los e..."
"Ora, nao faca cenmonia. Semc-sc. Vamostomar um drinque."
"Drinque? Nao, preciso sair correndo. Alias,
voando! Tire o pc de minha capa."
"Ah, dcsculpc. Vamos, rclaxe. Qucr um vi-
nho?"
"Vinho? Nao, pode deixar. Sofro do fTgado,
vocc sabc. E agora, rchau, tchau, preciso sair daqui a
jato. Acabo de me lembrar quc dcixei accsas ao luzes domcu castelo. E com as contas ao prcco cm que cstao..."
107
"Por favor", insiste o padeiro, abracando fir-
merncnte o Condc. "O senhor nao esta incomodando.Nao seja tao ccrimonioso. Apcnas chegou mais ccdo."
"Olhem, eu gostaria, mas ha uma reuniao decondcs romenos no castcio e ainda tenho quc preparar OSfries."
"Mas que prcssa. Nao sei como nao tem um
ataquc do coracSo!"
"Para dizer a vcrdade, acho que vou ter umagora!"
"Eu cstava preparando justamcnte um cmpadao
de galinha para esta noitc", diz a mulher do padeiro."Espero quc gostc."
"Adoro, adoro", diz o Condc com um sorriso,
empurrando a mulher sobrc uma pilha de roupa suja.
Abre por cngano a porta dc um armario, encra c diz:"Meu Deus, ondc flea a merda da porta da frente?"
"Ha, ha!", ri a mulher do padeiro. "Como oCondc e cngra<;ado!"
"EngraeadTssimo", responde 0 Conde, forcandouma risadinha. "Agora saia da frente, sua broa velha!"Fnmlmente abre a porta da frentc, mas ja nao ha tempo.
"Olhe, mamae!", grita o padeiro. "O eclipsedeve ter tcrminado! O sol esta saindo de novo!"
"E isso mesmo", diz o Condc, voltando parademro c trancando a porta. "Rcsolvi ficar. Fcchem todas
as cortinas deprcssa! Depressa!"
"Quc cortirras, Condc?"
108
"Ah, voces nao lem corunas. Dcvia ter adi-
vinhado. O porSo, onde fica u porao?"
"Nao temos porao", rcsponde a mulher com ar
compreensivo. "Escou sempre dizendo a Jarslov, temos
que construir um porao, Jarelov, Mas Jarslov c assim,nunca segue mcus conselhos, nao e, Jarslov?"
"Estou sufocando. Onde e o armfirio?"
"Essa brincadcira nfis ja conhecemos, Condc.
Maniac c eu rimos muito."
"Ah, como o Condc c cngragado!"
"Olhem, vou me irancar no armario. Acordcm-
me as 7:30!" E assim dizendo, o Condc se trancou no
armano.
"Ah, ah, ah! Elc nao c uma gra?a, Jarslov?"
"Oh. Sr. Condc, saia do armario! Nao seja
bobinho!"
Dc dentro do armfirio sai a vox abafeda doCondc: "Nao -- posso. Por favor. Dcixem-me — ficaraqui. Esta cscurinho, gostoso..."
"Sr. Condc, pare com isso. Ja nao agiicntamos
dc tanto rir!"
"Eu — adoro — esse armario -
"Sim, mas..."
"Eu sci, cu sci. Parece estranho, mas eu gosto
de ficar aqui dentro. Outro dia mesmo cu estava dizen
do a Sra. I less, sou louco por armarios. Sou capaz de
ficar horas dentro deles. Boa mulher, a Sra. Hcss.
Gorda, mas uma doce criaiura. Agora, por que voces
109
nao vao d;ir Lima volta c me chamam a noitc, hem?Ramonal, la-ra-ri-la-ri-ri-ri-ri..."
Chcgam o Prefdto e sua mulher. Estavampassando c resolverarn entrar para visitar seus bonsamigos, o padeiro e a mulher.
"Ola, Jarslov. Espero quc eu c Katia nao
estejarnos incomodando."
"Ora, Sr. Prefeito, i uma honra. Saia dai,Conde Dracula! Temos visicas!"
"O Conde csta aqui?, pergunta surprcso oPrefeito.
"Esia, e o senhor nunra adivinharia ondc", diza mulher do padeiro.
"E tSo dificil ve-lo a esta hora. Acho ate quenunca o vi durante o dia."
"Pois o fato e que ele esta aqui. Saia dai,Conde Dnicula!"
"Onde esta ele?", pcrgunta Katia, sem saber sedeve nr on nao.
"Pare com essa brincadeira! Saia daf ja-ja!",ordena a mulher do padeiro, ja impaciente.
"Esia crancado no armario", diz o padeiro,mcio sem jeito.
"E mesmo?", perRunta o Prefeito.
"Vamos logo", berra a mulher, esmurrando aporta. "Ja perdeu a gra^a. O Prefeito esta aqui."
"Ora, Dracula, que piada e esta?", grita oPrefeito. "Vamos mmar urn drinque."
IK)
"VSo embora, indos voces. Estou ocupado"
responde ;t voz do Condc.
"No armSrio?"
"Pois c. Nao sc preocupern, Daqui posso ouvir
o quc voces dizem. Se tivcr alguma coisa a aciesccntar,
promeco entrar na conversa."
Os dois casais sc entrcolham, desistem, scrvcm
as bebidas c comccam o papo.
"Quc eclipse hoje, hem?", comenta o Prefciro,
bebericando.
"E. Incrivel."
"Incrfvel raesmo!", comenta Dracula, la do
armario.
"O quc foi, Condc?"
"Nada, nada. Esquecam."
E ;issim passa'o tempo, ate o Prcfeito ja nao
agQcnta mais e abre a forga a porta do armario, gritan-
do: "Chega, DrScula. Saia dal. Voce e um homemcrcscido, Pare com esta loucura."
A luz do sol penetra no ambiente, fazendo com
que o tnonstro comece a cncolhcr, lentamente dissolver-
se a um csqucleio e finalmentc ser reduzido a po, diante
dos atonitos presences. Abaixando-se para contcmplar omontinho dc cinzas brancas no chSo do armario, a
imilhcr do padeiro grita:
"Quer dizer quc vamos ter dc jantar fora csta
none?"
in
UmPouco Mais
Alto Por Favor
Comprecndam quc estao lidando com umhomem quc devorou o Finnegans Wake cnquantobrincava numa monianha-russa em Coney Island, des-vendando com fecilidade os abstrusos mistcrios joy-ceanos, apesar dc codas aquelas guinadas c dcscaidascapazes dc afrouxar ate as mais solidas obturagocs aouro. Comprccndam lambem que eu fui um dos poucosque conseguiram pcrccber no Buick prensado, cxibidono Museu de Artc Moderna, aquela sutil imerligacao dcnuances c sombras quc Odilon Redon poderia tcr atin-
gido, caso tivesse desprczado a delicada ambiguidadedos pastcis c tniballiudo com um trituradora dc fcrro-vclho. E, ponanto, como um daqucles cuja milltiplapcrspicacia foi das primciras a interprccar corretamenteEsperando Godot, para gaudio de scus pcrplcxosespectadorcs, desnoncados durante o intcrvalo e scmsaber sc arrancavam o dinbeiro da entrada da pclc do
bilhetciro ou se sc conformavam com a sua pcrda, posso
113
dizer com certeza que meu relacionamcnto com as setc
artes e dos mais solidos. Acrcscentem a isto o fato de que
os oito radios regidos simultaneamente naquele famoso
concerto no Town Hall deixaram-mc emocionado, e que
ate hoje costumo sentar-mc ao pe do meu Philco, num
porao do Harlem, onde sintonizo alguns noticiarios e
boletins meteorologicos, enquanto um laconico amigo
meu, chamado Jess, narra partidas inteiras de futebol,
naturalmente ficticias, mas nas quais scu time nunca
vence.
Finalmente, para completar o meu caso, notem
que sou uma figurinlia das mais faceis em happenings e
estrcias de filmes udigrudi e que colaboro frequence-mente em Camara na Mao, uma revista mensal que
circula uma vez por ano, dedicada as ultimas pesquisas
sobre cinema e pesca em aguas turvas. Se tudo isso naofor suficiente para que eu possa ser considerado um
intelectua!, entao, bicho, desito. E, no entanto, apesar
desse veio inestancavel de percepgao, que brota de mimcomo xarope pela goela de uma crianga, fui lembrado
receniemente de que possuo um calcanhar cultural de
Aquiles que cbmega pela planta do pc, sobe perna acima
e vai ate a nuca. Deu pra entender?
Nao. Tudo comegou em Janeiro ultimo quando
eu estava num bar da Broadway, devorando uma divina
queijada e sofrendo uma alucinagao tao violenta docolesterol que quase podia sentir minha aorta solidi-
ficando-se como um taco de golfe. Ao meu lado havia
uma loura, dessas de fechar o comercio, que arfava e
contorcia-se dentro de uma camiseta preta justa, demaneira tao provocantc que seria capaz de transformar
um escoteiro num lobisomem. O principal tema de
nosso rclacionamento, durante os primeiros 15 minutos
de bola em jogn limitara-se a minha observagao "Passe
114
o sal, por favor", apcsar de varies cencativas dc minhapane dc comesar alguma coisa. E, dc fato, aconteccu:ela me passou o sal e fui obrigado a despejar algunmspitadas sobre a queijada, para demonstrar-Ihe a inte-gridadc de minha solieitac3p.
"Parece quc os ovos van subif", arrisquei final-mente, fingindo aquela superioridade cfpica dc umhomem quc aluga porta-avioes para passear na bafa.Scm saber quc scu namoradinho csiivador acabara dcemrar no bar, com um timing cligno do Gordo c o
Magro, e que cstava agnra parado bem atras dc mim,dei-lhe um olhar bem Knguido e guloso, e so me 1cm-bro dc tet Feito alguma piada dc man gosto sobrc ar-qimtrtura modcrna antes dc pettier os semidos. A
prnxima coisa dc que me lembro foi a dc cstar correndopcla run. a fim dc cscapar da ira do que parecia scr umbando dc sicilianos tentando vingar a honra da garota.Esiondi-nic na sala escura dc um cinema dc sessocspassaicmpo, onde uma pirueta dc Pcrnalonga c tresiranqOilizantes rcstauraram meu sistcma ncrvoso ao mencompasso normal. O filme prindpal surgiu na tela e,para minha surprcsa, tratava dos habkantes das florestasda Nova Gmnc que achei mcllior ainda do que"Formacoes de Musgo" on "A Vida dos Pinguins".Dizia o narrador: "Airasados, vivendo bojc exaramentetomo.seu.s anicpassados de millioes de anos, elcs sc
alimcniam de javalis selvagcns cujo padrao dc vidalambem nao parece estar mclborando muito, e a noitcreunem-sc cm volta da fogucira para falar de suas fa-ganhas do dia atraves dc mimita". Mfmica. A palavrame aiingiu torn a clareza de um inalador nasal. Era umaraihadura na minha armadura cultural — a unica, e
vcrdade, mas quc me perturbou quase tanto quantouma vcrsao muda de O Capote, de Gogol, quc me
parece scr apenas uma trupc dc \A russos fazendo ginas-
115
tica. O fato e que a mtmica sempre fora um mistcrio
para mim — um misterio que eu sempre prcferira
ignorar, devido ao embarago que me causava. Mas a
sensagao de fracasso vohava a me atingir, e, desta vez,
com forc.a redobrada. Confesso que nao compreendia as
frcneticas gesticulates dos aborfgenes da Nova Guine,
assim como tambem nao entendia por que as muhidoes
viviam adulando Marcel Marteau. Conrorcia-me na
minha polcrona a medida que aquelc Tespis da selva
esumulava os seus pares sem dizer palavra, finalmente
passando uma cesra na qua! recolhia dos mais velhos o
que devia significar dinheiro. E, entao, totalmente
arrasado, saT do cinema.
Em casa, aquela noite, minha )imitac.ao deixou-
me angustiado. Infclizmente, era verdadc: apesar de
minha celeridade canina em outras areas da criacaoanistica, basrava uma pitada de mimica para me deixartao em branco quanto uma vaca. Comecei a rugir deimpotencia, mas semi uma disrensao na pancorrilha e
rive de me sentar. Tentei raciocinar. Afinal de comas,
havera meio mais elemencar de comunicac.ao? Por que
seria esta forma universal de arcc tao obvia para todos,
menos para mim? Tentei novamente rugir de imporen-
da e desca vez consegui, mas moro numa rua tao sos-
segada que, em poucos minutos, dois amaveis bruta-
montes da 19.a vieram me informar dc que rugir deimpotencia podcria me acarreiar uma multa dc 500
dolares, seis meses de prisao ou ambas. AgradecMhes efui direto para a cams, onde a luta para dormir e
esquecer minha monstruosa limkac.ao resulrou em oito
horas de ansiedadc noturna que eu nao desejaria a
Macbeth.
Ouira manifestacao dramatica de minha
ignorfmcia sobre mimica ocorreu apenas aigumas se-
116
manas tnais tarde, quando dois ingressos gratis para o
teatro forani colocados dcbaixo de minha porta — o
prcmio por cu tcr identificado corretamcntc a voz de
Mama Yancey num programa de radio, uns 15 dias
antes. (O primciro prcmio era um Benrlcy do ano e, em
minha excitagflo para hgar primciro do quc os outros
para o disc-joquei, sai correndo nu do banhciro.
Pegando o telefbne com uma mao molhada e sinto-
nizando o radio com a outra, level um choque quc me
fez subir pclas parcdes c provocou um curto quc apagou
as luzes da rua intcira. Minha scgunda orbita cm volta
do lustre foi intcrrompida por uma gaveta aberta cm
minha cscrivaninha Louis XV, contra a qual cu tinha ido
de cabeca, acabando por engolil um bibelo. Uma
insignia Florida em mcu rosto, o qua! agora parccia ter
sido fcrrctcado por uma forminha dc biscoito rococo,
alcm dc um galo na cabec.a do tamanho de um ovo de
albatroz, fizeram-me tirar o segundo lugar, atras da Sra.
Sleet Mazursky. Assim, dando adeusinho ao Bcntley,
candidaici-me as duas cntradas gratis para uma peca
num teatrinho Off Broadway.)
Ao descobrir quc havia no cienco um mimico dc
fama imcrnacional, mcu entusiasmo desecu a uma
tempcraiura dc calota polar. Mas, decidindo acabar com
aqucla cisma, rcsolvi ir. Como parecia impossJvcl arran-
jar algucm para ir comigo cm apenas seis scmanas, usei o
ingrcsso quc cstava sobrando para dar de gorjeta a meu
lavador dc janelas, Lars, um lacaio tao sehsivel quanto oMuro dc Berlim. A prindpio, o pobre idiota achou quc
o cartaozinho laranja era para comer, mas quando
expliquei-lhc quc aquilo scrvia para assistir a uma diver-
[ida noitc de mimica — o unico cspetaculo, alcm de um
incendio, que ele seria capaz de apreciar -- agradeceu-mc profusamence.
117
Na noite do espetaculo, nos dois — cu, com
minha capa dc opera, e Lars com seu baldc — saTmos
com aplomb de um taxi e, adentrando o tcatro, diri-
gimo-nos porrcntosamente a nossas poltronas, ondc
estudei o programa e dcscobn, com certo ncrvosismo,
quc o primeiro numcro seria uma pcqucna pantomima
iniitulada Indo a um Piquenique. Comecou com um
homcnzinho cncrando no palco, todo maquilado de
branco c vestido com uma pcle de leopardo preto.
Enfim, uma roupa tipica de piquenique — cu mcsmo
usei uma dessas num piquenique no Central Park ano
passado e, exceto por aiguns adolescences irritados que
viram naquilo um convite a altcrar os angulos do meu
rosio, ninguem mais notou. O mimico, em seguida,
estendeu no chao a toaiha de piquenique e foi ai que
minha confusao comecou. Eu nao sabia direilo se eie
estava estendendo a toaiha ou ordenhando uma pequcna
cabra. Depois, com um gesto estudado, tirou os sapatos,
embora eu nao possa jurar quc fossem sapatos, porquc
elc parccia ter bebido um deles e despachado o outropara Pittsburgh. Digo "Pittsburgh", mas realmcnte e
dificil descrcver o conccito mimico de Pittsburgh, e,quanto mais penso no assunto, mais me convenc.o de
que, em vez disso, clc estava rcprcsentando um pal
mipede lentando sair de uma ports giratoria — ou
talvez dois anocs desmontando uma rotativa. O que isso
tern a ver com um piquenique, confesso que me escapa.
O mimico emao comegou a empilhar uma cole^ao
invislvcl dc objetos rctangulares, aparcntcmcntc pe-
sados, cotno uma colegao completa da Encyclopaedia
Britannica, que, segundo suspcito, ele estava tirando
da cesta de piquenique, embora pudesse ser tambem o
Quartcto de Cordas de Budapeste, todos de fraque eamordacados.
118
A cssa altura, para surprcsa dos presentes ao
men Iado, COmccci como scmprc a tentar ajudar o
tnfmico a csdarecer os dctalhcs da ccna, tentando
adivinhar cm voz aha o que clc cstava fazendo.
"Travcsseiro... um travesseiro grande? Almofada? Esta
parecendo almofada..." Esta participasSo, mesmo bemintcncionada, costuma aborreccr os vcrdadciros amantcs
do tcatro mudo e ja notci cm mais de uma ocasiao uma
tcndencia, daqueies scntados perto de mim, dc manifes-
tarcm dc divcrsas formas o seu desagrado. Geralmente as
pessoas apenas pigarrciam para me mandar calar a boca,
mas ccrta vez reccbi um capa no pc da orclha desferido
por uma scnhora. Ncsta mesma ocasiao, uma espec-
tadora bateu com sua lorgnette nos meus dcdos,
aproveitando para adraoestar-mc com uma expressao
como "Scm cssa, cara!" Em segtuda, com a paciencia dc
um sargcnto falando com um sold ado recem-atingido
por um obus, explicou-mc quc o mimico estava naqucle
momtmo tratando humoriscicamcntc os varios elemcn-
tos quc compoem um piqucniquc -- formigas, chuva c
o nunca por demais lcmbrado abridor dc garrafas.
Tcmporariamcnte esclarccido, rolci dc rir da piada do
homcm quc vai a um piqucnique e esquecc em casa o
abridor dc garrafas. O quc faltam inventor, nao e?
Finalmente, o mTmico comcgou a cncher balocs
jnvisTvcis. Ou cncher balocs invisivcis ou cntao tatuar o
corpo docente de uma univcrsidadc — mas podcria
tambem estar tatuando qualqucr quadrupede enormc,
cxtinto, frcqucntcmente anfibio c geralmente herbivoro,
dcsdc quc fossilizado c cncontrado no Artico, bcm
tousen,ado em tempcratura ambicnte. A esta altura a
platcia ja nao agiientava de dar risada. Mcsmo o obtuso
Lars tinba sido obrigado a usar seu rodo para enxugar as
lagnmas que corriam pelo seu rosto, de tanto rir. Mas,
para mim, nao havia jeito: quamo mais me esforgava.
119
menos compreendia. Absolutamcntc derrocado, achei
que jii chegava e me mandci. Na saTda, ouvi um
intcressante dialogo entre duas faxinciras do teatro sobrc
os pros e contras da bursite. Rccupcrando moderada-
memc a consciencia sob as luzes da marquise na calgada,
ajt'itci o no da gravata c dci um pulinho ao Rikcr's,ondc um hamburguer c uma laranjada me foram scr-
vidos sem com que eu uvesse o menor trabalho em
decifrar-lhcs o signlficado. E, pels primcira vez naquela
noitc, pude me desfazerde meu pesado fardo de culpas.E, ate* hojc, devo admitir que a lacuna pcrmanece em
minha cultura. Mas continue- insistindo. Nunca mais
pcrdi um espeiaculo de mimica. Alem disso, como eles
nao falam, limitando-se a rcvirar os olhos, contorcer-se e
plantar bananeita, nao me incomodam enquanto dur-mo.
120
ConversaQoes
com Helmhoz
O quc sc segue sao alguns trcchos cxtraidos das
Conversagoes Com Helmholz, brevememe nas li-
vrarias.
O Dr. Helmholz, hoje com cerca de 90 anos, foi
comemporaneo de Freud, pioneiro da psicanalisc c
fundador dc uma escola de psicologia que hojc leva o
scu Dome. Mas talvez scja mais conhecido por suas
experiences sobrc o comportarncnto, nas quais provou
quc a mortc c um traco adquirido.
Helmholz reside em Lausanne, Suica, com seu
criado Hrolf e seu cao dinamarques Hrolf. Dcdica
Hrandc parcc do tempo a escrcver c csta, ncstc momento,
rcvisando sua autobiografia, a fim de incluir-sc ncla. As
"conversacocs" foram mancidas durante um pcnodo dc
vSrioa meses entrc Hclmholz e seu discTpulo Tcmor
Hoffnung, a quern Helmholz odeia mtensamente, mas a
qucm tolcra porque ele Ihc traz bombons rechcados.
121
Seus dialogos cobrem inumcros assuntos, da psicanalisc creligiSo ate aos verdadeiros moiivos pclos qua isHelm hoi 2 nunca conscguiu adquirir um canao dc
tTcdiio. "O Mesirc", como Hoffnung o chama, revela-
se neste livro um homem afetuoso c perceptlvo, capaz dcafirmar quc trocaria todas as realizagfles dc sua vida poruma pomada que o livrasse das hcmorroidas.
I.° de abril: Cheguei a casa dc Helmholz pre-
cisamcrue as 10 horas e fui mformado pelo iriado dc quc
o medico estava no gabinctc livrando-sc dc suas capas.
iim minha prcssa, julguei tcr ouvido quc o medico
cstava no gabinete livrando-sc dc sua caspa. Como logo
descobri, eu tinha ouvido corretamente c Helmholzcstava rcalmcnic Hvrando-se dc sua caspa, com o atixllio
dc uma escovinba. Nao apenas isto, como juntava osmontinhos dc caspa sobrc a cscrivaninha c csmdava-oscuidadosamente. Quando Ihe perguntei para qucaquilo, ele rcspondcu: "Calculc quaotas neuroses sub-
jacentea ncssas pcqueninas glaudulas sclJaccas!" Suaresposta me intrigou, mas preferi nao insistir no assunto.
Quando e!c se rtclinou no diva, pcrguntci-lhc sobreFreud e os primtiros anos da psicanalise.
"Quando conheu Freud, ja cstava construindo
mm has tconas. Encontramo-nos nunw pad aria. Freudestava tentando comprar bolachas, mas nao tolcrava a
ideia dc pedi-las pelo nomc. Como vocc sabc, elc tinha
vcrfionha dc pronunciar a palavra bolachas. Aponiou
para as bolachas c disse ao padciro, "Quero mcio quilo
daquelas coisinhas ali". O padeiro perguntou, "O sc-
nhor se rcfere as bolathas, Herr Professor?" Freud ficou
ruhro c dissc, "Nao. Podc dcixar", e saiu. Naturalmen-
le, comprei as bolachas, o que nao me provocou qual-qucr embara^o, e presentcei-o com elas. Desdc cntao
nos tornamos amigos, mas o assunto sempre me
122
intrigou. For que algumas pessoas tern vergonha dc
dizer certas palavras? Ha alguma que voce nao diga, porexcmplo?"
Expliquci ao Dr. Hclmholz que, dc fato, sem-
prc me sentia mal ao dizer "oblTvio". Helmholz respon-
deu que esta era urna palavra absolutametue crcrina e
que gostaria de qucbrar a cara da pessoa que a tinha
inventado.
A conversa volcou a tratar de Freud, que parece
dominar todos os pensamencos dc Hclmholz, embora os
dois tivessem passado a se dctcstar depois dc uma
violenta discussSo a respeito dc salsa.
"Lembro-me de um caso de Freud: a paralisia
nasal de Edna S. Histerica, que a impedia dc imitar um
coelho quando linha vontadc. Isso causava a moca uma
grande ansicdadc entre seus amigos, os quais, com
enorme dose dc crucldadc, pcdiam-lhe que imitassc um
coelho c, como cla nao conseguisse, contorciam livre-
mente suas narinas, apenas para provoca-la. Freud
analisou-a cm inumeras sessScs, mas, em vez dc sc
lornar dependence de Freud, tornou-se dependente de
um cabide no consultorio. Freud ficou receoso porque,
naquclcs tempos, a psicanalise ainda era vista com
muitas rcservas. Assim, no dia cm que cla fugiu com o
cabide, Freud jurou que abandonaria a profissao. Dc
fato, durantc algum tempo chegou a pensar scriamente
em tornar-se um acrSbata, s6 desistindo depois que
Fercnczi o convcnccu de que clc nunca aprendena a dar
cambalhtnas muiio bcm."
Pudt cniao notar que Hclmholz cstava mcio
sonolento, porque havia escorregado do diva e estava
agora rcssonando debaixo da mesa. Assim, dccidido a
nao perturba-lo, sal na ponta dos pes.
123
5 de abrfl: Quando cheguci, Hclmholz estava
tocando viohno. (E um maravilhoso violinists, embora
nao saiba Icr musica c so consign tocar uma nota.) Mais
uma vez, discutimos os problcmas iniciais da psicanSlise.
"Todos brigavam por causa de Freud. Rank
tinha ciumes dc Jones. Jones tinha ciumcs dc Brill. Brill
tinha cantos ciumes de Adler que chegou a esconder-lhc
Suas galochas. Certa vcz Freud descobnu um puxa-puxa
em seu bolso e deu um pedaco a Jung. Rank ficou
furioso. Qucixou-se a mim de que Freud estava pro-
tegendo Jung, principalmcnte na hora dc distribuir os
doces. Nao Ihc dci confianga porque, ccrta vez, elc se
rcferiu ao meu crabalho A Euforia das Lesmas como "o
zenite do racioclnio mongoloidc". Muitos anos depois,
Rank recordou-me o episodic) enquanto pescavamos
balcias nos Alpcs. Rcpeti-lhc minha opiniao de que cle
havia agido como um idiota e elc admitiu que, naquclacpoca, estava sob particular icnsao porque acabara de
descobrir que sou primeiro nome, Otto, podia ser cscrito
de tras para frcntc sem que fizesse diferenc,:i, e que isto o
deprimia."
Hclmholz convidou-mc para jantar. Sentamo-
nos a uma grandc mesa de carvalho, que ele afirma ter
sido prescntc de Greta Garbo, embora ela desminta
qualquer conbecimemo disso ou de Hclmholz. Um
jantar tipicamente hclmholziano consistia de uma passa,generosas porgoes de banha e uma lata de salmao para
cada um. Quando tcrminamos, foram servidas pastil has
de hortela e Hclmholz mosirou-me sua colegao de
borboletas, o que deixou-o agastado quando ele se deu
conta de que elas nao podiam voar.
Em seguida, dirigimo-nos a sala para os charutos
de praxe. Hclmholz esqucceu-se dc acender o scu, mas
124
aspirava torn lama forca que o charuto realmcnic estavadiminuindo. Enquanto isso, discutimos alguns dos mais
cfilebres casos do Mcstrc.
"Houve, por cxemplo, Joachim B. Era urn
homcm dc mcia-idade quc nao conseguia entrar numa
sala onde houvcsse um violoncelo. Mais grave ainda, sedescobrisse quc cstava numa sala onde houvcsse um
violoncelo, nao conscguia sair, a nao scr convidado porum Rothschild. Alem disso, Joachim B. gagucjava. Mas
nao quando falava. Apcnas quando cscrcvia. Se tinha decscrever a palavra mas, provavelmenic a escrevcria M-M-M-M-M-MAS. Isto o incomodava tanto que, um dia,tcniou o suicldio por asfixia, enfiando a cabega dentro
dc um qucijo. Mas, como sc tratava de um queijo sutgo,nao morreu. Curei-o at raves da hipnosc e, a partir dai,
levou uma vida rclativamcnte normal, embora oca-
sionalmcnce se referisse a um cavalo que o aconsclhara a
tcntar arquitetura."
Helmholz falou depois do tristementc celebre
V., o tarado que atcrrorizou Londrcs:
"Um dos casos mais estranhos de perversao.
Possufa uma fantasia sexual rccorreinc na qual era
humilhado por um grupo de antropologos c obrigado a
andar com as pcrnas arqucadas, o que Ihe dava grandc
prazcr sexual. Lcmbrava-se tambem de que, em crianga,surpreendera a govcrnanca de seus pais (uma mulhcr dcmoral ambigua) no ato dc beijar compulsivamente umrcpolho, o quc achou crotico. Na adolescencia, foiseveramente punido pelo pai por ter envcrnizado a
cabeca de scu irmao, embora scu pai, pintor dc profis-sao, so sc tivesse irritado pelo fato de elc ter dado umaso mao de verniz. V. atacou a primcira mulhcr aos 18anos e, dalj cm dianic, violou ccrca dc meia-diizia por
125
semana durantc anos. O melhor que pude fazer por cle
foi descobrij um hSbito mais aceitavel socialmente parasubstituir suas tcndencias agrcssivas. Assim, quando scvia a sos com uma mulher, lirava do bolso um enormclalo de aspargo c o mostrava a da, em vez de ataca-la.Embora a visao daquiio pudesse provocar ccrta conster-nacao em algumas, cram pclo menos poupadas dequalquer viol&icia e algumas ate confcssaram que suasvidas foram enriquecidas pcla experiencia."
12 dc- abrfl: Dcsia vcz Helmholz n3o estava scsentindo muito bera. Tinha sc perdido no quintal, navespera, c tropesara em algumas pcras. Enconcrci-odeitado, mas sentou-se na cama assim que cheguci e atedcu boas risadas quando Ihe contei que tinha umabcesso.
Discuiimos sua teoria da psicologia revcrsa, aqua! Ihe ocorreu logo dcpois que Freud morreu. (Amorte dc Freud, segundo Ernest Jones, foi o fato queprovocou a separagSo definitiva entrc Hclmholz e Freud.Os dois raramente sc falaram dcpois disso.)
Naquela epoca. Hclmholz havia descnvolvidourn protcsso pclo qual tocava uma campanhia e uma
paiclha de raios brancos acompanhava sua mulher ate a
porm c a deixava na cstrada. Helmholz reaiizou muitasoutras cxpcricncias bchavioristas c so as abandonouquando um cachorro que cle treinara para salivar a suachegada recusou-se a deixa-lo e'ntiar cm casa num fc-riado. Ak'm diffio, Helmholz escreveu rambcm o hojcciiissico Risotas tspontaneas dos Caribus.
"E verdade, eu fundei a escola da psicologiarcversa, mas por acidente. Minha mulher e eu estavamosumfortavelmentc deitados para dormir quando deu-mcuma irresistivcl vontadc dc beber agua. Com preguiga dc
126
ir apanha-la cu mcsmo, pcdi a Sra. Helmholz que fosse
a cozinha busca-la. Ela sc recusou, argumcntando can-sac.o pnr tcr passado o dia ordenando galinhas. Final-
menu.-, cu dissc: Esli hem, nao cstou com scde c, scvocc quiscr saber, agua scria a ultima coisa quc eu to-
maria agora. Com isso, a mulher dcu um salto da cama e
disse: Ah, nfio quer beber Sgua, hem? — e foi la dentrobusai-la. Tentei discmir o incidente com Freud durarucuma gincana de analistas em Berlim, mas ele e Jungestavam empenhados nuroa corrida dc sacos e nao n-
veram tempo dc me ouvir. So anos depois pude utilizar
essc prindpio no tratamenro de depressao, conseguintlo
curar o grandc cantor dc opera, J., de sua apreensao
m6rbida dc que, algum dia, morreria engasgado com
uma semifusa."
18 de abril: Quando cheguei, encontrei
Helmholz podando raseiras. Faiou com cloqiiencia da
beleza das flores, as quais admirava porque "nunca Ihe
pediam dinliciro emprestado"
Falamos tambem da psicanaiise contemporanea,
quc Heltnholz considcra um rnito mantido vivo apenas
pels indusiria de divas.
"Esses analistas modernos! Cobram muito caro.No meu tempo, por cinco marcos o proprio Freud o
analiSaria. Por l() marcos, nan apenas o analisaria, como
Ihe passaria as calc/as a ferro. Por 15 maaos, Freud
deixaria que voce o analisassc. Mas, hoje? Trinta dolaresa hora! CinqUenta dulaies a bora! O Kaiser nao ganhava
mais do quc 12 para scr o Kaiser! E ele tinba de andar
pant chegar ao tiabalho. E a extensSo dos tratamentos?
Dois anos! Cinco anos! Se um analista nao consegue
curar um pacientc em seis meses, devia devolver-lhe odinheiro, Icva-lo a um teatro rebolado e dar-lhe uma
127
fruteira de tnogno ou urn faqueiro de ago, Lembro-mcdc como era facil identiflcar os clicntes com qucm Jungfracassara, porque elc sempre Ihes dava pandasernbalsamados."
Passeamos pcln jardim e Hdmholz falou deoutros assuncos. Sua cabega era uma colecSo dc conceiiosoriginais, alguns dos quais conscgui prcservar, anotando-os num papel.
Sobre a condicito humana: "Se o homem fosse
trnortal, ja imaginaram como nao seriam suas contas dcacouguc?"
Sobrc a rclisiao: "Nao acredito na vida dcpois da
mortc. cmbora sempre Eraga comigo uma muda decueca,"
Sobre literatura: "A litcratura intcira c uma nota
ao pc-de-pagma dc' Fausto, mas nao sci o qut qucrodizer com isso."
Cada vcz me canvengo mais dc que Hclmholz cum grandc homcm. Mas tamlicm nSo sci o que querodizer mm isso.
128
Viva Vargas!
Exccrtos doDiario dc uma Revolucao
3 de junho: Viva Vargas! Hoje nos mandamos
para as colinas. Revolt-ados com a cxploragao dc nossopals pcio corrupto regime dc Arroyo, mandamos Julio ao
palatio com uma lista dc cxigfindas c reivindicagoes,ncnhuma delas afoita nem — em minha opiniao —excessiva. Infelizmcnte, a agenda dc Arroyo nSo thepcrmiliu dispensar urn pouco do tempo cm que cstava
sendo abanado para iccebcr nosso querido cmissftrio c,por isso, transfenu o assunto a sen ministro, o qu;tl
prometcu dispensar toda a sua consideragSo as nossaspfiitocs, embora antes fizesse questSo dc ver quantotempo Julio eonseguia sorrir com a cabc-ga merguibadaem lava incandescente.
Devldo a infimeros descaramentos como cste,resolvemos fiiiatmentc, sob a inspirada lidcranta dc
Emilio Molina Vargas, tomar o assunto cm nossasproprias maos. Sc isto for rraigao ~ gritamos nas ruas —vamos pcio menos boiar pra qucbrar.
129
Eu me encontrava confortavelmente refesteladonuma banhcira qucntc quando um dc riOSSOS mforman-
tcs vcio me avisar dc quc a policia cstava a caminho para
me prendcr. Ao sair do banho com comprccnsTvcl
prcssa, pisci num sabonete molhado e escorreguei ate opatio, caindo justamente cm cima de meus denies, os
quais salcitaram pclo cirnento como chicletes, Emborann c meio esfolado, o instin to dc sobrevivdncia ordenou-
me a dar o pira dali, o quc fiz moniando El Diablo,
meu fiel garanhao, emiiindo o grito de guerra dos rebel-
des. Mas parecc que ale El Diablo se assustou torn o
griio porque, depois dc relinchar, empinou demasia-
damerite e me jogou ao chao, no quc fraturci uma on
oiura costela,
Como se tudo isso nao bastassc, eu tinha ca-
minbado menos de cinco mciros quando me Icmbrci dc
minha prensa clandestina e, sem qucrer deixar para o
inimigo uma arma polttica de tania forga ou uma prova
que me condenaria pclo resto da vida, dei meia-voka e
fui bu.sca-la. Mas, como voces ja adivinharam, o raio da
prensa pesava mais do'que eu imaginava e!evanta-la do
chao era um iralrallio mals apropriado para um guindas-
te do que para um ubio e subdescnvolvido revolucio-
nario. Quando a policia chegou, minha mao cstava presa
na roda dentada, enqu;uno os rolos imprimiam con-
linuamenic passagens dc Marx sobrc minhas costas. Nao
me per^umem como cOOSCgui me safar e escapar pelajancla dos fundos. Tive sorte em driblar a polTcia e
me esconder nas colinas entre os homens dc Vargas.
4 de junho: Voces nao imaginam a pa^ nesias
tolinas. Dormir a luz das estrelas! Um grupo de homensdedicados, em busca de um objetivo comum. Embora cu
cspcrasse ter uma ou duas palavras a di/cr sobrc o
planejarnento da guerriiha, Vargas achou melhor me
130
aprovcitar como assistentc do cozinheiro. O quc nao c
um trabalho tao facil quanto voces devem estar pensan-
do — com essa cscassez dc comida! — mas alguem tem
dc desempenhfi-lo e, com os devidos descontos, minhaprimcira refeicSo foi um sucesso. £ verdadc quc ncmtodos os homens eram particularmentc aprcciadorcs dc
iguanas, mas nao podemos ser muito exigcnrcs e, foraum ou outro gucrrilhciro com aversao gratuita a rcpteis,
o jamar nao teve maiorcs incidentcs.
Entreouvi uma conversa dc Vargas e clc esta
entusiasmado com nossas possibilidades. Acha quc atedezembro controlaremos a capital. Scu irmao Luis, poroutro iado -- um horncm introspectivo por narurcza —
acha que e apenas uma qucstao dc tempo ate que
morramos dc feme, Os irmaos Vargas estSo semprediscutindo qucstocs dc estratcgia militar e eiftneia po-Htica, e e diflcil imaginar que esses dois grandes chefes
rc-bcldcs eram, ate a scmana passada, faxinciros de umlavatono do Ritz. Enquanto isso, csperamos.
10 dc funho: Passamoso dia fazendo ginastica. £
cspantoso como um bando de gucrriiheiros csta sendo
transformadu num vcrdadciro excrcito. Na pane da
manhS, Hernandez e en nos adestramos no uso dcnossos fac5cs dc mato c, gracas a um execsso de.zelo dc
mcu companhciro, descobri que tinha sanguc do tipouniversal. O pior e a espcra. Arturo tem um violao, masso sabe tocar "Cidico Undo" e, cm bora os compa-
nliciros tenham ate gostado no comcc.0, poucos aindaIhe pedem para tocar. Tcntei prcparar os iguanas dc
modo diferente e acho que todos gostaram. excetoalguns quc tiveram dc mastigar com mais forca e seesforcarcm para engolir.
Entrcouvi Vargas outra vcz. Ele e scu irmaoestavam falando sobre o que fazcr depois quc tomarmos
131
■a capital. Imagino o cargo quc cle ira me reservarquandu a rcvoluc.ao icrminar. Mas acho quc minha
fidelidade vcrdadeirameme canina acabara compensan
do.
1." de iulho:Um grupo de nossos melhorcs homens
assaltou hojc uma cidadc cm busca dc comida c teve
oportunidadc dc emprcgar algumas das taticas que
tcmos ensaiado. O grupo foi chacinado, mas Vargas
considcrou o ataque uma vitoria moral de nossa pane.
Os que nao paniciparam do assalto scntaram-sc ao redor
da fogucira enquanto Arturo nos brindava com suas
intcrprctac.oes dc "Cielko Lindo". O moral continua
alto, apesar da quasc ausencia de comida e armamentos,
e do tempo custar a passar. Felizmcme conseguimos nos
disirair com o calor de 40 graus, o que me parcce ser
respunsavel pc!a maioria dos ruidos cstranhos produzidos
pelos bomens. Mas nosso dia chegara.
10 de iulho: Tivcmos um dia razoavclmcnte bom
hojc, apesar dc csiarmos cercados ptrlos homens de
Arroyo c reduzidos a poucos. Isto foi, cm parte, minha
culpa, porque revelei nossa posic/ao ao gntar inadver-
tidamente socorro quando uma tarantula subiu pela
minha perna. Durante alguns momciitos, nao consegui
desagarrar a aranha que pc-nctrava pelas minhas pegas
mtimas, fazendo-mc girar em torno de mim mesmo e
sair correndo para o riacho, onde fiquei cerca de 45
minuios. Quasc cm seguida, os homens de Arroyo
abriram fogo. Lutamos bravamente, embora o acaque de
surpresa cenha criado cntrc nos uma ligcira desorga-
nizat;ao, a ponto dc alguns companhc-iros atirarcm uns
contra os outros. Vargas, por exemplo, cscapou por um
fio quando uma granada dc mao caiu aos seus pcs.
Consticnce dc que so elc era indispensavel, mandou-me
tair sobre cla, o que fiz pronramentc. Por sortc, a
132
granada nao explodiu e cscapci ilcso, cxceto por uma
levc comichao e pcla incapacidade dc dormir a nao ser
quc alguem segure a minha mao.
15 de julho: O moral dos companbeiros parccc
csmr subindo dc novo, apesar dc alguns revezes dcpouca monta. Miguel, por cxemplo, roubou alguns
mlsscis icrrcstrcs, mas confundiu-os com mfsscis aercos
c, ao Ccmar explodir os avioes dc Arroyo, atabou
explodindo todos os nossos caminhoes. Quando Miguel
comccou a levar a coisa na brincadcira, Jose ficou furioso
c os dois brigaram. Em seguida, fizcram as pazes edescrtaram junios. Por falar nisso, a descrcao scria um
cnorme problems, se, ace agora, o nosso otimismo cesplrico dc uniao nao a estivesse limitando a trcs entre
quatro homens, f: claro que continuo leal e cozinbando,mas os companbeiros parecem continuar nao avaliando a
dificuldade dc minha tarefa. {Falando espanhol claro,minha vida csiarii cm pcrigo sc en nao encomrar umaaltcrnativa aos iguanas.) Nfio sci por que, as vczes, os
soldados sac tao intolcrantcs. Qualqucr dia desscs, vou
SLirprccndc-los com uma novidade. Enquanio isto,
cuntinuamos cspcrando. Vargas anda cm sua tenda e
Arturo nos delida com "Cielito Undo".
I." de afiosto: Apesar de tudo com quc lemos
sido agraciados, nao bii diivida de que transparecc uma
ccria tensao em nosso quanel revolucionario. Pcqucnas
coisinbas, que so os ma is observadores noiariam,
intiicam um ccrto desconforto subjaccntc. Por excmplo,
houve ulgumas punhaladas entre os companliuiros amedida que as brigas sc rornaram mais freqtiemes. Da
mesma forma, uma icntaciva dc assaltar um dcposito dc
mimicocs frusirou-se quando o foguetc de sinalizagao
quc Jorge ia disparar explocliu acidcntalmcntc cm scu
bolso. Todos os homens foram capturados exectojorge.
133
quc so foi apanhado depois dc esmurrar umas dcz portas
pedindo para cntrar. De volta ao campo, quando servi osufle dc iguana, os companhciros sc insubordinaram.Varios me agarraram para que Ramon me espancassc
com minha propria concha. Salvei-me miraculosamentepor causa dc uma tempescade cujos raios atingiram tres
liomens. Finalmcntc, com as frustrates no auge, Arturoarranhou os primciros acordes dc "Cielito Lindo" e
alguns dos companhciros menos chegados a musica
levaram-no para rriis da rocha c o fizeram comer aguitarra.
Analisando agora o lado positive, o enviadodiplomatico de Vargas, apos inumeras tentativas bal-
dadas, concluiu finalmemc um interessantc acordo coma CIA, pclo qual, em troca de nossa inabalfivel fideli-
dadc a polttica americana para sempre, eles se obrigavama nos fornccer nadu menos quc 50 frangos dcfumados.
Vargas admire quc mlvez tenha sido um pouco
apressado ao prcdizer para dczembro a nossa vitoria c
calcula quc talvez leve mais algum tempo. O curioso cquc dcixou dc consultar scus mapas da rcgiao e agora
folheia com sofreguidSo as visceras de passarinhos e oshoroscopos dos jornais.
12 de agosto: A situagSo piorou um pouco. Os
cogumclos que colhi cuidadosamente, a fim dc variar o
menu, cram vencnosos c, embora o linico efcito dc-
sagradavcl tenha sido as convulsoes que provocaram cm
todos os companheifos, alguns deles nao sc confor-maram. Para complctar, a CIA reconsidcrou nossas
chances de ganhar a guerra e, como resultado, ofcreceu
um almoco de rcconcilia^ao a Arroyo e a seu ministerio
no Wolflc's, em Miami. Isto, e mais os 24 bombardciros
quc a CIA ofcreceu de graca ao govcrno, Vargas inter-prcrou como uma subita mudanga cm suas prcfcrencias.
134
O moral coniinua razoavelmentc alto c,
embora a taxa de desergao tcnha crescido, continualimkada aquclcs que ainda conseguem andar. O proprio
Vargas me parece um pouco mudado c deu para eco-
nomizar barbante. Comega a desconfiar de que a vida
sob o regime de Arroyo talvcz nao fosse rao pessima
quanto tie imaginava. Tcro ate pensado cm reoncntar oscompanheiros que restaram, abandonar os ideais re-
volucionSrios e format uma orquestra de rumba.Entrementes, as chuvas constanies provocaram uma
avalancha nas moncanhas, soterrando os irmaos Juarez
cm pleno sono. Mandamos um emissano a Arroyo com
uma miva lista de nossas exigfincias, substitumdo o
paragrafo que iratava dc sua rcndigao mcondicional por
uma receita de iguana, Vamos ver no que vai dar.
15 de asosto: Tomamos a capital! Os inacrc-
ditaveis detalhes sao os seguintes:
Apos longas delibcrac;oes, os tompanlu-iros
votaram a favor de uma missSo suicida, calculando que
so o elemento surpresa poderia sobrepujar as forgas
indiseutivelmcmc superiores de Arroyo. A medida quemanliavamos pela selva em direcao ao palacio, a fame e
a Fadiga minarara lentamente uma pane da nossa
obsiinacao, aie que, peno de nosso destino, detidimos
mudar de tatica e cornejamos a rastejar para ver se dava
melbor resuliado. Pois hem. Ra.siejamos ate a porta do
palatin, cujos guardas nos prendcram c nos conduziram
a Arroyo. O ditador levou em considera<;ao o faco dc nos
tcrmos renciido e, embora nao abrisse miio de simples-
mentc estripar Vargas, pcrmitiu que fossemos apenas
esfolados vivos. Rcavahando nossa situat;ao a luz desce
novo conceito, sucumbimos ao panico e comecamos a
correr em todas as direcoes, cnquanio os guardas abriam
logo. Vargas c eu corremos para cima e, procurando um
135
lugar para nos cscondermos, cmramos no boudoir da
Primcira Dama, onde a flagramos em contato ilicito
com o irmao do dhador. Ambos ficaram meio ataran-
tados. O irmao dc Arroyo sacou a arma e disparou umtiro. Sem quc clc o soubesse, isso scrviu dc sinal a um
grupo dc mercenaries coniratados pela CIA para nos
cxpulsar das colinas em troca da pcrmissao dc Arroyo a
quc os Estados Unidos instalassem aqui uma industria dc
mariola. Os mcacnanos, algo confusQS a rcspeito das
ultimas dccisocs da politics cxtcrna nonc-amcricana,
atacaram o palacio por engano. Arroyo e scus asseclas
julgaram ser aquilo uma traicao e responderarn ao fogo
dos invasores. Ao mesmo tempo, uma antiga trama
arquitciada por alguns maoTstas para assassinar Arroyo
desencadeou-se quando uma bomba colocada num
cantata explodiu prematuramentc, pulvcmando acxtrcma csqucrda do palacio e projetando a mulher e o
irmao dc- Arroyo a um disunite canavial.
Agarrando uma valise conicndo o seu sal do
bancario na SuTta, Arroyo cencou cscapar pela porta dos
iundos para alcan^ar um jaiinho quc mantinha sempre
promo pra tais emcrgendas. O piloto conseguiu dccolar
entre as rajadas dc balas, mas, no meio da confusao,
apercoLi o botao errado, fa/.endo-o entrar cm parafuso.
Momentus depots, o jatinho explodiu justamente no
csconderijo dos mcrccnarios, causando-lhes tantas baixas
quc eles tiveram de se render.
Durantc ludo isto, Vargas, nosso idoiatrado
lider, adotou a brilhante tStica de espcrar para vcr no
que dava, cscondendo-se na lareira, disfarcado de nubio
decorattvo. Quando a barra ficou mais limpa, foi na
ponta dos pes ate a sala de Arroyo c assumiu o podcT.tomando antes o cuidadu de inspecionar a geladeira e
capturar inn sandLiIche dc pernil.
136
Celebramos durante a noire inteira c todo
mundo sc embriagou. Falei com Vargas cm scguida a
respeito das dificuldades dc sc govcrnar um pals.Embora acredite quc eleicoes livres scjam essentials a
qualqucr democracia, ele parcel1 acredirarque amda sera
pretiso csperar um pouco are que o povo esreja pre-
parado para vmar. Enquanro isro, porii cm funciona-
mento um sisrema dc governo quc foi obrigado a
improvisar, bascado na monarquia por dirciro divino.
Ah, sim. Minha lealdade foi recompensada,
como eu csperava. Vargas permiiiu que eu me seniassc a
sua mao direita duranre as refcic,ucs. E, alcm disso, agora
sou rcsponsavel pcia imaculada brancura das latrinas.
137
Descoberta e Uso do
Respingo Xmaginario
Nao ha provas dc que um respingo dc tinta falsa
(desses quc podem scr preparados por qualqucr criangamunida de um laboratorio qulmico infamil) tenha
aparecido no Ocidente antes dc 1921. No cntanto,
sabia-sc que NapoIeSo se divertia muito com o and
cletnto, o velho bnnqucdinho tjue provoca choqucs
quando cm contacco com a mao dc algum otario.
Napoltao costumava ofcrcccr sun real mao cm amizadc a
qualquer governantc estrangeiro, aplicax-lhe um choquc
daqueles c rolar de nr, enquanto o envergonhado dig-
nirario dangava um fandango para a cone.
O and dctrico SoffCU muitas modificagoes, das
quais a mais famosa ocorrcu dcpois da introdugSo da
goma dc mascar por Santa Anna (cstou convencido de
que a Roma dc mascar foi onginalmente um prato
prepaiado por sua mullicr e quc se rccusava a scr
engolido), quando tomou a forma de um pacotinho dc
139
chiclete de hortels, equipado com um mecanismo derarocira. O otario, ao ser oferccido um chiclete, expe-
riniL-ritava uma tcrrivel fertoada quando a mola dis-
parava,esmagava as falangcs.falanginhas OU faJangetas. A
primeira reasSo da vlcima era a de dor; a segunda, deciso incomrolavtl; c a terceira, de total sabedoria. Nao e
segredo para ningue'rn tjue esta inoccntc brincadeira
aliviou um pouco a tensfto duramc o terrivel cpisodio do
Alamo e, cmbora nao tenha havido sobrcvivente, os
cstudiosos acred itam que as coisas tcriam sido aindapiores sem a falsa goma de mascar.
Com o advento da Guerra Civil, os nortc-
americanos icntaram cad a vcz mais escapar aos horrores
de uma nacao quc se dcsintegrava e, enquanto os ge
nerals nortistas distrafram-se com 1016s e bilboques,
Robert. E. Lee suportou inumeios momentos cruciais
atraves de seu brilhante uso da flor quc csguicha. Nos
primeiros tempos da guerra, ninguem sc aproximou de
Lee para scntir o delkioso aroma de seu "belfssimo
cravo" sem levar um jato dagua pela cara. Quando as
coisas pioraram para o Sul, no entanto, Lee limitou-sc a
colocar tachinhas nas cadciras rescrvadas as pessoas
de quern nao gostava.
Dcpois da Gucrra Civil c ate o comeco do seculo
XX, o po-de-mico e a lata de almondegas, que disparava
scrpentes de celofane na cara da vmma, parcceram tersido as unicas inova^Qes ncsta importanie area do co-
nliecimenio huniaiio. Comema-sc qucJ.P. Morgan era
fa do po-dc-mico, enquanto o velho Rockefeller preferia
a lata de almondegas.
Entao, cm 1921, uma cquipe dc biologistas,
reunidos em Hong Kong para comprar ternos, descobriu
o que chamaremos de "rcspingo imaginario". Consiste
140
num preparado quc, "acidcntalmente" rcspingado
sobre um paleto ou camisa branca, deixa uma manchahorrivel que, cm poucos minutos, desaparecc com agua.
Ja era conhecida longamente no Oriente, c diz-se que
varias dinasrias mantiveram-sc no podcr pclo scu uso
brilhame contra os irreprcensiveis quimonos dos ini-
migos.
Os primeiros respingos imaginarios, pclo quc sesabe, tinham mais de tres mctros de diamctro e nao
enganavam ninguem. No entanto, com a dcscoberta dosconceitos dc menor escala por um ftsico suigo — o qual
descobriu quc um objcto de determinado tamanhopodia parecer menor sc fosse "feito menor" — os res
pingos imaginarios conheceram o scu apogeu.
E isto aconteceu cm 1934, quando Franklin
Delano Roosevelt utilizou-os de forma surprcendenre
para acabar com uma greve na Pensilvania. A causa dagrcve fora uma mancha dc tinta que arruinara um
inestimavel sofa de alguem cujo nome se perdeu na
historia. PatrQes c metalurgicos acusaram-se mutuamen-
te, ate que estes ultimos dcclararam a greve. Pois,
Roosevelt convenceu ambas as panes de que se tratava
apenas de um respingo imaginario. Tres dias depois, os
operarios voltaram ao trabalbo.
141
Ribbentrop sc podia passar a frentc, mas Ribbcntrop
argumentou que n5a ficaria bcm para o ServigoDiplomatic*) SC fosse passado para tras. Hitler cntao
passou a mSo nurn telefone e, num segundo, Ribben-irop iinha sido mandado scrvir na Africa c, assim, i liilcrpode toriar o cabelo. Essa especie dc rivalidadc sempre
exisuu. Certa vez, Gocring fez com que Heydrich fosse
dciido sob uma acusac/uo qualquer, apenas para ficarcom a cadcira pcrto da janela. Gocring era ligciramentC
tarado, e so gostava dc uortar o cabelo monrado num
cavalinho dc pan. O aim comando nazisca ficavaembaragado com isso, mas nada podia fa^cr. Urn dia,Hcss o dt-safiou: "Hojc quern vai moruar no cavalinhosou cu, Marechal."
"Impossfvcl", respondcu Gocring. "Ja o rcser-
vei para mim."
"Tenlio ordens diretamenre do Fuehrer. Estou
autorizado a cortar o cabelo moniadu no cavalinho depan.''
E, assim dizendo, Hcss tirou do bolso a ordem
dc Hiilcr. Gocring ficou livido. Nunca pcrdoou Hcss e
dissc que, a panir daf, faria com que sua propria mulhcrIhe conasse o cabelo em casa. Hitler achou graca quando
soube disso, mas Goering cstava falando serio e sem
diJvidu teria consumado scu intcnto se o Ministerio doExcrcito nao Ihe tivesse indeferido a rcquisicao dc umatesoura.
No tribunal, perguncaram-me sc cu conhecia asimplicacocs morais do que cstava fazendo. Rcpito agorao que respondi cm Nuremberg: cu nao sabia que Hitlerera nazista. Durantc anos, pensei que cle trabalhassc na
companhia telefonica. Quando finalmente descobri o
monstro que clc era, ja era tarde, porquc eu tinha dado
144
As Memorias de Schmeed
O aparentemente inesgotdvel material litcrdrio
sabre o Terceiro Reich sera snriquecido agora com a
publicacdo das memorias de Fricdrich Schmeed, jd no
prelo. Schmeed, o mats famoso barbeiro da Alemanhadurante a guerra, fazia a barba, o bigode e o cabelo de
Hitler e de outras wiportantes autoridades civis e mi-
litares do nazismo. Como se observou durante os jul-
gamentos de Nuremberg, Schmeed parecia eslar, nao
apenas no li/gar certo na bora certa, como tambem se
lembrava de tudo. Assim, que?7i melhor que ele para
escrever sobre os mais reconditos segredos da AlemanhaNazista? A segnir, reproduzimos alguns excertos:
Na piirnavcra de 1940, uma cnorme Mercedes
paruu na poria de minlva barbearia, na Koenigstrasse
127, e Hitler saiu dcla. "De uma ligeira aparada e nao
tire muiio em cima", elc disse. Expliquci-lhe quc ccria
de tsperar um pouco, porque Ribbentrop estava na sua
frente. Hitler tlisse que cstava torn pressa c perguntou a
143
a entrada numa mobiha nova. Mas confesso que, quasc
no fim da guerra, chcguei a pensar cm afrouxar um
pouco o no da toalha c dcixar quc alguns flos de cabelo
caissem sobre o seu uniforrne. Mas semprc desistia no
ultimo minuto.
Em Berchtesgaden, certo dia, Hitler me pcrgun-tou: "Que tal eu ficaria de suiga?" Spter deu uma
risada e Hitler semiu-sc ofendido. "Estou falando serio,
Hcrr Speer. Acho que fkarei bem de SUifaS." Goering,
com seu tradicional puxa saqinsmo, logo concordou: "O
Fuehrer de suicas — que idcia csplendida!" Specr
continuou discordando. Na verdadc, ele era o finico com
integridade suficiente para dizer ao Fuehrer quando csteprcusava cortar o cabelo. "Muito extravagante". con
tinuou Specr. "SuTgas sao o tipo da coisa quc eu
associaria a Churchill.-!1 Hitler ficou furioso. Churchill
tambem estava pensando em suic,as? - - ele quis saber,
E, DCSSC caso, quantas e quando? Himmler, suposta-
menie a cargo do servico dc intdigencia, foi ordenado a
invcstigar o assumo scm perda de tempo. Goering ficou
irritado com a atitude de Specr e perguntou: "Por quc
esta criando caso? Se ele quiscr deixar crescer as suTgas, o
que vocc tern com isso?" Speer, gcralmente t5o cdu-
cado, chamou Goering de hipocrita e disse que clc era
um "inscto dc uniforme". Goering jurou vinganc/a, e
comentou-se depois que tcria mandado os guardas da SS
qucbrar as pontas dos lapis de Specr.
Himmler chegou correndo. Estava no meio dc
uma aula dc sapateado quando o iclefone tocou, con-
vocando-o imediatamcnie a Berchtesgaden. A principio
pensou que se tracassc do extravio de um vagao carre-
gado com milharcs dc llnguas-de-sogra quc Rommel
tinha encomendado para sua ofensiva dc invcrno.
(Himmler nao costumava ser convidado a jantar cm
145
Bcrchtcsgadcn, porque etixergava mal c Hitler naotolerava ve-lo trazer o garfo a altura do rosto e mesmo
assim errar a boca.) Himmler sabia quc alguma coisa
cstava errada, porque Hitler chamou-o dc "Baixinho",
o que so fazia quando esrava ligeiramentc puto. Scm
maiores dclongas, o Fuehrer pcrj;untou-lhe: "Churchill
vai deixar crescer as sincas?"
Himmler ficou vermelhu.
Hitler insistiu: "Vai ou nao vaP"
Himmler admiuu que havia rumores nesst:
senudo, rnas nada oficial, sabe como e. Quanto ao
numcro de suic.as e ao comprimenro, arriscou queprovavelmcnte scriam duas e de tamanho medio, mas
que era aniscado fazer qualquer previsao. Hitler deu um.
berro e csmurrou a mesa. (O que Goering considerou
uma vitoria sua sobre Speer.) Hitler abriu um mapa e
mostrou-nos como iria cortar o suprimento ingles de
toalhas quentes. Bloqueando o estreito das Dardanelas,
Docniiz podena impedir que as toallias fossem desem-
baaadas. Mas o problems basico continuava: Hitler
poderia Banhar de Churchill em materia de costeletas?
Himmler afirmou que, se Churchill ja tivesse comecado,seria impossivel apanh;i-lo. Goering, um otimista
inconseqtiente, garantiu que o Fuehrer talvez pudesse
crescet suas sutcas mais depressa, se toda a Alemanha se
concentrasse num esforco cunjunto. Von Rundstedt,
11 uma reuniao do Estado Maior, foi de upiniao que seria
um erro tentar crescer as costeletas nos dois lados ao
mesmo tempo, c- que talvez fosse mais aconselhavel
concentrar todos os esforgos numa unica e vistosa cos-
teleca. Hitler respondeu que scria capaz dc cresce-las nas
duas faces simuhancamcntc. Rommel concordou com
Von Rundstedt; "Elas nunca crescerSo.por igual, mein
146
Fuehrer, se o senhor apressa-las." Hitler ficou uma fcra
e disse que este era um assunto entre ele e seu barbeiro.
Speer prometeu que podcria triplicar nossa produc.ao de
cremc de barbcar ate o outono, c Hitler ficou cufdrico.
Enta"o, no inverno de 1942,- os russos [angaram uma
contra-ofensiva e as costcletas tiveram de ser abando-
nadas. Hitler come£OU a temerque, em breve. Churchillganhassc um new look, enquanto ele continuaria "Omesmo". Mas pouco dcpois recebcmos a informagSo dcque Churchill tambem abandonara a idcia por causa dos
custOS. Mais uma vcz o Fuehrer provara que tinlia razilo.
Dcpois da mvasao aliada, o cabclo dc Hitler
tomou-se ressecado c rebelde. O que deveu-se em pane
ao succsso dos aliados e tambem por causa dc Goebbels,
que o aconsclbou a lava-lo todos os dias. Quando o
General Gudcrian soube disto, retornou imediatarncme
da frcnte soviet ica e disse ao Fuehrer que ele mo deveria
lavar o cabelo com xampu mais do que trcs vezes por
semana, porque estc fora o procedimento seguido com
grande succsso pelo Estado-Maior em duas guerras
anteriorcs. Hitler, mais uma vez, ignorou o conselho dc
seus oficiais e continuou a lava-lo diariamente. Bormann
ajuclava Hitler na hora dc enxaguar c parecia estar scm-
pre por perto com um pentc. Em pouco tempo, Hitler
tornou-sc dependentc de Bormann e, qtiando tinba de
se olhar' niim espelho, tnandava Bormann se olhar
primeiro. A medida que os exerchos aliados marchavampara leste, o cabelo dc Hitler piorava. Scco c despen-
tcado, passava horas por dia ruminando que faria uma
magmfica barba e cabelo quando u Alemanha ganhassca gucrra. Talvcz ale fizessc as unhas. Hoje sei quc, no
fundo, ele nunca teve intencao de fazcr nada disso.
Um dia, 1-lcss apossou-se da brilhantina de
1 litler e zarpou para a [nglaterra. O alto-comando
147
alemao ficou furioso, achando quc Hess tcncionava da-la
aos aliados cm troca dc anistia para si prdprio. Hitler
ficou panicularmente irntado ao saber da noticia,
porquc tinha justamente acabado dc sair do banho c se
preparava para se pentcar. (Mais tarde, Hcss cxplicou cm
Nuremberg quc sen piano consistia cm tornar os cabclosdc Churchill mals sedosos, numa centativs de acabar
torn a guerra. Disse quc chegou a airair Cliurchiil pa
ra a bacia, mas quc naquelc momcruo foi preso.)
Em 1944, Groering deixou cresccr o bigodc, o
quc provocou comentarios de quc cle seria o substitute
dc Hitler. Hitler nao gostou ncm um pouco e acuSOU
Gocring dc deslcaldade. "So podc haver um bigode
entre os lidcrcs do Retch, c este bigode c o meu!",
gritou. Gocring argumentou que dais bigodes tornariam
(i povo alemao mais confiante quanto a vitoria naguerra. a qual parccia cada vez mais djffcil. Mas Hicler
nao pensava assim. EntfiO, cm Janeiro dc 1945, o piano
dc varios generais, de raspar o bigode de Hitler
enquanco cle dormisse e proclamar Doenttz o novo lidcr,
fracassou, porquc Von Stauffenberg, trabalhando a
meia-luz, raspou por engano uma sobrancelha do
Fuehrer. Proclamou-SC 0 CStado dc cmcrgencia c
Goebbels apareceu correndo cm minha barbcaria:
"Houve um atentado contra o bigode do Fuehrer, mas
fracassou!", disse uemendo. Entao Goebbels pediu-mequc me dirigisse pelo radio ao povo alemao, o quc fiz da
mancira mais breve posslvcl: "O Fuehrer csta bcm.
Ainda tonserva scu bigode. Rcpito: O Fuehrer ainda
tern sen bigode. Uma tcntativa dc raspa-lo fracassou."
Ja no fim da guerra, estive com Hirlcr no
bunker. Os excrcitos aliados aproximavam-se dc Bcrlim,
e Hitler achava que se os russos chegassem primeiro, eleprecisaria de um cortc completo, mas quc, se fossem os
148
americanos, bastaria fazer o pe do cabelo. Houve umadiscussao. No meio disso, Bormann quis fazer a barba e
live de promctcr-lhc que iria afiar a navalha. Hitler
parccia distraido. Falou vagamente em repartir o cabclo
no mcio c comentou que a invengao do barbcador
eletnco iria virar a gucrra a favor da Alcmanha.
"Poderemos nos ' barbear em segundos, hem,
Schmccd?" Falou ainda dc outros pianos mirabolantes e
manifestou a intencao de que, algum dia, iria nao
apenas cortar o cabelo, mas tambem mudar de pen-
tcado. Obcccado como sempre por qucstoes de tama-
nho, disse que dcixaria crescer um gigantesco lopete -
"um topete que faria o mundo iremer e que precisaria
de um batalhao inteiro para pentear." Finalmcnce,
;ipenamos as muos e cortei-Ihe pela ultima vez o cabclo.
Elc me dcu um pfennig de gorjeta c disse: "Daria mais
se pudessc, mas, desde que os aliados coma ram a
Buropa, tenho andado sem troco."
149