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Festa de Santa BrbaraCADERNOS DO IPAC, 5
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Festa de Santa Brbara
Salvador Bahia2010
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GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA
Jaques Wagner
SECRETARIA DE CULTURA
Mrcio Meirelles
DIRETORIA GERAL DO INSTITUTO DO PATRIMNIO ARTSTICOE CULTURAL DA BAHIA IPAC
Frederico A.R.C. Mendona
PRESIDNCIA DA FUNDAO PEDRO CALMON FPC
Ubiratan Castro de Arajo
DIRETORIA DE PRESERVAO ARTSTICO E CULTURAL DO IPAC
Paulo Canuto
GERNCIA DE P ESQUISA, LEGISLAO PATRIMONIAL E PATRIMNIO
INTANGVEL DO IPAC
Mateus Torres
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FOTOGRAFIASElias Mascarenhas
PROJETO GRFICOPaulo Veiga
ILUSTRAOMargarete Abud
EDITORAOMaria Luzia Lago Brando
PESQUISACarla Bahia
Jussara Rocha NascimentoMilena TavaresNvea Alves dos SantosSnia Ivo
CONSULTORIA E EDIO DE TEXTOCarla Bahia
REVISO DE TEXTOFundao Pedro Calmon
IMPRESSO E ACABAMENTO
Grfica QualiCopy
Sumrio
9. APRESENTAO
Ubiratan Castro Arajo
11.O STIO
Milena Tavares
21. A BRBARA DA ANTIGUIDADE
Jussara Rocha Nascimento
31. IANS: ME NOVE VEZES
Carla Bahia
41. ICONOGRAFIA
Snia Ivo
45.O CULTO A SANTA BRBARA NA BAHIA
Nvea Alves dos Santos
53. A FESTA DE SANTA BRBARA NO PELOURINHO
Carla BahiaB135s Bahia. Governo do Estado. Secretaria de Cultura. IPAC.
Festa de Santa Brbara. / Governo do Estado, Secretariade Cultura, IPAC. - Salvador: Fundao Pedro Calmon , 2010.
76p. : il. (Caderno s do IPAC, 5)
ISBN:
1. Brbara, Santa Festa Religiosa 2. Bahia - Histria 3.
Bahia Festa Popular 4. Brbara, Santa Histria I. Ttulo
CDD 394.265CDU 394.26
Elaborada pela Gerncia Tcnica - GETEC
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Apresentao* Ubiratan Castro Arajo
As festividades de 04 de dezembro, dia de celebrao de Santa Brbara, fo-ram registradas como patrimnio imaterial da Bahia no livro das celebra-es, pelo Instituto do Patrimnio Artstico e Cultural da Bahia.
Trata-se de um dia de festa no Centro da Cidade do Salvador, desde 1641, quan-do foi institudo o Morgado de Santa Brbara, composto de propriedades e ca-pela ao p da ladeira da Montanha. Aquele foi o primeiro Mercado de Santa Br-bara. Desde o final do sculo XIX os comerciantes, que faziam as celebraes,foram transferidos para o novo Mercado de Santa Brbara na atual Baixa dosSapateiros. Na dcada de 80 do sculo XX, as celebraes e a prpria imagemda Santa passaram a sediar-se na Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos,no Pelourinho. Esta indiscutivelmente a grande celebrao religiosa popular doCentro Histrico de Salvador.
A cada 04 de dezembro, o Centro de Salvador se veste de vermelho, cor usadapelos devotos da Santa Brbara. Gente de toda a cidade, de todas as classes so-ciais, de todas as cores (principalmente a negra), e de todos os sexos (principal-mente as mulheres) rene-se para missa, procisso, samba e caruru. Duasfigurasmsticas de mulher associam-se no vermelho da festa: a Santa Brbara, mrtircrist da antiguidade, e a laba Ians, orix dos Iorub. Ambas representam o ar-qutipo unificado de mulher guerreira, que conquistou a sua liberdade ainda queno martrio, e que levantou a cabea em rebelio contra o poder masculino.
Na cultura afro-brasileira, no dia 04 de dezembro o povo da Bahia celebra o ru-bro sangue que ferve nas veias das belas mulheres rebeldes libertadas, senhoras
de suas prprias cabeas. Salve Santa Brbara da sia Menor. Eparri Ians da
frica Ocidental. Salve a Mulher da Bahia!
* Presidente da Fundao Pedro Calmon
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O STIO* Milena Tavares
Evoluo Urbana de Salvador
Oestabelecimento da cidade do Salvador ocorreu atravs de Regimento deD. Joo II, Rei de Portugal, datado de 17 de dezembro de 1548. Nestapoca, o regime de donatrios no Brasil foi substitudo por um Governo Geral
e, a partir de ento, a Cidade do Salvador foi instituda como sede. Logo aps,
tomou posse o Primeiro Governador Geral do Brasil, Tom de Souza, com
mandato iniciado em 07 de janeiro de 1549.
O Regimento de 1548 buscou orientar o processo de povoamento do Brasil,
discriminando em detalhes todas as regras que deveriam nortear o proces-
so de construo da cidade do Salvador. Essas normas foram estruturadas
de forma que a cidade estivesse preparada para atender aos interesses de
Portugal. Entre os aspectos que foram considerados para a implantao do
ncleo primitivo, destaca-se:
- Escolha do stio para implantao:
- Lugar sadio, de bons ares e com abastana de gua.
- Atender ao funcionamento de um porto.
- Fortaleza e povoao grande e forte:
- Construir uma fortaleza, de tamanho e feio acordes com o lugar de
sua localizao, obedecendo as traas e mostras entregues, em Lisboa, a
Tom de Souza.
* Arquiteta
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- Recursos humanos:
- Acompanharo Tom de Souza para edificao da cidade: oficiais, pe-
dreiros, carpinteiros e outros, inclusive alguns especializados no fabrico de
tijolos, telhas e cal.
- Recursos materiais utilizados:
- Numera-se a preferncia pelos seguintes materiais: pedra aparelhada, pe-
dra e cal, pedra e barro, ou taipais, e madeira.
- Deveriam ser resistentes, fortes e que permitissem estabilidade e segurana.
A escolha do stio
Aps o desembarque, Tom de Souza ordenou que fosse descoberta a terra bem
sua frente e deter minou que o melhor lugar para edificar a cidade seria aquele
defronte ao local em que havia ancorado. Em frente ao espao que virara anco-
radouro havia uma grande fonte que serviria para atender s necessidades dos
navios e naus da cidade que ali seria construda.
O lugar escolhido para assentamento da cidade estava no promontrio compre-
endido entre as gargantas de onde hoje conhecemos como Barroquinha, ao sul,
e Taboo, ao norte, pois apresentava caractersticas favorveis: era situado no
cimo de uma escarpa, sendo considerado de fcil defesa em caso de ameaa de
invaso, pela altura de 60 metros sobre o mar. Esse espao selecionado tinha a
oeste um paredo natural, com altura considervel, enquanto a este, um vale na-
tural, hoje denominado como Rua Dr. Jos Joaquim Seabra (J. J. Seabra ou Baixa
dos Sapateiros), fortalecia o aspecto da fortaleza da cidade.
As obras de construo daquela urbe foram aceleradas e, no primeiro semes-tre de 1549, a Governadoria Geral j estava instalada e em funcionamento. Na
mancha matriz da cidade foram edificadas quatro portas, cercadas por baluartes
improvisados, que merecem ser citadas: a Porta Norte, no incio da atual Rua da
Misericrdia, onde antes havia uma depresso natural do terreno servindo de
fosso, correspondendo hoje Rua 28 de Setembro; Porta Sul, correspondente s
imediaes da Praa Castro Alves, denominada, em principio, de Porta de Santa
Luzia e, posteriormente, de Porta de So Bento; a porta do lado de terra,
acessvel da baixada fronteira por meio de uma ladeira em degraus, chamada
pelos antigos de Beco da gua de Gasto; e a ltima, que dava acesso ao porto
e galgava a encosta do monte, atravs de terreno ngreme, prxima atual Rua
do Pau da Bandeira.
No interior desta nova fortificao surgiu o primeiro povoamento da cidade alta,
composta por quatro ruas longitudinais, trs transversais e duas praas. A rua prin-
cipal e mais extensa era a Rua Direita do Palcio ou dos Mercadores (atual Rua
Chile), responsvel pela comunicao da porta norte at a porta sul. As demais
ruas longitudinais, chamadas, na poca, pelo nome de Ajuda, Po de L e dos
Capites, eram todas retilneas e tinham como limite os muros da cidade. J as ruas
transversais tinham a denominao de Assemblia, das Vassouras e do Berqu.
Na praa principal, localizada na banda sul, havia um pelourinho e algumas casastrreas, onde residia o Governador, alm da modesta Igr eja de Nossa Senhora
da Ajuda. Na direo Este foi implantada a Casa de Cmara e Cadeia e outras
casas de moradores. Na face norte ficavam as casas de repartio da alfndega e
armazns. J no oeste ficavam algumas peas de artilharia.
As primeiras edificaes da cidade foram a ermida consagrada a Nossa Senhora
da Conceio, prxima praia; baluartes e cercas dos arruamentos. Foi ainda
providenciada a locao da primeira praa, que fora Centro Administrativo do
Brasil at 1763, na atual Praa Municipal; alm de uma cerca de pau-a-pique para
proteo dos trabalhadores e soldados.
O burgo fortificado na cidade alta se prolongava tambm em direo cidade
baixa, prxima ao mar, confinado a uma estreita faixa de terra prxima mon-
tanha. Esta regio reunia o porto, a alfndega, armazns e casas, erigidos no
entorno da Igreja de Nossa Senhora da Conceio. As povoaes beira da praia
comearam nas ribeiras do Gis e dos Pescadores. A primeira ribeira estendia-seno trecho limitado em seu comprimento pela atual Praa Cairu e a Fonte das Pe-
dreiras, alargando-se, linear e posteriormente, presente Praa Conde dos Arcos
(parte baixa da Ladeira do Taboo).
Salvador, ento, foi implantada primitivamente entre duas regies, que se con-
vencionou chamar de Cidade Alta e Cidade Baixa. A ligao entre elas se dava
atravs de duas ladeiras: da Conceio e da Preguia. Existiam, ainda, caminhos
terrestres, precrios, que permitiam o acesso ao local que ficou conhecido como
gua de Meninos e, a partir da, ao Monte Serrat e Ribeira, mais afastados
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Nessa poca, a Colina da S j se encontrava inteiramente urbanizada; So Ben-
to e o Carmo haviam progredido visivelmente, indo do que se conhece como
Santo Antnio Alm do Carmo at o Forte de So Pedro. No decorrer do sculo
XVIII, a economia baiana foi favorecida pela prosperidade da cultura da cana-
de-acar e da explorao do ouro, influenciando beneficamente na fisionomia
da cidade, embelezada pela construo de ricos sobrados e igrejas.
A cidade do Salvador no sculo XIX
A abertura dos portos (1808) promoveu grande
desenvolvimento nas cidades brasileiras, promo-
vendo emancipao poltica e transformaessociais, na medida em que novos produtos no
mercado modificaram o gosto e a exigncia da
populao local. A cidade inicia grandes trans-
formaes, no intuito de romper com a paisa-
gem colonial. Esse impulso foi contido pela ex-
tino do comrcio de escravos, a abolio e a
proclamao da independncia do Brasil, alm
do fortalecimento da economia cafeeira no sul
do pas.
Em 1800, a cidade do Salvador se apresentava,
basicamente, da seguinte forma:
- Bairro da Praia: a Cidade Baixa se estendeu da
Preguia at a Jequitaia, com predominncia decomerciantes na rea, mas contando tambm
com templos, fortalezas, alm dos edifcios co-
merciais. Nessa mesma regio, mas fora da rea
urbana, havia trs caminhos que viriam, poste-
riormente, a se agregar cidade de Salvador: um
pela praia, chamado de Jequitaia, at a porta de
Monte Serrat, outro para o Bonfim, ou Itapagipe
de Baixo, e o terceiro para Itapagipe de Cima at
a Porta do Papagaio.
- Cidade Alta: no trecho da mancha matriz, as ruas e praas permaneciam sem
alteraes de monta. O que ocorreu no espao de 80 anos foi a construo de
edifcios pblicos notveis e o agenciamento da segunda praa da cidade, o Ter-
reiro de Jesus, construdo no sculo XVI.
- Fora das Portas: na direo sul, prosseguia o eixo bsico pela atual Ladeira de
So Bento, com o seu adensamento e abertura de novas ruas. Na direo norte,
ultrapassando as portas do Carmo, estava o Bairro de Santo Antnio, que se
prolongava, j estabilizado, do ponto de vista urbano.
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- Cidade Alta: se estendia desde o Forte de So Pedro at o Convento da Soleda-
de, na sua maior largura, procurando a direo do nascente, apresentando gran-
des edifcios, templos e casas nobres. Nessa poca j havia trs praas: a nova da
Piedade e as j existentes, do Palcio e do Terreiro de Jesus.
- Bairros Circunvizinhos: So Bento, o maior e mais aprazvel, no norte da cida-
de, o Santo Antnio Alm do Carmo, com edifcios de menor qualidade e quan-
tidade, alm de os bairros da Palma, Desterro e Sade, na parte nascente.
A cidade do Salvador a partir do sculo XIX
A partir dessa poca, o trecho urbano da Cidade Baixa se consolidou at o Mon-te Serrat e Bonfim, interligando-os aos ncleos anteriormente existentes. Foram
tambm construdos novos cais sobre aterro, para melhoria do porto. Enquanto
isso, na Cidade Alta, a expanso se dava no sentido da conquista de novas cume-
adas na direo sul, o que ocasionou o surgimento dos bairros da Vitria e da
Graa. As cumeadas existentes adensaram-se.
Na direo norte, a cidade antiga se ampliou no sentido da Estrada das Boia-
das. A leste, deu-se a consolidao dos bairros da Sade, Desterro, Palma e a
formao de novos bairros, iniciando por Nazar. O progresso urbano trouxe
a iluminao a gs carbnico, em 1872, e, no fim do sculo, a introduo dos
primeiros bondes a trao animal, permitindo uma nova extenso do permetro
construdo, favorecendo o surgimento de mais bairros.
Nofinal do sculo XIX, o ncleo primitivo sofreu esvaziamento pela populao abas-
tada. Isso se deu pelo crescimento da cidade para as bandas do sul, no Bairro da
Vitria. A partir da, os casares coloniais da rea do centro histrico foram sendo
ocupados por pequenos comerciantes at sua decadncia, quando se iniciou a ativida-
de marginal no local, favorecendo o seu abandono e a degradao dos imveis.
A cidade no sculo XX
A modernizao dos transportes, que se iniciou com a introduo dos primeiros bon-
des a trao animal, favoreceu a expanso urbana, incentivando o surgimento de no-
vos bairros. Na Cidade Baixa, a ocupao do territrio se estendeu at a Pennsula de
Itapagipe, chegando a Monte Serrat e ao Bonfim. O porto sofreu diversos servios de
melhoramento urbano, ampliando a rea do Comrcio, a partir de sucessivos aterros.
Na Cidade Alta, conforme j citado, deu-se a conquista de novas cumeadas na direo
sul, consolidando-se os bairros do Campo Grande, Vitria e Graa.
Na direo norte, a cidade se estendeu no sentido da Estrada das Boiadas, onde
j havia residncias, a exemplo do Solar Bandeira, que at hoje se mantm na
Soledade como monumento digno de nota, bem como a Igreja e o Convento de
Nossa Senhora das Mercs, ambos entre um perfil de sobrados de feio tradi-
cional. Na direo Leste, deu-se a consolidao dos bairros da Sade, do Dester-
ro e da Palma, alm da formao de novos bairros, iniciando por Nazar.
O governo de Jos Joaquim Seabra traou planos significativos para mudar a pai-
sagem colonial, modernizando-a. Para tanto, empreendeu grandes obras, seguindo
o modelo adotado por Pereira Passos, no Rio de Janeiro, que se pautou na reforma
de Paris (Frana). O perodo mais emblemtico ocorreu na gesto entre os anos de
1912 e 1916, com a abertura e construo da Avenida Sete de Setembro.
J na dcada de 40, Salvador passou por um processo de planejamento de sua es-
truturao viria, sob a coordenao de Mrio Leal Ferreira, no Escritrio do Pla-
nejamento Urbanstico da Cidade do Salvador (Epucs). O plano, iniciado somente
em 1959, a partir de transformaes polticas e do reaquecimento da economia,
permitiu o aproveitamento de vales para a abertura de amplas avenidas, favorecen-
do a interligao entre o centro, os novos bairros e a orla da cidade.
Nos anos 50 e 60, a implantao de plos industriais impulsionou a economia e
tambm o crescimento populacional. Isso aumentou a demanda por reas resi-denciais, que at ento se concentravam no centro da cidade, desencadeando um
processo de urbanizao acelerada.
Na dcada de 70, o funcionamento das primeiras fbricas do Complexo Pe-
troqumico de Camaari, na Regio Metropolitana de Salvador, bem como a
construo da Avenida Luis Vianna Filho (Paralela), via expressa com 14 km
de extenso, e a instalao do Centro Administrativo da Bahia e do Shopping
Iguatemi so questes que abriram espao para o surgimento de novo vetor de
desenvolvimento, que vem crescendo intensamente desde ento.
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A BRBARA DA ANTIGUIDADE* Jussara Rocha Nascimento
Um padre ingls, Alban Butler (1711-1773), dedicou 30 anos de sua vida
escrevendo um livro que se tornou grande referncia para os catlicos:A Vida dos Santos.1 No seu relato sobre a vida de Santa Brbara explica, ao final,
que assim que vem narrada, na verso de [William] Caxton [c 1422-1491] a
Legenda urea de uma das mais populares santas da Idade Mdia. Segundo Bu-
tler no se faz meno dela nos martirolgios antigos, sua lenda no anterior
ao sculo VII e seu culto s se difundiu durante o sculo IX. Esclarece, ainda,
que h diversas verses da lenda sobre esta santa, as quais diferem entre si
tanto em relao poca como ao local do seu martrio.
A histria narrada por Butler, resumidamente, assim aparece:
No tempo em que Maximiano reinava, havia um homem rico, um pago
cujo nome era Discoro. Este Discoro t inha uma jovem filha, cujo nome
era Brbara, para a qual mandou construir uma torre elevada e forte, onde
colocou e fechou esta sua filha Brbara, para que nenhum homem a visse
por causa de sua grande formosura. Ento, vieram muitos prncipes ter
com este mesmo Discoro para com ele tratar a respeito do casamento
com sua filha, e ele foi ter com a filha e disse: Minha filha, alguns prncipes
vieram at mim e me pediram que lhes fosse dada em casamento e, por
isso, dize-me qual o teu plano e o que tencionas fazer. Ento, Brbara
ficou bastante irritada e assim falou ao pai: Meu pai, rogo-vos que no me
* Bacharel em Cincias Sociais, Mestre em Arte, Doutora em Letras, UFBA
1 Originalmente publicado em 1756-59, s foi reeditado em 1926-38, uma verso em portugus aparecedatada de 1993.
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forceis a contrair matrimnio, pois para isso no tenho disposio nem
inteno. Depois disso, ele partiu e foi para um pas distante e l perma-
neceu durante muito tempo.
Ento, Brbara desceu da torre a fim de inspecionar uma casa de ba-
nho que o pai estava construindo para ela e logo percebeu que nela s
havia duas janelas, uma que dava para o sul e a outra para o norte. Por
essa razo, ficou muito desconcertada e muito admirada e perguntou
aos operrios porque no haviam feito mais janelas, e eles responde-
ram que o pai dela assim dispusera e ordenara que fizessem, Brbara,
ento, lhes disse: Abri aqui para mim mais uma janela! Quando, mais
tarde, o pai lhe perguntou por que que trs janelas iluminam mais
que duas, Brbara respondeu: Estas trs janelas representam clara-
mente o Pai, o Filho e o Esprito Santo.
Ao ouvir tal explicao, Discoro encheu-se de ira e prendeu Brbara num
crcere. Levada, depois, a um juiz, acabou sendo condenada morte a gol-
pe de espada. O pai, enfurecido, a tirou das mos do juiz e a transportou
at o alto da montanha . Aps uma prece, ela se dirigiu a ele e recebeu ofim
de seu martrio. Quando Discoro desceu da montanha, porm, desceu
sobre ele um fogo do cu, que o consumiu de tal modo que s restaram as
cinzas do seu corpo (1993, pp.52-4).
As publicaes de Caxton e Butler deram forma escrita a uma histria que j
tinha longa vida por meio da oralidade, com verses que enfatizam detalhes
variados e curiosos, adaptados a diferentes contextos culturais. Existe, contudo,
uma pergunta que encontra resposta nos seus devotos: Santa Brbara existiu?Independente do fato, ela vive na religiosidade popular.
Em 1969, sob a alegao de sua autenticidade ser discutvel, Santa Brbara
foi retirada do calendrio litrgico da Igreja Catlica Apostlica Romana. Mas
a devoo a ela permaneceu viva, atravessando longos perodos histricos e em
reas geogrficas de grande extenso.
O culto a Brbara tocou coraes de pessoas oriundas de contextos culturais
distintos, como aqueles que seriam, segundo as histrias, seus conterrneos da
antiga Nicomdia, regio, hoje, localizada na Turquia. Tambm vemos povos
no latinos, em diferentes regies do mundo, devotos de Brbara, bem como o
rei de Castela e Leo, Afonso X (1221 1280), conquistador do reino muluma-
no de Mrcia, na futura Espanha, que deu o nome de Santa Brbara a seu castelo
em Alicante.
Brbara e as configuraes histricas
O mundo europeu deste perodo de 600 e, claro, anterior a ele , como sabi-
do, comporta povos e divises administrativas e culturais bastante diversas das
que viro a se configurar aps a formao dos estados-nao que hoje compre-
endem os pases da Europa.
Por volta dos anos 300, o principal centro cultural europeu localizava-se na
Irlanda, onde os monges que se diziam continuadores da tradio monstica
egpcia preservavam a tcnica da escrita, tendo criado, por exemplo, as letras
minsculas.
No continente, propriamente, o que ocorria na Pennsula Ibrica de particular
interesse ao estudo da devoo de Santa Brbara, j que por intermdio de
espanhis e portugueses que essa santa vai chegar s Amricas, quase mil anos
mais tarde, a partir do sculo XVI.
A Pennsula Ibrica, at o sculo VII, j havia sido palco de civilizaes
diversas e, nessa poca, vai, aos poucos, sendo ocupada por rabes mu-
ulmanos. Inicialmente com os califas Omadas (661-750), depois com os
Abssidas, que acabam por ocupar toda a extenso da Pennsula Ibrica,onde permanecero por mais 500 anos. Esses grupos foram os introduto-
res de inmeras tcnicas, produtos agrcolas e informaes cientficas que
eram, at ento, desconhecidas no restante da Europa: fabricao de papel
e produtos txteis, a arte de trabalhar o vidro, iluminao pblica em algu-
mas cidades, com lmpadas de petrleo ou azeite, bibliotecas, a bssola (j
conhecida na China), entre outras coisas.
Parte considervel do acervo de conhecimento desses rabes ser traduzido
em Toledo, sendo Afonso X, conhecido como o Sbio, monarca que man-
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tinha eruditos e msicos rabes em seu palcio, o primeiro a ter acesso s
famosas tbuas com registros astronmicos e de cartografia martima, que
manda traduzir do rabe.
O mundo catlico, por sua vez, durante o sculo VII, tem como centro de
poder, no Roma, mas a cidade de Bizncio (Constantinopla, hoje Istambul,
Turquia), de tradio grega, localizada na entrada do Mar Negro, nas imedia-
es da regio onde Brbara teria nascido. Em meados do sculo anterior,
em 553, Constantinopla fora sede de um conclio ecumnico convocado pelo
Imperador Justiniano (527-565).
Esse conclio, por sinal, teve como uma de suas principais decises o ba-nimento da obra do telogo alexandrino Orgenes (185-253), que dirigiu
a Didascalion a famosa Escola Teolgica de Alexandria. Orgenes uma
das figuras histricas associadas a Brbara j que, segundo uma das lendas,
a santa teria sido batizada por um discpulo de Orgenes ou, segundo outra
histria, ela teria recebido a visita de Orgenes enquanto se encontrava ca-
tiva de seu pai, na torre.
Apesar de se acreditar que Brbara era nativa da sia Menor, a relao
de seu nome ao de Orgenes acaba associando-a cidade onde Orgenes
nasceu, Alexandria, a metrpole mais importante no mundo conhecido de
ento. Era localizada no norte da frica, no delta do Rio Nilo, e onde ficou
concentrado todo o acervo de conhecimento coletado nos antigos templos
africanos; tanto os de carter religioso como os conhecimentos relativos s
tecnologias desenvolvidas ao longo de trs milnios da antiga civilizao ni-
ltica, em especial o registro das informaes que se referiam ao sofisticadocalendrio ali construdo.
interessante observar que passa pela lenda de Santa Brbara a referncia a
um tipo de conhecimento que se obtinha por intermdio de livros. Em uma
das verses sobre sua vida, aponta-se o fato de que ela teria entrado em con-
tato com idias crists ao receber, certo dia, junto com o alimento e a roupa
lavada que lhe enviavam, na torre, um livro colocado por um estranho, que
queria faz-la conhecer os ensinamentos cristos.
A associao de Brbara com o nome de Orgenes reveste-se, assim, de um tipo de
significado especial, uma vez que no parece ser uma simples coincidncia o fato de
Orgenes se sobressair por uma atividade literria envolvendo milhares de obras.
Os indcios de que livros faziam parte da vida de Brbara tem pontos de con-
tato com o de outras mulheres da antiguidade que eram estudiosas e detinham
conhecimentos englobando vrias reas do saber, como Hipcia de Alexandria
(370-451), nascida cerca de cem anos depois da morte de Brbara. Matemtica
e astrnoma, Hipcia recebeu carta do bispo Sinsio (n. 370) pedindo-lhe ins-
trues para a confeco de instrumentos de observao de estrelas, a fim de
melhor equacionar um calendrio.
Outro ponto que apresenta Brbara ligada aos estudos pode ser indicado pelo
fato de que ela residia em uma torre. A construo cnica, tpica das torres,
com aberturas cuidadosamente orientadas para observao do cu, foi usada em
diferentes regies do mundo antigo, inclusive por monges irlandeses, at a Idade
Mdia, para registro da passagem dos dias, meses e anos por meio da sombra
do sol nas paredes e no cho. A descrio de Brbara enclausurada numa torre
remete, claro, priso determinada por seu pai, mas pode sugerir, ainda que
remotamente, algum treinado para um tipo de observao valiosa, na poca,
para confeco de calendrios.
O momento histrico em que Brbara ter ia vivido, entre os anos de 236 e
260 do calendrio cristo, faz parte de uma situao em que textos escritos e
registros de tcnicas antigas estavam sendo violentamente destrudos. A Bi-
blioteca e o Museu de Alexandria, por exemplo, sofreram um dos inmeros
golpes que os atingiu por volta do ano de 270, quando o imperador Aure-liano destruiu a maior parte do distrito de Alexandria, onde se localizavam
os famosos edifcios.
Cerca de 20 anos antes daquele que teria sido o ano nascimento de Brbara,
o imperador Caracala (211-217), sucessor de Augusto, ridicularizado em
Alexandria. Como vingana, manda reunir os jovens a pretext o de incorpo-
r-los ao exrcito e ordena que sejam massacrados. Eram momentos de mu-
danas dramticas que incluam desapropriaes, destruies e massacres
sistemticos. O Imprio Romano afirmava sua fora de conquista e mrtires
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eram imolados. Brbara faria parte de uma juventude, assim como suas ami-
gas M nica e Juliana, que estava sob a mira de determinaes violentas.
Na sia Menor, por sua vez, a antiga Jnia grega, em que a cidade de Mileto
representou um importante papel no fortalecimento da civilizao da Grcia,
romanos e nativos se enfrentavam em desequilbrio. As maiores cidades da sia
Menor, Nicomdia e Peruza, ficaram submetidas ao romano Maximinus Daia, a
quem tambm coube o Egito e a Sria.
Contudo, a presena dos romanos na regio jamais foi pacfica, principalmente
porque lutavam entre si pelo domnio do espao. bem possvel que o rico Di-
scoro, pai de Brbara, tenha tido certa vantagem nessas disputas, conseguindotirar proveito da relao com os romanos.
De qualquer forma, a aproximao de Brbara com os cristos, nesse perodo
em que o cristianismo ia de encontro a interesses dos romanos, definitivamente,
no do agrado do pai. Sendo ele, pois, um homem rico e poderoso poca,
teria desejado, por exemplo, o casamento de sua filha com um romano invasor?
Considerando todo esse contexto, ser que Brbara teria, por ordem do pai, de
unir-se a um conterrneo no-cristo?
Brbara criou suas prprias relaes e, de alguma forma, decidiu se colocar con-
tra uma situao poltica que agredia os nativos da Bitnia. Explicou a Discoro,
inclusive, que no aceitavam ela e outros devotados ao cristianismo um im-
prio dinamizado pela violncia e pela injustia.
Longe da torre na qual esteve por anos, Brbara aproveitava para visitar do-entes, comunidades crists nos montes e ajudar filhos de escravos. Em de-
terminado momento, foi denunciada aos romanos como crist, talvez pelo
prprio pai. Foi, ento, caada e teria sido encontrada pelo centurio Aleixo
e seus soldados numa gruta. Sua me, Imria, apela ao marido em favor
da filha, mas Discoro no recua e ele mesmo quem desfere a espada no
pescoo de Brbara.
A histria de Brbara poderia ter findado a. Mas esse conto tem um diferencial:
logo aps a degola da moa, o cu se fechou em nuvens e um raio atingiu Di-
scoro, matando-o tambm. Esta uma das verses da vida da santa, que ficou
conhecida como a mrtir morta pelo prprio pai.
Brbara entre outras deusas
Santa Brbara traz uma histria de mulher decidida, ilustrada, por exemplo, com
a opo de no compactuar com uma ordem poltica baseada na violncia. Era
uma entre tantas virgens santificadas a quem muitos recorriam e ainda recor-
rem pela representao de fora, em momento de dificuldade. Este, inclusive,
um fato que aproxima o contedo simblico associado a Brbara a uma outra
representao de longa data, enraizada no imaginrio popular de ento, em espe-
cial na frica da antiga civilizao niltica, sob o nome escrito como HT NT.A grafia egpcia no registrava vogais, podendo a pronncia deste nome ter sido
Neith, Nit, Net, Neit, na frica, enquanto, em grego, seria Ateneit, que veio a
dar em Aten.
Essa personagem mtica j existia desde os tempos pr-dinsticos, por volta do
fim do 4 milnio antes de Cristo. Neith uma figura feminina evocada e descri-
ta como a mulher capaz de exercer a pacincia, seja tecendo, seja cuidando dos
necessitados, at mesmo, pode-se supor, trabalhando numa torre com alguns
pontos estratgicos de abertura que poderiam servir para observaes e estudos
de estrelas ou de feixes de luz do sol.
Neith poderia ser tambm a mulher caadora e destemida, disposta luta e presen-
te nas guerras, tratando dos feridos com seus saberes sobre as ervas curativas. Era
descrita, ainda, como quem ajudava os que estavam morrendo, na sua despedida
da vida. Ela seria a que abre caminhos, segundo os antigos textos egpcios. Eraguia no mundo dos mortos. Respeitada por sua sabedoria, tinha o poder de conce-
ber os deuses, sendo, por essa razo, tambm conhecida como Grande Me.
Seu nome aparece num monumento funerrio comoMerit Neith. O nomeMeri
significando a amada, em egpcio antigo. Sempre acompanhada de suas irms
Nephtys, Isis e Selkis, era considerada protetora de guerreiros e caadores. Era
relacionada s mulheres destemidas e de gnio irrequieto e altivo, aparentemente
to diferentes da pacfica mrtir Brbara, que se entregou morte em defesa
da f. Mas, o raio que atingiu Discoro talvez sua espada sangrenta tendo
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servido de condutor da eletricidade de nuvens de chuva que vai permitir o
reconhecimento, na mrtir, da representao de uma divindade como a egpcia
Neith, por exemplo.
Se essa representao de Neith existente entre os antigos africanos chega ao vale
do Nilo medida que diversos povos africanos vo a se agregando, ao longo do
tempo, ou se a partir dessa regio que a idia de uma divindade tecel e guerreira,
sbia e protetora dos mortos vai mobilizando sentimentos e devoo em diferentes
regies, tanto para o norte, atravessando o Mediterrneo, como para o sul, subindo
o Nilo, chegando ao centro da frica, na bacia do Congo, a partir da em direo
ao Atlntico, entrando no imaginrio de povos de lngua banto ou aproximando-se
das civilizaes construdas ao longo do rio Nger ou do rio Benue, difcil afir-mar. Essa relao, entretanto, uma possibilidade, j que as divindades Ians, Oi,
Bamburucema ou Matamba so representadas com atributos bastante familiares
aos de Neith. Presentes no Brasil, trazidas pelos africanos traficados durante o
contexto colonial, continuam a comover pessoas que, at hoje, em pleno sculo 21,
se colocam como seus devotos em busca de proteo e fora.
Esse contexto, no qual a mrtir catlica apresenta caractersticas da antiga Neith,
que tambm pode ser associada a outras figuras mticas, conhecidas no Brasil
como afro-descendentes, nos traz a sugesto de sincretismo. O prprio cristia-
nismo apropriado pelos imperadores romanos, Constantino (reinado de 324 a
337), que se converte, e Teodsio (reinado de 378 a 398), que emite um decreto
obrigando a todos os submetidos ao Imprio Romano a serem cristos, utiliza-se
de procedimentos de sincretismo, entendido como uma estratgia de adapta-
o em que um corpo de antigos textos, rituais e procedimentos ligados esfera
do sagrado so aproveitados na nova hierarquia religiosa que se estabelece.
Nos ltimos 200 anos, inclusive, depois de ter sido decifrada a antiga escrita
da civilizao niltica, pode-se reconhecer, por exemplo, em preces africanas,
datadas do 2 milnio a.C., valores de solidariedade e compaixo para com
o prximo que tambm aparecem no Novo Testamento, como no trecho de
O Livro Egpcio dos Mortos, de Bugde:
Fiz com que o deus ficasse em paz [comigo fazendo-lhe] vontade. Te-
nho dado po ao homem faminto, gua ao homem sedento, roupas ao
homem nu e um barco ao marujo [que naufragou]. (...) Sou limpo de boca
e limpo de mos, seja-me dito, portanto, pelos que me virem: vem em paz,
vem em paz (1993, p. 329).
Brbara nasceu, segundo relatos, cerca de cem anos antes de a I greja Romana se
organizar em moldes estabelecidos a partir de decretos imperiais. A histria de
sua vida foi registrada por escrito por volta do sculo X, quando Simeon Meta-
frastes encarrega-se de editar um Feitos dos Mrtires, incluindo o nome dela.
Tanto Metafrastes quanto Mombrito, que deixaram livros sobre santos, colocam
o local de martrio de Brbara em Helipolis, no norte da frica. Outros relatos
citam a Toscana, na pennsula itlica, o que sugere que a lenda latina de Santa
Brbara inclui um vasto territrio geogrfico.
A prpria Helipolis, conhecida como a cidade do sol, pode ter sido associada
ao nascimento da mrtir porque o astro, no antigo Egito, recebia a denominao
de Reou Ra, slaba contida no nome da santa. Alm disso, o som ba que, tam-
bm entre egpcios, tinha o significado de alma, sugere o nome Brbara.
O conjunto de dados histricos referentes a Santa Brbara que, no Brasil e na
Cidade de Salvador, sobretudo, lembrada associada a Ians, sugere que, des-
de quando da morte da mrtir, sua representao j inclua uma significativa
aproximao com uma divindade africana. Se, hoje, algumas autoridades, tan-
to catlicas quanto de culto afro, fazem esforo para combater o sincretismo,
escandalizando-se ou rejeitando uma dupla pertena, tal no parece ter sido
uma preocupao para os antigos habitantes da sia Menor, para quem Brbara
foi imediatamente enquadrada num prottipo j conhecido de divindade no mo-
mento em que o raio entra na sua histria de vida.
possvel admitir, portanto, que a Brbara turca e a Ians nag no seriam
divindades to distantes assim uma da outra para as pessoas que ajudaram a criar
e manter viva sua devoo no sculo III. Neith, inclusive, pode ter sido a repre-
sentao mais antiga que teria moldado ambas, a santa e o orix.
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IANS: ME NOVE VEZES* Carla Bahia
Amitologia africana envolta em mistrios e simbologias, como tantas
outras. Por isso, contar a histria de um orix talvez no seja tarefa dasmais simples. Aqui no Brasil, o candombl, enquanto religio que os cultua,
tem vises mltiplas o que no quer dizer que sejam divergentes sobre um
mesmo assunto. Mas isso faz parte, sobretudo, do processo histrico iniciado
em meados do sculo XVI, quando muitas pessoas foram trazidas do continente
africano na condio de escravo.
No livro Candombls da Bahia, Edison Carneiro registrou:
O trfico trouxe escravos de regies diferentes da Guin Portuguesa
(Costa da Malagueta), do Golfo da Guin (a Costa da Mina, outrora di-
vidida em Costa do Marfim, Costa do Ouro e Costa dos Escravos) e de
Angola, dando a volta ao Continente para alcanar a Contra-Costa (Mo-
ambique). Os pesquisadores brasileiros: seguindo o lead de Nina Rodri-
gues, dividem os africanos chegados ao Brasil em dois grandes grupos
lingsticos: sudaneses (os da Guin e da Costa da Mina) e bantos (Ang ola
e Moambique) (1954, p. 43).
Esses povos de diversas regies chegaram com seus cultos fundamentados nas
realidades de origem de cada um. Alguns tinham formao religiosa com base no
respeito e adorao a divindades, provveis antepassados: o orix, aqui tambm
chamado de encantado.
* Jornalista
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Em Ians: rainha dos ventos e das tempestades, Helena Theodoro diz que:
Muitas foram as etnias que se mesclaram nas Amricas e cujos mem-
bros foram genericamente denominados de negros. Esses negros
preservaram suas tradies culturais, que tomaram variadas formas,
como o candombl, no Brasil, a santera, em Cuba, e os voduns, no
Haiti (2010, p. 23).
E esse candombl que traz vrias verses para as lendas de um mesmo orix.
Esta palavra, inclusive, a mais utilizada aqui para identificar figuras mticas (ou
deuses) de matriz africana. Ligeiramente classificando: de nao Queto (ou
Nag), na lngua Iorub, enquanto as similares vodum e inquice so, respectiva-mente, de naes Jeje e Angola (ou Congo-Angola).
De uma maneira geral, a mitologia afro-brasileira busca apresentar um perfil
mais ou menos parecido ao se falar de um deus do fogo, o outro do mato ou
uma deusa da gua, por exemplo. Contudo, no se pode pensar em uma catego-
rizao exata de um orix, de um vodum e de um inquice da mesma maneira que
se faz com um ou outro santo presente na devoo catlica do Vaticano (que re-
gistra datas de nascimento e de morte e personifica os trabalhos ou benfeitorias
de cada um), porque so construes culturais diferentes.
Ratificando que os cultos de matriz africana renem influncias de muitas regi-
es do continente, Pierre Verger, no livro Orixs. Deuses Iorubs na frica e no
Novo Mundo, escreveu:
O termo rs nos parecera outrora relativamente simples, da ma-neira como era definido nas obras de alguns a utores que se copiaram
uns aos outros sem grande discernimento, na segunda metade do scu-
lo passado [XIX] e nas primeiras dcadas deste [XX]. Porm, estudan-
do o assunto com mais profundidade, constatamos que sua natureza
mais complexa. Lo Frobenius o primeiro a declarar, em 1910, que
a religio dos iorubs tal como se apresenta atualmente s gradativa-
mente tornou-se homognea. Sua uniformidade o resultado de adap-
taes e amlgamas progressivos de crenas vindas de vrias direes.
Atualmente, setenta anos depois, ainda no h, em todos os pontos do
territrio chamado Iorub, um panteo dos orixs bem hierarquizado,
nico, idntico (2002, p. 17).
Os orixs, ainda em vida sobre a terra, seriam pessoas que se destacavam em suas
atividades, muitas vezes. Tinham um conhecimento alm das coisas cotidianas e
sabiam lidar com certas foras da natureza, com o poder de plantas e poderiam,
ainda, ter o controle sobre o fogo ou o vento, por exemplo. Aps a passagem en-
tre os homens, esses espritos com poderes divinos continuavam seus trabalhos
de cura e proteo, algumas vezes atravs de um mecanismo em que se apos-
savam momentaneamente do corpo de um de seus filhos, em um fenmeno
medinico conhecido popularmente no Brasil como incorporao.
O orix uma fora pura, se [ax] imaterial que s se torna perceptvel
aos seres humanos incorporando-se em um deles. Esse ser escolhido
pelo orix, um de seus descendentes, chamado seu elgn, aquele que
tem o privilgio de ser montado, gn, por ele. Torna-se o veculo que
permite ao orix voltar terra para saudar e receber as provas de respeito
de seus descendentes que o evocaram (VERGER, 2002, p. 19).
Esse intercmbio entre dois mundos, feito atravs de muitos rituais e cheio
de simbologias, no qual o elgnpassou a se chamar cavalo (pois montado)
ou filho-de-santo (pela relao familiar), ainda ganhou, no Brasil, alm das trs
divises em nao (e suas subdivises), a variao de culto a ndios. Essa terceira
linha religiosa, no Brasil, quando acrescida do catolicismo e da filosofia do es-
piritismo, recebeu, h pouco mais de cem anos, tambm, o nome de Umbanda.
Em Candombls da Bahia, Edison Carneiro fala dessas relaes quando j esta-
belecidas aqui:
O candombl incorpora, funde e resume as vrias religies no negro
africano e sobrevivncias religiosas dos indgenas brasileiros, com mui-
ta coisa do catolicismo popular e do espiritismo. [...] Os deuses e os
mortos se misturam com os vivos, ouvem as suas queixas, aconselham,
concedem graas, resolvem as suas desavenas e do remdio para suas
dores e consolo para os seus infortnios. O mundo celeste no est
distante, nem superior, e o crente pode conversar diretamente com os
deuses e aproveitar da sua beneficncia (1954, p.31).
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O Brasil herdou tambm outro tipo de culto afro, alm do de orixs, inquices e
voduns: o Bab-Egum.
As comunidades-terreiros de candombl cultuam os orixs associados
s foras da natureza. J as comunidades-terreiros de culto de Egun-
gun reverenciam os ancestrais, chefes de cls ou lderes que se destaca-
ram por atos excepcionais durante suas vidas, havendo uma separao
rigorosa desses cultos, j que cada um tem doutrina e liturgia prprias.
Egungun ou Bab simboliza conceitos morais e representa o mist-
rio da transformao de um ser-deste-mundo (vivo) e um ser-do-alm
(morto) (THEODORO, 2010, p.96-97).
Assim, Ians, tambm chamada de Oi, que, segundo a mitologia, me dos eguns,
tem suas lendas contadas a partir de todas essas influncias. Matamba e Bamburuce-
ma, por exemplo, so nomes freqentemente associados ao dela, contudo, no so,
originalmente, orixs, mas, inquices. Todas quatro esto representadas, alm de outras
caractersticas, em umafigura feminina, divindade dos ventos, materna e guerreira.
As lendas
Uma das histrias diz que Oi era uma mulher-bfalo. O capito Ogum,
enquanto caava, ia matar o animal que, misteriosamente, virou uma linda
e encantadora mulher, por quem ele se apaixonou e com quem se casou.
Outra verso para essa mesma lenda diz que Ians, j esposa de Ogum, teria
feito uma fantasia de bfalo para fugir s escondidas, de vez em quando, e
se encontrar com Xang, por quem era apaixonada.
Ogum era o ferreiro da Cidade de Oi, que tinha Xang como rei. Certa vez,
passando prximo ao capito, Xang pediu para que Oi fosse sua, mas Ogum
no aceitou. Ela, que tambm tinha se apaixonado pelo rei, foi embora, mesmo
sem que seu marido concordasse, para virar a terceira mulher de Xang. Ogum,
revoltado, trocou golpes de espada com a guerreira, que ficou dividida em nove
pedaos, mesma quantidade de filhos que teria tido com o fer reiro.
Em outro enredo, o rei Xang era casado, primeiramente, com Ob e, depois,
com Oxum, a rainha do feitio. Ob, intrigada com Xang, que aceitou Oxum
como esposa, foi perguntar senhora das guas o que ela fez para conquistar o
rei. E Oxum, para desviar Ob do seu caminho e ser a nica rainha ao lado de
Xang, disse que havia feito uma poro com uma das orelhas e dado para o
marido tomar. Como Oxum andava com um toro ou com os cabelos enrolados
cabea, presos, no mostrou, assim, o lado ferido pela ausncia de um dos r-
gos. Ob, crente que Oxum tinha feito a tal poro, seguiu a mesma histria, fez
um ch e serviu ao marido, que, vendo-a sem uma orelha, no gostou. Foi ento
que Ob percebeu que tinha cado numa armadilha de Oxum.
Quando Oi chegou ao reino junto com Xang, Oxum percebeu que, apesar de
ter afastado Ob do marido, sofria ameaa com a chegada da nova esposa, uma
mulher sensual, forte, alegre e desprendida. Oxum, mesmo muito bela tambm,brigou com Oi para afast-la do rei, antes que ele a tornasse a mulher mais im-
portante do Reino de Oi.
A nova esposa, ento, fugiu para a floresta e foi viver com o caador Oxssi,
abandonando o segundo marido. A fria de Xang foi to grande que as trs
esposas foram transformadas em rios que levaram seus nomes: Ob, Oy e
Osum. Todos nigerianos.
Associada com a gua e a chuva, considerada a filha de Oxum. Est
ligada floresta, aos animais, aos espritos que a povoam, evocando
a idia de perigo mortal para o caador. Segundo os mitos, Oi assu-
me a forma de um bfalo africano que vive em charcos lamacentos.
(THEODORO, 2010, p. 104).
Podemos ver, ainda, uma lenda que diz que Ians teria fugido de casa de-pois que sua me, enciumada, a renegou pela beleza e sensualidade que a
moa estava ganhando. Oi, ento, foi se esconder em uma gr uta no meio
do mato.
Em um momento de fraqueza, aps um perodo difcil em seu reino, Xan-
g tinha ficado algum tempo escondido, tambm, numa gruta. Aps a fase
triste, ele retornou ao reino. Quando contou a Ogum como fora o tempo
em que passou escondido e onde esteve, Ogum pediu que fossem ao local
para ele conhecer.
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Quando chegaram l, encontraram uma mulher deslumbrante, com olhar forte e
desafiador, pela qual os dois ficaram interessados. Era Oi, que contou como foi
parar naquela gruta, a mesma que o rei Xang havia usado no recolhimento.
Depois de conhecer um pouco da vida daquela mulher, Xang, sensibilizado,
ofereceu-se como pai e deu oportunidade a Ians de lutar contra os inimigos
ao lado dele e do irmo, Ogum. Ela era mesmo uma mulher forte e guerreira e
Ogum no escondeu o entusiasmo de ter conhecido uma beldade como aquela,
a quem pediu em casamento. Oi respondeu que, depois de ter sido adotada
pelo rei Xang, era ele quem decidiria com quem ela deveria casar. Se fosse do
consentimento do novo pai, ela seria esposa de Ogum.
Os significados em Ians
So realmente muitas verses em torno de um nico mito, mas comum, ainda,
que se escute, alm dessas histrias, a de que ela era a nica mulher em quem
Xang confiava. Oi teria ficado at o momento de passagem do rei para o
mundo encantado (virado orix), ao lado dele, batalhando pelo crescimento
do marido e pela proteo do povo do qual ele era rei.
Certa vez, Xang pediu que Oi fosse buscar, junto com If, deus da adi-
vinhao, um saco com os segredos de como desencadear os relmpagos e
troves. Muito curiosa, independente e sem querer que o poder fosse todo
para Xang, roubou para si o domnio dos relmpagos, enquanto o rei ficou
com a magia dos troves.
Uma variao dessa histria diz que Ians, primeira mulher de Xang (no a ter-
ceira, como j foi dito), era a nica por quem ele tinha se apaixonado e a quem
ele confiou uma misso. Pediu que Oi fosse buscar, sem que ningum soubesse,
uma poo mgica que ele tinha encomendado. O rei no disse para que serviria
a mistura, mas a esposa se preparou para provar do segredo. Quando, ento,
Ians abriu o recipiente, encontrou bolinhas de algodo embebidas em azeite dedend. Sem pestanejar, engoliu uma e se tornou a senhora que conhecia o segre-
do do acar, o bolo de fogo, representao do poder sobre os raios e troves.
Enquanto isso, o marido ficara, somente, com o poder do prprio fogo, que,
para ser alimentado, precisaria dos ventos de Ians.
Gisle Cossard, no livro Aw: o mistrio dos orixs, descreve a fora da aiab
(orix feminino):
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Tambm conhecida como Ians, Oy se manifesta no vento, nas
tempestades e nos tornados: ativa o fogo, acende o relmpago, des-
tri casas e arranca as rvores, arrasando tudo com sua passagem
(2006, p. 54).
Por isso, quando as trovoadas e os raios anunciam chuva, diz-se Que os bons
ventos soprem, mas na lngua de Oi: Eparrei! Essa saudao grafada de v-
rias formas: Eparrei, Eparr, Epa Hey. A expresso bem parecida com
o som que os filhos-de-santo, quando incorporados por Ians, emanam na
hora que os atabaques das cerimnias religiosas sadam a entidade: rei, com
nfase nos fonemas da letra re da letra e.
A designao Oi tambm tem sua justificativa:
Oi o nome usado na Nigria para Ians, a deusa a quem dedi-
cado o Rio Nger, que conhecido como Odo Oi, o rio de Oi. O-ya
significa ela rasgou em iorub, que nos d uma idia de vento desas-
troso em sua passagem (THEODORO, 2010, p. 103).
J o nome Ians associado ao nmero nove. Por isso, inclusive, um dos enre-
dos de sua lenda conta que, na briga com Ogum, ele a dividiu em nove pedaos,
mesma quantidade de filhos que teria tido com o fer reiro.
Oycomanda os Eguns, o povo do alm, mantendo-os fora do mundo
para que no venham perturbar os humanos. Ela os obriga a ficar nas
nove partes do cu que lhes so reservadas, os nove oruns, da o segundo
nome de Oy: Oy mesan orum, Oy dos nove cus, que se tornou Ians
(COSSARD, 2006, p. 54-55).
Verger (2002) apresenta mais um enredo para a verso do nome Ians, fazendo
conexo entre a indumentria utilizada nos rituais de Bab-Egun:
Oi Lamentava-se de no ter filhos. Esta triste situao era conseqncia
da ignorncia a respeito das proibies alimentares. Embora a carne da
cabra lhe fosse recomendada, ela comida a de carneiro. Oi consultou um
babala, que lhe revelou o seu erro, aconselhando-a a fazer oferendas,
entre as quais deveria haver um tecido vermelho. Este pano, mais tar-
de, haveria de servir para confeccionar as vestimentas de Egngn. Tendo
cumprido essa obrigao, Oi tornou-se me de nove crianas, o que se
exprime em iorub pela frase: y Omo msn, origem no do nome Ian-
s (2002, p. 168-169).
Cossard (2006) apresenta sete variaes tambm chamadas de qualidades
para a deusa Ians: Ic Oy(carrega a morte), Oy Onir(ligada a Oxum),Jegb
(a mais velha),Jimud(ligada a Oxal), Car( o fogo), Pad(d luz aos eguns) e
Bal(que comanda os eguns).
Ainda na poca em que se fazia necessrio cultuar os santos catlicos na inten-
o dos deuses africanos, Santa Brbara (trazida ao Brasil pelos colonizadoresportugueses) era associada tanto a Oi, quanto a Xang. Dizia-se que os devotos
nags de Brbara, quando eram homens, cultuavam, na verdade, o Rei de Oi,
enquanto as mulheres seriam filhas de Ians.
Com o tempo, Xang deixou de ser associado santa, primeiramente porque
Brbara de gnero feminino, depois porque a mrtir catlica, que teria sido
degolada pelo pai e ele, por sua vez, morrido, logo aps, com descargas de raios,
traz uma lenda com caractersticas mais ligadas aiab Ians.
nesse contexto histrico e mtico que Oi vivida na Bahia. Pelas figuras de
fora e com poderes sobre os raios, Ians e Santa Brbara so comparadas, as-
sociadas e suas histrias foram sofrendo releituras ao longo dos tempos, a partir
das lendas que envolvem as duas. Essa relao, inclusive, deu vez a ditados
populares contidos no processo de bifurcao religiosa entre os cultos de matriz
africana e o catolicismo: No que Ians seja Santa Brbara, que Santa Br-
bara de Ians.
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ICONOGRAFIA* Snia Ivo
Santa Brbara
Figura catlica conhecida como mrtir que tem poder sobre os raios, SantaBrbara, nas representaes iconogrficas, usa tnica e manto. Sua imagemtraz cabelos longos caindo em mechas onduladas, enquanto sua cabea desco-
berta cingida por uma coroa de flores, que utilizada para sinalizar a virginda-
de, ou por um diadema, remetendo s coroas de princesas medievais.
Entre os atributos que identificam Santa Brbara est um clice com uma hs-
tia, fazendo referncia ao sangue e ao corpo de Jesus Cristo, por quem ela foi
martirizada. H, ainda, a representao da torre onde, segundo sua lenda, ela foi
aprisionada e na qual teria aberto uma terceira janela, em honra da Santssima
Trindade: Pai, Filho e Esprito Santo.
Em uma das mos da santa, encontramos uma folha de palma, smbolo do mar-
trio, enquanto em outra, a espada, aludindo decapitao que sofreu depois da
briga com o pai. Algumas vezes, a imagem est ao lado de um canho, por ser
padroeira dos artilheiros.
A cor vermelha marcada nas vestimentas da santa lembrando o sangue que foi derra-
mado na sua morte. O branco, tambm presente, refere-se pureza, sua virgindade.
Ians
Com a influncia das produes de imagens dos santos catlicos em madeira ou
gesso, passou-se a confeccionar, tambm, iconografias dos orixs. Ians repre-
* Museloga
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sentada por uma mulher negra, de roupas rosa, vermelha, branca e vermelha ou
somente branca, assim como o so as indumentrias dasfilhas-de-santo na hora
dos rituais sagrados.
Numa das mos, Oi leva uma espada, simbolizando suas lutas, na outra, um eruexin,
formado por uma crina de cavalo presa a um cabo de metal, utilizado para espantar
egungns. Ians traz na cabea uma coroa real, chamada ad, com umfil, um tipo de
cortina cobrindo o rosto, como todas as deusas africanas aqui cultuadas.
Nos rituais dos terreiros, as filhas de Oi utilizam no pescoo uma corrente de
ib, feita normalmente de cobre, de onde pendem miniaturas de atributos das
aiabs. Usam, tambm, um dilogum(ou edilogum), que so colares feitos com
12, 14 ou 16 fios-de-contas (ou pernas), ordenados em conjuntos simbli-
cos, arrematados por uma firma (uma conta maior, ovalada ou cilndrica).
No peito, trazem um oj, uma tira de tecido fazendo um enorme lao no
busto.
Vemos, ainda na iconografia de Ians, um abeb, semelhante a um leque fixo em
um cabo, abano geralmente em cobre, com desenhos incisos fazendo aluso a
Santa Brbara, como clice, alfanje, raio. Complementando a indumentria, as
filhas-de-santo utilizam braceletes compridos, em forma de copo, alm de cor-
rentes e chifres de boi encastoados em cobre.
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O CULTO A SANTA BRBARANA BAHIA
* Nvea Alves dos Santos
Ociclo de festas populares em Salvador se inicia no dia 04 de dezembrocom as homenagens a Santa Brbara. Nesta data, a cidade se veste de ver-melho e branco para homenage-la. Durante todo o dia, essas cores se misturam,
dando mais vida aos espaos do Centro Histrico de Salvador e do Bairro da
Liberdade, locais onde so realizadas manifestaes em louvor santa.
O culto a Santa Brbara, aqui, data a partir do sculo XVII, quando o casal Fran-
cisco Pereira do Lago e Andressa de Arajo fundou, na regio do comrcio da
primeira capital do Brasil, um morgado com capela para sua santa de devoo,
Brbara. Eram denominados de morgados os acmulos de bens, como pro-
priedades e jias, que garantiriam certo conforto material, sobretudo, ao filho
primognito de quem os institua. O de Santa Brbara, formado em 1641, tinha
a finalidade, portanto, de assegurar bens terrenos e garantias econmicas aos
descendentes do casal Pereira do Lago.
Francisco e Andressa tiveram apenas duas filhas: Madalena e Francisca Pereira
do Lago, em favor de quem foi reunido o patrimnio, composto de prdios e
capela. Dois anos antes de institudo o Morgado de Santa Brbara, em 1639,
Francisco havia sido nomeado, pelo ento governador Conde da Torre, capito
de infantaria e, em 1649, assumiu o posto de general. A primeira referncia a
Francisco Pereira do Lago de 1624, quando lutou como capito contra a inva-so dos holandeses na Cidade de Salvador.
Com o tempo, o morgado foi sendo destitudo e transformado em mercado,
situado ao p da Ladeira da Montanha, onde atualmente est o prdio da Rede
Ferroviria Federal, na Praa da Inglaterra. Segundo a historiadora Hildegardes
Vianna, no Calendrio de Festas Populares da Cidade do Salvador(1983), todos os
anos, no mercado que integrava o Morgado de Brbara, bem como no Mercado
* Antroploga
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de So Joo, que lhe ficava fronteirio, os encarregados dos festejos se movimen-
tavam para uma cotizao geral. Os negociantes do comrcio da Cidade Baixa
de Salvador davam contribuies, sem exceo. O nicho era reformado e se fazia
uma rigorosa limpeza no Mercado de Santa Brbara, onde cordes de bandeiri-
nhas coloridas, palmas de coqueiro e folhas de pitanga ornamentavam o espao.
Toda essa arrumao era para a festa de 04 de dezembro.
Quando o grande dia chegava, havia missa na Igreja do Corpo Santo ou na
Matriz da Conceio da Praia, ambas na Cidade Baixa. Pierre Verger, no livro
Bahia 1850, que aponta as celebraes a Santa Brbara como as que inau-
guravam o ciclo de festas populares na Bahia, registra, ainda, o perfil do festejo,
desde aquela poca:
A festa de Santa Brbara que cai no meio da novena de Nossa Senho-
ra da Conceio celebrada, sobretudo, pelos africanos e pelas pessoas
que trabalham no mercado de Santa Brbara na cidade baixa [...] a festa
catlica consiste em uma missa e uma procisso em torno do mercado
dos Arcos de Santa Brbara. Os devotos dessa santa organizam regozijos
no interior do mercado, onde sambam e bebem cachaa em abundncia
(1999, p.73).
Aps um incndio que destruiu o que restava do morgado, a imagem de Santa
Brbara, que ficava em uma capelinha prpria, foi transferida para a Igreja do
Corpo Santo, onde a devoo continuou sendo mantida pelos negociantes de
toda a rea. Brbara havia ganhado fiis, sobretudo entre os populares.
Por motivo de degradao e vrios incndios, o centro comercial que recebia onome da santa foi desativado do primeiro local e transferido para outro, j na
parte alta da cidade. No livro Bahia Pr Comeo de Conversa(1982), Ansio Felix
indica que isso deva ter ocorrido por volta de 1889.
De acordo com comerciantes do atual Mercado de Santa Brbara, locali-
zado na Avenida J. J. Seabra (Baixa dos Sapateiros), uma imagem foi tra-
zida de Portugal diretamente para os barraqueiros do antigo morgado, h
pouco mais de 130 anos. Seria, portanto, a mesma abrigada na igrejinha
do Corpo Santo.
A imagem, que em princpio esteve na Igreja do Corpo Santo, foi, ainda, para
a Igreja do Pao, na regio do Carmo, e, finalmente, para o antigo mercado da
Rua da Vala. Esse ltimo, alis, inaugurado em 28 de fevereiro de 1874, o que
foi batizado com o mesmo nome do antigo que ficava no morgado, Mercado de
Santa Brbara.
Segundo Waldir Freitas Oliveira, em Santos e Festas de Santos na Bahia
(2005), no h certeza, ainda, sobre a data em que transferiram a santa para
o mercado na Baixa dos Sapateiros e h indcios que a imagem tenha per-
manecido durante certo tempo no Pao. Nesse perodo, inclusive, a festa foi
mantida e a santa, em procisso, levada ao mercado, no dia 04 de dezembro,
aps a missa.
O novo mercado da Baixa dos Sapateiros, arrendado pela famlia Pompi-
lho, tinha como padroeira Nossa Senhora da Guia, mas deu lugar a Santa
Brbara. Em 1946, a mrtir catlica recebeu um altar especial dentro da-
quele estabelecimento. Porm, devido precariedade das instalaes e
necessidade de reformas no centro comercial, que estava interrompendo
suas atividades, a imagem foi transferida, em 1987, para a Capela de Nossa
Senhora do Rosrio dos Pretos, localizada na rua frente, no Largo do
Pelourinho. O mercado re abriu em dezembro 1997, mas a antiga santa con-
tinuou abrigada na igreja.
Em depoimento no livro Orixs, santos e festas: encontros e desencontros do sincretismo
afro-catlico na cidade de Salvador, de Vilson Caetano de Souza Junior, o senhor
Albrico Paiva (j falecido), que era Mestre de Novios da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosrio dos Pretos, afi
rma:
Duas africanas vendedoras de fato na gamela, mandavam todos os anos
celebrar missa na Igreja de Nossa Senhora do Rosrio para a Santa no dia
dedicado a ela pelo calendrio catlico. A santa era trazida do mercado,
ouvia dizer a missa e voltava em procisso. Esta seria a origem da festa.
Isso tornou-se uma tradio! Com o passar do tempo, devido ao estado
que se encontrava o mercado na dcada de 80, a Santa foi trazida para a
Igreja do Rosrio e a partir da a procisso sai daqui at os dias de hoje
(2003, p.128).
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A festa no sculo XX: procisso e caruru
Desde o perodo ao qual o senhor Albrico se refere, a Igreja do Rosrio dos Pretos
abre suas portas para a celebrao a Santa Brbara com missa solene. Como de cos-
tume, logo depois, a procisso percorria o Centro Histrico de Salvador. At incio
da dcada de 1970, a procisso originava-se no mercado, depois da missa, que ali
tambm j foi realizada, e os fiis seguiam percorrendo a Baixa dos Sapateiros, fazen-
do parada no 1 Batalho do Corpo de Bombeiros e aps, subindo a Ladeira da Pra-
a, passando pela Rua da Misericrdia, Praa da S, pelo Terreiro de Jesus, descendo,
ento, para a Praa Jos de Alencar, mais conhecida como Largo do Pelourinho.
Em meados dessa mesma dcada, o trajeto fazia o caminho em sentido contr-
rio, partindo do Largo do Pelourinho, subindo pela Rua Alfredo de Brito, pas-
sando pelo Terreiro de Jesus, Praa da S e Rua da Misericrdia, descendo, ento,
a Ladeira da Praa, fazendo a parada no Corpo de Bombeiros e seguindo depois
pela Baixa dos Sapateiros at chegar ao Mercado de Santa Brbara. Nos anos de
1990, durante a execuo do Programa de Recuperao do Centro Histrico de
Salvador, em vez de cruzar a Rua Alfredo de Brito at o Terreiro, o trajeto seguia
por uma rua vizinha, Joo de Deus. A partir dos primeiros anos do sculo XXI,
a procisso, que continua partindo do Largo do Pelourinho, sobe pela mesma
Rua Joo de Deus ou pela Rua Gregrio de Mattos.
Essa procisso seguida pelos andores com imagens de Nosso Senhor do Bon-
fim, Nossa Senhora da Guia, So Lzaro, So Benedito, Santo Antnio de Ca-
teger, So Miguel, So Jorge, So Sebastio, So Jernimo e os santos Cosme
e Damio. Logo aps o recolhimento da imagem, o caruru servido e a festa
tomada pelo que se chama de a parte profana.
O autor Geraldo da Costa Leal, no livro Salvador dos Contos, Cantos e Encantos,
retrata a folia nos anos passados:
Salvo no Mercado de Santa Brbara, em que a festa era no seu inte-
rior, sistematicamente, aquelas eram realizadas ao ar livre, nas chama-
das festas de largo e qualquer pessoa podia participar. Formada a roda,
era ouvido o som de um cavaquinho, estrepitoso bater de palmas no
ritmo da msica, acompanhado de um pequeno atabaque, colocado
embaixo do brao de algum participante, batido com as duas mos,
um chocalho, um pandeiro e muitas vezes os instrumentos paravam
para se ouvir uma faca ser arranhada na borda de um pano de cozi-
nha, completando a sonoridade inusitada e distinta. As palmas no
paravam, e no contorno da roda uma crioula ou mulata sambava rodo-
piando. Nem todos os componentes das rodas eram jovens, havia at
velhos e senhores participantes com grande habilidade danante, que
passavam a outro componente o direito de se apresentar no centro da
roda. Com uma umbigada, transferiam a outro bailarino a responsabi-
lidade de uma grande exibio de movimentos dos ps, o molejo das
cadeiras, dos ombros e dos braos, enfim, todo o corpo em requebros,
recebendo caricias das prprias mos que ficavam inquietamente er-
ticas. Acompanhados de passos curtos ou longos, de ps descalos ou
com sandlias, aqueles miudinhos ps quase juntos, chamados corta
jaca, alternados com os largos, num baile de fazer inveja a mais erudita
danarina (2000, p.95).
Os comerciantes do Mercado de Santa Brbara conservam a tradio de ser-
vir o caruru em um banquete para, aproximadamente, 12 mil pessoas. Con-
tudo, os organizadores da festa no Mercado encontram dificuldades para a
manuteno do costume, devido falta de recursos. Ainda assim, durante o
dia da festa, o Mercado muito movimentado, tanto por fiis que vo visitar
o altar para fazer pedidos e agradecer, como pelos j freqentadores que
vo em busca da diverso.
Os louvores mrtir catlica s comearam na Baixa dos Sapateiros com esse
formato que conhecemos hoje no sculo seguinte s transferncias dos merca-dores para o local. Em 1912, por iniciativa de trs mulheres que comercializavam
ali, Bibiana, Luzia e Pinda, todas devotas de Brbara, uma festa para marcar a
passagem do 04 de dezembro foi organizada, independente da Igreja. Pinda, no
primeiro ano dessas homenagens, cedeu uma parte do seu aougue para que ali
fosse colocada a imagem.
Cinco anos antes, ratificando a convergncia religiosa caracterstica desse festejo,
uma filha-de-santo se destacou, como aponta Joclio Teles dos Santos no semi-
nrio Eparrei, Brbara: f e festas de largo do So Salvador.
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O dia quatro de dezembro de 1907 foi uma referncia para a secular festa
de Santa Brbara. Uma negra chamada Balbina, fateira muito conhecida na
cidade do Salvador,filha de Ians, convidou pais e mes-de-santo afamados
para reverenciar a santa e a orix no mercado de Santa Brbara. Este ano foi
considerado o ponto alto da festa de Santa Brbara. Alm de prestigiadas
lideranas afro-religiosas, estavam presentes reconhecidos mestres de capo-
eira como Pedro Porreta e Boclor, e algumasfiguras bastante populares do
cotidiano baiano, como Maria Comprida (2005, p.33).
Alis, a festa reunia mesmo figuras marcantes entre os populares da poca.
Alm de Pedro Porreta e Boclor, outros capoeiristas lendrios, como Pe-
dro Piroca e Chico Trs Pedaos. Juntos, jogavam capoeira num espetculo parte. Conta-se que nem mesmo a presena policial os intimidava, nesse
tempo em que capoeira no era vista como esporte nem mesmo expresso
cultural, como hoje.
Outra que por muitos anos se destacou nos festejos populares na Bahia, prin-
cipalmente na Festa de Santa Brbara, foi Maria Comprida, qual Joclio Teles
se referiu; mulher do povo, conhecida por beber cachaa. Onde havia arruaa,
ela estava presente. Carlos Torres, no livro Vultos, Fatos e Coisas da Bahia, igual-
mente a menciona:
Maria Compridinha parda, bastante alta e magra, morava na Rua de
Baixo (hoje Carlos Gomes), muito conhecida dos rapazes afidalgados da
poca, tocava regularmente piano. Diziam caluniosamente, ter sido pre-
ferida de importante autoridade da poca. Havia sido proprietria, pos-
suindo boas jias e dinheiro. Quando saa era somente a carro. Morreu naindigncia (1950, p. 131).
Ainda assim, com o marcante comparecimento dessas figuras, a presena do
povo-de-santo e de populares de uma maneira geral ficava parte, algumas ve-
zes. Jornais locais da poca registravam a passagem do 04 de dezembro, mas
somente na igreja Catlica:
Notas Eclesisticas Em louvor da Gloriosa Santa Brbara celebra-se hoje na Igreja do
Corpo Santo, missa festiva. (Dirio da Bahia, 04 de dezembro de 1904, p. 01)
Notas Eclesisticas Na Egreja do Corpo Santo, ser celebrada, domingo prximo,
s 7 horas da manh, missa festiva em louvor Santa Brbara. Este acto mandado
realizar pela devoo de Santa Brbara, no bairro commercial. (Dirio da Bahia, 03
de dezembro de 1910, p. 02)
Santa Brbara A Egreja Catholica dedica o dia de hoje Gloriosa Santa Brbara.
Na Egreja do Corpo Santo, houve missa s 8 horas da manhan, em louvor quela
Santa. (Dirio de Notcia, 04 de dezembro de 1912, p.02)
Algumas dcadas depois, os festejos a Brbara j eram apontados pela imprensa
considerando a adorao em carter popular:
Dia de Santa Brbara.
O dia de hoje, marca a folhinha, consagrado Santa Brbara, cuja devoo, entre ns,
reponta desde os tempos da colonizao. De acrdo com a tradio, fruto da influncia
da religio catlica de seitas afro-brasileira, Santa Brbara foi identificada como Ians-
san, a deusa da trovoada, que comanda as foras dos elementos, faz chover e protege os
seus devotos. [...] Alm dos festejos tpicos em vrios postos da cidade, a festa religiosa
propriamente dita se verifica no Mercado da Baixa dos Sapateiros, que tem o seu nome
e onde a sua imagem venerada. Esta manh houve missa festiva e durante todo dia
se realizaro naquele lugar, festividades de carter popular. (Jornal A Tarde, 04 de
dezembro de 1950, p.02)
J nos anos 2000, o retrato da festa na imprensa pode ser visto assim:
Vermelho e Branco nas ruas.
Entre as festas populares de Salvador, a de Santa Brbara uma das poucas de carterquase estritamente religioso. Ontem foi dia de reverncia santa e osfiis lotaram o
largo do Pelourinho para a missa campal vestidos de vermelho e branco. A Igreja de
Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos, que guarda a imagem de santa Brbara, no
comportaria a multido. (...) Quando o padre deu a bno no final da missa, comea-
ram as saudaes a Santa Brbara e a orix Ians, com aplausos e queima de fogos.
(Jornal A Tarde, 05 de dezembro de 2006, p. 07).
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Brbara, Ians e o processoreligioso na histria
Desde o perodo colonial, vrias organizaes
religiosas foram criadas pelos gestores das clas-
ses dominantes da sociedade. Instituram con-
frarias, irmandades e ordens terceiras que, ape-
sar de no terem essa finalidade, com o tempo,
fortaleceram a vida em comunidade dos afri-
canos no Brasil, especificamente na Bahia. Ti-
nham o objetivo de congregar indivduos em
torno de uma devoo a um santo, a manuten-o do culto e a realizao de suas festas, alm
de, posteriormente, comprar alforrias e auxiliar
os desvalidos.
Dentro dessas organizaes, foram absorvidos
pelos povos oriundos da frica que, at ento,
no eram catlicos, alguns elementos simbli-
cos da religio crist. A partir de relaes como
essa, criaram-se dilogos religiosos caracteriza-
dos, fundamentalmente, pela intermistura de
elementos culturais, abrangendo processos de
interao com o objetivo de prevenir, reduzir
ou anular conflitos. Essa relao foi batizada de
sincretismo religioso e apontada como ca-
racterstica dos festejos populares na Bahia.
Para as religies de matriz africana, esse sincre-
tismo foi a forma de relacionar seus deuses aos
santos, que, de certa forma, os africanos eram
obrigados a cultuar por imposio da Igreja Ca-
tlica. Isso, porm no significava uma fuso.
Tratava-se de uma estratgia de transculturao
sabiamente utilizada para a preservao e ma-
nuteno da religiosidade africana.
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Em O Liberato: o seu mundo e os outros, Maria Ins Cortes Oliveira escreveu:
[...] assimilao do catolicismo pelos libertos teria operado da mesma
forma que na religio popular geral, isto , alm da aceitao dos traos
externos do culto, a doutrina teria sido criada a partir daqueles elementos
que falavam mais perto s necessidades da comunidade liberta, em geral
a africana. Da mesma forma, o sincretismo operando convenincias en-
tre religies africanas e o catolicismo po pular, levando-nos a considerar a
importncia da resistncia entre religies afro-brasileiras e o catolicismo
(1998, p.79)
Diante desse processo histrico, Raul Lody, no livro O Povo do Santo, ressalta arelao entre Ians e Santa Brbara:
Santa Brbara Ians, unidas pela nica leitura, tambm se apresentam
como verdadeiras heronas das lendas dos orixs, arqutipos da valentia
projetada em todas as situaes em que a cultura popular localiza com
especialidade o ritual dos terreiros (1995, p. 86-87).
nesse contexto que acontecem as comemoraes a Santa Brbara, deixando a
esttica da festa dinmica. Existe todo um ritual envolvendo elementos catlicos
e da religiosidade afro-brasileira. O modo de vestir, de rezar, de cantar, de sau-
dar. Segundo o etnlogo Waldeloir Rego, em artigo publicado no jornal Tribuna
da Bahia (02 de dezembro de 1971), nas homenagens a Santa Brbara havia um
clima mstico de uma etnia africana. Era realizado um grande candombl no
mercado pelo pai-de-santo na nao Angola chamado Rafael Boca Torta, en-
quanto havia missa na Igreja do Rosrio dos Pretos realizada por um ofi
ciantee assistente negros. Por isso, quando a procisso entrava no mercado, era Santa
Brbara quem estava no andor, mas I ans no ritual afro-brasileiro.
Raul Lody, no catlogo da exposio Eparrei, Brbara: f e festas de largo do So
Salvador(2005), considerou:
Dona do mercado, do tabuleiro, do oficio da baiana de acara-
j Ians. O mercado um lugar da histria da mulher africana a afrodes-
cendente, em especial da mulher nag/iorub. Est no mercado a sntese
da sociedade e de tudo que a natureza e a cultura podem oferecer de pro-
dutos, de objetos artesanais, comidas, folhas e principalmente encontros,
pois o espao de estab elecer contatos, de viver as trocas, de reencontros,
de organizar e marcar diferentes papis socias, um lugar, portanto, de ex-
perimentar tradies, de comunicar, de socializar, de aproximar a pessoa
de sua histria, de apontar e manter identidades. Seguindo esses princpios,
o mercado de Santa Brbara na Baixa dos Sapateiros, Salvador, traz essas
memrias remotas africanas e atualiza outras, que fazem sua dinmica e
seu prprio ser social e econmico. H no Mercado de Santa Brbara forte
devoo religiosa a sua padroeira, que merece culto dirio, aberto a mani-
festaes, pedidos de agradecimentos santa, que no imaginrio popular
tambm orix.
Nesse perfil, em que cultos a santo catlico e a orix dialogam, que outras refern-
cias tambm ganham fora. Santa Brbara padroeira do Corpo de Bombeiros e,
por isso, reverenciada na sua passagem pelo quartel ao som de buzinas, saudaes e
onde oferecido caruru aos que ali se encontram para homenagear a guerreira. Esse
caruru feito por integrantes da corporao e devotos de Brbara ou mesmo por
filhos de Ians, atravs de parcerias, tambm, com comerciantes locais, que fazem
doaes. Uma missa realizada pelo capelo militar e aberta comunidade.
Mas nem sempre foi assim. Alm de alguns membros da Igreja Catlica afirma-
rem a distncia entre as figuras guerreiras, enquanto muitos faziam referncia
s duas, outros agiam para evitar essa manifestao de duplo devotamento. Em
1975, o Jornal Tribuna da Bahia publicou:
Bombeiros impedem Ians de ser carregada pelo povoSanta Brbara sim, o povo no com essa determinao o comandante do Corpo de
Bombeiros, proibiu a entrada tradicional dos devotos de Santa Brbara (Ians, rainha
dos raios) nas dependncias do quartel do Corpo de Bombeiros. Cerca de duas mil
pessoas se aglomeraram frente ao quartel. Houve empurres, palmas, muita confuso,
choros, manifestaes, mas ningum entrou (04 de dezembro, p. 09).
Ainda outro fato marcante tangendo o Corpo de Bombeiros no dia de Santa
Brbara havia sido registrado pelo mesmo veculo, a Tribuna da Bahia, quatro
anos antes, em 1971. O que tinha virado costume foi interrompido:
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Quebrando uma tradio de cerca de 20 anos a Banda do Corpo de Bombeiros no
acompanhou hoje a Procisso de Santa Brbara, sendo substituda pela Banda da Polcia
Militar. Segundo o Comandante Evaristo Leal, do Corpo de Bombeiros, a Banda foi
requisitada pelo prefeito Clriston Andrade para ir tocar em Cruz das Almas(04 de
dezembro, p.05).
Esses fatos no diminuram o brilhantismo da festa. A cada ano, aqueles que
participam das homenagens a Santa Brbara trazem para o palco das ruas do
Centro Histrico a f, a alegria e o orgulho manifestado no choro, no sorriso,
nos cnticos, nos agradecimentos pelas graas alcanadas. Os fiis carregam o
andor do santo de devoo em busca de conforto, sem esquecer de saudar a
mrtir catlica e uma das divindades mais populares do culto afro-brasileiro,dizendo: Viva Santa Brbara e Eparrei, Ians.
Dia quatro na Liberdade
As homenagens santa se estendem para alm do Centro Histrico de Salvador.
no Bairro da Liberdade, local onde se concentra um significativo nmero de
afro-descendentes em Salvador, que Santa Brbara tambm homenageada. L
est situada a Parquia de Santa Brbara, fundada em 08 de dezembro de 1973.
Monsenhor Waldir Guimares do Esprito Santo a instalou ali com o objetivo de
criar um movimento religioso de razes na devoo popular. Ento, foi escolhida
Santa Brbara como padroeira. Cerca de 40 anos antes, em 1930, durante o Con-
gresso Catlico Livre, em So Paulo, motivado pela opo da Ordem de Santo
Andr em se emancipar, foi criada uma vertente do catolicismo: Igreja Catlica
Apostlica Independente, batizada de Igreja Brasileira.
Esse movimento da Independente considera os santos da chamada Igreja Primi-
tiva at o terceiro ou quarto sculo, poca em que no existia canonizao como
a Igreja Catlica faz hoje. Os santos eram apontados pelo povo. Ento, Brbara,
de quem se conhece a histria como algum que viveu no sculo III, era bastante
popular por aqui e, por isso, a parquia em sua devoo.
Monsenhor Waldir realizou, pela primeira vez, no ano de 1974, a festa para Santa
Brbara na Parquia da Liberdade. Os festejos comeam, at hoje, com o trduo pre-
paratrio a partir de 1 de dezembro. J no dia 04, h missa pela manh, seguida de
uma procisso que percorre as ruas do Bairro da Liberdade, indo at o Bairro Gua-
rani, retornando para a celebrao de uma missa campal na Praa Nelson Mandela.
Dom Roberto Garrido Padim, bispo da Igreja C. A. Independente, em en-
trevista para pesquisa sobre as celebraes a Santa Brbara, ressaltou a forte
presena das duas religies nos festejos: a de matriz africana e o catolicismo.
Ele conta que durante uma missa campal percebeu, entre os devotos, um ba-
balorix, vestido tradicionalmente que, em alguns momentos, retirava o gorro
da cabea, jogava para cima e gritava Eparrei. Ao final da missa, o bispo fez
uma referncia a este fato dizendo: Tem gente que vem aqui e a gente sabe,
por causa de Santa Brbara. Ento, para aqueles que vem por causa de Santa
Brbara: Viva Santa Brbara. Mas, queles que vem por causa de Ians, porque no dizer: Eparrei, Oi?!
O dilogo religioso ou sincretismo, como mais conhecido, que envolve os fes-
tejos populares em Salvador, representa elemento essencial para todas as formas
de relao que tangem devoo popular, suas maneiras de reverenciar os san-
tos catlicos e, tambm, os orixs, inquices e voduns. Assim, percebemos que
a religiosidade afro-baiana resultou na capacidade de relacionar e diferenciar os
elementos simblicos atribudos s suas divindades. Isso , tambm, o resistir,
manifestar a sua f sem se desvencilhar das suas matrizes religiosas.
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A FESTA DE SANTA BRBARANO PELOURINHO
* Carla Bahia
No desanime, moo. Hoje dia de Ians, mulher de Xang, orix dos
raios e tempestades. Mais logo, nos terreiros, ela est descendo no corpo
dos seus cavalos.
Dias Gomes em O Pagador de Promessas
s vsperas do dia 04 de dezembro, quando se comemora a Festa de SantaBrbara, so feitas muitas oferendas a Oi, deusa iorubana dos ventos edas tempestades, com canes, comidas e flores, mas so os exus os primeiros a
celebrar. Apresentados como Pomba-Gira, Tiriri, entre outros, eles so os
orixs, segundo a mitologia, que oportunizam as coisas acontecerem.
Sempre que se comea um trabalho nos cultos afro-brasileiros, so para os exus
as primeiras oferendas, para que dem espao ao povo-de-santo continuar os ri-tuais sagrados. Nos terreiros de candombl, nas cerimnias religiosas, so canta-
das, geralmente, trs msicas dedicadas a cada santo iorubano. Mas Exu quem
sempre recebe as primeiras homenagens.
No mercado de Santa Brbara, na Avenida J. J. Seabra, mais conhecida como
Baixa dos Sapateiros, no Centro Histrico de Salvador, entre os dias 1 e 03 de
dezembro, uma cerimnia discreta para purificao do espao feita por um
* Jornalista
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sacerdote de religio afro-brasileira, um babalorix (ou pai-de-santo, como
popularmente chamado). Ningum de fora nem, s vezes, alguns de l
sabem quando isso acontece exatamente. uma limpeza feita, em geral, de
madrugada, quando o comrcio est fechado. E, nesse momento, o povo-
de-santo conta com a presena dos exus. Diz-se que eles seriam os traba-
lhadores dos orixs.
O antroplogo francs Pierre Verger explica, em Orixs Deuses Iorubs na fri-
ca e no Novo Mundo:
Exu que supervisiona as atividades do mercado do rei de cada cidade: o de
Oy chamado de s Akesan. Como orix, diz-se que ele veio ao mundo com
um porrete, chamado o og, que teria a propriedade de transport-lo, em algumas
horas, a centenas de quilmetros e de atrair, por um poder magntico, objetos si-
tuados a distncias igualmente grandes. o guardio dos templos, das casas, das
cidades, das pessoas. ele tambm que serve de intermedirio entre os homens e
os deuses. Por essa razo que nada se faz sem ele e sem que oferendas lhe sejam
feitas, antes de qualquer outro orix, para neutralizar suas tendncias a provocar
mal-entendidos entre os seres humanos e em suas relaes com os deuses e, at
mesmo, dos deuses entre si (2002, p. 76).
Em muitas encruzilhadas, sobretudo de madrugada, so colocados presen-
tes para os exus. Cachaa, fumo, flores, farofa de dend e o que mais for
necessrio, de acordo com o pedido ou com a crena de cada um. Depois
de trabalhos como esses, comeam as comemoraes a Ians ou, ainda, para
Santa Brbara que, para alguns, representam a mesma divindade. Assim,
apesar de o festejo ser realizado de acordo com o calendrio litrgico doVaticano, na data tida como da morte da santa, Oi tambm senhora do
dia 04 de dezembro, junto com Brbara.
O trduo de Brbara
Na Capela do Rosrio dos Pretos, na Praa Jos de Alencar (mais conhecida
como Largo do Pelourinho), os festejos a Santa Brbara comeam j no primeiro
dia dezembro, com o incio de um trduo mrtir catlica. Ao cair da tarde, aos
poucos, a nave da igreja comea a receber gente para a missa das 18 horas.
Durante os dias primeiro e trs, toda noite, uma cerimnia realizada em louvor,
alm de Brbara, a outros santos abrigados ali. nesse perodo, tambm, que as
devoes a Santo Antnio de Categer, Santa Brbara e So Benedito, acolhidas
na igreja, comemoram a entrada de novos membros.
Esse templo, alis, um importante patrimnio da cultura negra no Brasil, cons-
trudo pelos bantos de Angola e do Congo, sob autorizao do arcebispo D.
Sebastio Monteiro da Vide. A Capela da Venervel Ordem Terceira do Rosrio
de Nossa Senhora s Portas do Carmo foi o primeiro espao catlico destinado
especialmente ao povo africano. Abriga, desde aquela poca, a Irmandade dos
Homens Pretos e foi dedicada devoo de Nossa Senhora do Rosrio, ainda
festejada ali todo ms de outubro.
A instituio dessa igreja marcou um novo momento para aquele povo, pois
foi nessa mesma regio que um pelourinho era erguido, at o incio do s-
culo XVIII. Alm disso, no sculo anterior, holandeses, quando na invaso
que fizeram s ter ras brasileiras, castigaram mais de 50 escravos, sob alega-
o de espionagem em favor dos espanhis, como vemos no livreto Pequeno
Guia das Igrejas da Bahia, de Maria Jos Rabello de Freitas. Nele tambm
est registrado:
Nesse local de to penosas recordaes para os negros escravos da Bahia,
foi, por eles, erguida, ainda no sculo XVII, pequena ermida sob a invo-
cao de Nossa Senhora do Rosrio que, reconstruda, ainda se mantm
aberta ao culto, embora afogada pelas construes residenciais que no
puderam quebrar a magnitude da edificao (1966, p. 06).
Pois, nesse mesmo espao, conhecido hoje como Pelourinho, marcado
pela superao, que se festeja Brbara, a mrtir catlica. As devoes da
Igreja do Rosrio dos Pretos, os comerciantes do Centro Histrico de Sal-
vador, devotos da santa ou mesmo os filhos de Ians se organizam para ar-
rumar a igreja, conseguir flores para ornamentao e dinheiro para preparar
a festa ao gosto do povo. Na entrada da capela, inclusive, pode-se ver, s
vsperas do dia 04 de dezembro, um varal que ser ve de vitrine para venda
de camisetas brancas e vermelhas estampadas com imagem de Brbara.
Os lucros so revertidos para a festa.
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8/6/2019 Festa de Santa Brbara - cader