69
Passagens. Revista Internacional de Histria Poltica e Cultura Jurdica, Rio de Janeiro: vol. 2 no.5, setembro-dezembro 2010, p. 69 - 88.
ESTADO, SOCIEDADE E CONTROLE SOCIAL NO PENSAMENTO JURDICO-PENAL NO GOVERNO VARGAS 1930/1945
ESTADO, SOCIEDAD Y CONTROL SOCIAL EN EL PENSAMIENTO JURDICO-PENAL EN EL GOBIERNO VARGAS 1930/1945
STATE, SOCIETY AND SOCIAL CONTROL IN THE LEGAL-PENAL THOUGHT UNDER VARGAS GOVERNMENT 1930-1945
ETAT, SOCIETE ET CONTROLE SOCIAL DANS LA PENSEE JURIDICO-PENALE SOUS LE GOUVERNEMENT VARGAS 1930/1945
DOI: 10.5533/1984-2503-20102504
Rivail Carvalho Rolim
RESUMO
O perodo compreendido entre os anos 1930 e 1945 foi marcado por profundas mudanas
sociais, polticas e econmicas na sociedade brasileira. Em funo dessas
transformaes houve uma redefinio dos termos da vivncia, que foi desde a
participao mais ativa do Estado na vida social at a construo de um iderio que
valorizava o coletivo em detrimento do individual. O objetivo deste artigo analisar o
papel assumido pelo sistema jurdico-penal no controle da criminalidade, bem como os
mecanismos que foram utilizados pelo Estado para garantir a ordem social.
Palavras-chave: ideias jurdico-penais, controle social, regime republicano.
RESUMEN
El periodo comprendido entre los aos 1930 y 1945 fue marcado por profundos cambios
sociales, polticos y econmicos en la sociedad brasilea. A la luz de estos cambios hubo
una redefinicin de los trminos de la vivencia social, que fueron desde una participacin
ms activa del Estado en la vida social hasta la construccin de una ideologa que valora
lo colectivo sobre lo individual. El objetivo de este trabajo es analizar el papel que tiene el
sistema de justicia penal en el control de la delincuencia, as como los mecanismos que
fueron utilizados por el Estado para garantizar el orden social.
Palabras-clave: ideas jurdico-penales, control social, rgimen republicano.
70
ABSTRACT
Brazilian society has been highlighted by deep social, political and economical changes
during the 1930-1945 period. These transformations led to redefine the terms of the
real life experience that spanned between the more active participation of the State in
social life to the building of a set of ideas that valued community to the detriment of
individuals. The objective of this paper is to analyze the role played by the legal-penal
system in the control of criminality, as well as the mechanisms that were used by the
State to reinforce social order.
Keywords: legal-penal ideas, social control, republican regime.
RSUM
Au Brsil, la priode 1930-1945 a t marque par de profonds changements sociaux,
politiques et conomiques. Ces transformations ont provoqu une redfinition des
termes de ce vcu, qui allaient dune participation plus active de ltat la vie sociale
la construction dun lensemble dides valorisant le collectif au dtriment de lindividuel.
Lobjectif de cet article est danalyser le rle assum par le systme juridico-pnal dans
le contrle de la criminalit, ainsi que les mcanismes que ltat a utilis pour garantir
lordre social.
Mots-clefs : ides juridico-pnales, contrle social, rgime rpublicain.
Os debates sobre a mudana do ordenamento jurdico-penal brasileiro promulgado
no incio da dcada de 1940 so de singular importncia para analisarmos as ideias
acerca dos termos da vivncia social do Governo Vargas, regime poltico que ainda hoje
provoca muitas polmicas e suscita pontos de vista divergentes. Quando tratamos desse
perodo, impossvel tangenciar seu significado e a importncia que possui seu principal
lder poltico para a histria do Brasil no sculo XX.
No sem sentido que encontramos trabalhos de diferentes reas sobre o Governo
Vargas e inmeras teses interpretativas. Desde as teses clssicas sobre revoluo e
revoluo passiva1, passando por aquelas sobre populismo2 e totalitarismo3 para chegar
1 Fausto, Boris (1997). Revoluo de 1930: histria e historiografia, So Paulo: Cia das Letras; Vianna, Luiz
Werneck (2004). A revoluo passiva, Rio de Janeiro: Revan. 2 Weffort, Francisco (2003). O populismo na poltica brasileira, Rio de Janeiro: Paz e Terra.
3 Cancelli, Elizabeth (1993). O mundo da violncia, Braslia: Ed. Unb.; Lenharo, Alcir (1994). Sacralizao da
poltica, Campinas: Papirus.
71
at a do trabalhismo4, inmeros trabalhos foram produzidos. Isso demonstra o significado
e a relevncia do regime poltico que se iniciou em 1930 e foi at 1945, bem como a fora
do seu legado.
Quando nos deparamos com algumas palavras, proferidas por um membro do
poder judicirio logo aps a fundao do Estado Novo e a outorga de uma carta
constitucional pelo Presidente da Repblica, no sentido de que uma nova legislao civil e
criminal deveria ser elaborada para assegurar os interesses da defesa coletiva contra os
crimes comuns, a segurana interna e externa do pas contra os delitos polticos e
sociais5, consideramos que se atribuiu uma importncia significativa aos princpios e
postulados presentes no ordenamento jurdico-penal aprovado durante a vigncia do
Estado Novo.
A mudana da ordem jurdica era vista como necessria para adaptar a legislao
penal ao novo Estado Social do governo varguista6. Francisco Campos, que foi ministro
da Justia e, inclusive, escreveu a exposio de motivos do novo Cdigo Penal, defendia
que o pas possusse leis modernas sem modernismos, construdas num plano
doutrinrio homogneo, sem perder de vista a realidade, inspirada no supremo interesse
da Ptria, sem se confinar no jacobinismo7.
Diante dessas evidncias, entendemos que se faz necessrio um trabalho mais
aprofundado de reflexo sobre os debates durante o Governo Vargas que levaram
reformulao de todo o ordenamento jurdico-penal, visto que no encontramos trabalhos
mais sistematizados sobre essa temtica, principalmente no que diz respeito ao papel que
o sistema penal teria no controle social de comportamentos vistos como antijurdicos ou
antissociais8. Trabalhamos com a perspectiva terica de que o sistema penal cumpre esta
funo sobre as denominadas condutas desviadas, tendo em vista que o Estado tem o
controle do poder punitivo9. Neste caso estamos utilizando a noo de controle social
enquanto papel do Estado de organizar a sociedade, e no enquanto mecanismo
4 Gomes, Angela de Castro (2003). A inveno do trabalhismo, Rio de Janeiro: Ed. Campus.
5 Araujo, J. Correa de (1939). O projeto do cdigo criminal do Brasil. Revista Forense, Rio de Janeiro, Vol.
78, Abril de 1939. 6 Duarte, Jos (1941). O novo cdigo penal. Revista Forense, Rio de Janeiro, vol. 87, Agosto de 1941.
7 Campos, Francisco. A consolidao da ordem jurdica brasileira. Revista Forense, Rio de Janeiro, vol.
87, agosto de 1941. 8 O trabalho que encontramos sobre pensamento jurdico-penal no foca exclusivamente o Governo Vargas.
Serra, Carlos Henrique Aguiar (1997). Histria das ideias jurdico-penais no Brasil: 1937-1964. Tese (Doutorado em Histria) Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niteri. 9 Bergalli, Roberto (Coordinador y colaborador) (2003). Sistema penal y problemas sociales, Valencia: Tirant
lo Blanch, p. 33-35
72
integrador ou orientador dos segmentos sociais, sentido em que foi empregada pela
sociologia estadunidense do incio do sculo XX10.
Parece-nos que a intelectualidade no considerou os postulados presentes no
ordenamento jurdico-penal promulgado no incio da dcada de 1940 como importantes
para o entendimento desse perodo da histria do pas11. Encontramos pesquisas sobre o
pensamento jurdico, mas em relao legislao social. Talvez a fora do legado dos
direitos sociais na cidadania do pas tenha ofuscado as reflexes sobre os postulados
presentes no cdigo jurdico-penal. No sem sentido a fora desse legado, pois muitos
trabalhadores falam que a carteira profissional pode ser considerada uma certido de
nascimento cvico, tal a importncia atribuda Consolidao das Leis do Trabalhado,
promulgada em 1943.12
Quando Jos Duarte e Francisco Campos defendem que as mudanas devem se
adaptar s novas condies polticas do pas, aproveitamos para destacar os
pressupostos tericos de que as prticas jurdicas no podem ser analisadas sem se levar
em considerao a realidade histrica. Como diz Von Savigny, expoente da Escola
Histrica de Direito da Alemanha, a essncia do direito positivo o fato de no ser
esttico e oferecer uma sucesso contnua de progressos. Com isso, necessitamos
conceder-lhe a caracterstica da mutabilidade no tempo13. Antnio Manuel de Hespanha
acrescenta um aspecto importante: a prtica jurdica corresponde a uma efetiva
reclamao por parte da realidade social, econmica e poltica14.
Neste sentido, destacamos que, ante as mudanas produzidas com a chegada de
Vargas ao poder em 1930 como, por exemplo, um papel mais destacado do Estado na
regulao da vida econmica e social, na resoluo dos conflitos entre trabalhadores e
empresrios15 e na criao de leis de assistncia social , para o pensamento jurdico-
penal brasileiro era necessrio que o pas tambm atualizasse as normas de acordo com
os novos tempos, os novos princpios da vida social.
Na realidade, os principais agentes polticos qu