Download - Bobbio, N - Igualdade e Liberdade
Igualdade e Liberdade
Norberto Bobbio
0^ Tradução i5v Carlos Nelson Coutinho
Sumário
Prefácio 7
IGUALDADE
1. Igualdade e liberdade 112. Igualdade e justiça 143. As situações de justiça 164. Os critérios de justiça 185. A regra de justiça 206. A igualdade de todos 237. A igualdade diante da lei 258. A igualdade jurídica 299. A igualdade das oportunidades 30
10. A igualdade de fato 3211.0 igualitarismo 3512. O igualitarismo e seu fundamento 3813. Igualitarismo e liberalismo 4014. O ideal da igualdade 43
Bibliografia 46
LIBERDADE
1. Liberdade negativa 492. Liberdade positiva 513. Liberdade de agir e liberdade de querer 52
4. Determinismo e indeterminismo 545. Liberdade do indivíduo e liberdade
da coletividade 576. Liberdade em face de e liberdade de (ou para) 597. Liberdade dos antigos e liberdade
dos modernos 628. Liberalismo e democracia 659. Qual é a verdadeira liberdade? 67
10. Dois ideais de sociedade livre 7011. A história como história da liberdade 7212. A história da liberdade 7513. Linhas de tendência dessa história 7814. Da liberdade em face do Estado à liberdade
na sociedade 8115. Totalitarismo e tecnocracia 8316. As formas atuais da não-liberdade 8817. Os problemas atuais da liberdade 9218. Consideração final 95
Bibliografia 95
Prefácio
Os dois valores da liberdade e da igualdade remetem um ao outro no pensamento político e na história. Ambos se enraízam na consideração do homem como pessoa. Ambos pertencem à determinação do conceito de pessoa humana, como ser que se distingue ou pretende se distinguir de todos os outros seres vivos. Liberdade indica um estado; igualdade, uma relação. O homem como pessoa — ou para ser consiHerado como pessoa — deve ser, enquanto indivíduo em sua singula- ridade, livre; enquanto ser social, deve estar com os de- mais indivíduos numa relação de igualdade.
Liberte et égalíte. Ã Fratemité pertence a uma outra linguagem, mais religiosa que política. Igualdade é freqüentemente substituída por Justiça n õ binômio Justiça e Liberdade. Mas, nesse binômio, Justiça precede Liberdade. Somente porque soa melhor? A precedência de uma ou de outra palavra depende também do contexto histórico. As vítimas de um poder opressivo pedem, antes de mais nada, liberdade. Diante de um poder arbitrário, pedem justiça. Diante de um poder despótico, que seja ao mesmo tempo opressivo e arbitrário, a exigência de liberdade não pode se separar da exigência de justiça.
Afirmar a liberdade e a igualdade como valores significa que elas são, respectivamente, um estado do indi-
8 IGUALDADE E LIBERDADE
víduo e uma relação entre indivíduos desejáveis de modo geral. Os homens preferem ser livres a ser escravos. Preferem ser tratados de modo justo e não injusto.,, Tanto mais que, nas sociedades que existiram historicamente, nunca todos os indivíduos foram livres ou iguais entre si. A sociedade de livres e iguais é um estado hipotético, apenas imaginadp. Imaginado como se situando ora no início, ora no fim da história, conforme se tenha do curso histórico da humanidade uma visão regressiva ou progressiva. Trata-se de uma sociedade na qual todo homem é livre na medida em que obedece apenas a si mesmo e, pelo fato de que essa liberdade é desfrutada por todos, todos são iguais pelo menos enquanto são livres. Ao contrário, uma sociedade histórica pode ser constituída de homens livres mas não iguais nas respectivas esferas de liberdade, assim como de iguais enquanto não são livres, ou, mais sucintamente, pode ser constituída de desiguais na liberdade e de iguais na escravidão.
Liberdade e igualdade são os valores que servem de fundamento à democracia. Entre as muitas definições possíveis de democracia, uma delas — a que leva em conta não só as regras do jogo, mas também os princípios inspiradores — é a definição segundo a qual a democracia é não tanto uma sociedade de livres e iguais (porque, como disse, tal sociedade é apenas um ideal-limi- te), mas uma sociedade regulada de tal modo que os indivíduos que a compõem são mais livres e iguais do que em qualquer outra forma de convivência. A maior ou menor democraticidade de um regime se mede precisamente pela maior ou menor liberdade de que desfrutam os cidadãos e pela maior ou menor igualdade que existe entre eles. Característica da forma democrática de governo é o sufrágio universal, ou seja, a extensão a todos os cidadãos, ou, pelo menos, à esmagadora maioria (o universo jurídico é o universo do quase ou do na maioria das vezes), do direito de voto. O sufrágio
NORBERTO BOBBIO 9
universal é uma aplicação do princípio da igualdade, na medida em que torna iguais com relação aos direitos políticos — que são os direitos eminentes num Estado democrático — os homens e as mulheres, os ricos e os pobres, os cultos e os incultos. Ao mesmo tempo, é também uma aplicação do princípio de liberdade, entendida a liberdade, em sentido forte, como o direito de participar no poder político, ou seja, como autonomia. Os cidadãos de um Estado democrático se tornam, através do sufrágio universal, mais livres e mais iguais. Onde o direito de voto é restrito, os excluídos são ao mesmo tempo menos iguais e menos livres.
O fato de que liberdade e igualdade sejam metas desejáveis em geral e simultaneamente não significa que os indivíduos não desejem também metas diametralmente opostas. Os homens desejam mais ser livres do que escravos, mas também preferem mandar a obedecer. O homem ama a igualdade, mas ama também a hierarquia quando está situado em seus graus mais elevados. Contudo, existe uma diferença entre os valores da liberdade e da igualdade e aqueles do poder e da hierarquia.
Os primeiros, embora sejam mais irrealistas do que os segundos, não são contraditórios. Não é contraditório imaginar uma sociedade de livres e iguais, ainda que de fato — ou seja, na realização prática— jamais possa ocorrer que todos sejam igualmente livres e livremente iguais. Ao contrário, é contraditório imaginar uma sociedade na qual todos sejam poderosos ou hierarquicamente superiores. Uma sociedade que se inspira no ideal da autoridade é necessariamente dividida em poderosos e não-poderosos. Uma sociedade inspirada no princípio da hierarquia é necessariamente dividida em superiores e inferiores. Numa situação originária em que todos ignorem qual será sua posição na sociedade futura — e, portanto, não saibam se estarão entre os que mandam ou entre os que são obrigados a obedecer,
10 IGUALDADE E LIBERDADE
e se estarão no topo ou na base da escala social —, o único ideal que lhes pode atrair é o de desfrutarem da maior liberdade possível diante de quem exerce o poder e de terem a maior igualdade possível entre si. Podem desejar uma sociedade fundada na autoridade e na hierarquia somente na condição não previsível de que estejam entre os poderosos e não entre os impotentes, entre os superiores e não entre os inferiores.
Apesar de sua desejabilidade geral, liberdade e igualdade não são valores absolutos. Não há princípio abstrato que não admita exceções em sua aplicação. A diferença entre regra e exceção está no fato de que a exceção deve ser justificada. Onde a liberdade é a regra, sua limitação deve ser justificada. Onde a regra é a igualdade, deve ser justificado o tratamento desigual. Mas o ponto de partida pode também ser oposto, como na escola ou num quartel, onde a regra é a disciplina e a liberdade é exceção. Decidir o que é mais normal, se a liberdade ou a disciplina, a igualdade ou a hierarquia, não é algo que se possa fazer de uma vez por todas. Liberdade e igualdade são mais normais do que disciplina e hierarquia somente em sentido normativo, no universo do dever ser. Não me resulta que, entre as várias elucubrações sobre sociedades ideais, exista uma só na qual os cidadãos não sejam nem livres nem iguais, embora uma sociedade de livres e iguais não conheça nem tempo nem lugar.
NORBERTO BOBBIO Agosto de 1995
Igualdade
1. Igualdade e liberdade
A igualdade, como valor supremo de uma convivência ordenada, feliz e civilizada — e, portanto, por um lado, como aspiração perene dos homens vivendo em sociedade, e, por outro, como tema constante das ideologias e das teorias políticas —, é freqüentemente acoplada com a liberdade. Assim como liberdade, igualdade tem na linguagem política um significado emotivo predominantemente positivo, ou seja, designa algo que se deseja, embora não faltem ideologias e doutrinas autoritárias que valorizam mais a autoridade do que a liberdade, assim como ideologias e doutrinas não igualitárias que valorizam mais a desigualdade do que a igualdade. No que se refere ao significado descritivo do termo liberdade, a dificuldade de estabelecê-lo reside sobretudo em sua ambigüidade, já que esse termo tem, na linguagem política, pelo menos dois significados diversos. Já no caso de igualdade, a dificuldade de esta-, belecer esse significado descritivo reside sobretudo em sua indeterminação, pelo que dizer que dois entes são iguais sem nenhuma outra determinação nada significa na linguagem política e preciso que se especifique com que entes estamos tratando e com relação a que
12 IGUALDADE E LIBERDADE
são iguais, ou seja, é preciso responder a duas perguntas: a) igualdade entre quem?; e b) igualdade em quê?^
Mais precisamente: enquanto a liberdade é uma qualidade ou propriedade da pessoa (não importa se física ou moral) e, portanto, seus diversos significados dependem do fato de que esta qualidade ou propriedade pode ser referida a diversos aspectos da pessoa, sobretudo à vontade ou sobretudo à ação, a igualdade é pura e simplesmente um tipo de relação formal, que pode ser preenchida pelos mais diversos conteúdos. Tanto isso é verdade que, enquanto X é livre é uma proposição dotada de sentido, X é igual é uma proposição sem sentido, que, aliás, para adquirir sentido, remete à resposta à seguinte questão: igual a quem? Disso decorre o efeito irresistivelmente cômico (e, na intenção do autor, satírico) da célebre frase de Orwell: todos são iguais, porém alguns são mais iguais do que outros. Ao contrário, seria perfeitamente legítimo dizer que, em determinada sociedade, todos são livres, mas alguns são mais livres, já que isso simplesmente significaria que todos gozam de certas liberdades, enquanto um grupo mais restrito de privilegiados goza, além disso, de algumas liberdades particulares. Por outro lado, enquanto é sem sentido a proposição X é igual, é sensata — e, aliás, muito usada, embora extremamente genérica — a proposição todos os homens são iguais, precisamente porque, nesse contexto, o atributo da igualdade se refere não a uma qualidade do homem enquanto tal, como é ou pode ser a liberdade em certos contextos, mas a um determinado tipo de relação entre os entes que fazem parte da categoria abstrata humanidade. O que pode também explicar por que a liberdade enquanto valor, ou seja, enquanto bem ou fim a perseguir, é habitualmente considerada como um bem ou um fim para um indivíduo ou para um ente coletivo (grupo, classe, nação, Estado) concebido como um superindivíduo, ao passo que a
NORBERTO BOBBIO 13
igualdade é considerada como um bem ou um fim para os componentes singulares de uma totalidade na medida em que esses entes se encontrem num determinado tipo de relação entre si. Prova disso é que, enquanto a liberdade é em geral um valor para o homem como indivíduo (razão pela qual as teorias políticas defensoras da liberdade, ou seja, liberais ou libertárias, são doutrinas individualistas, tendentes a ver na sociedade mais um agregado de indivíduos do que uma totalidade), a igualdade é um valor para o homem como ser genérico, ou seja, como um ente pertencente a uma determinada classe, que é precisamente a humanidade (razão pela qual as teorias políticas que propugnam a igualdade, ou igualitárias, tendem a ver na sociedade uma totalidade, sendo necessário considerar o tipo de relações que existe ou deve ser instituído entre as diversas partes do todo). Diferentemente do conceito e do valor da liberdade, o conceito e o valor da igualdade pressupõem, para sua aplicação, a presença de uma pluralidade de entes, cabendo estabelecer que tipo de relação existe entre eles: enquanto se pode dizer, no limite, que é possível existir uma sociedade na qual só um é livre (o déspota), não teria sentido afirmar que existe uma sociedade na qual só um é igual. O único nexo social e politicamente relevante entre liberdade e igualdade se dá nos casos em que a liberdade é considerada como aquilo em que os homens — ou melhor, os membros de um determinado grupo social — são ou devem ser iguais, do que resulta a característica dos membros desse grupo de serem igualmente livres ou iguais na liberdade: essa é melhor prova de que a liberdade é a qualidade de um ente, enquanto a igualdade é um modo de estabelecer um determinado tipo de relação entre os entes de uma totalidade, mesmo quando a única característica comum desses entes seja o fato de serem livres.
14 IGUALDADE E LIBERDADE
2. Igualdade e justiça
Enquanto liberdade e igualdade são termos muito diferentes tanto conceituai como axiologicamente, embora apareçam com freqüência ideologicanente articulados, o conceito e também o valor da igualdade mal se distinguem do conceito e do valor da justiça na maioria de suas acepções, tanto que a expressão liberdade e justiça é freqüentemente utilizada como equivalente da expressão liberdade e igualdade.
Dos dois significados clássicos de justiça que remontam a Aristóteles, um é o que identifica justiça com legalidade, pelo que se diz justa a ação realizada em conformidade com a lei (não importa se leis positivas ou naturais), justo o homem que observa habitualmente as leis, e justas as próprias leis (por exemplo, as leis humanas) na medida em que correspondem a leis superiores, como as leis naturais ou divinas; o outro significado é, precisamente, o que identifica justiça com igualdade, pelo que se diz justa uma ação, justo um homem, justa uma lei que institui ou respeita, uma vez institu- I ida, uma relação de igualdade. Não é exata a opinião comum segundo a qual é possível distinguir os dois significados de justiça referindo o primeiro sobretudo à ação e o segundo sobretudo à lei, pelo que uma ação seria justa quando conforme a uma lei e uma lei seria justa quando conforme ao princípio de igualdade: tanto na j linguagem comum como na técnica, costuma-se dizer j— sem que isto provoque a menor confusão — que um homem é justo não só porque observa a lei, mas também porque é equânime, assim como, por outro lado, que uma lei é justa não só porque é igualitária, mas também porque é conforme a uma lei superior. Não é difícil, de resto, remeter um dos dois significados ao outro: o ponto de referência comum a ambos é o de ordem, ou equilíbrio, ou harmonia, ou concórdia das partes de um todo. Desde as mais antigas representações
NORBERTO BOBBIO 15
da justiça, essa última foi sempre figurada como a virtude ou o princípio que preside o ordenamento em um todo harmônico ou equilibrado tanto da sociedade humana como do cosmo (de resto, a ordem do cosmo é concebida, na visão sociomórfica do universo, como uma projeção da ordem social). Ora, para que reine a harmonia no universo ou na civitas, é necessário: a) que cada uma das partes tenha seu lugar atribuído segundo o que lhe cabe, o que é a aplicação do princípio suum cui- que tribuere, máxima expressão da justiça como igual- dade; b) que, uma vez que a cada parte foi atribuído seu lugar próprio, o equilíbrio alcançado seja mantido por normas universalmente respeitadas. Assim, a instauração de uma certa igualdade entre as partes e o respeito à legalidade são as duas condições para a instituição e conservação da ordem ou da harmonia do todo, que é— para quem se coloca do ponto de vista da totalidade e não das partes — o sumo bem. Essas duas condições são ambas necessárias para realizar a justiça, mas somente em conjunto é que são também suficientes. Em uma totalidade ordenada, a injustiça pode ser introduzida tanto pela alteração das relações de igualdade quanto pela não-observância das leis: a alteração da igualdade é um desafio à legalidade constituída, assim como a não-observância das leis estabelecidas é uma ruptura do princípio de igualdade no qual a lei se inspira. De todo modo, a igualdade consiste apenas numa relação: o que dá a essa relação um valor, o que faz dela uma meta humanamente desejável, é o fato de ser justa. Em outras palavras, uma relação de igualdade é uma meta desejável na medida em que é considerada justa, onde por justa se entende que tal relação tem a ver, de algum modo, com uma ordem a instituir ou a restituir (uma vez abalada), isto é, com um ideal de harmonia das partes de um todo, entre outras coisas porque se considera que somente um todo ordenado tem a possibilidade de durar.
16 IGUALDADE E LIBERDADE
Pode-se repetir, como conclusão, que a liberdade é o valor supremo do indivíduo em face do todo, enquanto a justiça é o bem supremo do todo enquanto composto de partes. Em outras palavras, a liberdade é o bemindi- vidual por excelência, ao passo que a justiça é o bem social por excelência (e, nesse sentido, virtude social, como dizia Aristóteles). Se se quer conjugar os dois valores supremos da vida civil, a expressão mais correta é liberdade e justiça e não liberdade e igualdade, já que a igualdade não é por si mesma um valor, mas o é somente na medida em que seja uma condição necessária, ainda que não suficiente, daquela harmonia do todo, daquele ordenamento das partes, daquele equilíbrio interno de um sistema que mereça o nome de justo.
3. As situações de justiça
Que duas coisas sejam iguais entre si não é nem justo nem injusto, ou seja, não tem nenhum valor em si mesmo, nem social nem politicamente. Enquanto a justiça é um ideal, a igualdade é um fato. Não é em si mesmo nem justo nem injusto que duas bolas de bilhar sejam perfeitamente iguais entre si. A esfera de aplicacáo da justiça, ou da igualdade social e politicamente relevante, é a das relações sociais, ou dos indivíduos ou grupos entre si. ou dos indivíduos com o grupo (e vicé-ver- sa). segundo a distmçao tradicional, que remonta-a Aristóteles, entre justiça comutativa (que tem lugar na relação entre as partes) e justiça distributiva (que tem lugar nas relações entre o todo e as partes, ou vice-versa). Mais especificamente, as situações nas quais é relevante que èxistãõü não igualdade são sobretudo duas:a) aquela na qual estamos diante de uma ação de dar (ou fazer), da qual se deva estabelecer a correspondência anterior com um ter ou posterior com um receber, de onde resulta a seqüência ter-dar-receber-ter;
NORBERTO BOBBIO 17
b) aquela na qual nos encontramos diante do problema de'atribuirvantagens ou desvantagens, benefícios ou ônus, direitos ou deveres (em termos jurídicos), a uma pluralidade de indivíduos pertencentes a uma determinada categoria. No primeiro caso, a situação se caracteriza por uma relação bilateral e recíproca; no segundo, por uma relação multilateral e unidirecional. No pri-, meiro caso, o problema da igualdade se apresenta como problema de equivalência de coisas (o que se dá deve ser equivalente ao que se tem, o que se recebe ao que se tem); no segundo, como problema de equiparação de pessoas (trata-se, por exemplo, de equiparar, na relação entre cônjuges, a mulher ao marido, ou, na relação de trabalho, os operários aos empregados). Todos vêem a diferença entre a igualdade que é invocada quando se pede que haja correspondência entre a mercadoria e o . preço e aqüelá que é invocada quando se pede que os direitos (é os deveres) da mulher correspondam aos do „ mando, ou que o estado jurídico dos operários seja equi- parado ao dos empregados. De resto, as duas situações correspondem aos dois tipos fundamentais de relações que podem ser encontrados em todo sistema social, as relações de troca e as relações de convivência. Querendo dar um nome às duas situações de justiça, pode-se falar, no primeiro caso, de justiça retributiva, e, no segundo, de justiça atributiva.
Não é possível especificar ulteriormente os casos típicos de justiça atributiva, tantas e tão imprevisíveis são as situações nas quais se exige uma equalização nas relações entre os indivíduos. Os casos mais típicos de justiça retributiva, isto é, de igualdade entre o que se dá (ou se faz) e o que se recebe, são os quatro seguintes: relação entre mercadorias e preço, relação entre pagamento e trabalho, relação entre dano e indenização, relação entre crime e castigo. Desses quatro casos, os dois primeiros são de retribuição de um bem com um bem; os outros dois, de um mal com um mal. Também nesses
18 IGUALDADE E LIBERDADE
casos, a linguagem comum reconhece o nexo entre os dois conceitos de justiça e de igualdade, falando respectivamente de preço justo, de salário justo, de indenização justa e de pena justa.
4. Os critérios de justiça
Uma vez delimitada a esfera de aplicação da justiça como igualdade, ainda não se disse nada sobre o que distingue uma igualdade justa de uma injusta, que, de resto, num discurso político, é a diferença essencial entre a igualdade desejável e a indesejável. Ainda não dissemos nada sobre o que torna desejável que duas coisas ou duas pessoas sejam iguais. Nesse ponto, o problema da igualdade remete ao problema dos chamados critérios de justiça, ou seja, àqueles critérios que permitem estabelecer, situaçao por situação, em que duas dMsâs ôü duas pessoas devem ser iguais a fim de que a
/igualdade entre elas possa ser considerada iusta. Duas coisas ou duas pessoas podem ser iguais ou equali- zadas sob muitos aspectos: a igualdade entre elas, ou sua equalização, só tem a ver com a justiça quando corresponde a um determinado critério (que é chamado de critério de justiça), com base no qual se estabelece qual dos aspectos deva ser considerado relevante para o fim de distinguir entre uma igualdade desejável e uma igualdade indesejável. O fato de que o malum passionis seja igual ao malum actionis não é, em si mesmo, nem justo nem injusto: torna-se justo se se escolhe como critério de justiça penal o critério do sofrimento igual, ou seja, se se aceita o princípio de que crime e castigo devam ser iguais no sofrimento (causado ou padecido, respectivamente). Se se adotar um outro critério — por exemplo, o que inspira a lei de talião, segundo a qual o castigo deve se igualar ao crime não no sofrimento, porém, de modo mais grosseiro e mate
NORBERTO BOBBIO 19
rial, no tipo de mutilação —, a equalização do crime ao castigo ocorre de outra maneira. Ainda mais evidente é o caso da equalização entre trabalho e pagamento: existem tantos modos de considerar o pagamento correspondente ao trabalho (e, portanto, de considerar respeitada a relação de igualdade entre um e outro) quanto são os critérios de retribuição adotados em cada oportunidade. Que o salário deva corresponder à necessidade de reprodução da força de trabalho é um critério retributivo perfeitamente cumprido quando se respeita a igualdade entre o montante do que o operário recebe em troca do seu trabalho e o que ele deve gastar para o seu sustento. Mudando-se o critério, o que era justo conforme o primeiro critério se torna injusto conforme o segundo.
Não há teoria da justiça que não analise e discuta alguns dos mais comuns critérios de justiça, que são habitualmente apresentados como especificações da máxima generalíssima e vazia: a cada um, o seu. Para dar alguns exemplos: a cada um segundo o mérito, segundo a capacidade, segundo o talento, segundo o esforço, segundo o trabalho, segundo o resultado, segundo a necessidade, segundo o posto etc. Nenhum desses critérios tem valor absoluto, nem é perfeitamente objetivo, embora haja situações nas quais um é mais aplicado do que o outro: na sociedade familiar, o critério predominante é o da necessidade (e, curiosamente, também na sociedade comunista, segundo Marx); na escola, quando houver finalidades essencialmente seletivas, o critério é o mérito; numa sociedade anônima, o das cotas de propriedade; na sociedade leonina, é a força (a comunidade internacional é, em grande parte, uma sociedade leonina) etc. Embora a escolha desse ou daquele critério seja em parte determinada pela situação objetiva, depende freqüentemente — e, por vezes, em última instância, ainda que nem sempre conscientemente — das diversas concepções gerais da ordem social,
20 IGUALDADE E LIBERDADE l5’t; S
como é plenamente demonstrado por disputas ideológicas do seguinte tipo: é mais justa a sociedade onde a cada um é dado segundo o mérito, ou aquela onde a cada um é dado segundo a necessidade? Nas situaç 5es concretas, os vários critérios são freqüentemente temperados uns com os outros: basta pensar na variedade de critérios com que são habitualmente selecionados os candidados a concursos para obter um emprego público, onde se mesclam, se superpõem e se confundem o critério do mérito com o da necessidade, o critério da antigüidade com o do posto. A máxima “a cada um, o seu” não enuncia nenhum critério, mas abrange e tolera, em cada oportunidade concreta, todos eles.
5. A regra de justiça
Para além das duas formas de justiça retributiva e atributiva, a igualdade tem aver com a justiça também em um outro sentido, ou seja, em relação à chamada regra de justiça. Por regra de justiça, entende-se a re- gra segundo a qual se devem tratar os iguais de modo igual e os desiguais de modo desigual. E supérfluo sublinhar a importância que essa regra assume em face da determinação da justiça, concebida como o valor que preside a conservação da ordem social. O que convém sublinhar, ao contrário, é que o problema da justiça como valor social não se reduz, como em geral pensam os juristas, à regra de justiça, nem nela se esgota. Com efeito, a regra de justiça pressupõe que já tenham sido resolvidos os problemas que pertencem à esfera da justiça retributiva e da justiça atributiva, ou seja, pressupõe que já tenham sido escolhidos os critérios para estabelecer quando duas coisas devem ser consideradas equivalentes e quando duas pessoas devem ser consideradas equiparáveis. Somente depois que estes critérios foram escolhidos é que a regra de justiça intervém para
NORBERTO BOBBIO 21
determinar que sejam tratados do mesmo modo os que se encontram na mesma categoria. Se não tivesse sido previamente estabelecido o modo como deva ser tratada essa ou aquela categoria, não teria nenhum sentido afirmar que os pertencentes à categoria devam ser tratados de modo igual. Quem confunde o problema (ou melhor, os vários problemas) da justiça cõmo igualdade com a regra de justiça não parece perceber que a primeira tarefa de quem pretenda fãzêr obra de jüsíiçá consiste em establecer como um determinado indivíduo deve ser tráiâdo pãrà sir tratado de modo justo. Somente depois que se estabeleceu o tratamento é que surge a exigência de garantir que o tratamento igual seja reservado aos que se encontram na mesma situação. Em suma, a regra de justiça refere-se ao modo pelo qual o princípio de justiça deve ser aplicado: com efeito, ela foi corretamente chamada de justiça na aplicação. Com isso, quer-se dizer: na aplicação do princípio de justiça acolhido, ou — já que esse ou aquele princípio de justiça constituem geralmente o conteúdo das leis — na aplicação da lei. Desse ponto de vista, a relação entre a justiça retributiva e atributiva, por um lado, e a regra de justiça, por outro, pode ser concretizado do seguinte modo: a primeira é constitutiva ou reconstitutiva da igualdade social; a segunda tende a mantê-la segundo os modos e formas em que foi estabelecida. Dado que a regra de justiça não diz qual seja o melhor tratamento, mas se limita a exigir a aplicação igual de um determinado tratamento, qualquer que seja ele, é chamada também de justiça formal, na medida em que prescinde completamente de qualquer consideração sobre o conteúdo. Pode ocorrer — e, de fato, é o que sucede freqüentemente em todo ordenamento jurídico onde as normas envelhecem e se tornam injustas — que uma norma injusta seja aplicada justamente; e, com certeza, não é a aplicação injusta que pode remediar isso, mas somente, quando muito, a não-aplicação.
22 IGUALDADE E LIBERDADE
Mesmo tendo um valor subordinado ao valor instaurado pela justiça retributiva e atributiva, também a justiça formal tem por si mesma, ou seja, independentemente do valor de justiça da norma, e mesmo no caso de norma injusta, um valor social, que é o de garantir a velha ordem até que esta seja substituída pela nova. Tem também a função de tornar menos chocante a injustiça ao partilhá-la entre muitos (“mal comum, consolo de todos”). Pode-se ainda observar que o instrumento mais idôneo para fazer com que a regra de justiça seja respeitada é a promulgação, por parte de quem detém o poder legislativo numa determinada sociedade, de normas gerais e abstratas que estabeleçam como deve ser tratada toda uma categoria de sujeitos. Quando existem normas desse tipo (e a maioria das leis formais são assim), o respeito à regra de justiça, isto é, à justiça formal, resume-se pura e simplesmente à aplicação escrupulosa e imparcial da lei: com efeito, aplicando-se escrupolosa e imparcialmente uma lei a todos os sujeitos que fazem parte da categoria regulada pela lei e segundo o tratamento previsto, observa-se também a regra da justiça que determina que os iguais sejam tratados de modo igual. Desse ponto de vista, a aplicação da regra de justiça coincide com o respeito à legalidade, embora não se deva confundir a realização da regra de justiça através do respeito à legalidade, por um lado, com a justiça como legalidade, à qual nos referimos no item 2; e, por outro, com o princípio de legalidade, que é posto em defesa não da igualdade, mas da certeza do direito. A regra de justiça exige, para sua aplicação, a virtude da imparcialidade em face dos destinatários da lei, ou seja, exige mais o princípio de legalidade do que a lealdade em face do legislador.
NORBERTO BOBBIO 23
6. A igualdade de todos
Ao contrário do que se poderia deduzir do que até agora foi dito sobre a relação entre justiça e igualdade— onde justiça sempre apareceu como um termo axiologicamente significativo e igualdade como um termo axiologicamente neutro, além de descritivamente indeterminado —, pode-se constatar que, no debate político, a igualdade constitui um valor, até mesmo um dos valores fundamentais em que se inspiraram as filosofias e as ideologias políticas de todos os tempos. Mas isso resulta do fato de que, em todos os contextos nos quais a igualdade é invocada (e, naturalmente, também naqueles em que é condenada), a igualdade em questão é sempre uma igualdade determinada ou secundum quid, que recebe seu conteúdo axiológico relevante precisamente daquele quid que lhe especifica o significado.
Decerto, uma das máximas políticas mais carregadas de significado emotivo é a que proclama a igualdade de todos os homens, cuja formulação mais corrente é a seguinte: todos os homens são (ou nascem) iguais. Esta máxima aparece e reaparece no amplo arco de todo o pensamento político ocidental, dos estóicos ao cristianismo primitivo, para renascer com novo vigor durante a Reforma, assumir dignidade filosófica em Rousseau e nos socialistas utópicos, e ser expressa em forma de regra jurídica propriamente dita nas declarações de direitos, desde o fim do século XVIII até hoje. Mas, com freqüência, não se dá atenção ao fato de que aquilo que atribui uma carga emotiva positiva à enunciação — que, enquanto proposição descritiva, é excessivamente genérica ou até mesmo falsa — não é a proclamada igualdade, mas a extensão da igualdade a todos. Com efeito, não pode escapar o significado polêmico e revolucionário deste todos, que é contraposto a situações ou ordenamentos nos quais nem todos, ou melhor, só poucos ou pouquíssimos, desfrutam de bens
24 IGUALDADE E LIBERDADE
e direitos dos quais os demais são privados. Em outras palavras, o valor da máxima não está no fato de que evoque o fantasma da igualdade, que sempre perturbou o sono dos poderosos, mas no fato de que a igualdade evocada, qualquer que seja sua natureza, deveria valer para todos (e por “todos” não está dito que se deva entender a totalidade dos homens, já que basta que se entenda a totalidade dos pertencentes a um determinado grupo social no qual, até então, o poder permaneceu nas mãos de poucos). Por outro lado, já que uma máxima qualquer de justiça, como dissemos, deve responder às perguntas sobre a igualdade entre quem e a igualdade em quê, deve-se observar que a máxima da igualdade de todos responderia, quando a interpretamos literalmente, apenas à primeira pergunta.
Na realidade, o significado axiológico da máxima depende também da qualidade, ainda que subentendida, com relação à qual se exige que os homens, todos os homens, sejam considerados iguais. Em nenhuma das acepções historicamente importantes, a máxima pode ser interpretada como uma exigência de que todos os homens sejam iguais em tudo. A idéia que a máxima expressa é que os homens devem ser considerados iguais e tratados como iguais com relação àquelas qualidades que, segundo as diversas concepções do homem e da sociedade, constituem a essência do homem, ou a natureza humana enquanto distinta da natureza dos outros seres, tais como o livre uso da razão, a capacidade jurídica, a capacidade de possuir, a dignidade social (como reza o art. 39 da Constituição italiana)// ou, mais sucintamente, a dignidade (como reza o art. I9 da Declaração Universal dos Direitos do Homem) etc. Neste sentido, a máxima não tem um significado unívoco, mas tem tantos significados quantas forem as respostas à seguinte questão: Todos iguais, sim, mas em quê ? Uma vez interpretado seu significado específico através da análise das idéias morais, sociais e políticas da doutrina
NORBERTO BOBBIO 25
que a formulou, seu significado emotivo depende precisamente do valor que cada doutrina atribui àquela qualidade em relação à qual se exige que os homens sejam tratados de modo igual. Até mesmo o campeão do igualitarismo, J.-J. Rousseau, não exige que, como condição para a instauração do reino da igualdade, todos os homens sejam iguais em tudo: no início do Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, ele faz uma distinção entre desigualdades naturais e desigualdades sociais, ou seja, entre as desigualdades produzidas pela natureza (e, enquanto tal, benéficas, ou, pelo menos, moralmente indiferentes) e as desigualdades sociais, produzidas por aquela mescla de relações de domínio econômico, espiritual e político que forma a civilização humana. O que Rousseau tem como meta é a eliminação das segundas, não das primeiras. Numa das passagens decisivas do Contrato social, ele escreve: O pacto fundamental, em lugar de destruir a igualdade natural, pelo contrário substitui por uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens (I, 9).
7. A igualdade diante da lei
Das várias determinações históricas da máxima que proclama a igualdade de todos os homens, a única universalmente acolhida — qualquer que seja o tipo de Constituição em que esteja inserida e qualquer que seja a ideologia na qual esteja fundamentada — é a que afirma que todos os homens são iguais perante a lei, ou, com outra formulação, a lei é igual para todos. O princípio é antiqüíssimo e não pode deixar de ser relacionado, ainda que esse relacionamento não seja freqüente, com o conceito clássico de isonomia, que é conceito fundamental, além de ideal primário, do pensamento político grego, tal como aparece maravilhosamente
26 IGUALDADE E LIBERDADE
ilustrado nas seguintes palavras de Eurípides: nada é mais funesto para uma cidade do que um tirano. Antes de mais nada, não existem leis gerais para todos e um só homem detém o poder, fazendo ele mesmo e para si mesmo a lei; e não há de modo algum igualdade. Ao contrário, quando existem leis escritas, o pobre e o rico têm iguais direitos (As suplicantes, 429-34). Modernamente, o princípio se encontra enunciado nas Constituições francesas de 1791, 1793 e 1795; mais tarde, no art. 1B da Carta de 1814, no art. 6Q da Constituição belga de 1830, no art. 24 do Estatuto albertino [que regeu a monarquia italiana]. Enquanto a Emenda XIV da Constituição dos Estados Unidos (1868) quer assegurar a todo cidadão a igual proteção das leis, o princípio é retomado e repetido, no primeiro pós-guerra tanto pelo art. 109, § l 9, da Constituição de Weimar (1919) quanto pelo art. 7Q, § l s, da Constituição austríaca (1920) e, no segundo pós-guerra, para darmos exemplos de Constituições inspiradas em diferentes ideologias, tanto pelo art. 71 da Constituição búlgara (1947) quanto pelo art. 32 da Constituição italiana (1948).
Apesar de sua universalidade, também esse princípio não é de modo algum claro, tendo dado lugar a diversas interpretações. Prescindo aqui da disputa, que interessa mais propriamente à teoria jurídica, sobre a destinação do princípio, ou seja, se ele está dirigido aos juizes ou também ao legislador. No primeiro caso, nada acrescentaria à regra de justiça que prescreve a imparcialidade do juízo; no segundo, termina por mudar inteiramente de natureza, já que — de priijcípio que prescreve a igualdade perante a lei — ele se transformaria num princípio inteiramente diverso, e bem mais significativo, isto é, o que prescreve a igualdade “na” lei. O princípio tem, antes de mais nada, um significado histórico. Mas, para entender este seu significado, é preciso relacioná-lo não tanto com o que ele afirma,
NORBERTO BOBBIO 27
mas com o que nega, ou seja, é preciso entender o seu valor polêmico.
O alvo principal da afirmação de que todos são iguais perante a lei é o Estado de ordens ou estamentos, aquele Estado no qual os cidadãos são divididos em categorias jurídicas diversas e distintas, dispostas numa rígida ordem hierárquica, onde os superiores têm privilégios que os inferiores não têm, e, ao contrário, estes últimos têm ônus dos quais aqueles são isentos: a passagem do Estado estamental para o Estado liberal burguês resulta claro para quem examinar a diferença entre o Código prussiano de 1794, que contempla três estamentos em que se divide a sociedade civil (camponeses, burgueses e nobreza), e o Código napoleônico de 1804, onde só existem cidadãos. No preâmbulo da Constituição francesa de 1791, pode-se ver que os constituintes pretenderam abolir irrevogavelmente as instituições que feriam a liberdade e a igualdade de direitos; e, entre essas instituições, incluíam-se todas as que haviam caracterizado o regime feudal. A frase com que se encerra o preâmbulo — não mais existe, para nenhuma parte da nação ou para nenhum indivíduo, qualquer privilégio ou exceção ao direito comum de todos os franceses — ilustra a contrario, melhor do que qualquer comentário, o significado do princípio da igualdade perante a lei. Nos casos em que, à enunciação do princípio, seguem-se uma ou mais especificações do conteúdo, o valor polêmico resulta evidente. No art. 24 do Estatuto albertino, segue-se, à enunciação do princípio, a seguinte especificação: todos gozam igualmente dos direitos civis e políticos, e são admissíveis aos cargos civis e militares, salvo as exceções determinadas pelas leis. Nada mais historicamente condicionado do que a admissibilidade aos cargos civis e militares (por que não à instrução e aos direitos políticos?): aquilo contra o que reage essa prescrição é a discriminação com base no
28 IGUALDADE E LIBERDADE
nascimento, que é o critério sobre o qual se fundam as aristocracias. Outras formas de discriminação permanecem fora da mencionada prescrição.
Se se prescinde desse significado polêmico expresso ou tácito, que é preciso identificar em cada caso concreto, o princípio da igualdade perante a lei é, também ele, como todas as fórmulas igualitárias, genérico. Com efeito, a communis opinio o interpreta como prescrevendo a exclusão de qualquer discriminação arbitrária, seja por parte do juiz ou do legislador, onde por discriminação arbitrária entende-se aquela introduzida ou não eliminada sem uma justificação, ou, mais sumariamente, uma discriminação não justificada (e, neste sentido, injusta). Mas será suficiente aduzir razões para tornar uma discriminação justificada? Qualquer razão ou, ao contrário, determinadas razões mais do que outras? Mas com base em que critérios se distinguem as razões válidas das inválidas? Existem critérios objetivos, ou seja, critérios que se apóiam na chamada natureza das coisas? A única resposta que se pode dar a tais questões é que existem, entre os indivíduos humanos, diferenças relevantes e diferenças irrelevantes com relação à sua inserção nessa ou naquela categoria. Mas essa distinção não coincide com a distinção entre diferenças objetivas e não-objetivas: entre brancos e negros, entre homens e mulheres existem certamente diferenças objetivas, mas nem por isso relevantes. A relevância ou irrelevância é estabelecida com base em opções de valor. Enquanto tal, é historicamente condicionada. Se recordarmos as justificações adotadas, em cada oportunidade concreta, para justificar a® sucessivas ampliações dos direitos políticos, compreenderemos que uma diferença considerada relevante em um determinado período histórico (para excluir certas categorias de pessoas dos direitos políticos) deixa de ser considerada relevante num período posterior.
NORBERTO BOBBIO 29
8. A igualdade jurídica
É necessário distinguir de modo mais preciso a igualdade perante a lei da igualdade de direito, da igualdade nos direitos (ou dos direitos, segundo as diversas formulações) e da igualdade jurídica. A expressão igualdade de direito é usada em contraposição a igualdade de fato, correspondendo quase sempre à contraposição entre igualdade formal e igualdade substancial ou material, sobre a qual voltaremos a seguir (cf., adiante, o item 10). A igualdade nos direitos (ou dos direitos) significa algo mais do que a simples igualdade perante a lei enquanto exclusão de qualquer discriminação não justificada: significa o igual gozo, por parte dos cidadãos, de alguns direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, como resulta de algumas formulações célebres: Os homens nascem e permanecem livres e iguais nos direitos (Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, 1789); Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos (Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1948). A diferença entre igualdade perante a lei e igualdade nos direitos é sublinhada em algumas formulações, como a do art. 21 da Constituição iugoslava, na qual se diz que os homens são iguais perante a lei e nos direitos. A igualdade perante a lei é apenas uma forma específica e historicamente determinada de igualdade de direito ou dos direitos (por exemplo, do direito de todos de terem acesso à jurisdição comum, ou aos principais cargos civis e militares, independentemente do nascimento); já a igualdade nos direitos compreende, além do direito de serem considerados iguais perante a lei, todos os direitos fundamentais enumerados numa Constituição, tais como os direitos civis e políticos, geralmente proclamados (o que não significa que sejam reconhecidos de fato) em todas as Constituições modernas. Finalmente, por igualdade jurídica se entende, habitualmente, a igual
30 IGUALDADE E LIBERDADE
dade naquele atributo particular que faz de todo membro de um grupo social, inclusive a criança, um sujeito jurídico, isto é, um sujeito dotado de capacidade jurídica. Enquanto a igualdade nos direitos tem um âmbito mais amplo que o da igualdade perante a lei, a igualdade jurídica tem um âmbito mais restrito: o alvo polêmico do princípio da igualdade perante a lei é origina- riamente, como vimos, a sociedade de estamentos, enquanto o alvo polêmico da igualdade jurídica é a sociedade escravista, isto é, aquela sociedade na qual nem todos os membros são pessoas jurídicas. Numa sociedade de estamentos, todos podem ser sujeitos de direito, ter capacidade jurídica, embora nem todos sejam iguais perante a lei (no sentido de que cada estamento é regulado por leis diferentes) e, com maior razão, nem todos sejam iguais quanto aos direitos fundamentais.
9. A igualdade das oportunidades
Um discurso não muito diverso deve ser feito acerca do outro princípio de igualdade, considerado como um dos pilares do Estado de democracia social (tal como o princípio da igualdade perante a lei representou um dos pilares do Estado liberal): o princípio da igualdade de oportunidades, ou de chances, ou de pontos de partida. Este princípio não é menos genérico do que o anterior, sempre que não seja especificado seu conteúdo com referência a situações específicas e historicamente determinadas. Por si mesmo, o princípio da igualdade das oportunidades, abstratamente considerado, nada tem de particularmente novo: ele não passa Ia aplicação da regra de justiça a uma situação na qual existem várias pessoas em competição para a obtenção de um objetivo único, ou seja, de um objetivo que só pode ser alcançado por um dos concorrentes (como o sucesso numa corrida, a vitória num jogo ou num duelo, o triun
NORBERTO BOBBIO 31
fo num concurso etc.). Não há nada de particularmente progressista ou reacionário no fato de que os jogadores de canastra ou de pôquer comecem o jogo com o mesmo número de cartas, ou os jogadores de xadrez com o mesmo número e o mesmo tipo de peças, ou que os duelan- tes disponham da mesma arma, os corredores partam da mesma linha, ou os participantes de um concurso devam ter o mesmo diploma, devam ler para o exame os mesmos livros e sejam todos obrigados a não conhecer o tema que cairá no exame.
O que mais uma vez faz desse princípio um princípio inovador nos Estados social e economicamente avançados é o fato de que ele se tenha grandemente difundido como conseqüência do predomínio de uma concepção conflitualista global da sociedade, segundo a qual toda a vida social é considerada como uma grande competição para a obtenção de bens escassos. Essa difusão ocorreu, pelo menos, em duas direções: a) na exigência de que a igualdade dos pontos de partida seja aplicada a todos os membros do grupo social, sem nenhuma distinção de religião, de raça, de sexo, de classe etc.; b) na inclusão, onde a regra deve ser aplicada, de situações econômica e socialmente bem mais importantes do que a dos jogos ou concursos. E o caso, para dar alguns exemplos, da competição pela posse de bens materiais, pela obtenção de metas particularmente desejadas por todos os homens, pelo direito de exercer certas profissões. Em outras palavras, o princípio da igualdade das oportunidades, quando elevado a princípio geral, tem como objetivo colocar todos os membros daquela determinada sociedade na condição de participar da competição pela vida, ou pela conquista do que é vitalmente mais significativo, a partir de posições iguais. E supérfluo aduzir que varia de sociedade para sociedade a definição de quais devam ser as posições de partida a serem consideradas como iguais, de quais devam ser as condições sociais e materiais que permitam conside-
32 IGUALDADE E LIBERDADE
"'j rar os concorrentes iguais. Basta formular perguntas / do seguinte tipo: é suficiente o livre acesso a escolas ! iguais? Mas a que escolas, de que nível, até que ano de
idade? Já que se chega à escola a partir da vida familiar, não será preciso equalizar também as condições de família nas quais cada um vive desde o nascimento? Onde paramos? Mas não é supérfluo, ao contrário, chamar a atenção para o fato de que, precisamente a fim de colocar indivíduos desiguais por nascimento nas mesmas condições de partida, pode ser necessário favorecer os mais pobres e desfavorecer os mais ricos, isto é, introduzir artificialmente, ou imperativamente, discriminações que de outro modo não existiriam, como ocorre, de resto, em certas competições esportivas, nas quais se jassegura aos concorrentes menos experientes uma cer- jta vantagem em relação aos mais experientes. Desse }modo, uma desigualdade torna-se um instrumento de Jigualdade pelo simples motivo de que corrige uma desi- jgualdade anterior: a nova igualdade é o resultado da jequiparação de duas desigualdades. I
10. A igualdade de fato J1
Dos princípios da igualdade perante a lei e da igual- jdade de oportunidades, distingue-se a exigência ou o Jideal da igualdade real ou substancial, ou, como se lê na Constituição italiana, de fato. O que se entende, genericamente, por igualdade de fato é bastante claro: entende-se a igualdade com relação aos bens materiais, ou igualdade econômica, que é assim diferenciada da igualdade formal ou jurídica e da igualdàde de oportunidades ou social. Contudo, não é nada claro — aliás, é muito controverso — determinar quais sejam as formas e os modos específicos através dos quais se supõe que essa igualdade possa ser pretendida e realizada. Igualdade com relação aos bens materiais. Mas que bens? E
NORBERTO BOBBIO 33
por que não também aos bens espirituais ou culturais? Se se definirem os bens com relação às necessidades que eles tendem a satisfazer, a questão da determinação do que é ou do que não é um bem remete à questão da determinação de quais são as necessidades dignas de serem satisfeitas e em relação às quais se considerajus?- to que os homens sejam iguais. Todas as necessidades ou apenas algumas? E, dado que não parece possível responder todas — e nem mesmo o mais conseqüente e fanático igualitário jamais deu tal resposta —, então surge outra pergunta: qual o critério com base no qual é possível distinguir entre necessidades merecedoras e não merecedoras de satisfação? Seria, porventura, o critério da utilidade social, segundo o qual se distinguem as necessidades entre socialmente úteis e socialmente nocivas? Ou o critério, ainda mais vago, da correspondência à natureza, pelo qual se distinguem as necessidades entre naturais e artificiais, espontâneas e provocadas pelos produtores de bens de consumo? A necessidade de escutar uma sinfonia de Beethoven é natural ou artificial, espontânea ou provocada? E a de tirar férias, calçar sapatos ou ler jornais? Deste ponto de vista, nada é mais indeterminado do que a fórmula a cada um segundo suas necessidades, usada também por Marx e transformada, de resto, em ideal-limite da sociedade comunista, no célebre escrito Crítica ao programa de Gotha.
Uma vez determinada a natureza dos bens com relação aos quais os homens deveriam ser iguais, o problema da igualdade ainda não está resolvido: é preciso também estabelecer os modos através dos quais os homens entram e permanecem em relação com esses bens. E necessária a posse ou basta o uso? E suficiehté o gozo ou é necessária a disponibilidade? Ou será necessário fazer uma outra distinção, entre um tipo de bens, como os instrumentos de produção, dos quais só deveria ser lícita a propriedade coletiva, e outros bens, como
34 IGUALDADE E LIBERDADE
os produtos, dos quais seria lícita também a posse individual e até mesmo, eventualmente, a livre disposição? Em terceiro lugar, não parece que os defensores de uma doutrina igualitária possam escapar de uma nova pergunta: depois de ter sido determinado o tipo de bens dos quais é relevante a igualdade a fim de que uma sociedade possa ser considerada justa, depois de ter sido estabelecido o tipo de relação que deve existir entre os membros do grupo e esses bens, a igualdade invocada será absoluta ou relativa? Ou, para retomarmos a famosa distinção aristotélica, aritmética ou geométrica? Em outras palavras, os bens a serem distribuídos serão distribuídos segundo a fórmula a cada um em partes iguais, ou segundo a fórmula a cada um na proporção de..., ou seja, mediante uma fórmula que permita uma distribuição diversa segundo o diverso grau com que cada indivíduo possui o requisito exigido? Nada impede que seja considerada igualitária uma doutrina que defende uma fórmula de igualdade proporcional.
Finalmente, deve-se notar que, entre os próprios princípios de justiça comumemente considerados, alguns são mais igualitários que outros: um princípio é tanto mais igualitário quanto menores forem as diferenças presumíveis entre os homens com relação ao critério adotado. O princípio a cada um segundo a necessidade é considerado o mais igualitário de todos os princípios (não é por acaso que nele se inspira a doutrina comunista), já que se considera que os homens são mais iguais entre si (ou menos diversos) com relação às necessidades do que, por exemplo, com relação às capacidades. Disto decorre que o caráter igualitário de uma doutrina não está na exigência de que todos sejam tratados de modo igual com relação aos bens relevantes, mas que o critério com base no qual esses bens são distribuídos seja ele mesmo o mais igualitário possível. Mas será que existe um critério, se não objetivo, pelo menos partilhado por todos, para distinguir os princí
NORBERTO BOBBIO 35
pios de justiça com base em seu maior ou menor igua- litarismo? Trata-se de mais uma questão à qual não parece fácil dar uma resposta unívoca. De resto, se a determinação do que deve ser entendido por igualdade substancial não levantasse tantas questões, não teríamos conhecido, ao longo de todo o decurso histórico, tantas formas diversas de doutrinas igualitárias, freqüentemente em conflito umas com as outras; e, dado que o igualitarismo é o aspecto mais constante e característico das doutrinas comunistas e socialistas, não nos encontraríamos diante de comunismos e socialismos tão diferentes, entre os quais alguns totalmente e outros parcialmente, alguns absolutamente e outros relativamente igualitários.
11. O igualitarismo
De todo modo, quaisquer que sejam as diferenças específicas, o que caracteriza as ideologias igualitárias em relação a todas as outras ideologias sociais que também admitem ou exigem esta ou aquela forma particular de igualdade é a exigência de uma igualdade também material, enquanto distinta da igualdade perante a lei e da igualdade de oportunidades. Do mesmo modo, como seria ambíguo definir o liberalismo como a doutrina que põe o valor da liberdade acima de todos os demais valores, se não se definirem quais são as liberdades que formam geralmente o conteúdo mínimo da doutrina liberal (e se trata das liberdades pessoais e civis), também seria genérico definir o igualitarismo como a doutrina que põe o valor da igualdade acima de todos os demais valores se não se especificar de que igualdade se está falando e em que medida ela deve ser aplicada. Já dissemos que, para determinar o significado específico de uma relação de igualdade, é preciso responder a pelo menos duas questões: igualdade entre
36 IGUALDADE E LIBERDADE
quem? e igualdade em quê? Limitando-se o critério de especificação à relação entre o todo e a parte, as respostas possíveis são quatro: a) igualdade entre todos em tudo; b) igualdade entre todos em algo; c) igualdade entre alguns em tudo; d) igualdade entre alguns em algo. O ideal-limite do igualitarismo se reconhece na primeira resposta: igualdade de todos os homens sob todos os aspectos. Mas se trata, precisamente, de um ideal-limite inatingível na prática. Pode-se, quando muito, redefinir o igualitarismo como a tendência a atingir esse ideal por aproximações sucessivas. Historicamente, uma doutrina igualitária é uma doutrina que defende a igualdade para o maior número de homens no maior número de bens. E, dado que a igualdade absoluta entendida como a igualdade de todos em tudo é um ideal-limite para o qual se pode tender mediante aproximações sucessivas, é lícito falar de doutrinas mais igualitárias que outras. De igualitarismo parcial e limitado, ao contrário, pode-se falar a respeito de doutrinas que defendem a igualdade em tudo, mas limitada a uma categoria de pessoas; é o caso da doutrina platônica com relação à classe dos guardiães, ou de algumas regras de ordens religiosas. Percebe-se que o igualitarismo parcial ou limitado é perfeitamente compatível com uma concepção não igualitária da sociedade como um todo. As outras duas possíveis respostas, a igualdade de todos em algo e a igualdade de alguns (pertencentes a uma determinada categoria) em algo, só podem ser consideradas exigências igualitárias se eliminarem uma desigualdade anterior. Assim, chama-se de igualitária uma lei que estende o sufrágio às mulheres, ou outra que elimina uma discriminação racial. Mas nem a primeira nem a segunda resposta são típicas de uma concepção igualitária de sociedade. Tomadas isoladamente, não podem ser consideradas como respostas características de formas históricas de igualitarismo. A exigência da igualdade jurídica, enten
NORBERTO BOBBIO 37
dida como igualdade de todos na capacidade jurídica, é certamente uma exigência igualitária com relação às sociedades onde os homens se dividem em livres e escravos; mas é a expressão da ideologia liberal, não ainda de uma ideologia igualitária.
O que geralmente caracteriza as ideologias igualitárias é o acento colocado no homem como ser genérico (ou seja, como ser que pertence a um determinado genus) e, por conseguinte, nas características comuns a todos os pertencentes ao genus e não tanto nas características individuais pelas quais um homem se distingue do outro (que é, ao contrário, o que caracteriza as doutrinas liberais); e não importa, de resto, se o acento cai nas características negativas do homem (os homens são todos pecadores) ou nas positivas (o homem é um animal naturalmente social). A essa natureza comum dos homens, foi dada historicamente uma interpretação religiosa — os homens são irmãos entre si enquanto filhos do mesmo Pai — e uma interpretação filosófica, que se funda geralmente na idéia de uma igualdade substancial primitiva ou natural, corrompida e pervertida pelas instituições sociais, que introduziram e perpetuaram a desigualdade entre ricos e pobres, entre governantes e governados, entre classe dominante e classe dominada. Com freqüência, mesclam-se e se reforçam reciprocamente, na própria doutrina igualitária, ambas as interpretações: o apelo religioso marcha ao lado do argumento filosófico, enquanto o ideal da regeneração moral se mescla com o da revolução social. Conforme o acento seja colocado nas desigualdades econômicas ou nas políticas — e, por conseguinte, conforme o fim último da igualdade seja buscado através da eliminação da propriedade privada (comunismo) ou através da eliminação de qualquer forma de poder político (anarquismo) —, as doutrinas igualitárias se distinguem em socialistas (ou comunistas) e anarquistas. As primeiras buscam a igualdade política através da
38 IGUALDADE E LIBERDADE
igualdade econômica, enquanto as segundas percorrem o caminho inverso.
12. O iguali^arismo e seu fundamento
Se é verdade que, historicamente, o ponto de partida das doutrinas igualitárias é sobretudo a consideração da natureza comum dos homens, esse ponto de partida não é logicamente suficiente para justificar o princípio fundamental do iguaütarismo, segundo o qual todos ou quase todos os homens devem ser tratados de modo igual em todos ou quase todos os bens desejáveis. Mesmo admitindo-se que seja factualmente verdadeiro que todos os homens são, pelo menos como genus, mais iguais do que desiguais, se comparados a outra espécie de seres vivos, disso não decorre — pela inderivabili- dade de uma proposição normativa de uma proposição descritiva — que todos os homens devam ser tratados de modo igual. Esse princípio ético fundamental não deriva da pura e simples constatação de que homens são de fato, pelo menos como genus, iguais, mas da avaliação positiva deste fato, ou seja, do seguinte juízo de valor: “a igualdade (a maior igualdade possível) entre os homens é desejável.” A prova disso é que uma doutrina não igualitária, como a hobbesiana — que considera como finalidade suprema dos homens que vivem em sociedade não a maior igualdade possível, mas exclusivamente a paz social, e funda essa última na renúncia à igualdade natural e na constituição de um ordenamento no qual é traçada uma nítida linha de demarcação entre os que têm o dever de mandar e os que só têm o direito de obedecer —, parte da constatação de que, em estado de natureza, os homens são iguais. Mas, diferentemente dos teóricos do igualitaris- mo, Hobbes não formula sobre a igualdade natural um juízo de valor positivo; ao contrário, considera a igual
NORBERTO BOBBIO 39
dade material dos homens, tal como se verifica no estado de natureza, uma das causas do bellum omnium contra omnes, que torna intolerável a permanência naquele estado e obriga os homens a criarem a sociedade civil. A maior parte dos teóricos do igualitarismo e Hobbes partem da mesma verdade factual, mas chegam a conseqüências práticas opostas, já que avaliam de modo oposto essa mesma realidade de fato. As conseqüências práticas opostas derivam não de uma constatação, mas de uma avaliação.
A rigor, a constatação da igualdade natural dos homens não apenas não é suficiente para fundamentar o igualitarismo, mas nem mesmo é necessária. Pode-se perfeitamente considerar a máxima igualdade como um bem digno de ser perseguido, sem para tanto tomar como ponto de partida a constatação de uma igualdade natural, primitiva ou originária dos homens. O marxismo é uma doutrina igualitária, que abandonou completamente os pressupostos naturalistas das formas mais ingênuas de socialismo: a proposição normativa a igualdade é um bem digno de ser perseguido não deriva sub- repticiamente, nesse caso, do juízo de fato os homens nasceram ou são por natureza iguais, mas do juízo de valor a desigualdade é um mal, ou seja, bem entendido, aquela desigualdade que se pode observar na história concreta dos homens, que é a história de sociedades divididas em classes antagônicas e, por isso, profundamente desiguais. Ainda que numa forma extremamente simplificada, o procedimento mental que preside a constituição de uma teoria como esta é o completo oposto do procedimento hobbesiano: para Hobbes, os homens são de fato iguais, mas devem ser desiguais; para os teóricos do socialismo científico, os homens até agora foram de fato desiguais, mas devem ser iguais. Tal como as doutrinas igualitárias, também as doutrinas não-igualitárias pressupõem não tanto a consideração da fundamental e insuperável desigualdade humana,
40 IGUALDADE E LIBERDADE
mas a avaliação positiva dessa ou daquela forma de desigualdade, seja entre indivíduos mais ou menos dotados pela natureza em força física, inteligência ou habilidade, seja entre raças, estirpes ou nações; elas pressupõem, em outras palavras, um juízo de valor oposto ao das doutrinas igualitárias, ou seja, o juízo segundo o qual essa ou aquela forma de desigualdade é favorável ou mesmo necessária ao melhor ordenamento social ou ao progresso da civilização e, portanto, a ordem social deve respeitar e não abolir as desigualdades entre os homens, ou, pelo menos, aquelas desigualdades que são consideradas social e politicamente úteis ao progresso social. Já que as sociedades até hoje existentes são de fato sociedades de desiguais, as doutrinas não igualitárias representam habitualmente a tendência a conservar o estado de coisas existente: são doutrinas conservadoras. As doutrinas igualitárias, ao contrário, representam habitualmente a tendência a modificar o estado de fato: são doutrinas reformadoras. Quando, além do mais, a valorização das desigualdades chega ao ponto de desejar e promover o restabelecimento de desigualdades agora canceladas, o não-igualitarismo se torna reacionário; ao contrário, o igualitarismo torna-se revolucionário quando projeta o salto qualitativo de uma sociedade de desiguais, tal como até agora existiu, para uma futura sociedade de iguais.
13. Igualitarismo e liberalismo
Enquanto igualitarismo e não-igualitarismo são totalmente antitéticos, igualitarismo e liberalismo são apenas parcialmente antitéticos, o que não anula o fato de que, historicamente, tenham sido geralmente considerados como doutrinas antagônicas e alternativas. O não-igualitarismo nega a máxima do igualitarismo, segundo a qual todos os homens devem ser (no limite)
NORBERTO BOBBIO 41
iguais em tudo, com relação à totalidade dos sujeitos, afirmando, ao contrário, que somente alguns homens são iguais, ou, no limite, que nenhum homem é igual a outro; já o liberalismo nega a mesma máxima não com relação à totalidade dos sujeitos, mas à totalidade (ou quase totalidade) dos bens e dos males com relação aos quais os homens deveriam ser iguais, ou seja, admite a igualdade de todos não em tudo (ou quase tudo), mas somente em algo. um algo constituído, habitualmente, pelos chamados direitos fundamentais, ou naturais, ou, como Hireitos não são maisdo que as várias formas de liberdade pessoal, civil e política, enumeradas progressivamente pelas várias Contituições dos Estados nacionais desde o final do século XVIII até hoje, e reconfirmadas, depois da Segunda Guerra Mundial, em documentos internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e a Convenção Européia dos Direitos do Homem (1950). O ideal do Estado liberal, tal como foi paradigmaticamente expresso por Kant, é o ideal de um Estado no qual todos os cidadãos gozam de uma igual liberdade, isto é, são igualmente livres, ou iguais nos direitos de liberdade.
Todavia, o liberalismo é uma doutrina só parcialmente igualitária: entre as liberdades protegidas inclui- se também, em geral, a liberdade de possuir e de acumular, sem limites e a título privado, bens econômicos, assim comp a-liberdade de empreender operações econômicas (a chamada liberdade de iniciativa econômica), liberdades das quais se originaram e continuam a se originar as grandes desigualdades sociais nas sociedades capitalistas mais avançadas e entre as sociedades economicamente mais desenvolvidas e as do Terceiro Mundo. As doutrinas igualitárias, de resto, sempre acusaram o liberalismo de ser defensor e protetor de uma sociedade econômica e, portanto, também politicamente não-igualitária; para Marx, a igualdade jurídica de
42 IGUALDADE E LIBERDADEtj
todos os cidadãos sem distinções de estamento, proclamada pela Revolução Francesa, não passou, na realidade, de um instrumento de que se serviu a classe bur-
/guesa com o objetivo de liberar e tornar disponível ̂força de trabalho necessária ao desenvolvimento do cá- pitalismo nascente, através da ficção útil de um contracto voluntário entre indivíduos igualmente livres. Da crítica das doutrinas igualitárias contra a concepção e |j prática liberal do Estado é que nasceram as exigências dè direitos sociais, que transformaram profundament^ o sistema de relações entre o indivíduo e o Estado e dj própria organização do Estado, até mesmo nos regimes que se consideram continuadores, sem alterações brus cas, da tradição liberal do século XIX. Por outro lado, oá liberais sempre acusaram os igualitários de sacrificar a! liberdade individual, que se alimenta da diversidadé das capacidades e das aptidões, à uniformidade e ao nivelamento impostos pela necessidade de fazer com que os indivíduos associados sejam tão semelhantes quanto possível: na tradição do pensamento liberal, o igualitarismo torna-se sinônimo de achatamento das aspirações, de compressão forçada dos talentos, de nivelamento improdutivo das forças motrizes da sociedade. Liberalismo e igualitarismo deitam suas raízes em concepções da sociedade profundamente diversas: individualista, conflitualista e pluralista, no caso do liberalismo; totalizante, harmônica e monista, no caso do igualitarismo. Para o liberal, a finalidade principal é a expansão da personalidade individual, abstratamente considerada como um valor em si; para o igualitário, essa finalidade é o desenvolvimento harmonioso da comunidade. E diversos são também os modos de conceber a natureza e as tarefas do Estado: limitado e ga- rantista, o Estado liberal; intervencionista e dirigista, o Estado dos igualitários.
Essa diversidade, contudo, não exclui a proposta de sínteses teóricas e soluções práticas de compromisso
NORBERTO BOBBIO 43
entre liberdade e igualdade, na medida em que esses dois valores fundamentais (juntamente com a ordem) de toda convivência civilizada são considerados como sendo não apenas antinômicos, mas também parcialmente complementares. A Constituição italiana, para citar uma entre muitas, estabelece em seu art. 39, § 29, que é tarefa da República remover os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país. Mesmo levando-se na devida conta a imensa distância que existe entre declarações solenes desse tipo e a realidade de fato, é significativo que liberdade e igualdade sejam consideradas, no mesmo texto, como bens indivisíveis e solidários entre si.
14. O ideal da igualdade
A tendência no sentido de uma igualdade cada vez maior, como já havia observado ou temido Tocqueville no século XIX, é irresistível: o igualitarismo, apesar da aversão e da dura resistência que suscita em cada reviravolta da história, é uma das grandes molas do desenvolvimento/histórico. A igualdade entendida como equalização dos diferentes é um ideal permanente e perene dos homens vivendo em sociedade. Toda superação dessa ou daquela discriminação é interpretada como uma etapa do progresso da civilização. Jamais como em nossa época foram postas em discussão as tres fontes principais de desigualdade entre os homens: a raça (ou, de modo mais geral, a participação num grupo étnico ou nacional), o sexo e a classe social.
Depois da tragédia do racismo hitleriano e quase como uma desforra contra as abominações que ele praticou, a opinião pública mundial redespertou para o
44 IGUALDADE E LIBERDADE
apelo daquele grande movimento rumo à igualdade que é a superação do ódio e da discriminação raciais. O racismo está se tornando cada vez mais, para quem o exerce ou apenas o tolera, uma marca de infâmia. Nenhum auditório estudantil no mundo poderia hoje escutar sem revolta a lição sobre o homem negro (o homem natural em sua total barbárie e desregramento) que Hegel, o grande Hegel, ministrava de sua cátedra em Berlim.
Como já se observou várias vezes, a revolução silenciosa de nosso tempo, a primeira revolução incruenta da história, é a que conduz à lenta mas inexorável atenuação, até a total eliminação, da discriminação entre os sexos: a equiparação das mulheres aos homens, primeiro na mais restrita sociedade familiar, depois na mais ampla sociedade civil, através da igualdade em grande parte exigida e em parte (ainda que em pequena parte) já conquistada nas relações econômicas e políticas, é um dos sinais mais seguros e encorajadores da marcha da história humana no sentido da equalização dos desiguais.
Há mais de um século a idéia comunista atua na direção da luta contra a desigualdade das classes sociais, considerada como a fonte de todas as outras desigualdades, rumo à meta última da sociedade sem classes, uma sociedade na qual o livre desenvolvimento de cada um seja a condição para o livre desenvolvimento de todos.
Tal como a liberdade, também a igualdade aparece cada vez mais como um xéA,oç. Como téXoç e, ao mesmo tempo, como retorno à origem, ao estado de natureza dos jusnaturalistas,* ou, ainda mais remotamente, à idade de ouro, ao reino de Saturno, rei tão justo que, sob seu reinado, não havia nem escravos nem propriedade
* Grupo de pessoas adeptas ou simpáticas ao naturalismo. (N.doE.)
NORBERTO BOBBIO 45
privada, mas todas as coisas pertenciam a todos sem divisões, como se todos os homens tivessem um só patrimônio.
Bem mais do que a liberdade, é a igualdade— precisamente a igualdade substancial, a igualdade dos igualitários — que forma o traço comum e característico das cidades ideais dos utópicos (assim como uma feroz e inflexível desigualdade é o signo da avertência e da premonição das utopias negativas de nosso tempo), tanto daquela de Thomas More, que escreve que enquanto ela [a propriedade]perdurar, pesará sempre sobre a parcela amplamente majoritária e melhor da humanidade o fardo angustiante e inevitável da pobreza e das desventuras, como daquela de Tommaso Campa- nella, cuja Cidade do Sol é habitada por filósofos que resolvem viver filosoficamente em comum. Inspira tanto as visões milenaristas das seitas heréticas que lutam pelo advento do Reino de Deus, que será o reino da fraternidade universal, quanto os ideais sociais das revoltas camponesas, nas quais Thomas Münzer — que, segundo Melanchton, ao ensinar que todos os bens deviam ser possuídos em comum, tomara a massa tão selvagem que não queria mais trabalhar — se liga a Gerard Winstanley, que pregava: o governo do rei é o governo dos escribas e dos fariseus, que só se consideram livres sé j são donos da terra e dos seus irmãos; mas o governo republicano é o governo da justiça e da paz, que não faz distinção entre as pessoas. Constitui o nervo do pensamento social dos socialistas utópicos, desde o Código da natureza de Morelly até a sociedade da grande harmonia de Fourier. Anima, agita e torna temível o pensamento revolucionário de Babeuf: somos todos iguais, não é verdade? Este princípio é inconteste; pois, a não ser que se esteja louco, não se pode dizer seriamente que é noite quando é dia. Então, pretendemos viver e morrer iguais como nascemos: queremos a igualdade efetiva ou a morte.
46 IGUALDADE E LIBERDADE
Do pensamento utópico ao pensamento revolucionário, o igualitarismo percorreu um longo trecho do caminho: contudo, a distância entre a aspiração e a realidade sempre foi e continua a ser tão grande que, olhando para o lado e para trás, qualquer pessoa sensata deve não só duvidar seriamente de que ela possa um dia ser inteiramente superada, mas também indagar se é razoável propor essa superação.
Bibliografia
Autores Vários, Egalité- Uguaglianza, organizado por J. Ferrari e A. Postigliola, Nápoles, 1990.
------- . Eguaglianza e egualitarísmo, Roma, 1978.------- . “Equality”, inNomos (número único), IX Yearbook ofthe
American Society for Political and Legal Philosophy, organizado por J. R. Pennok e J.W. Chapman, Nova York, 1967.
--------. “L’égalité” , inRevue internationaledephilosophie, XXV,1971, 97.
--------. I filosofi e l ’eguaglianza, Messina, 1991.--------. Studi sulVuguaglianza. Contributi alia storia e alia ti
pologia critica di una idea nell’areafrancese, organizado por C. Rosso, Pisa, 1973.
Benn, S. I e Peters, R. S., Social principies and the democratic State, Londres, 1959, caps. V-VI.
Bobbio, N., “Sulla nozione di giustizia” , in Teoriapolitica, 1 ,1, 1985, pp. 7-19.
Buch, H., Foriers, P. e Perelman, Ch. (orgs.), L ’égalité, vol. I, Bruxelas, 1971.
Cerri, A., Eguaglianza giuridica ed egualitarísmo, L’Aquila- Roma, 1984.
Dworkin, R.M., “Eguaglianza”, in Enciclopédia delle scienze sociali, Roma, 1993, pp. 478-91.
Gianformaggio, L., “Eguaglianza e differenza sono incom- patibili?” , in Autores Vários, II dilemma delia cittadinanza. Diritti e doveri delle donne, Roma-Bári, 1993.
Lakoff, S. A., Equality in political philosophy, Cambridge (Mass.), 1964.
Lucas, J. R., The principies ofpolitics, Oxford, 1966, pp. 55-60.
NORBERTO BOBBIO 47
Lukes, S., “II singolare e il plurale”, introdução a Berlin, I., Tra filosofia e storia delle idee, Florença, 1994, pp. 7-32.
Mangini, M., La giustizia egli ideali. Una critica delia giustizia liberale, Roma, 1994.
Martinelli, A., Salvati, M. e Veca, S., Progetto 89. Tre saggi su libertà, eguaglianza, fratemità, Milão, 1989.
Mateucci, N., “DeH’uguaglianza degli antichi paragonata a quella dei moderni” , in Intersezioni, IX, 1989, pp. 203-30.
Nagel, T., Equality and Partiality, Oxford, 1991 (trad. italiana: Iparadossi déll’eguaglianza, Milão, 1993).
Oppenheim, F. E., “L’eguaglianza come concetto descrittivo”, in Rivista di filosofia, LIX, 1968, pp. 255-75.
--------. “Uguaglianza”, in Dizionario di politica, dirigido por N.• Bobbio, N. Matteucci e G. Pasquino, Turim, 1976 (2® ed., 1983) pp. 1211-20. [Ed. brasileira: “Igualdade”, in. Dicionário de política, Brasília, Ed. da UnB, 1986, pp. 597-605.]
Perelman, Ch., De la justice, Bruxelas, 1945 (trad. italiana: La giustizia, Turim, 1959).
------- . Justice et raison, Bruxelas, 1963.Rawls, J., A theory ofjustice, Cambridge (Mass.), 1971. [Ed. bra
sileira: Uma teoria da justiça, Brasília, Ed. da UnB, 1981.]Rosanvallon, P., Le sacre du citoyen. Histoire du suffrage uni-
versel en France, Paris, 1992 (trad. italiana: La rivoluzione delVuguaglianza. Storia dei suffragio universale in Francia, Milão, 1994).
Sandel, M. J., Liberalism and the limits of Justice, Cambridge, 1982 (trad. italiana: II liberalismo e i limiti delia giustizia, Milão, 1994).
Sartori, G., Democrazia e definizioni, Bolonha, 1957, (3â ed., 1969), cap. XIV.
Sbarberi, F., “L’uguaglianza dei moderni” , in II Pensiero politico, XXIII, 1, janeiro-abril de 1990, pp. 52-77.
Sen, A., Inequality reexamined, Oxford, 1991 (trad. italiana: La diseguaglianza. Un esame critico, Bolonha, 1992).
Tawney, R. H., Equality, Londres, 1931 (trad. italiana: Opere, organizado por F. Ferrarotti, Turim, 1975, pp. 539-41).
Veca, S., La società giusta e altri saggi, Milão, 1988.Walzer, M., Spheres of justice. A defense o f Pluralism and
Equality, Nova York, 1983 (trad. italiana: Sfere di giustizia, Milão, 1987).
Williams, B., “The idea of equality”, in Prdblem of the self, Cambridge, 1973.