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DEUS MENDIGO TEOGRAFIAS L u i s C r u z V i l l a l o b o s H E B E L

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Versión portuguesa del poemario Dios Mendigo. Teografías, de Luis Cruz-Villalobos, que también forma parte del libro Poesía Teológica / Theological Poetry (Hebel, 2015).

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Page 1: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

DEUS MENDIGO

TEOGRAFIAS

L u i s C r u z V i l l a l o b o s

H E B E L

Page 2: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Page 3: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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DEUS MENDIGO

TEOGRAFIAS

L u i s C r u z V i l l a l o b o s

HEBEL Ediciones Arte-Sana|Poesía

Page 4: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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DEUS MENDIGO | TEOGRAFIAS

© Luis Cruz Villalobos

Poemario perteneciente a la obra:

Poesía Toda 1991-2011

© Luis Cruz Villalobos, 2012.

Registro de Propiedad Intelectual N° 213.820.

Santiago de Chile.

Traducción al portugués:

Flavia Romera y Jorge Barro.

Impreso en Chile

© HEBEL Ediciones

Colección Arte-Sana|Poesía

Santiago de Chile, 2012.

www.benditapoesia.webs.com

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Dedicado ao Logos empobrecido;

A Enrique e a Carmen;

A J. Caputo y G. Vattimo;

E à memória de Facundo Cabral

recém assassinado.

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θεον ουδεις εωρακεν πωποτε μονογενης θεος

ο ων εις τον κολπον του πατρος εκεινος εξηγησατο

João 1:18

A PORTA DA CATEDRAL

Nas portas das catedrais

Juntam-se os loucos e os pobres

Estiram-se no chão

Nos degraus de mármore milenário

Cheiram mal

Vêem-se horríveis com seus trapos

Espantam aos devotos dignos

Que nem ousam olhar a tais sujeitos

E passam de longe com piedade nos olhos

Conta a lenda

Que um dia Deus se disfarçou de mendigo

E se recostou junto à porta principal

Da catedral mais esplendorosa

Contam que com o passar dos dias e das noites

Desse mês invernal

Deus morreu de frio e de fome

Também contam alguns

Que isso ocorreu

Que não é simples lenda

Desde então as catedrais estão vazias

Deus ressuscitado foi refugiar-se em outra parte

Contam que vive feliz por esses dias

Em uma tenda de ciganos perto de um porto.

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DEUS MENDIGO

Este Deus verdadeiro

Absoluta substância única

(tudo mais é robusto porvir)

É muito divertido

É um apaixonado pela vida

E pelos sorrisos simples

Aclaremos que é sério também

Pois a vida é dolorosa

Por etimológica definição

Em um desses lúdicos tropeços

Nosso Senhor do céu e da terra

Vestiu-se de mendigo

Elegendo-o como seu traje predileto

E para o cúmulo da ironia

Sempre leva consigo

Um texto de Mark Twain

Como sua Bíblia sacra santa

O príncipe e o mendigo!

Este é o texto sagrado!

Costuma gritar pelas ruas

Levantando o velho texto

Com sua mão tremula

Arrependam-se príncipes e princesas!

De vossa vida de mendigos!

Grita a boca de jarra

E o povo o olha e sorri

A esquizofrenia é engraçada

Quando não a tenho eu mesmo

Ou um familiar que se ama

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O Deus mendigo

Perambula pregando pelas praças

E costuma descansar de suas pregações

Dando seu pão às pombas

Em profundo e litúrgico silencio.

Page 10: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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O DEUS-PARDAL

Se Deus existisse

Nada mudaria

Dizia Sartre

Desde sua estrábica perspectiva

Mas está claro

Que o deus platônico

Ou o aristotélico

Ou o não-deus do príncipe Gautama

Ou o Logos estóico

Ou o de Spinoza

Enfim

Nada poderiam mudar

Como o deus deísta

Relojoeiro louco

Falante distante

Impotente por definição

Apático por essência suprema

Esse Deus

Nada

Zero a esquerda

Definitivamente

Sartre estava certo

Zero aporte

Um Deus frio e calculista

Impávido

Nada

Mas não me poderão negar jamais

Que o Deus-pardal

O Deus empobrecido

O Deus apaixonado por sua obra de arte

O Deus louco por amor

O Deus kamikase

Este e só este Deus

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Muda tudo

Tudo deixa em desconstrução

Como os dançarinos átomos.

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DEUS ENFERMO

Um dia Deus se enfermou de câncer

Começou a emagrecer

Rapidamente

Olheiras

Voz pastosa

E ninguém o visitava

Na sala de hospital público

Essa sala fria e alta

Com camas metálicas

De um branco que algum dia o foi

Deus olhava

A seus companheiros de sala

Todos enfermos do mesmo inferno

Todos longe

Perto da morte

Cheios de dores

Como ele

Mas em sua maioria acompanhados

Deus por sua vez

Em uma ocasião

Despertou justo à meia noite

E como nunca

Pensou imediatamente

Na morte

Sua morte

Mas não a redentora

Não morte simbólica

Não morte mítica nem cósmica

Senão uma morte

Como dessas que abundam

Uma morte solitária

Fria

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Triste e vazia

Uma morte absurda

Tragou saliva

Olhou pela janela

E viu um pomar florescido

Fechou os olhos

Respirou profundo

E chorou.

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VISITA AO SENHOR

Um dia triste

Brigado com minha doce mulher

Cheio de uma amargura

Que não podia esconder-se

Fui a refugiar-me

No lar do Senhor

Vivia por aqueles tempos

Em um edifício antigo

Perto do Parque Florestal

Seu apartamento era simples

Mesa

Dois sofás

Três cadeiras

Oito quadros de óleo

Vários livreiros

Discos antigos e novos

Enfim

Um lugar normal

Claro e cálido

Como tem que ser

A casa de um amigo de verdade

Ai estava eu

Com umas quantas lágrimas

A ponto de escapar

Subindo o elevador veterano

Piso sete

Porta setenta e sete

E eu tocando sua campainha

Ele abre

Olá

Brigou com ela

Page 15: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Diz lendo meus olhos

Sim

Respondo em silêncio

Entra

Trago-te um café

Sentamos

Silêncio

Silêncio

Meu e d´Ele

Silêncios que se juntam

E se compreendem

Logo se põe de pé

Passa sua mão pelo meu ombro

E me diz

Deixo-te de dono de casa

Pois devo sair para um encontro

Então fico só

Olhando o entardecer

De perfeita e móvel aquarela

Pelo balcão

Em profunda paz.

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A ESPÍRITO DE DEUS A todas elas

A Espírito de Deus

É sensível e terna

Como um sopro

Alento delicado

É como uma donzela

Que se transforma em beija-flor

E se posa no ar

Para beijar as flores

E deter-se sobre as águas

Para criar a vida

No início dos tempos

A Espírito de Deus

Feminina e doce

Como mãe e avó

Foi-se a viver

No coração das crianças

Também no pão

Na geléia de amora

E na água das vertentes

A Espírito de Deus

Um dia recordo haver-la visto

Como branca pomba

Empapada pela chuva

Na cornija do antigo templo

Desconsolada

Tremendo de inverno

Ao ver ao longe

No monte da caveira

Ao seu amado construtor

Jovem robusto e claro

Morrendo a morte

De todos os malditos e condenados

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INALANDO ACETONA Às crianças e jovens do porto

Era de noite

Às portas do mercado

Do malcheiroso porto

E ai se foi a dormir

Deus onipotente

Criador do céu e da terra

Curiosamente ninguém o desconheceu

E deixaram-no um espaço

No meio dos corpos

Úmidos e sujos

Essa noite foi especial

As crianças dormiam tranqüilas

Sem frio

Sem fome

E a acetona não teve a ver

Não foi obra de sua magia

Mas Deus essa noite

Sobressaltou-se com pena e pudor

De frio e de fome

Inclusive descobriram-no inalando

Aquela substância milagrosa

Que o distanciou da miséria.

Page 18: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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DEUS ATEU Em memória de A. Schopenhauer

Um dia

Nublado e frio

Deus se fez ateu

Não creu mais

Negou-se a confiar

Na vida de além-mundo

Na esperança eterna

No amor universal

Deus sem Deus

Caminhava cabisbaixo

Pelas ruas da urbe

Parecia um mortal qualquer

E começou a emagrecer

Seu coração se tornou fel

E deixou de falar

Deixou de sorrir às crianças

Ali ficou

Um dia qualquer

Depois de vários anos

Sentado em um parque

Olhando seus sapatos

Ruminando solidões

Com seu abrigo negro

Suas mãos nos bolsos

Em silêncio

E chegou o guarda do parque

Pensando que era um mendigo

E o Senhor

Que faz aqui

O disse inquiridoramente

Page 19: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Deus lentamente

Levantando a vista

O olha desde o fundo

É exatamente

O que me tenho perguntado

Já por vários meses

Responde Deus sem Deus

Quase morto de vergonha.

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VELHO DEUS

Deus

Misteriosa e inexplicavelmente

Considerando sua excelsa natureza

Um dia se fez velho

Não podia mastigar bem

Já não controlava o esfíncter

Começou a esquecer as coisas

E a repetir as mesmas histórias

Seus filhos e filhas

Puseram-se seriamente de acordo

E levaram-no a um lar

Onde o cuidariam bem

E ali ficou Deus

Esquecido

Hoje o podem ver conversar

Com seus amigos

Que às vezes andam por outros mundos

Baixo as altas doses de benzodiazepinas

E costuma repetir suas aventuras

De como esculpiu a seu querido Adão

Como surgiu da

Como dividiu o mar vermelho

Como multiplicou os pães

Como deixou vazia a tumba

E de como um dia próximo voltará em glória

Fazendo voar pelos ares

Lugares como esses

Onde o foram a deixar

Aqueles e aquelas que ele tanto amava.

Page 21: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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DEUS VERMELHO À Patrícia

Nesses dias estranhos

De supor e de ilusões

Deus decidiu somar-se

Às filas da vermelha revolução

Era estranho n’Ele

Apoiar uma causa tão dura

Especialmente uma causa

Onde se o considera ausente

Mas ali estava

Um a mais nas milícias

Que lutaria pelo povo

Até que o povo

Fosse o que sempre devia ser

Seu próprio dono

Livre e soberano

Recordou

Para motivar-se

Esses parágrafos de São Lucas

Onde descrevia a primeira comunidade

De nazarenos em Jerusalém

Como irmãos e irmãs

Que vendiam todo o seu

Pessoal

Privado

Para fazer nosso

De todos e cada um

E encontrou sentido

Ao seu gesto de utópica decisão

Ali estava Deus

Sendo adestrado

Por esses jovens sonhadores

Page 22: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Que haviam chegado da ilha

E manejavam ao dedo

Rifles e fuzis

Bombas e explosivos

Enfim

Ferramentas de mudança

Recursos para a vermelha transformação

Deus tinha dúvidas

Em especial

Quando aprendeu a usar

Aquelas curvas facas

De fio sem igual

Essas deviam dar uma veloz saudação

Pelas gargantas dos infelizes

E pronto

Como quem diz basta

O treinamento foi completo

Aprendeu a esquecer os nomes

E os números

Fez-se especialista em amnésia

Para resguardar os companheiros

Mas uma noite

A mais escura de todas

Enquanto Deus meditava em silêncio

Soldados vestidos de guerra

Capturaram-no em sua casa

E levaram-no cego

Às salas desconhecidas

Onde conheceu a morte de muitos

Onde aprendeu de golpes

O rosto mais macabro dos homens

Onde soube que muitos daqueles

Que ele havia criado para o amor

Não eram mais que demônios encarnados

Page 23: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Bestas sem consciência

Que arrancavam palavras

Com a violência mais especializada e grosseira

A mais barata e sinistra

Deus chorou

Nunca o haviam feito algo desse modo

Chorou de medo

De vergonha

De raiva

De fome e de sede

De asfixia repetida

De espasmos elétricos

De pudor violado

De silêncio fiel e viril

Deus

Vermelho

Ensangüentado

Sonhador

Equivocado ou não

Não importa

Quem sabe onde ficou

Não houve lápide

Não houve tumba

Foi um desaparecido.

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TAXISTA Ao Sr. Manuel

Por um tempo

Um par de anos

O Senhor todo poderoso

Criador dos céus

Tomou o oficio de taxista

Costumava contar histórias

Aos estressados passageiros

Perguntava sobre a atualidade

E cobrava o justo

Talvez um pouco menos

Pois sabia daquele costume

Das grandes urbes

Do fique com o troco

Assim Deus

Salvou muitas vidas

Pois cada dia

Deixava uma semente

Nos corações de seus passageiros

Quem respondiam

Em geral

Com um surpreso sorriso

De gratidão

Ante o obsequio inefável

Daquele lapso de misteriosa paz.

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ESCRITÓRIO E DEMISSÃO

Deus trabalhava em um escritório do centro

Cubículo pequeno

Com um ar acondicionado

Que nunca funcionou

Preparava café para o chefe

Corria de lá para cá

Toda a afanada manhã

De banco em banco

E em ocasiões se sentava na praça

Olhava as pombas

Comia um sanduiche

Um suco de caixinha

E seguia sua sina pulando o almoço

À volta pra casa pela tarde

Para o Senhor perene

Era igual ao traslado de madrugada

Hora e meia

Transbordos de ônibus-metrô-ônibus

Apertões e empurrões

Pouco ar

Sonolência

Deus chegava cansado

Fatigado das tarefas

Ligava a TV

Assistia algo das noticias

E dormia no sofá

Para logo despertar com cãibras

E ir para sua cama

Essa manhã foi tudo igual

Para nosso Senhor

Despertador insistente

Ducha

Pão com queijo

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Café forte

E logo ônibus-metrô-ônibus

Corrida de quatro quadras

Elevador cheio para o décimo andar

Cartão marcado

E já

Mas essa vez

Sobre sua mesa

Um envelope

Por necessidades da empresa

Prescindimos de seus serviços

Passe para buscar seus papéis

Diante de cinco anos

Que terminavam de bruços

Deus se sentiu mal

Muito mal

Nunca lhe havia acontecido

Demitido

Pensou

Saiu à rua

Com todo o tempo livre pela frente

Com todo o tempo inútil

Com todo o tempo vazio

Comprou um jornal

Para ver um trabalho

Mas era complicado

Nosso onipotente Deus

Não tinha estudos terminados

Assim a busca durou dias

Semanas e meses

O pobre não agüentava mais

Page 27: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Passou pela sua mente

Começar a beber

Saltar de uma ponte

Mas não

Como não ia aparecer um trabalho

Um simples trabalho

Para ele que tinha a disposição

E a necessidade

Mas nada

Faz um ano e três meses

Que Deus está sem trabalho

E as contam se acumulam

O crédito do instituto

A água

A luz

Deus ex-administrativo

Agora desempregado

Olha o calendário

E lhe parece infinito

Para Ele

Que criou o infinito.

Page 28: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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DEUS ILEGAL Aos milhões de indocumentados

Como todos sabem

Nosso Deus justo e amoroso

É estrangeiro

No planetário sentido da palavra

Uma vez lhe pediram seus documentos

E a policia não ficou satisfeita

Além disso, seu sotaque

Seu tom de pele

Seu ar suspeito

Tudo indicava que teria que ir

Nem para turista seria aceito

Tomaram-lhe de solapa

Revistaram-lhe até as cuecas

E deixaram-no na fronteira

Humilhado

Partiu Deus a buscar outro lugar

Mas a história se repetiu

Este ilegal de merda

Que faz aqui

Veio a roubar-nos

A ocupar nossos trabalhos

Que se vá esse maldito

E de fronteira em fronteira

O Deus único

Criador da terra e dos mares

Indocumentado

Partia a procurar um lar

Mas nada

Era estrangeiro em todas as partes

Page 29: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Por último

Simplesmente decidiu

Usar caminhos fronteiriços ocultos

E viver na clandestinidade.

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DEUS DOWN Ao sonho de Cristian A.

Deus

Um dia apareceu pelas ruas

Com um rosto especial

A inocência era a aureola de seu rosto

E a fria abstração se distanciou de sua mente

Deus Down

Alegre

Cândido

Criança

Amor

E carinho encarnada

Muitos pensaram que era mais um outro

Desses meninos

Que o destino havia marcado

Com essa dolorosa trissomia do par 21

Más não

Era Deus

Deus mesmo

Diminuído em onisciência

Mas aumentado em simplicidade

E em espontâneo beijar

O Mestre

Já não tinha resposta às perguntas

Já não discutiria com Nicodemos

Nem com Gamaliel

Com Hegel

Nem com Nietzsche

Simplesmente sorriria

E cantaria sua canção breve

Daria um aplauso

E seguiria as borboletas

Page 31: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Deus Down

Cheio de amor para semear

Cheio de instante

Aqui e agora

Para sempre.

Page 32: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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O “DEUS” GUERRA Às crianças do oriente médio

Enquanto Deus

O único e verdadeiro

Vestia-se de criança

Mefistófeles colocou seu traje de neon

E foi a seduzir pela terra

Dedicou-se como sempre

Aos reis do momento

E com suas comidas de poder e glória

Instaurou a guerra

Multitudinaria

Infernal

Insuportavelmente memorável

E Deus

Ali estava

Vestido de criança

Chorando junto aos outros

Enquanto soava a sirene

Dos bombardeios

Contam que estava em um refúgio

Quando os verdugos libertários

Lançaram o míssil exato

Justo pela chaminé

(logo se elogiariam a si mesmos por tanta pontaria)

E fizeram voar em pedaços os corpos

De todos os meninos e meninas

Que aquele dia

Ocultavam-se ali do inferno

E que não entendiam

Nem entenderão pela eternidade toda guerra.

Page 33: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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FILHA – MÃE – SOLTEIRA

Deus teve uma filha

Que se engravidou

Sendo solteira

O Senhor se alegrou diante da notícia

Pelo milagre da vida

Sempre dom profundo

Mas também se agarrou a cabeça

Com suas duas mãos gastadas

Pensando onde foi que havia errado

Minha pequena

Jovenzinha de tão só quinze

Como foi possível

Perguntava-se e a olhava de longe

No que falhei

Seguia se perguntando

Dormia de noite

Durante os meses da gravidez

Pensando em seu neto

(que já sabia o nome)

E o imaginava correndo

Indo com ele ao estádio

Ou empinando pipa no parque

No entanto todas as manhãs

Ao despertar descobria

Cada dia com menos surpresa

Que seu travesseiro

Estava molhado.

Page 34: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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DEUS DEFICIENTE A Carla

Ninguém sabe como

Um dia Deus apareceu em cadeira de rodas

Alguns pensaram que era uma brincadeira

Que não era possível

Que Deus andasse assim

Mas ai estava

Com um dano a nível lombar irreversível

Era difícil para muitos

Seguir crendo n’Ele

O Todo-poderoso

O - responde - desejos

Milagroso por definição

Nesse estado

Mas a Ele não lhe importou

E ai estava

Com suas pernas sem sensibilidade

Necessitando que o ajudassem

A subir escadas

Ao se instalar nos ônibus

Enfim

Um Deus deficiente

Deus sorria

Apesar de seu estado

E todos começaram a duvidar de seu juízo

De fato várias devotas

Deixaram de acender suas velas

E outras se mudaram a seitas prometedoras

Mas ai Deus

Com seu rosto sorridente

Com sua bela atitude de esperança

Page 35: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Saia cada manhã a enfrentar a jornada

Que dia mais lindo!

Ajuda-me a atravessar rua, por favor

Eram suas primeiras palavras

Page 36: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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ÓRFÃO E VIÚVA A Ernesto Cardenal, por exemplo

O mesmo que fez dançar

O primeiro átomo de hidrogênio

E que sabe o número de galáxias

Costuma visitar os órfãos

E as viúvas

De noite

Sussurra- lhes uma canção

No ouvido

Beija-lhes a testa

E se vai triste

Desejando fazer-se carne

Fazer-se pai-mãe palpável

Fazer-se esposo-esposa visível

Mas já não pode

É outro o projeto

Por isso

Parte fugaz

Como vento espectral

A sussurrar a mesma toada

Ao ouvido dos que o tem

Um amor extremista

Indiscriminado

Fundo

E que estão e estiveram dispostos

A serem os pais-mães-esposos-esposas

Dos desolados da terra

Page 37: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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A PERDA A Maxy

Contam que muitos anos atrás

Deus vivia tranquilamente

Com sua esposa e seu filho pequeno

E um dia qualquer

Seu filhote amanheceu muito enfermo

Levaram-no ao hospital público mais próximo

Em um taxi que pagaram

Com notas e moedas

Que não lhes sobraram

E o deixaram nas mãos de médicos

Passaram as horas

E Deus ansioso e cansado

Olhava o relógio na parede

Médicos e enfermeiros corriam

De lá para cá

Daqui pra lá

Deus continuava ali

Mordendo as unhas

Junto a sua esposa

Sem saber o que pensar

Finalmente um médico aparece

Pela porta da UTI

E com voz séria e contida

Anuncia-lhes

Como explosão estrelar

(supernova de dor)

A morte de seu filho

Seu amado

Deus abraça a sua esposa

E ambos se aferram um ao outro

Page 38: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Sabendo ser o único que tem

E entre soluços e silêncio

Buscam consolo

Até hoje.

Page 39: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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SUA HORA Al joven albañil de Nazaret

I. Prelúdio

E ai estava Deus

O haviam despido

Vergonha do Cosmos

Despido como um menino

Logo lhe puseram em cima

Um manto sujo

Como de rei do sarcasmo

Deus despido

Deus vestido de piada

E recém começava

A mais profunda tortura

O escárnio sideral

Coroa de espinhos

Do lixo dos campos

De material desprezado

Que agora abraçava a cabeça

Do Soberano Criador

Despido e revestido de humilhação

E um cetro

Como rei digno de levar esse nome

Não teria seu próprio cetro?

Para Ele um pedaço de pau enfarpado

Um pau seco e encurvado

Para sua destra do Rei-miséria

Agora cospem em sua face

Page 40: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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O sangue se dilui

E desce até sua barba e ai se confunde

Meu Deus

Despido e recoberto de escárnio

Coroado de dor e com cetro de pau

Agora choro e sangue e saliva de iníquos

Lava seu rosto de Deus

Que incompreensivelmente

Parece a encarnação da impotência e miséria

Mas não basta

É necessário fixar bem a coroa

E com seu mesmo cetro golpeiam sua cabeça

E os espinhos perfuram mais fundo

E a dor vermelha desce e cai ao chão

E caem com ele

As últimas gotas de dignidade que restavam

Ao nosso Deus

Ao nosso Criador Eterno

Ao Verbo feito carne

Carne de matadouro

Carne de sacrifício

Por tua vida e pela minha

II. Vitória frente a Tentação Final

Ao longe

E cada vez mais perto

O monte da caveira

Essa que sempre gratifica a morte

Gólgota de antes e de hoje e de amanhã

O monte da caveira esperava

E sem poucos tropeços

Page 41: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Nosso Deus feito pó caminhava

Com o peso do mundo

Em seus ombros de Homem – Deus Filho

E a hora exata chegava

O Filho devia ser lançado

Para que atraísse a todos com seu olhar

Com sua cruz reconciliadora

Do céu e a terra

Ali estava o Senhor

O Kürios absoluto

Novamente nu

Mas esta vez ninguém cobriria seu corpo

Nem por piada nem por compaixão

Despido

Com a vergonha do Universo na pele

E com sua coroa de espinhos

Como única indumentária

E começou a chegar a seu ouvido

Assim como tantas vezes

Mas agora a voz se fazia potente

Como coro infinito

Multidão polifônica que gritava

Não morras!

Se tu és o Rei

O Cristo

O Filho de Deus

Não morras!

E Satã em seu interior gemia

A súplica como rei tentador

Não morras, por favor!

Filho do Altíssimo não morras

Page 42: Deus Mendigo. Teografias (2012). Luis Cruz-Villalobos

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Que se morres me mata

Que se morres eu morro para sempre

E deixo meu reinado

Não morras Deus!

Jesus misericordioso tem piedade de Ti!

E não morras pelo amor de Deus

Se salvaste a outros, salva-te a Ti mesmo

Se curaste a outros, cura-te a Ti mesmo

E não morras

Satã com mil vozes

Cantam e entoam o hino

Da tentação final

Não morras!

Mas Cristo vence

Jesus

Com o coração destroçado

Pela ira do Pai contra todo o mau

Com o rosto contorcido

Pela dor do abandono

Pela dor da negação

De Deus a si mesmo

Grita por ti e por mim

Desde o profundo inferno da alma

Deus meu, Deus meu

Porque me desamparaste!

E no templo de Jerusalém

Momentos depois

Escuta-se a resposta do Pai

Ao romper o véu do templo

Que simboliza a separação

De Deus com os homens

O véu se rasga de cima a baixo

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E Deus canta

Abandonei-te para que todos cheguem a mim

Por meio de Ti

Filho amado

Carreguei em Ti

-Em nós-

O pecado deles

Para assim recebê-los e acolhê-los e amá-los

O Filho venceu com sua morte

Pagou nossa dívida

Cobriu o abismo

Triunfou sobre sua última tentação

Morrendo

Como a semente que cai na terra

Para logo renascer

E trazer muito fruto de vida nova e eterna

Para todos os que o acolhem

Com fé e esperança.

F I M

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POSLÚDIOS

Como é possível, logo de Auschwitz, a fé em Deus e o ser

homem? Não sei. No entanto me ajuda a história que

conta E. Wiesel em seu livro sobre Auschwitz (Night). Dois

homens judeus e um menino foram enforcados

intencionalmente na presença de todos os presos. Os

homens morreram em seguida. Os tormentos do menino

duraram um longo tempo. “Então gritou alguém detrás

de mim: Onde está Deus? Eu calei. Ao cabo de meia

hora voltou a gritar: Onde está Deus? E uma voz dentro

de mim respondeu: Onde está Deus? Está ali pendurado

na forca.”

Jüngen Moltmann

Meu sofrimento e o dos demais são e permanecem sendo

um mistério. A dor de um inocente é um escândalo. É

inútil solucioná-lo com a chave da lógica. Por favor, não

maltratemos o mistério. Evitemos nossas pretensões de

explicações lógicas. Alem disso, já encontrei a resposta.

Não é uma resposta convincente intelectualmente e nem

sequer exaustiva desde um ponto de vista racional. Algo

melhor. Abro o Evangelho e me encontro com Cristo ante

o sepulcro de seu amigo Lázaro. Está rodeado por uma

multidão que mastiga seus próprios por quês: Não podia

ele, que abriu os olhos do cego, fazer que não morresse

este? (João 11:37). Encontramo-nos diante do estúpido

dilema de sempre: Ou Deus não pode impedir o mal, ou

então não é onipotente, ou é que não quer, e então não

é bom. Cristo não responde diretamente a pergunta.

Responde com duas palavras: “Jesus chorou”.

Sobra-me com esta imagem: o rosto de Deus sulcado

pelas lágrimas. Já não me interessam os doutos volumes

sobre o problema do sofrimento. Basta-me com esta

noticia. Deus não quer os sofrimentos de suas criaturas.

Deus não aceita tranquilamente a dor humana.

Deus chora. Basta-me isso. Agora posso expressar-te meu

agradecimento por essas lágrimas mais convincentes que

todas as explicações.

Alessandro Pronzato

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Era desprezado e o mais indigno entre os homens, homem

de dores, experimentado nos trabalhos e, como um de

quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e

não fizemos dele caso algum. Verdadeiramente, ele

tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores

levou sobre si; e nós o reputamos por aflito, ferido de Deus

e oprimido. Mas ele foi ferido pelas nossas transgressões e

moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a

paz estava sobre ele, e, pelas suas pisaduras, fomos

sarados. Todos nós andamos desgarrados como ovelhas;

cada um se desviava pelo seu caminho, mas o Senhor fez

cair sobre ele a iniquidade de nós todos. Ele foi oprimido,

mas não abriu a boca; como um cordeiro, foi levado ao

matadouro e, como a ovelha muda perante os seus

tosquiadores, ele não abriu a boca. Da opressão e do

juízo foi tirado; e quem contará o tempo da sua vida?

Porquanto foi cortado da terra dos viventes e pela

transgressão do meu povo foi ele atingido. E puseram a

sua sepultura com os ímpios e com o rico, na sua morte;

porquanto nunca fez injustiça, nem houve engano na sua

boca. Todavia, ao Senhor agradou o moê-lo, fazendo-o

enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do

pecado, verá a sua posteridade, prolongará os dias, e o

bom prazer do Senhor prosperará na sua mão. O trabalho

da sua alma ele verá e ficará satisfeito; com o seu

conhecimento, o meu servo, o justo, justificará a muitos,

porque as iniquidades deles levará sobre si. Pelo que lhe

darei a parte de muitos, e, com os poderosos, repartirá

ele o despojo; porquanto derramou a sua alma na morte

e foi contado com os transgressores; mas ele levou sobre

si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu.

Isaías 53:3-12

De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve

também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus,

não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se

a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se

semelhante aos homens; e, achado na forma de homem,

humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e

morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou

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soberanamente, e lhe deu o nome que é sobre todo

nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho

dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e

toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para

glória de Deus Pai.

Filipenses 2:5-11

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