desgranges, flávio. teatralidade tátil

Upload: clownmunidade

Post on 14-Apr-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/30/2019 DESGRANGES, Flvio. Teatralidade ttil

    1/9

    O

    TTTTT ea t r a l i dade t t i l : a l t e r aes no a to do e spec tadorea t r a l i dade t t i l : a l t e r aes no a to do e spec tadorea t r a l i dade t t i l : a l t e r aes no a to do e spec tadorea t r a l i dade t t i l : a l t e r aes no a to do e spec tadorea t r a l i dade t t i l : a l t e r aes no a to do e spec tador

    FFFFF lvio Desgranges

    Flvio Desgranges professor do Departamento de Artes Cnicas e do Programa de Ps-Graduao emArtes Cnicas da ECA-USP.

    O que advm, com o desaparecimento

    da iluso e o declnio da aura nas obras de

    arte, um crescimento considervel de

    possibilidades com as quais podemos jogar

    (Walter Benjamin).

    modo de atuao proposto ao espectadorvem sofrendo alteraes significativas nosltimos sculos, em dilogo estreito comas transformaes observadas, tanto nas

    propostas formais dos artistas, quanto nocontexto social dos diversos perodos, dandoconta do carter histrico que condiciona a re-cepo teatral. Pois a relao do espectador como teatro est intimamente relacionada com amaneira, prpria a cada poca, de ver-sentir-pensar o mundo. As reflexes seguintes buscamelaborar algumas caractersticas e distines quemarcam os movimentos teatrais que, desde oIluminismo, vm operando transformaes sub-seqentes e que constituem traos marcantespara compreendermos o ato do espectador emnossos dias. Ressaltarei aqui, especialmente, as-pectos da teatralidade recente, em que, como

    tentarei descrever, a recepo passa a ser com-preendida por seu carter de experincia, que,

    para se efetivar, depende de uma disponibilida-de distinta do espectador, inaugurando outromodo participativo. Alm de alterar significati-vamente a noo de obra de arte, que deixa deser concebida com a aura que a envolvia tradi-cionalmente. A produo teatral pode ser con-siderada, desde ento, no como obra, mascomo objeto artstico, passando a assumir fun-o social bastante diversa daquela compreen-dida at ento.

    O mergulho no universo ficcionalO mergulho no universo ficcionalO mergulho no universo ficcionalO mergulho no universo ficcionalO mergulho no universo ficcional

    Afinado com os ideais iluministas que propu-nham importantes reformas polticas e sociais,o drama burgus se afirma no decorrer do scu-lo XVIII em contraposio tragdia neocls-sica, que predominava nos palcos europeus deento especialmente na Frana , filiada aospreceitos absolutistas da nobreza dominante.Essa forma dramtica, que acompanha o nasci-mento e o estabelecimento da classe social quelhe empresta o nome, vai, aos poucos, afastan-do as antigas convenes e estilizaes da cena,

    em conformidade com o refinamento de seuspropsitos estticos.

    11

    R1-A2-FlavioDesgrandes.PMD 15/04/2009, 08:2411

  • 7/30/2019 DESGRANGES, Flvio. Teatralidade ttil

    2/9

    sssss a l a ppppp r e t a

    12

    A renovao artstica que marca a transi-o da tragdia classicista e herica para a for-ma dramtica nascente se faz, pois, em tensocom as lutas da burguesia em ascenso no per-odo. O programa e a apologia do drama burgu-s so realizados por dramaturgos o inglsLillo, os franceses Diderot e Mercier, e o ale-mo Lenz que, alm de escreverem as novaspeas, articulam tambm os tratados tericosque defendem e justificam as mudanas na arteteatral. O drama surge como crtica ao existen-te, valendo-se de argumentos e solues formaisque mantm em tenso as naturezas poltica epotica de seus princpios. Os embates da novaforma dramtica se colocam em consonnciacom as reivindicaes da classe social que ideali-zava as transformaes poltico-sociais em curso.So colocados em jogo, deste modo, aspectosfundamentais do Iluminismo: a constituio dehomens livres, capazes de traar seus prpriosrumos, para alm de qualquer submisso polti-ca; a defesa pelo direito de cada um conscin-cia religiosa; e o estabelecimento de bases moraisque fundamentem o progresso da humanidade.

    Em defesa dos princpios dramticos, os

    tericos burgueses se relacionam de maneira cr-tica e revisionista com os escritos de Aristteles,que inspiravam a tragdia herica em voga. Paraafirmarem seus postulados artsticos, relacio-nados com a defesa de suas causas polticas,precisam partir para o embate no mbito con-ceitual, questionando a leitura da Potica em-preendida pelos tericos de ento. As interpre-taes dos escritos aristotlicos se mostram, deambos os lados, carregadas pela luta deflagradano palco histrico do perodo pelas classes so-ciais em conflito.

    Uma das questes de fundamental impor-tncia para que o drama burgus se afirme estna possibilidade de que personagens pertencen-tes a essa classe social se tornem protagonistasdas novas peas. Pois, como anota Diderot, asregras do teatro clssico indicam que, se quiserrepresentar uma fbula trgica, o dramaturgodeve escolher personagens de condio princi-pesca, reservando os burgueses ao estilo baixo

    da comdia jocosa (Diderot, 2005, p. 19).George Lillo, para defender o ponto de vista dosdramaturgos burgueses, argumenta que o heritrgico no precisa necessariamente ser um no-bre, mas um homem com esprito nobre(Szondi,2004). E ressalta que no se encontra emAristteles uma definio taxativa sobre a con-dio principesca do heri. A nobreza, sugere oautor ingls, precisa ser aferida pelo carter deum homem, por sua fala, por suas decises, eno por sua condio social. Assim, um cida-do comum ou, mais especificamente, umburgus tambm pode ser tomado como he-ri nas peas teatrais. Alm do que, a ampliaoda condio de nobreza do heri pode signifi-car a prpria ampliao do alcance do teatro,que no precisa mais se restringir a um peque-no segmento da sociedade, mas pode interessare atingir um vasto contingente da populao.Ou seja, segundo a astuta argumentao deLillo, no o burgus que depende do teatro,mas o teatro que depende do burgus.

    Outra importante questo levantada noperodo acerca da leitura daPoticase refere aosefeitos da tragdia em sua relao com o pbli-

    co. A noo, largamente difundida ento, deque a poesia dramtica se caracterizaria peloensinamento que pode proporcionar aos espec-tadores, que poderiam aprender com os erroscometidos pelo heri, advm j de uma reinter-pretao de Aristteles realizada pelos tericosrenascentistas. E que foi aproveitada pelos te-ricos burgueses no Iluminismo para a concep-o dos princpios da nova arte dramtica. Odrama burgus utiliza-se deste potencial deaprendizagem, j presente nos efeitos da tra-gdia herica, com o intuito de ampli-lo (comadaptaes), estabelecendo uma tenso entre anova forma e os propsitos da burguesia em as-censo. A fbula deve servir como um exemplopara a conduta na vida; um exemplo negativo,do qual se podem tirar lies.

    Os efeitos do drama burgus esto, assim,voltados para a correo de comportamentosdesregrados, que possam ser considerados comoprejudiciais ao bem-comum e que contrariem

    R1-A2-FlavioDesgrandes.PMD 15/04/2009, 08:2412

  • 7/30/2019 DESGRANGES, Flvio. Teatralidade ttil

    3/9

    TTTTTeatralidade ttil: alteraes no ato do espectador

    13

    os interesses da sociedade. A catarse aristotlica,por sua vez, passa a ser compreendida como va-zo sentimentalidade, a purgao entendidacomo correo pelas lgrimas.

    O drama burgus, surgido em tempos deafirmao do ncleo familiar, faz das reprimen-das de conduta seu efeito primordial. Comodestaca Lillo, convm ao palco alertar a juven-tude dos vcios destrutivos (Szondi, 2004,p. 38). As tramas se voltam prioritariamentepara a apresentao e a recriminao de falhasindividuais, como a incapacidade de organizarseus apetites irracionais, seus desejos mundanos,e a valorizao do amor familial e do compor-tamento respeitoso entre os membros do lar,base da sociedade burguesa. Tudo em nome dosideais iluministas de constituio de sujeitoslivres, capazes de gerir por si mesmos as suasopes de vida, mas sem perder de vista o com-promisso moral em sua relao com as institui-es sociais, especialmente aquelas que ganhamterreno nesse momento de transio para a ti-ca burguesa.

    A fora dramtica de convico e de per-suaso se estabelece em cena como uma cortina

    de lgrimas, que ser rasgada e revelada em seusmeandros, mais tarde, pelos dramaturgos eencenadores modernos. A relao do espectadorcom a cena teatral se v caracterizada por forteenvolvimento emocional, marcada por identi-ficao irrestrita com o protagonista. Colado pele do heri, cada indivduo da platia vivenciaos acontecimentos que constituem a sua trajet-ria: suas dores, sofrimentos, agruras, e tambmsuas alegrias, descobertas, resolues. As peri-pcias do protagonista so cuidadosamente con-cebidas de maneira a produzirem importanteslies para o pblico. O espectador se v convi-dado a vivenciar com o heri, no apenas as suasfalhas, mas, e principalmente, as reprimendasque lhe so impostas no decorrer da trama.

    Para se adequar aos princpios do drama,em sua busca por caracterizar o palco como fra-o da prpria vida, e propor ao espectadorenvolvimento e comoo, a cena precisa aban-donar qualquer recurso em que a teatralidade

    esteja revelada. Dessa maneira, os coros, o ver-so, os maneirismos e exageros dos atores, a des-continuidade das cenas, os apartes, ou qualquermodo de relao direta com o pblico vo pou-co a pouco sendo abolidos.

    A caracterizao psicolgica de cada per-sonagem torna-se, a partir de ento, fundamen-tal na definio do encadeamento da ao e nasustentao da coerncia da trama. O dramaburgus se compe a partir da psico-lgica, emque a constituio dos aspectos individuais tor-na-se eixo para a composio da lgica dasaes. Se na antiguidade o destino geria as peri-pcias dos heris, em tempos iluministas, deconstituio de sujeitos livres e de rompimentocom a inexorabilidade das determinaes divi-nas, a trajetria de cada ser humano precisa sercomposta por seus prprios atos. A constitui-o da trama se d a partir da caracterizao in-dividual, so os personagens que criam suasprprias aes, que movem por si mesmos agrande mquina, de forma autnoma e inelut-vel, sem precisar das divindades e das nuvens(Lenz, 2006, p. 38).

    A comoo vivida pelo personagem pre-

    cisa ser cuidadosamente construda, de modoque o pblico possa acompanhar o heri. So-mente dessa maneira se pode provocar o alme-jado impacto emocional capaz de transtornaro espectador. Pois, o poeta ludibria a razo dohomem instrudo, como a governanta ludibriaa fraqueza de esprito da criana (Diderot,2005, p. 65).

    O palco dramtico se apresenta comouma representao sinttica da vida social, comoum universo fechado concebido diante do es-pectador, que observa esse pequeno mundo deesguelha, como se no estivesse ali. Impelido ase lanar na corrente da ao dramtica, a mer-gulhar por inteiro no ambiente ilusrio cuida-dosamente criado pelo autor (que se faz ausen-te), o leitor da cena observa esse mundo fictciosob o ponto de vista do protagonista. Em con-formidade com os ideais burgueses de valoriza-o dos interesses privados e da livre iniciativa,o ensinamento moral, advindo da empatia com

    R1-A2-FlavioDesgrandes.PMD 15/04/2009, 08:2413

  • 7/30/2019 DESGRANGES, Flvio. Teatralidade ttil

    4/9

    sssss a l a ppppp r e t a

    14

    o protagonista, se constitui como principalvetor de leitura e de efeito esttico propostoao espectador.

    A atividade esttica no drama burgus compreendida j nas propostas dos drama-turgos do sculo XVIII, e com notvel refi-namento nas solues tcnicas e artsticas depocas posteriores como assimilada a um atode empatia.

    A idia a seguinte: o objeto esttico osprodutos da arte, os fenmenos da natureza eda vida expressa certo estado interior cujoconhecimento esttico consiste em vivenciaresse estado interior (Bakhtin, 1992, p. 78).

    O ato do espectador tem como eixo prin-cipal a prpria imerso no mundo ficcional. Omodo de concepo das obras de arte, em con-sonncia com o modo de compreenso do atode leitura, indica a busca por intensificar a ati-vidade do espectador, partindo dos prpriosparmetros de recepo esttica em voga no pe-rodo.

    A explicitao do ato estticoA explicitao do ato estticoA explicitao do ato estticoA explicitao do ato estticoA explicitao do ato esttico

    O drama moderno surge como oposio a essaempatia por abandono (Brecht, 1978) estabe-lecida pelo drama burgus. O convite crtico-reflexivo feito ao espectador, nesse caso, podeser compreendido como um retorno freqente prpria conscincia, descolando-se da pele doheri e reassumindo seu lugar de observador,seu ponto de vista, fora do mundo fictcio, para,desse lugar que lhe prprio, elaborar um juzode valor acerca dos acontecimentos levados cena. Ou seja, a identificao com o persona-gem no est inviabilizada, mas a empatia nose efetiva de modo irrefletido. O mergulho nointerior do universo ficcional se d ainda viaidentificao com o protagonista; colado ao he-ri, o espectador imerge na trama.

    O drama moderno, por sua vez, se valede variados recursos cnicos narrativos, que se

    caracterizam pela assuno da teatralidade, e vi-sam a ruptura com a iluso do palco dramtico.O princpio dramtico se mostra interrompido,problematizado, cada vez que um elementocnico se revela, cada vez que o teatro se apre-senta enquanto tal, quebrando com a lgica dodrama fechado. As brechas no mecanismodramtico rompem com a ficcionalidadeirrestrita e expulsam o espectador da vivnciainterior da obra, lanando-o de volta prpriaconscincia, convidando-o a desempenhar umato propriamente esttico, reflexivo.

    Devo identificar-me com o outro e ver omundo atravs de seu sistema de valores, talcomo ele o v; devo colocar-me em seu lugar,e depois, de volta ao meu lugar, completarseu horizonte com tudo o que se descobre dolugar que ocupo, fora dele; devo emoldur-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, medi-ante o excedente da minha viso, de meu sa-ber, de meu desejo, de meu sentimento. [...]

    A atividade esttica propriamente dita come-a justamente quando estamos de volta a nsmesmos, quando estamos no nosso prprio

    lugar, fora da pessoa que sofre, quando da-mos forma e acabamento ao material reco-lhido mediante a nossa identificao com ooutro (Bakhtin, 1992, p. 45-6).

    Esses movimentos de ir e vir do especta-dor que, por empatia com o protagonista,adentra no interior da obra ficcional, e, ante asinterrupes da lgica dramtica operadas pe-los recursos cnicos narrativos (picos), se dis-tancia da ao dramtica, e retorna prpriaconscincia para empreender um ato propria-mente autoral e analtico caracterizam o efei-to esttico proposto pelo drama moderno.

    Ao contrrio daquela teatralidade surgidaem consonncia com os princpios burgueses,na cena moderna o autor se faz presente, revelaas solues artsticas, expe os recursos cnicosque utiliza em sua montagem, mostra a sua con-cepo de teatro, assume posicionamentos cr-ticos, e estimula o espectador a fazer o mesmo.

    R1-A2-FlavioDesgrandes.PMD 15/04/2009, 08:2414

  • 7/30/2019 DESGRANGES, Flvio. Teatralidade ttil

    5/9

    TTTTTeatralidade ttil: alteraes no ato do espectador

    15

    Efetiva-se, assim, a noo de obra aberta, emque a ambigidade das opes de linguagem, amultiplicidade de significados que convivem emum mesmo significante, constitui-se em umadas finalidades explcitas da obra, um valor deimportncia destacada na proposta feita ao es-pectador. O artista se prope a:

    Definir os limites dentro dos quais uma obrapode lograr o mximo de ambigidade e de-pender da interveno ativa do consumidor,sem, contudo, deixar de ser obra. Entende-se por obra um objeto dotado de proprie-dades estruturais definidas, que permitam,mas coordenem, o revezamento das interpre-taes, o deslocar-se das perspectivas (Eco,2005, p. 23).

    As alteraes no modo de compreender avida social que no podia mais ficar restrita squestes de mbito privado, como era caracte-rstica do drama burgus, mas queria ampliar-se para a dimenso pblica dos acontecimentos se efetivam em tenso com as alteraes for-mais propostas pelo drama moderno. A abor-

    dagem social das temticas quebra necessaria-mente com a linearidade prpria ao princpiodramtico, pois a trama no est mais circuns-crita a uma abordagem fechada, psicolgica,intersubjetiva dos fatos. O que desmonta como mecanismo de causa e conseqncia que fazavanar com naturalidade as situaes, pro-vocando interrupes na corrente dramtica,gerando brechas, espaos de anlise. A teatra-lidade assumida rompe com a iluso do mun-do-palco, propondo que o espectador se distan-cie da ficcionalidade, se descole da pele do herie retorne prpria conscincia. A cena moder-na no inviabiliza, pois, a identificao do es-pectador com o protagonista, mas quer impe-dir que a empatia e o mergulho no universoficcional se dem de maneira abandonada, semretorno reflexivo.

    A rA rA rA rA recepo ttilecepo ttilecepo ttilecepo ttilecepo ttil

    Peo licena para fazer aqui uma breve digres-so, de maneira que possamos nos aproximar daidia de recepo ttil, tal como definida porWalter Benjamin (1993), e, em seguida, retor-narmos ao fio analtico acerca das alteraes his-tricas na compreenso do ato proposto ao es-pectador teatral. Os vislumbres benjaminianosacerca das mudanas na perceptividade, que seoperam em dilogo com a ampliao no campode atuao da arte, podem abrir possibilidadesde anlise das transies efetivadas pelo teatrops-dramtico (Lehmann, 2007). E possibili-tam ressaltar, especialmente, como a teatralida-de recente se estabelece em tenso com (e porrecusa a) os princpios estticos do drama.

    Diante de uma pintura de Czanne, emrelato de visita a uma exposio de arte, em1926, Benjamin, em seu Dirio de Moscou,descreve o modo distinto com que se relacio-na com a obra desse artista francs. O que seconstitui em rastro importante para pensarmosas mudanas na recepo artstica desde os pri-meiros lances da modernidade, e, em segui-

    da, nos aproximarmos de suas reverberaesna contemporaneidade.

    Olhando para um quadro extraordinaria-mente belo de Czanne, ocorreu-me como errado, at linguisticamente, falar-se deempatia. Pareceu-me que compreender umquadro at onde isso se d no se trata, demaneira alguma, de penetrar em seu espao,mas, muito mais, do avano deste espao ou de pontos bem determinados e diferenci-ados dele sobre ns. Ele se abre para nsem seus cantos e ngulos nos quais acredita-mos localizar experincias cruciais do passa-do; h algo de inexplicavelmente familiar nes-ses pontos (Benjamin, 1989, p. 53).

    A descrio da experincia diante do qua-dro de Czanne, e a forma particular com queBenjamin se relacionou com essa pintura, po-dem ser melhor compreendidas se recorrermos

    R1-A2-FlavioDesgrandes.PMD 15/04/2009, 08:2415

  • 7/30/2019 DESGRANGES, Flvio. Teatralidade ttil

    6/9

    sssss a l a ppppp r e t a

    16

    a sua definio, estabelecida posteriormente, derecepo ttil. No ensaio A obra de arte na erade sua reprodutibilidade tcnica (Benjamin,1993), escrito dez anos depois, em 1936, o fi-lsofo estabelece que a recepo ttil se efetivade modo inverso ao da recepo contemplativa,pois, ao invs de convidar o espectador a mer-gulhar na estrutura interna da obra, faz imergiro objeto artstico no espectador, atingindo-oorganicamente da a noo de ttil. O objetocomo que avana sobre o indivduo, toca-lhe ontimo e, de maneira inesperada, faz surgir con-tedos esquecidos, relacionados com a mem-ria involuntria. O retorno do esquecido, ou dorecalcado em uma acepo psicanaltica quemarca tambm os estudos de Benjamin , pos-sibilita que restos da histria pessoal, associados histria coletiva, venham tona, prontos paraserem elaborados pelo espectador.

    A percepo sensvel do indivduo mo-derno, destaca Benjamin, est premida por umavivncia urbana marcada pelos riscos e choquesdo cotidiano, pela padronizao gestual, peloconsciente assoberbado, e pelo desestmulo atuao de regies profundas e sensveis da

    psique. Resta-lhe o empobrecimento da experi-ncia e da linguagem. Ameaado, vigilante,fugidio, voltado para seus interesses privados, oindivduo se mostra inapto, seja para percebero olhar que lhe dirigido, seja para retornar oolhar que lhe lanado pelos objetos e pelosoutros. A razo operacional passa a tomar sem-pre a frente, calculando e catalogando os acon-tecimentos, protegendo-lhe de embates fsicose emocionais desagradveis.

    A mudana na percepo inibe a pro-duo de memria (traos mnemnicos in-conscientes) e dificulta o acesso freqente aoscontedos esquecidos, fundamentais para a ela-borao da experincia. A memria, para o fil-sofo alemo, constitui-se justamente pelos fatossignificativos que no foram filtrados pelo cons-ciente e so lanados nas profundezas da psique.Esses contedos, ao virem tona, trazendo ima-gens do passado, provocam o indivduo a se de-bruar sobre as situaes vividas e a chocar os

    ovos da experincia, fazendo nascer deles o pen-samento crtico.

    Benjamin acredita numa oposio entre amemria e a conscincia que similar dis-tino entre memria voluntria e memriainvoluntria na obraEm busca do tempo per-dido, de Marcel Proust. Para ambos, a expe-rincia ocorre quando traos mnemnicosinconscientes na memria so despertados,casualmente ou no, por algum acontecimen-to ou objeto exterior, realizando num instan-te uma feliz conjuno de significados capazde modificar o rumo de uma vida, de umahistria (Palhares, 2008, p. 78).

    As alteraes na percepo solicitariamprocedimentos artsticos modificados para pro-vocar a irrupo da memria involuntria.Somente uma recepo distrada, em que oconsciente seja surpreendido, pego desatento,poderia se deixar atingir pelo instante significa-tivo em que, na relao com o objeto artstico,o olhar nos retribudo, nos toca o ntimo, efaz surgir o inadvertido, trazendo tona expe-

    rincias cruciais do passado. O encontro com aarte se coloca, desde ento, para Benjamin, fun-damentalmente vinculado com a proposio ea produo de experincias.

    O que indica a necessidade de efetivaode outra forma narrativa, outra abordagem dosfatos e ficcionalidades, que, especialmente, es-tabelea contato com os contedos inauditos damemria involuntria.

    Essas mutaes culturais e histricas so len-tas e no seguem mecanismos deterministas,mas elas no podem ser eliminadas por boavontade ou deciso pessoal. Assim, mesmoque se lamente o desaparecimento das for-mas tradicionais de contar, o desaparecimen-to das lembranas compartilhadas e de umamemria coletiva (...), o desaparecimento daescuta paciente e respeitosa dos ancios, odesenvolvimento capitalista e tcnico contem-porneo torna ilusria qualquer volta a essas

    R1-A2-FlavioDesgrandes.PMD 15/04/2009, 08:2416

  • 7/30/2019 DESGRANGES, Flvio. Teatralidade ttil

    7/9

    TTTTTeatralidade ttil: alteraes no ato do espectador

    17

    formas comunitrias de vida, de lembrana ede narrao (formas que so idealizadas comfacilidade retrospectivamente). Trata-se muitomais de inventar outras formas de memria ede narrao (...) (Gagnebin, 2008, p. 61).

    Benjamin no clama por uma volta nos-tlgica ao passado, mas sada outra narrativi-dade, tomada como uma trama de espao etempo que se abre como precipcio, convidan-do o espectador a um mergulho em si mesmo eproduzindo uma experincia aurtica a partir deuma arte no-aurtica. Se a experincia aurticada arte tradicional estava calcada no mergulhono interior da obra, a experincia da arte no-aurtica implica o espectador no ato artstico,em que a leitura s pode efetivar-se na prpriaproduo do participante, impingido-o a umaatuao efetiva, j que passa necessariamentepor suas entranhas.

    A imagem mnmica se constitui de lem-branas que surgem espontaneamente, sem avontade e o controle do sujeito. Trata-se, por-tanto, de imagens que o indivduo no escolhe,que no se relacionam com a memria volunt-

    ria, o contrrio de um processo consciente derememorao. O que configura outra noo dememria e de sujeito, pois este no mais de-finido antes de tudo por sua atividade conscien-te, voluntria, mas tambm por um tipo de ati-vidade passiva, receptiva, e esta receptividade interpretada agora no em termos de inrcia,mas em termos positivos de disponibilidadeatenta (Gagnebin, 2008, p. 65). Uma compre-enso oposta concepo clssica de um sujeitoracional, consciente, soberano, que se vale damemria de maneira voluntria, obediente,pronta para cumprir a nica funo de registrar,classificar e inventariar o passado.

    A falta de lgica a priori estabelecida serelaciona com a noo de uma recepo com-preendida como experincia, que se constitui naprpria juno/criao dos cacos de narrativa,ou em quaisquer jogos propostos pelo artista erealizados pelo espectador em sua relao como objeto artstico. O que cria condies para

    uma produo radicalmente autoral do espec-tador, que passa a produzir variados elementosde significao, justapondo-os queles propos-tos pelo autor. Um conjunto de imagens, tex-tos, texturas, sensaes, emoes, afetos, maisou menos definidos, suscitados a partir da es-crita do artista, e que, ainda que no faam par-te do texto organizado pelo autor, se fazem pre-sentes na leitura do espectador. Cabe a este,ainda, tecer relaes e estabelecer sentidos pos-sveis entre os diversos contedos significativossuscitados durante o ato de leitura. Trata-se cadavez menos, nesse caso, de entender o que o au-tor quer dizer, de uma recepo contemplativa que, como caracterstico do princpio dra-mtico, vai, com maior ou menor envolvimentoemocional, acompanhando a escrita, compreen-dendo e estabelecendo associaes lgicas , e,mais, de uma postura atenta e distrada, dispo-nvel a criar textos inauditos e sentidos impro-vveis a partir da proposta do autor.

    A inverso rA inverso rA inverso rA inverso rA inverso receptivaeceptivaeceptivaeceptivaeceptiva

    Se o drama moderno se estrutura como ques-tionamento ao drama burgus, o mesmo sepode compreender com a irrupo da teatrali-dade recente, que pauta suas invenes na recu-sa ao princpio dramtico, que ainda se man-tm nas cenas da vanguarda da primeira metadedo sculo passado. Como vimos, o drama mo-derno, para efetivar as idas e vindas do espec-tador o mergulho no mundo ficcional viaidentificao com o personagem e o retorno prpria conscincia para a efetivao do ato es-ttico mantm a ao dramtica como eixoda cena, calcada na trama que avana a partirde dilogos e da constituio psicolgica depersonagens. Ainda que essa constituio dra-mtica se efetive no drama moderno com que-bras e rupturas freqentes, evitando o abandonodo espectador na corrente da ao, o vetor deleitura mantm-se marcado pela identificao,por colar-se a pele do heri, mesmo que paratecer uma anlise crtica em face dos gestos do

    R1-A2-FlavioDesgrandes.PMD 15/04/2009, 08:2417

  • 7/30/2019 DESGRANGES, Flvio. Teatralidade ttil

    8/9

    sssss a l a ppppp r e t a

    18

    protagonista e do contexto histrico-social quedetermina as atitudes dos personagens. O queno acontece na teatralidade ps-dramtica,que, como sugere a prpria denominao, refu-ta o princpio dramtico, abandona a psico-l-gica, e no opera mais prioritariamente porempatia e imerso no universo ficcional criadopelo autor.

    No teatro ps-dramtico, o que se obser-va e so justamente as formulaes tericas deBenjamin acerca da recepo ttil que nos pos-sibilitam essa anlise uma inverso da rela-o travada entre espectador e proposta cnica.Se, no princpio esttico do drama, que man-tm a noo tradicional da obra de arte comosntese representativa do mundo, a constituiodo mundo fictcio convida o espectador ao mer-gulho, na teatralidade ps-dramtica que seestrutura no como obra, mas como objeto ar-tstico, que trabalha com a idia de algo que noest pronto, e que para efetivar-se solicita am-pla atuao do espectador a recepo operade modo contrrio: o objeto artstico que in-vade o espectador, atingindo-o em seu ntimo,fazendo surgir sensaes, percepes, imagens,

    entre outras produes, advindas da experin-cia pessoal do participante. O espectador de-sempenha o ato de leitura valendo-se, tanto daanlise de elementos de significao oriundosdo texto cnico proposto pelo autor, quanto decontedos outros, percebidos, lembrados e cria-dos durante seu percurso de leitura.

    Experimentar um texto significa que algoest acontecendo com nossa experincia. (...)Quanto mais freqentes esses momentos du-rante a leitura, tanto mais se evidencia ainterao entre a presena do texto e nossaexperincia relegada ao passado (Iser, 1999,p. 34).

    O movimento do espectador no drama sevolta para a interpretao da cena apresentada,em que se debrua sobre a mesma, e tece asso-ciaes entre fatos histricos, obras artsticasanteriores, acepes tericas, momentos vividos,

    e organiza uma compreenso prpria da obra.Nessa operao, o entendimento do que o au-tor quer dizer, a maneira como v o mundo eestabelece uma sntese deste, est em primeiroplano. Ante a teatralidade ps-dramtica, o es-pectador opera no sobre, mas a partirda pro-posta do autor ou mesmopara alm dessa pro-posta , e o que concebe, ainda que se d emrelao com o texto cnico, se constitui em faceda impossibilidade de executar a tarefa de en-tender o que o autor quer dizer, pois no huma sntese a ser desvendada, mas lances senso-riais, imaginativos e analticos a serem desem-penhados. A ludicidade est fortemente presen-te no movimento proposto ao espectador. Oque advm, portanto, com o desaparecimentoda iluso dramtica, como aponta Benjamin naepgrafe que abre este texto, um crescimentoconsidervel de possibilidades com as quais po-demos jogar.

    Uma potica da compreenso substitudapor uma potica da ateno que armazena oestmulo e o mantm na pr-conscincia; quelhe possibilita uma inscrio efmera no apa-

    relho perceptivo sem permitir que ele se dis-sipe num ato de compreenso: um rastro dememria ao invs de conscincia, a compre-enso fica adiada (Lehmann, 2007b, p. 146).

    Em sua relao com a cena ps-dramti-ca, o espectador no encontra orientao de lei-tura a seguir, que lhe indique pistas para o en-tendimento da obra e do mundo. De modoque, acompanhando o direcionamento do au-tor, possa tecer relaes racionais, associaeslgicas e fechar interpretaes. A frustraomarca esse movimento de leitura na propostano dramtica, e, ao mesmo tempo, o estmulo concepo de percursos prprios, em sua rela-o com o texto cnico e na relao deste coma vida social. Alm do que, contedos signifi-cativos postos em jogo surgem de maneirasurpreendente, inadvertida, pois advindos einventados pelo prprio leitor durante o ato.O espectador no se pergunta o que isto quer

    R1-A2-FlavioDesgrandes.PMD 15/04/2009, 08:2418

  • 7/30/2019 DESGRANGES, Flvio. Teatralidade ttil

    9/9

    TTTTTeatralidade ttil: alteraes no ato do espectador

    19

    dizer?, mas sim o que est acontecendo comi-go?, o que lhe solicita disponibilidade para par-ticipar de um jogo que se apresenta de modoinesperado e sem uma seqncia preestabe-lecida, porque se prope como experincia, e,enquanto tal, s se efetiva plenamente se o pr-prio espectador se dispuser a constitu-lo en-quanto joga.

    A atitude autoral proposta ao espectadorpelo drama moderno se v radicalizada na cenaps-dramtica, j que o ato de leitura, para se

    constituir, a partir de ento, solicita uma atitu-de francamente artstica do espectador toma-do como atuante , que define o prprio per-curso de sua leitura, em funo da seleo eelaborao dos variados elementos de signifi-cao com os quais se relaciona. Tanto os pro-postos pelo autor, quanto os que lhe surgeminadvertidamente ou que inventa durante opercurso. A concepo de leitura se aproximaamplamente da prpria operao de escrita.

    Referncias bibliogrf icasReferncias bibliogrf icasReferncias bibliogrf icasReferncias bibliogrf icasReferncias bibliogrf icas

    BAKHTIN, Mikhail. Esttica da Criao Verbal. So Paulo, Martins Fontes, 1992.

    BENJAMIN, Walter. Dirio de Moscou. So Paulo, Companhia das Letras, 1989._______. Sociologia. So Paulo, tica, 1991.

    _______. Obras Escolhidas: magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo, Brasiliense, 1993.

    BRECHT, Bertolt. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978.

    DIDEROT, Denis. Discurso Sobre a Poesia Dramtica. So Paulo, Cosac Naify, 2005.

    ECO, Umberto. Obraaberta. So Paulo, Perspectiva, 2005.

    GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: memria, histria e narrativa. In: Mente, Crebroe Filosofia. So Paulo, Duetto, n. 7, p. 59-67, 2008.

    GASCH, Rodolphe. Digresses Objetivas. Sobre alguns Temas Kantianos em A Obra de Artena Era de sua Reprodutibilidade Tcnica. In: BENJAMIN, Andrew & OSBORNE, Peter(Orgs.).A Filosofia de Walter Benjamin. Rio de Janeiro, Zahar, 1997.

    ISER, Wolfgang. Uma Teoria do Efeito Esttico. Vol. 1. So Paulo, 34, 1996.

    _______. Uma Teoria do Efeito Esttico. Vol. 2. So Paulo, 34, 1999.

    LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro Ps-Dramtico. So Paulo, Cosac Naify, 2007.

    _______. Motivos para desejar uma arte na no-compreenso. In: Urdimento Revista de Estudosem Artes Cnicas. Florianpolis, UDESC, n. 9, p. 141-52, 2007b.

    LENZ, Jakob Michael Reinhold. Notas Sobre o Teatro. Rio de Janeiro, 7Letras, 2006.

    R1-A2-FlavioDesgrandes.PMD 15/04/2009, 08:2419