como administrar as complexidades de 2015

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 Como administrar as complexidades de 2015? Sébastien Charles    XIV e  Fórum Internacional de Administração    18 de maio de 2015. Antes de iniciar, gostaria de saudar aos organizadores do XIV e  Fórum Internacional de Administração pelo convite e, especialmente, ao Luiz Augusto Costa Leite, Leonardo Fuerth, Tania Maurity e Wagner Siqueira, realçar, principalmente, sua coragem - se não sua inconsequência    quando pediram a um filósofo para abrir este Fórum. Com efeito, o que poderia ser mais estranho ao mundo da administração do que a filosofia, disciplina conhecida por sua abstração, quando esperamos dos gerentes e administradores, um sentido forte do concreto e das responsabilidades. É bem verdade que as caricaturas que habitualmente fazem dos filósofos não estão desprovidas de um fundo de verdade, e que sua expertise se relaciona mais ao mundo das ideias do que sobre a realidade em si. Quando me fora solicitado de tratar sobre as complexidades da sociedade atual, temática eminentemente concreta, me perguntei se os organizadores deste evento tinham realmente ciência do que estavam fazendo quando confiaram esta tarefa a um filósofo... A fim de tranquilizá-los de imediato e justificar o porquê de minha presença aqui hoje, gostaria de mitigar este retrato pouco lisonjeiro do filósofo, e lhes dizer como encaro, do meu ponto de vista, a prática da filosofia, e como acredito que ela possa vir a responder a preocupações concretas. Se é verdade que as reflexões filosóficas tratam efetivamente sobre generalidades e abstrações, que a filosofia é, como dizia Deleuze, uma atividade intelectual visando a produção de conceitos, não é menos verdade que esses conceitos têm por finalidade explicar o real. Quando Platão evocava as ideias para fazer o cotejo com o mundo dos sentidos, quando Epicuro lhe opunha seus átomos, quando Nietzsche falava, quanto a ele, sobre vontade de potência, ou ainda, quando

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Se o trabalho não é um valor em si mesmo, isso não quer significar que não há nenhum sentido em trabalhar, mas sim que este sentido deve ser procurado fora do trabalho, pois o sentido só vale quando está a serviço de outra coisa, que o ultrapasse e transcenda.

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  • Como administrar as complexidades de 2015?

    Sbastien Charles XIVe Frum Internacional de Administrao 18 de maio de 2015.

    Antes de iniciar, gostaria de saudar aos organizadores do XIVe Frum

    Internacional de Administrao pelo convite e, especialmente, ao Luiz Augusto Costa

    Leite, Leonardo Fuerth, Tania Maurity e Wagner Siqueira, realar, principalmente, sua

    coragem - se no sua inconsequncia quando pediram a um filsofo para abrir este

    Frum. Com efeito, o que poderia ser mais estranho ao mundo da administrao do que

    a filosofia, disciplina conhecida por sua abstrao, quando esperamos dos gerentes e

    administradores, um sentido forte do concreto e das responsabilidades. bem verdade

    que as caricaturas que habitualmente fazem dos filsofos no esto desprovidas de um

    fundo de verdade, e que sua expertise se relaciona mais ao mundo das ideias do que

    sobre a realidade em si. Quando me fora solicitado de tratar sobre as complexidades da

    sociedade atual, temtica eminentemente concreta, me perguntei se os organizadores

    deste evento tinham realmente cincia do que estavam fazendo quando confiaram esta

    tarefa a um filsofo...

    A fim de tranquiliz-los de imediato e justificar o porqu de minha presena aqui

    hoje, gostaria de mitigar este retrato pouco lisonjeiro do filsofo, e lhes dizer como

    encaro, do meu ponto de vista, a prtica da filosofia, e como acredito que ela possa vir a

    responder a preocupaes concretas. Se verdade que as reflexes filosficas tratam

    efetivamente sobre generalidades e abstraes, que a filosofia , como dizia Deleuze,

    uma atividade intelectual visando a produo de conceitos, no menos verdade que

    esses conceitos tm por finalidade explicar o real. Quando Plato evocava as ideias para

    fazer o cotejo com o mundo dos sentidos, quando Epicuro lhe opunha seus tomos,

    quando Nietzsche falava, quanto a ele, sobre vontade de potncia, ou ainda, quando

  • Marx evocava a luta de classes, todos pretendiam tratar do mundo como ele , ou, ao

    menos, do mundo como eles o concebiam, se servindo destes conceitos para descrev-

    lo.

    O problema, muitas vezes, que o filsofo tende a torcer a realidade para

    enquadr-la no conceito que deveria explic-la, ele no se distancia de sua teoria que

    deveria, supostamente, explicar a verdade ltima sobre as coisas, e se afasta assim do

    real que pretendia, contudo, definir, porque o real, por sua natureza, excede, no fundo,

    qualquer definio filosfica. Enfim, o erro habitual do filsofo, no de ser abstrato,

    de acreditar que a abstrao basta e que ela pode explicar tudo, e isso que o torna

    ridculo. Se os conceitos so teis, tambm devemos ter cautela, o que, geralmente, os

    filsofos no tm, mas eles no so os nicos, como vocs bem sabem, pois no mundo

    da Administrao e do Management gostamos tambm de conceitos, e acreditamos,

    muitas vezes, que eles bastam por si s a orientar a ao dos gestores, como se, mais

    uma vez, a magia dos conceitos pudesse operar milagrosamente sozinha, e criar por si

    s bons hbitos de gesto.

    Voltando aos filsofos, no esqueamos que existem, no bojo da tradio

    filosfica, alguns pensadores que escolheram recear conceitos os atribuindo um mero

    status operativo com vistas a melhor pensar o real, sem querer totalmente o explicar ou

    o justificar. por este caminho que o meu trabalho se envereda, e que o conceito que

    desenvolvi esses ltimos anos com o Gilles Lipovetsky, o de hipermodernidade, deve

    ser compreendido. , inclusive, este conceito que me permitir responder em parte

    questo que me fora proposta pelos organizadores do Frum quando me perguntaram

    como deveriam ser administradas as complexidades de 2015 e qual viso geral

    poderamos ter hoje sobre as nossas sociedades. Parece-me, com efeito, que o conceito

    de hipermodernidade capaz de nos trazer reflexes sobre os desafios que deveremos

  • enfrentar com vistas a melhor os compreender, desafios estes que parecem ter se

    complexificados durantes os quinze primeiros anos deste novo sculo, que apenas

    comeou.

    Mas o que significa este estranho e um tanto grandiloquente conceito de

    hipermodernidade? Como o prefixo hiper deixa a entender, a hipermodernidade

    caracteriza-se hoje como uma exacerbao, um repentino entusiasmo por modernidade.

    Nesta linha, para entendermos plenamente o seu significado, bastaria apenas definir a

    modernidade e a considerar sob o enfoque do excesso e da desmedida. No entanto, a

    definio de modernidade no evidente e, geralmente, qualificado de moderno o que

    contemporneo. Em suma, todos ns seramos modernos, tendo em vista que a

    modernidade representa o que feito aqui e agora, e no hipermodernos. Como vocs

    podem imaginar, as coisas no so assim to simples. Por um lado, para os tericos das

    ideias, a modernidade tem um sentido preciso e refere-se a um momento especfico da

    histria, os idos dos sculos XVII e XVIII, quando tomam lugar na Europa processos

    inditos de gesto da ordem coletiva. Por outro lado, as adversidades, h pouco

    conhecidas por nossas sociedades, tendem a nos fazer repensar o conceito de

    modernidade sob a categoria do hiper. Para resumir em breve palavras esses dois

    pontos, irei limitar-me a evocar os quatro elementos constitutivos da modernidade, antes

    de lhes mostrar como esses elementos entraram, doravante, numa lgica de desmedida

    que d todo o seu sentido ao conceito de hipermodernidade.

    O primeiro elemento diz respeito libertao e valorizao do indivduo dentro

    do paradigma jurdico desenvolvido no sculo XVII, principalmente atravs do contrato

    social elaborado por Hobbes, Locke e Rousseau. Esse modelo jurdico corresponde

    inveno terica dos Direitos do Homem que encontraro, aos poucos e ao longo dos

    sculos, eficcia prtica. No nos esqueamos que antes da era moderna, os Direitos

  • divino e consuetudinrio predominavam, e a ideia de que um ser humano podia ser

    titular de direitos por natureza e que era, portanto, titular de direitos naturais, era

    simplesmente inconcebvel. Os homens no nasciam livres e iguais em direito, como

    preveem nossas Constituies atuais, mas nasciam submissos a uma ordem atemporal

    que no haviam escolhido e que os destinavam a um lugar especfico dentro de uma

    sociedade hierarquizada. A modernidade , portanto, a ruptura com uma ordem social

    intangvel e se reverte em benefcio de um projeto poltico autnomo no qual os direitos

    individuais so fundamento ltimo.

    O segundo elemento caracterstico da modernidade decorre do primeiro. Se os

    homens nascem livres e iguais em direito, portanto, o sistema poltico mais adequado a

    este estado de coisa , evidentemente, a democracia, como bem o demonstrou Rousseau.

    Deveras, a democracia aparece como o nico sistema poltico vivel que permite

    combinar liberdade individual, igualdade e segurana coletiva, sistema poltico que,

    com vistas a respeitar a liberdade de cada, e principalmente as crenas individuais, s

    pode visar a fomentar a neutralidade do poltico em matria religiosa. De novo aqui, a

    ruptura com a velha ordem ntida, uma vez que o Antigo Regime foi concebido como

    uma estrutura piramidal que encontrava sua traduo lgica, no plano poltico, no

    sistema monrquico e, no plano espiritual, no reconhecimento de uma nica religio que

    no admitia excees. A modernidade , em consequncia, a ruptura com toda forma de

    poder absoluto e unilateral em benefcio de uma sociedade aberta feita de debates e de

    busca por consensos.

    O terceiro elemento se inscreve na mesma lgica de libertao dos indivduos

    relativamente s antigas formas de Poder, uma vez que posta em prtica a liberdade

    individual em termo de esprito de empreendedorismo, e porque permite, atravs da

    mediao da propriedade privada, a emergncia de uma sociedade civil contra o Estado.

  • No fundo, no plano socioeconmico, a modernidade o momento em que a promoo

    do mercado se afirma como um sistema econmico regulador mais eficiente. Assim

    como para os dois primeiros elementos, a mudana aqui brutal em relao s

    sociedades pr-modernas em que a economia era pouco valorizada, o mercado sendo

    concebido como um mal necessrio, e a acumulao de riquezas como um vcio dentro

    de sociedades em que a pobreza e a simplicidade eram tidas como virtudes.

    O ltimo elemento caracterstico da modernidade o desenvolvimento de uma

    nova concepo cientfica fundada na experincia e no mtodo hipottico-dedutivo, que

    tem por finalidade, atravs da inovao tcnica e do progresso cientfico, o fim do

    trabalho exaustivo, o aumento da expectativa de vida e o desaparecimento das

    epidemias mortais. A ruptura com o mundo pr-moderno , novamente, radical, posto

    que as sociedades tradicionais tendem a se definir em relao ao passado, repetindo

    costumes que haviam herdado, e no em relao ao futuro, a ideia do progresso lhes

    sendo, em grande parte, estranha. O mundo moderno , portanto, um mundo estruturado

    pela tecnocincia e faz da inovao um poderoso motor de mudana.

    Como vocs podem perceber, a entrada na modernidade, que , na escala da

    humanidade, eminentemente recente, significa um radical tumulto da maneira de ser no

    mundo, mundo este do qual somos todos herdeiros. De fato, os quatro elementos que

    acabo de nomear formam sempre o horizonte inultrapassvel das nossas sociedades. Se

    ns no os concebemos com o mesmo candor e genuinidade que os homens da primeira

    modernidade, que pensavam, inclusive, que a aliana entre o reconhecimento dos

    direitos naturais, a democracia, a cincia e o mercado iriam resolver em parte todos os

    nossos problemas, verdade que tambm no vislumbramos futuro possvel fora do

    modelo da modernidade. Isso no impede que emitamos crticas relativas dinmica

    dos direitos individuais que tendem a reforar o individualismo, ou contra a democracia

  • atual, que carece por vezes de transparncia ou que nos desaponta pela mediocridade do

    pessoal poltico que a deveriam representar, ou referente ao modo de funcionar do

    mercado e das injustias que permite ou fomenta, ou ainda contra o universo

    tecnocientfico, que levanta uma srie de preocupaes quanto aos desenvolvimentos

    que ele carrega. No entanto, nenhum modelo alternativo no plano jurdico ou poltico

    nos parece credvel para substituir a democracia e os direitos humanos que ela garante, e

    em vez de querer aboli-la, ns queremos, antes de tudo, a reformar e a tornar compatvel

    com nossas aspiraes atuais em prol de uma melhor representao poltica e de uma

    maior justia social. Da mesma forma, nenhuma outra opo que a do mercado nos

    parece vivel a regular as trocas econmicas, apenas as limitaes de ordem poltica,

    tica e jurdica e uma melhor redistribuio social nos parecem necessrias. Por fim,

    ningum verdadeiramente questiona a legitimidade das pesquisas e descobertas

    cientficas, apenas nos parece importante seu devido enquadramento tico e a definio

    do impacto que elas possam ter no meio ambiente.

    Mas ser simplesmente porque no temos a mesma ingenuidade dos nos

    antepassados em relao modernidade que no teramos nos tornado hipermodernos?

    Acredito que no. Pelo contrrio, penso que assistimos atualmente a um boom dos

    princpios constitutivos da modernidade, de onde surge o conceito de hipermodernidade

    para pensar a forma que tomou a modernidade hodierna. Nosso presente hipermoderno

    se apresenta, portanto, como uma modernidade em que os elementos fundamentais que

    a constituem entraram num regime de excesso e de desmedida, e que cada um tem o

    sentimento de uma fuga para a frente sem nada poder fazer para limit-la. O que isso

    significa? Isso significa simplesmente que o modelo hipermoderno tende a valorizar

    incessantemente o individualismo, que ele aumenta a influncia das tecnocincias sobre

    as nossas vidas, que ele exacerba a lgica do mercado em todos os seus aspectos e que

  • ele exorta os limites do modelo democrtico. Essa fuga para a frente do modelo

    moderno explica, a meu ver, o surgimento recente de uma srie de conceitos que

    deveriam supostamente designar nosso presente metamodernidade, ultramodernidade,

    sobremodernidade, segunda modernidade, modernidade lquida, hipermodernidade e

    que tm todos em comum o fato de evocar um radicalismo dos fenmenos modernos. Se

    todos testemunham de uma mesma intuio, o termo hipermodernidade ainda me parece

    o mais adequado na medida em que o superlativo hiper se coaduna melhor a essa

    ideia de radicalizao da modernidade, como evidencia seu uso sob diversas formas:

    hiperatividade, hiperinflao, hiperligao, hiper-realismo, hipertexto, hiperpotncia,

    hipersensibilidade, hipersexualizao, hiperterrorismo, hipervigilncia, etc.

    Nesta perspectiva, a hipermodernidade uma modernidade radical caracterizada

    pela exacerbao e a intensificao da lgica moderna dentro da qual os direitos

    humanos e a democracia se tornaram valores incontornveis, o que explica uma

    demanda constantemente renovada por poltica participativa e uma exploso das

    reivindicaes em termos de direitos, uma globalizao do mercado e uma extenso

    mxima que invade no apenas os lugares mais atrasados de nosso planeta, como

    tambm as esferas de nossa existncia, uma excrescncia vertiginosa das pesquisas e

    descobertas cientficas, com as consequncias ticas que ensejam, principalmente em

    matria de biotecnologia, em que a noo de humanidade questionada atravs de

    possveis clonagens dos seres humanos. A primeira modernidade teve a vantagem de

    proporcionar uma finalidade positiva aos seus prprios excessos e de apresentar um

    futuro glorioso vangloriando uma humanidade reconciliada com ela mesma, uma

    desapario das desigualdades e da explorao, uma cooperao internacional e uma

    concrdia universal. Por outro lado, a hipermodernidade se apresenta como uma

    modernidade desprovida de qualquer outra finalidade que a do aprofundamento de sua

  • prpria lgica, funcionando a todo vapor sem, no entanto, poder justificar seu prprio

    desenvolvimento, nem parecendo conseguir se autolimitar.

    A primeira modernidade ainda era limitada por concepes tradicionais que

    conferiam ao Estado um papel de planejador e de administrador da vida econmica, que

    valorizavam a nao e o sacrifcio individual em prol do bem-estar coletivo, que

    deixavam Igreja um papel essencial no controle das conscincias e na organizao da

    vida social e que legitimavam a imemorial diviso dos gneros e a submisso do

    feminino ao masculino. No somente essas antigas concepes j no dominam mais,

    como tambm seu prprio significado faz defeito. Contra elas, a sociedade

    hipermoderna se construiu em torno de uma sociedade civil fazendo frente s

    prerrogativas do Estado, onde a ideia de Nao foi contundente, onde a religio parece

    conservar um papel mais folclrico do que realmente estruturante, e onde o

    reconhecimento da igualdade dos gneros , definitivamente, um valor compartilhado.

    Enquanto a primeira modernidade se encontrava limitada pelas antigas formas de

    socializao e de poder, pelos valores tradicionais de autoridade e de respeito

    hierrquico, pela atribuio de lugares precisos no recinto familiar, nas instituies

    pblicas ou privadas, a hipermodernidade, por sua vez, no encontra mais foras

    suficientemente potentes para escapar fuga para a frente que a caracteriza. Deve-se

    incessantemente inovar, se transformar, se reformar, fomentar a mobilidade e a

    flexibilizao, como se nenhuma alternativa a este culto da transformao permanente

    fosse possvel.

    neste contexto que a questo posta da administrao das complexidades

    hodiernas especialmente se coloca, porquanto como administrar as sociedades

    complexas que aparecem em fatos incontrolveis, tomados pela lgica do sempre

    mais ou do sempre melhor, e que s pode causar crises sobre crises. Crises

  • econmicas, claro, que se explicam pela hiperatividade financeira e bolsista e a vontade

    dos atores econmicos de querer sempre mais e de inventar produtos financeiros para

    alcanar tal objetivo; crises ecolgicas devidas hiperconsumao, globalizao e ao

    desenvolvimento desenfreado das megalpoles tentaculares; crises sociais, explicveis

    em parte pela lgica do hiperindividualismo que multiplica as condutas de risco e pelo

    desaparecimento das referncias tradicionais; crises tecnocientficas, com o aumento da

    cibercriminiladidade e do desenvolvimento descontrolado da tecnocincia; crises

    geopolticas, com a ascenso em potncia de conflitos polticos e religiosos e da

    propagao do terrorismo em escala internacional; crises gerenciais, quando os modelos

    propostos tm uma expectativa de vida efmera e quando as organizaes so tomadas

    pela ideia de inovao permanente que destri toda a estabilidade interna.

    Por mais que a crise represente um aspecto do mundo hipermoderno, devido s

    tenses que carrega, no devemos nos ater a esta leitura tanto caricatural como

    apocalptica de nossas sociedades hipermodernas. As crises pelas quais perpassam so

    um efeito superficial que nos remete, em verdade, a uma concepo mais complexa da

    hipermodernidade, que no pode ser apenas caracterizada pela lgica da desmedida. Por

    mais que possamos constatar que os comportamentos disfuncionais tendem a se

    multiplicar, que a lgica do excesso caracteriza bem as nossas sociedades

    hipermodernas, ela no o nico elemento explicativo da Idade Hipermoderna. Com

    efeito, dada a profuso dos comportamentos excessivos, dada as lgicas de curto prazo,

    dada a libertao de nossos desejos e prazeres que permite uma sociedade

    aparentemente sem obrigaes nem sanes, outra lgica toma espao, menos aparente,

    mas igualmente real, feita de moderao e de prudncia e de preocupao com

    perspectivas de longo prazo, principalmente no campo do meio ambiente. De fato, no

    momento mesmo em que triunfa a lgica empreendedora de curto prazo, impe-se a

  • ideia de desenvolvimento sustentvel e de legado global que devemos transmitir s

    geraes futuras, contradio que s poder ser dirimida se conseguimos reconciliar as

    dinmicas econmicas e ecolgicas, o que parece indicar que nossas sociedades

    hipermodernas dispem em si de recursos permitindo, se no de parar, ao menos de

    frear parte da desmedida que as caracteriza em grande parte.

    Um dos freios no negligencivel da dinmica do excesso hipermoderno esse

    excesso em si mesmo e as inquietaes que suscita. O reino da desmedida existe de fato,

    mas contrabalanado pelo aumento da ansiedade caracterstica de nosso presente, de

    um presente que estimula simultaneamente os prazeres (o hedonismo, a consumao, a

    festa) e as inquietaes. O paradoxo devido ao fato que o aumento dos lazeres

    acompanhado de uma dificuldade cada vez mais real de se viver, que a prosperidade

    material se junta a uma pobreza relacional. Os tempos hipermodernos implicam que

    cada indivduo, entregue sua prpria liberdade, est submetido a injunes paradoxais

    que opem a um s tempo as exigncias do hedonismo e as da responsabilizao, tendo

    como consequncia uma espcie de sociedade esquizofrnica, presa entre a cultura do

    excesso, do sempre mais, da multiplicao de experincias, e um louvor moderao,

    simplicidade, ao cuidado de si e de sua sade.

    Para tornar mais concretos esses paradoxos hipermodernos que remetem a essas

    exigncias contraditrias que so a performance e a moderao, a superao de si e a

    prudncia, usarei trs exemplos que permitiro de adequadamente os destacar: o corpo,

    a sexualidade e o trabalho. No que concerne o corpo, preciso realmente relembrar o

    quanto, no Rio de Janeiro, as exigncias de performance so importantes, que

    recomendam a todos de tomar cuidado com o seu corpo, de mant-lo, de muscul-lo,

    chegando at a modific-lo se no corresponder aos padres sociais em vigor. Como

    negar essa vontade de nossos contemporneos, e em particular das mulheres, de buscar

  • o ideal de magreza e da juventude, dissimulando os sinais da idade ou as imperfeies

    do corpo, e a importncia que tomaram hoje as dietas, os cosmticos ou ainda a cirurgia

    plstica? A isso, acrescenta-se a obsesso pela sade fsica e mental e a vontade de estar

    sempre em forma, o que se traduz pelo uso de suplementos nutricionais e de produtos

    dopantes. Essa preocupao de autocontrole total uma faceta da relao com o corpo

    contemporneo, mas h outra, igualmente caracterstica de nossa hipermodernidade, que

    se traduz, em sentido oposto, pela exacerbao do bem-estar, do deixa-estar, do prazer

    corporal, onde no se trata mais de corrigir o corpo ou de apag-lo, mas de assumi-lo

    como , de sentir intensamente os prazeres que capaz de proporcionar, de manter com

    ele um relacionamento autentico. Uma variedade de fatos que mostra bem como o ideal

    da perfeio fortemente limitado pela lgica do bem-estar, a preocupao de desfrutar

    de experincias outras que a de performance, fundada numa forma de estetizao da

    existncia que prefere o melhor ao mais.

    Essa tenso entre a performance e o bem-estar corporal encontra-se no plano da

    atividade fsica. Com efeito, o culto da performance no que diz respeito ao corpo

    particularmente bem ilustrado no desporto, onde devemos sempre nos superar para

    ganhar e onde o importante quebrar, um por um, os ltimos recordes estabelecidos. O

    modelo desportivo que nos proposto assim feito de proezas a realizar, de desafios

    extremos a vencer e de superao permanente de si. O reverso da moeda desse culto da

    excelncia desportiva , claro, a exploso do fenmeno da dopagem, no s entre

    profissionais, como tambm entre amadores. Sem mencionar os efeitos deletrios desse

    culto da performance sobre a sade fsica e psicolgica dos indivduos que a ele aderem.

    No entanto, essa valorizao do corpo mediante recurso atividade fsica remete

    tambm a outro fenmeno, que nada tem a ver com a lgica da performance, que o da

    estetizao da existncia. Neste contexto, o esporte no aparece mais sob o ngulo da

  • competio, mas sob o do prazer em praticar uma atividade convival, a aproveitar do

    seu tempo livre, a descobrir novas disciplinas esportivas. Melhor, o esporte visto

    como a melhor forma, no de ultrapassar os limites de seu corpo, mas de mant-lo em

    forma e de ficar saudvel. Multiplicando simultaneamente as exigncias da performance

    e do bem-estar, propondo aos indivduos tanto de se superar como de se moderar,

    nossas sociedades hipermodernas so, de fato, a fonte das tenses e dos paradoxos que

    tornam difcil sua compreenso e, evidentemente, a gesto.

    Os mesmos paradoxos podem ser igualmente encontrados na sexualidade. Aqui

    tambm, as injunes do modelo de performance so numerosas: ditadura do orgasmo,

    que deve ser alcanado a qualquer custo, extenso do tamanho do pnis para aumentar

    as performances sexuais, calibragem das mensuraes femininas para responder a uma

    viso padronizada do corpo, uso do Viagra para ser eficiente a qualquer idade,

    necessidade de descobrir tudo e de experimentar tudo dentro de um mercado ertico que

    introduz constantemente novos produtos, exploso da pornografia na internet, etc. So

    diversos os elementos que apresentam a hipersexualizao contempornea sob o aspecto

    do excesso, em que a norma principal seria a performance. Neste quadro analtico, a

    performance sexual se torna, de feito, uma sujeio da qual no podemos escapar, e a

    incapacidade de alcan-la, um drama individual. Mas quem aqui v que trata-se apenas

    de uma faceta da sexualidade hipermoderna? Existem outras ideias que as da

    performance, igualmente potentes, como o da qualidade de vida, da autenticidade das

    relaes interpessoais, da busca de um amor duradouro e compartilhado, da fora dos

    sentimentos, que constituem exemplos significativos de entraves para a

    hipersexualizao contempornea. Se o culto beleza ainda existe em matria de

    sexualidade, ele amplamente marginalizado pela busca do bem-estar afetivo e

  • relacional, que, entretanto, no probe o prazer sexual e o erotismo, vivenciados fora da

    esfera da performance.

    Aqui ainda, devemos compreender que a sociedade hipermoderna no em nada

    uniforme, e que ela permeada por diversas lgicas, que podem ser conciliveis ou

    autonmicas. Todavia, essas lgicas no so apenas sociais, tambm so internalizadas

    pelos indivduos, o que explica em parte a fragilizao das personalidades, fisgadas

    entre recomendaes e ideais divergentes. Diante do desaparecimento das antigas

    normas sociais e da autonomizao progressiva dos indivduos em relao s

    tradicionais formas coletivas que representavam a famlia, a escola, a religio, as classes

    sociais, os partidos polticos, convm constatar que nossos contemporneos adquiriram

    uma independncia real em relao aos laos sociais costumeiros, mas que se traduz, em

    compensao, por um desnorteamento e um sentimento de desorientao generalizado

    que produz uma dificuldade de viver inegvel e compartilhada. Como si o bem-estar

    coletivo de massa proporcionado pela civilizao dos lazeres e pela abundncia dos

    bens materiais, que deveriam supostamente trazer felicidade a todos, resultou, em

    verdade, no plano individual, na infelicidade de cada um de ns. Como se a

    multiplicao dos prazeres propostos pela nossa sociedade de hiperconsumao

    produzia, em contrapartida, indivduos entediados e desapontados com o que lhes

    oferecido. Mas poderia isso ser diferente quando existe um abismo entre o que

    oferecido e disponvel e o que vivenciado ou possudo, e quando os remdios

    tradicionais que deveriam preench-lo no funcionam mais ou funcionam mal? Da as

    frustraes e as decepes que nutrem o clima atual.

    E o trabalho nisso tudo, vocs me perguntaro? O que advm do valor do

    trabalho e de sua gesto no bojo das organizaes que so as suas? E como motivar no

    trabalho quando a dimenso dos prazeres e dos lazeres aumenta paralelamente s

  • decepes e s frustraes de empregados cada vez mais exigentes e cada vez menos

    fiis s organizaes a que pertencem? Pois, no nos ludibriemos neste ponto, o

    processo de hiperindividualizao igualmente perceptvel no mundo dos negcios e

    contribui a minar o evangelho do trabalho fordista em benefcio dos lazeres e do bem-

    estar, tendo por consequncia que o verdadeiro investimento da grande maioria de

    trabalhadores no se faz mais no recinto da vida profissional, mas no mbito da vida

    privada e do tempo pessoal.

    Vocs poderiam me responder que o mundo do trabalho atual, que se distanciou

    do modelo de empreendedorismo tradicional, disciplinar e hierrquico, em benefcio de

    um novo modo de regulao organizacional, mais moldvel e mais flexvel, em que o

    poder mais difuso e mais disperso no mago da empresa, tem tentado responder em

    parte s suas novas exigncias individuais. Neste ponto, vocs tm razo, e

    evidentemente mais prazeroso trabalhar hoje para a Google do que para a Ford no

    sculo passado. Entretanto, ainda assim, a Google constitui a exceo e no a regra, e os

    desafios do mundo do trabalho hodierno devem ser buscados noutros lugares,

    principalmente no mbito da concorrncia e da competio devida globalizao dos

    mercados, da eficincia e da otimizao dos processos de produo e de gesto, das

    normas tecnicientes e do desempenho organizacional, que tornam o ambiente

    profissional um lugar estranho aos prazeres. Da decorrem a decepo de nossos

    contemporneos ao mundo de trabalho tal como existe e as inmeras crticas contra ele,

    que denunciam confusamente a falta de reconhecimento por parte dos empregadores e

    dos clientes, o estresse provocado por condies de trabalho sempre mais rigorosas

    justificadas pela eficincia dos modos de produo e pela otimizao dos recursos, o

    carter rotineiro das tarefas propostas, a desvalorizao dos diplomas, a falta de

    realizao pessoal no mbito da empresa, a dificuldade de se projetar no futuro das

  • organizaes em constante transformao, etc. Difcil, depois disso, culpar aos

    assalariados a falta de investimento na sua organizao, atitude contrria seria um tanto

    quanto surpreendente.

    A administrao tentou, obviamente, parar este desencantamento,

    principalmente pelo fomento de novos modos de gesto, como o mtodo lean, e pelo

    reconhecimento da importncia da satisfao no trabalho e da necessria valorizao do

    potencial e das competncias de cada. Porm, insistindo na autonomizao, na

    responsabilizao, no desempenho e na criatividade dos indivduos, pedindo lhes para

    definir-se objetivos sem necessariamente dar-lhes os meios para atingi-los, ou

    sugerindo-lhes de ir sempre alm dos objetivos por eles definidos para contribuir no

    sucesso da empresa, o novo modelo gerencial s podia dar errado. Como se surpreender

    com a multiplicao das frias por exausto profissional, dos burn out ou das

    depresses, quando sabemos que impossvel para um indivduo ser sempre eficiente e

    altura dos ideais que ele mesmo definiu e que se culpa por no conseguir alcanar? E

    no seria iluso acreditar que os empregados no esto cientes de que os novos mtodos

    gerenciais levados a efeito para o bem da organizao produzem, em verdade, mais

    insegurana e presses em termos de ritmo de trabalho? E como pensar seriamente que

    esse modelo de performance e de eficincia possa ser unanimemente compartilhado,

    quando todos ns sabemos pertinentemente que o tempo fora do trabalho que parece

    ser o mais satisfatrio maioria dos empregados, e que este mesmo que valorizado

    pela sociedade dos lazeres. Isso no quer significar que o trabalho no importe ele

    permanece, com efeito, um importante vetor de significado na vida dos indivduos, pois

    dota-lhes de um status social, permitindo-lhes desfrutar dos benefcios da sociedade de

    consumao, evitando a marginalizao que o desemprego causa -, mas isso

    simplesmente significa que a importncia do trabalho decresce dadas as expectativas

  • geradas pela sociedade de consumao em massa. E se os empregados se mostram,

    apesar de tudo, bastante satisfeitos com o seu trabalho, muitas vezes mais pelas

    condies relacionais e afetivas que ele proporciona e pelo reconhecimento que oferece,

    do que pelo trabalho em si mesmo, introduzindo, portanto, no domnio profissional, as

    mesmas expectativas de bem-estar e de realizao de si que aquelas procuradas no

    domnio privado.

    Logo, neste contexto em que as relaes de trabalho so tomadas pela lgica

    hipermoderna, como administrar uma organizao? Como motivar empregados quando

    a preocupao com o prazer supera a necessidade do trabalho? Falo em necessidade do

    trabalho, pois no devemos confundir as coisas. Se podemos, efetivamente, encontrar

    prazer em trabalhar, principalmente porque o trabalho proporciona um status social e

    estimulantes contatos profissionais, resta que a grande maioria dos empregados de uma

    administrao, pblica ou privada, est l apenas para ganhar a vida e gastar seu salrio

    para responder s suas vontades e necessidades de ordem privada. O melhor exemplo

    que podemos citar para enfatizar essa evidncia que a maior parte deles, se ganhasse

    amanh na loteria, pediria de imediato demisso. E quem poderia realmente culp-los?

    Trabalhar no , portanto, antes de tudo um prazer, mas uma obrigao, como bem

    retrata a etimologia latina do termo, trepalium, que designava na Idade Mdia um

    instrumento de tortura. Em suma, ns s trabalhamos por necessidade, da a dificuldade,

    como administrador, em fazer os outros trabalharem, e se possvel, motivando-os para

    que a organizao possa alcanar seus objetivos, especialmente dentro da civilizao

    dos lazeres que a nossa, essa sociedade de hiperconsumao que multiplica as

    oportunidades de ter prazer e que tende a fazer com que os mais jovens se esqueam do

    significado do trabalho.

  • Da o paradoxo: como dar um sentido ao trabalho quando os funcionrios

    pensam que o sentido verdadeiro de sua existncia deve ser pensado fora do trabalho?

    Como os motivar quando o trabalho se apresenta como uma forma de castigo ou de

    punio e que as frias ou a aposentadoria se apresentam como os momentos mais

    prazerosos da vida? E como dizer que esto inteiramente errados? Pensar

    constantemente no trabalho, viver apenas pelo trabalho, no seria ter uma relao

    patolgica com o seu trabalho? Ademais, quem realmente estaria disposto a trabalhar

    voluntariamente, sem nada receber em troca? Todo trabalho no merece um salrio em

    contrapartida do investimento pessoal que cada um traz? Se devemos remunerar nossos

    empregados e seus colaboradores porque eles aceitam fazer algo que no fariam se

    pudessem escapar disso. Isto sugere que o trabalho no um valor em si mesmo de

    ordem de uma obrigao moral, mesmo se ele tem, evidentemente, um valor econmico,

    e remete a uma obrigao social.

    Se o trabalho no um valor em si mesmo, isso no quer significar que no h

    nenhum sentido em trabalhar, mas sim que este sentido deve ser procurado fora do

    trabalho, pois o sentido s vale quando est a servio de outra coisa, que o ultrapasse e

    transcenda. Ora, esta outra coisa, no pode ser apenas o salrio. Com efeito, todo

    administrador sabe pertinentemente que se eles querem motivar sua equipe e segurar

    seus melhores elementos, devem encontrar outra motivao que o salrio, posto que

    organizaes concorrentes estaro sempre dispostas a propor mais do que ele pode

    oferecer. Deve-se, portanto, oferecer aos melhores algo melhor do que uma simples

    bonificao salarial, ou seja, algo que possa atender s suas mais profundas aspiraes

    de indivduos hipermodernos em termos de bem-estar e de segurana psicolgica. Ser

    um administrador experiente hoje significa fornecer aos assalariados as melhores

    condies possveis de trabalho.

  • Os assalariados no trabalham por sensao de dever cumprido ou por amor ao

    trabalho, eles trabalham preocupados com consideraes materiais, tais como ganhar

    bem a vida e sustentar suas famlias, mas tambm porque so movidos por

    preocupaes psicolgicas importantes, tais como o fato de ser feliz. Ora, o bem-estar

    no impossvel no trabalho, mesmo se o trabalho primeiramente tido como uma

    obrigao. Para isso, os empregados devem ser motivados, ou seja, eles devem ter

    vontade de trabalhar, sentir desejo, encontrar prazer em trabalhar. Ser um administrador

    eficiente hodiernamente significa estimular a vontade de trabalhar dos seus

    subordinados, principalmente mediante o fornecimento de condies de trabalho que os

    faro mais felizes em trabalhar nas suas organizaes do que nas dos seus concorrentes.

    Se os empregados no trabalham por puro prazer, nada impede de fazer com que seja

    para eles agradvel trabalhar com vocs, para que se sintam teis, para que participem

    de uma aventura coletiva interessante, para que trabalhem em harmonia com seus

    prprios valores, para ser reconhecidos pela qualidade do que fazem e do que so,

    elementos que podem garantir uma nova forma de apego organizao, afetiva e

    relacional. E se os seus subordinados encontram prazer em trabalhar sob sua direo

    porque sintam que vocs se preocupam com seu bem-estar profissional, se eles no

    encontram razo objetiva de deixar a sua organizao, ento, como contrapartida, isso

    deveria lhes propiciar essa felicidade no trabalho que vocs lhes conferiram. Pois eles s

    podero sentir esse prazer em trabalhar por vocs se vocs tambm veem um sentido em

    fazer esse trabalho, apenas se o seu trabalho lhes proporciona uma verdadeira

    realizao. Em suma, porque o trabalho no puro prazer, que pensar sobre a questo

    do prazer no trabalho um desafio decisivo para os administradores que vocs so, e

    isso, independentemente de tratar-se do prazer dos outros ou do seu. onde vemos que

    a dinmica hipermoderna se imiscuiu de forma duradoura no mundo do trabalho, para

  • repensar a estrutura em nome dos ideais do hiperindividualismo e da hiperconsumao

    que fizeram do bem-estar uma paixo democrtica compartilhada e da melhoria das

    condies de trabalho o leitmotiv das reivindicaes individuais e coletivas.

    Para concluir, uma derradeira palavra sobre essas complexidades que mencionei

    e que tornam, nos dias de hoje, o trabalho do administrador extremamente delicado,

    posto que as exigncias a que confrontado mudaram profundamente assim como as

    habilidades que permitem afront-las. O regime hipermoderno, realmente, perturbou de

    maneira fundamental as relaes com as coisas e os seres, reorganizando os desejos de

    cada um em torno do modelo consumista, feito de prazeres e de satisfaes individuais,

    e transformando os indivduos em consumidores, com os efeitos que isso produz sobre

    os seus comportamentos e imaginrio, doravante organizado em torno de valores

    afetivos e relacionais. Essa dinmica consumista to poderosa que contribuiu a

    modificar as antigas estruturas sociais organizadas em torno da famlia, da religio ou

    da poltica, afetadas, por sua vez, pelas reivindicaes individualistas do bem-estar e da

    realizao pessoal.

    Nesta perspectiva, o mundo do trabalho no poderia escapar dessa reorganizao

    do social em torno desses valores do bem-estar e da autorrealizao. De modo que j

    no podemos mais administrar uma sociedade ou uma organizao hipermoderna como

    no passado, ou seja, sem levar em conta a formidvel mutao das expectativas em

    relao a um mundo profissional que deve se conformar em parte aos seus desejos.

    Enfatizo o fato de que o mundo dos negcios s pode atend-las em parte, porque tem

    sua prpria dinmica, que a de buscar rentabilidade, satisfao da clientela, otimizao

    dos procedimentos de produo e de gesto, eficincia dos recursos, dinmica que

    parece pouco compatvel com a busca do bem-estar material e psicolgico dos nossos

  • contemporneos. Da a srie de paradoxos que ope performance e bem-estar, eficincia

    e reconhecimento do trabalho cumprido, melhoria de procedimentos e valorizao

    individual, respeito das normas profissionais e vontade de transgresso da ordem

    estabelecida, e que deve ser abordada caso a caso. Pois a maneira de tratar esta lgica

    paradoxal s pode diferir de uma organizao a outra, os desafios no so os mesmos

    para a iniciativa privada e para a Administrao Pblica, por exemplo, assim como as

    margens de manobra que permitem atender s vontades dos empregados. Ainda assim, a

    construo de um ambiente de trabalho seguro e gratificante, onde as pessoas se sentem

    reconhecidas e confiantes, s pode, obviamente, se enveredar pelo caminho certo.

    Tudo indica que este trabalho coletivo de reorganizao dos modos de produo

    e de administrao ainda precisa ser feito e que a gesto tem um longo futuro pela

    frente, visto que no h nada que sugira que um modelo alternativo possa prevalecer no

    curto prazo dada a lgica hipermoderna. Isto significa que ns s podemos neutralizar

    os excessos hipermodernos por uma reflexo ela mesma hipermoderna, tentando

    inventar novas formas de viver e de trabalhar que permitem aos indivduos se

    reconstruir e pensar fora do nico modelo consumista, em nome de valores e propsito

    existenciais outros que a perptua renovao de objetos que promove a lgica do

    hiperconsumismo. Por mais que nosso futuro a curto prazo no escapar da lgica

    hipermoderna, nossas sociedades hipermodernas, quanto a elas, no so

    unidimensionais, e elas dispem de meios lhes permitindo aproveitar a negatividade dos

    excessos hipermodernos e a positividade de suas limitaes ou de sua reorientao em

    nome de valores outros que a simples satisfao de prazeres individuais provocada pelo

    consumo. Afinal de contas, a sociedade hipermoderna, na sua lgica paradoxal, produz

    ao mesmo tempo um culto do excesso e um louvor moderao, uma valorizao dos

    comportamentos irresponsveis e um apelo responsabilizao de cada um. Est,

  • portanto, na hora que as ferramentas que a modernidade nos deu, e especialmente a

    deliberao coletiva e a tomada de conscincia presente das futuras consequncias de

    nossas aes, sejam postas a servio do bem comum, em vez de interesses individuais

    ou corporativos. A hipermodernidade se apresenta muitas vezes aos nossos

    contemporneos como um regime sem alma; e esta no uma razo para no tentarmos

    dar-lhe uma.