chicos 28 novembro de 2010

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Entertainment & Humor


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Chicos e-zine literária de Cataguases - MG

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Chicos N. 28 - Setembro 2010

e-zine de literatura e idéias

de Cataguases – MG

Capa

Foto de Vicente Costa

Editores Emerson Teixeira Cardoso

José Antonio Pereira

Colaboradores permanentes: Altamir Soares

Vanderlei Teixeira Cardoso

Vicente Costa

Zeca Junqueira Colaboradores desta edição: Antônio Perin

Carlos Herculano Lopes

Emanuel Medeiros Vieira

Flauzina Márcia da Silva

Ronaldo Cagiano

Rubens Shirassu Jr

Fale conosco em: [email protected]

Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/

Dedim de prosa Esta edição era para estar circulando no início de outubro, mas no dia 02 daquele mês, faleceu Maria do Carmo Pereira “Dona Carmita”, mãe de José Antonio Pereira. Ainda enlutados, estamos de volta em novembro exatamente no dia de finados.

Como se vê na foto acima, participamos de uma das mesas da FELICA deste ano. Zeca, Zé Antonio, Emerson e Vanderlei Pequeno mediados por Giovani Ramos – nesta ordem da esquerda para direita - discutiram literatura e política e continuam sem consenso. Neste número publicamos uma crônica de Carlos Herculano Lopes, um conto inédito de Ronaldo Cagiano premiado no 23º Concurso de Contos de Araçatuba (SP), a estréia de Antônio Perin, a poesia do uruguaio Leonardo Garet em tradução de Ronaldo Cagiano, o japonês Masaoki Shiki em versão de Emerson Teixeira, Rubens Shirassu Jr, Flauzina Márcia, Emanuel Medeiros e uma seleção do poeta português António Ramos.

2010 Ano do Centenário de Rosário

Fusco

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Carlos Herculano Lopes

De volta a Cataguases

Transcrito do Estado de Minas edição de 17/09/2010

No início da década de 1980, quando me iniciava na literatura e no jornalismo, estive em Cataguases, convidado por um grupo de amigos, entre eles Luiz Ruffato, Fernando Cesário e François Fusco, para lançar meu primeiro livro de contos, O sol nas paredes, que também vendia nas ruas, bares e portas de teatro, como tantos outros autores iniciantes. Depois de Belo Horizonte, onde anoite de autógrafos ocorrera na Casa do Jornalista, Cataguases foi a primeira cidade que abriu as portas para mim. Daqueles dias guardo algumas fotos, livros autografados e um quadro do pintor Cláudio Lopes. Semana passada, tantos anos depois, volto à terra de Francisco Inácio Peixoto, Humberto Mauro e Ascânio Lopes, desta vez para participar do Festival literário de Cataguases (Felica), evento organizado, como na priemria versão, pelos professores Geraldo Filho e Rodney Rocha, jovens cheios de entusiasmo, sem o qual é impossível realizar qualquer coisa. Durante três dias, pelo Centro Cultural Humberto Mauro, passaram entre outros, os escritores Affonso Romano de Sant’Anna, Carlos de Brito e Melo, Marcelino Freire, Nicolas Behr e Alexei Bueno, além de filhos da terra como Ronaldo Werneck, Joaquim Branco e Fernando Abritta. Mais que falar de literatura – afinal de contas, esse foi o motivo de minha ida até lá -, tive a oportunidade de andar pela cidade, com o mesmo encantamento de quando a conheci. Caminhei pelo Calçadão da Rua Coronel Duarte, supermovimentado; estive na Lanchonete Mulambo, onde havia um bar, no qual tomamos uns bons chopes. Sentei-me nos bancos das praças, sendo acolhido pela sombra das mesmas árvores que, nos idos dos anos 1920, abrigaram os

rapazes da revista modernista Verde, que causou tanto furor. Passei pelas margens do Rio Pomba, infelizmente tão poluído; ouvi com o nostalgia o apito do trem, e estive em novos bares, como o Cafezinho, do José Diogo, e o Chuá, onde o Thiago faz as honras da casa. Espetinhos de frango e porções de carne cozida são os tira-gostos. Nas mesas deste, entre um brinde e outro, fiz novos amigos. Impossível citar todos. Mas não há como deixar de falar do professor Emerson Cardoso, de Enzo Menta. José Antônio Pereira, de Wanderlei Pequeno, do artista plástico Puri, além do marchand Cairu, que está criando um memorial para a artista plástica Nanzita. Como da primeira vez, fiquei hospedado no Hotel Cataguases, em cujo restaurante, além da garçonete Rosângela, em sua primeira semana de trabalho, fiquei conhecendo o novo administrador, Rômulo Garonce. Depois de viver muitos anos fora, ele mora outra vez na terra. “Estou superanimado, se deus quiser tudo vai dar certo”, disse, enquanto supervisionava as mesas. No começo da tarde de domingo, pois na segunda-feira bem cedo teria de pegar no batente, tomei o ônibus de volta para Belo Horizonte. Na cabeça, enquanto passava por Piraúba, Rio Pomba, Astolfo Dutra e Barbacena, fazia muitos planos para, ano que vem, estar de novamente em Cataguases. Geraldo Filho e Rodney Rocha já começam a pensar na terceira versão do Felica.

Carlos Herculano Lopes (Belo Horizonte -MG)

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Ronaldo Cagiano

Eles não moram mais aqui Voltei para casa com a sensaçVoltei para casa com a sensaçVoltei para casa com a sensaçVoltei para casa com a sensação o o o

de uma absoluta solidde uma absoluta solidde uma absoluta solidde uma absoluta solidãoooo....

“O túnel”

Ernesto Sábato

...mas aparecem todos os finais de semana, de bus, van ou metrô até chegar ao outro lado da cidade, a imensa ilha cujo mar é o céu infinito, pássaro nascido da prancheta, com suas enormes asas abertas sobre o cerrado. O sono despertado pelo interfone, eu ali, semi-acordado da madrugada que ainda me prostrava com seu chumbo na manhã ociosa. Eles, pontuais e esperançosos, esperavam o meu abraço, o beijo, uma festa nos olhos conspurcando o endereço inóspito. Antes de entrarem, apesar de terem a chave, bolinavam a campainha num toque prolongado, acho que o pai ainda está dormindo, Bebel, talvez por temerem invadir a privacidade, era sempre bem cedo, como se não quisessem perder um minuto do direito de visita, eu percebia pelo olho mágico a face (e)terna, deve estar se vestindo, ela falava ao Dudu, eles vinham para o lugar que um dia foi deles, e meu sorriso tentava empanar a face ainda desfigurada, a garganta congestionada por hálito e emoção, a impossibilidade de tantas perguntas, apenas os filhos ali - um casal, mocinhos já - e não se lembrariam mais dos primeiros choros, as cólicas abreviando as noites, seus corpos buscando afagos enquanto a febre latejava, e agora são eles numa sondagem silenciosa e aflita com um olhar-escafandro penetrando o insondável do meu coração, bateia no aluvião de minhas tristezas, mergulhados mais fundo do que nunca numa água desconhecida, mas o que são os filhos senão o barco que lançamos rumo ao mar existencial, lá onde não podemos mais chegar e alcançá-los, onde a fúria da vida impõe suas fadigas e descaminhos. Sim, fomos filhos um dia, mas em que águas me lancei, que a mesma distância entre mim e seus avós parece multiplicada entre nós, agora esses corpos frágeis, tão cedo carregando o peso da realidade? Acho que jamais soube o que era tudo isso, ainda mais agora, longe do seu tempo de febres e choros ensurdecendo a casa, quando esse outono consterna a cidade com a prostração das cores, a janela é um convite para uma fronteira que não conheço,

os olhos apertados, não querendo ceder lugar às lágrimas, procuram procuram procuram e, extenuados, só pescam lembranças no lago turvo de um tempo que a gente não reconstrói mais pois vai embora como a vida, como vão a poeira e a folhagem seca sob o telhado escoiceadas pelas chuvas de dezembro, esse acúmulo de epidermes mortas, jazigo de guerras conjugais, e amanhã é domingo, pé de cachimbo, (e as cidades morrem aos domingos, como morre nosso espírito calejado de ausência e silêncios), o apartamento está vazio como habitada por fantasmas está a Esplanada dos Ministérios, esses inexpugnáveis caixotes que albergam tantos segredos, e quando eles entram, são as perguntas de sempre, são os laços rompidos, são seus olhares inertes sobrevoando os cômodos, esquadrinhando as retratos sobre a cristaleira, é a alma um pomar de lacunas e lá embaixo é o asfalto, o burburinho de carros, as superquadras e seus blocos residenciais (pombais que o velho Euclides detestava habitar), enfileirados como um dominó, as cigarras de agosto e o pregão de seu canto histriônico, e a urgência de tudo nas coisas, é o que sobra, é o que miro na estante com a foto da primeira viagem à praia, ele grudado às minhas pernas, ela no colo, ali estávamos, no parapeito do grande belvedere do Cristo Redentor que dava para a Baía de Guanabara, e já não é aquele tempo que vejo, é o pranto reprimido que se dissipa com o barulho do caminhão de gás se enviesando sinfônico pelos setores povoados de siglas e sua vinheta imutável, a respiração um pouco mais forte, ah água que eu havia esquecido esquentando na chaleira, tudo parece imperfeito, eles me beijam quando chegam, acomodam-se solenes e calados na velha poltrona como se desconhecessem o lugar, o dia livre, os móveis, os passeios, enquanto as bonecas apodrecem numa gaveta da cômoda travestida em museu de entulhos, o autorama enguiçado (lembro-me do dia em que ele, brilhando como um cometa, o recebeu de minhas mãos – É meu,

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Ronaldo Cagiano pai?) denuncia que a existência acumula perdas e riscos além das mentiras e ofensas na Vara de família – tudo agora parece acabar antes de começar, o abraço deles, demorado e insubstituível, ainda penetra minha consciência como um punhal em brasa, o quarto os espera como sempre, como se nunca tivessem saído de lá e voltassem de férias, mas os cadernos, suas caixinhas de pertences, a mochila, as roupas espalhadas, as folhas de desenhos coladas na parede, os deveres por fazer - onde estão?Braços apascentam a saudade e eu percebo que a realidade, imperturbável, seqüestrou seus rostos de criança. A casa é a mesma, mas a solidão imperativa os recebe como um estranho. Estrangeiros na própria terra, já não reconhecem os desenhos a lápis de cor que ainda adormecem nas paredes do quarto da empregada. Onde andará dona Zenaide, que ensinou-lhes em nossa ausência as muitas coisas da vida, as sofrências do ver? Há uma sombra pretérita escurecendo os cômodos. Como a pergunta lâmina que não tem resposta, apenas uma lágrima esconsa. Pai, o que é saudade? Ainda me lembro quando ele a me cravou, à queima-roupa. E nunca imaginei que um dia seria mais difícil sentir do que explicar. Naquele tempo os passeios ao Jardim Zoológico se revestiam de tamanha aventura, como se juntos flagrássemos o reino da fantasia que nos isolava do mundo e da fugacidade dos infortúnios que a vida prepararia sem postergação nem dó, eles ainda tinham seus heróis enquanto os meus não sobrevieram a 68 e a plena efervescência da vida em seus poros, a vida, a vida, a vida com suas garras bisonhas é o que nos cabe, quando tudo já é sem a ilusão e a gente vai matando um leão por dia, nas entressafras de dores inesperadas, de inventário do pouco que tínhamos. Agora é mais um fim de semana como outro qualquer, tudo se repete como as folhas exiladas que a cada outono atapetam o gramado, como as caminhadas à beira do Lago Paranoá, os lanches após as sessões vespertinas nos cinemas do shopping, imutável como o que há de compulsório nas agendas de trabalho, já não há mais o gibi, nem os brinquedos espalhados na sala ou os desenhos trêmulos riscados a batom no espelho do banheiro (primeiros esboços de sonhos). O sol insiste em esconder-se lá, dominado por nuvens negras que caluniam a paisagem nessa estação sem graça

atropelada pela intransponível secura do Planalto Central, mais suportável que a que instaura o deserto íntimo, soberana e indesviável sentença que parece nunca apartar de nós quando o rio bêbado do tempo, veloz e pleno de fúria, irrompe em nossas vidas como as tantas enchentes de verão que irrompiam como uma tsunami na minha infância em Cataguases. E esse rio imóvel entre paredes não conduz a lugar algum, apenas reproduz a cada domingo o ritual dos rostos colados que se afastam antes de recriarem a soberania de outras despedidas, enquanto os vejo pela janela se dissipando no altiplano rumo à parada de ônibus, até se transformarem num ponto minúsculo ao longe, um cisco na paisagem do horizonte longínquo.

Agora o apartamento é um sarcófago que hiberna outras vidas (terão vivido a minha exaustão? carregam o minério bruto de outras frustrações? dão ouvidos à vizinha evangélica que tentava salvar os homens do mundo e só ofendia a gramática?), na vasta planície um vago teor de nuvens, o mofo ampliou seus mapas no terraço do condomínio; as janelas - há tempo fechadas - denunciam o imponderável que há nas coisas. E o olho mágico vislumbra outras criaturas, mas nele resiste a presença invisível de seus rostos, a substância clara de suas almas. Brasília já é um deserto onde só resistem as caliandras.

Ainda me lembro daquelas mãos albergando o afago pressuroso, guardando para o último minuto a despedida formatada no adeus definitivo que não muito longe dali o tempo se encarregaria de um dia amalgamar. E os chicletes coreografando estruturas no ar, a última lembrança da estação deixada nos degraus da escada, uma rodovia desavergonhada implementando o longo sono.

E um ronco do motor, uma trava, uma cancela, o asfalto molhado, os olhos inchados, um gigante ruminando a alma e no fundo, no fundo do cerrado, onde tentei enterrar minhas dúvidas, a dispersão das cinzas em que se converteram as estrelas de seus olhos. Ainda me lembro: eles apareciam todos os finais de semana, de bus, van ou metrô até chegar ao outro lado da cidade, a imensa ilha cujo mar é o céu infinito, pássaro nascido da prancheta, com suas enormes asas abertas sobre o cerrado. Ainda me lembro.

Ronaldo Cagiano (São Paulo -SP)

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José Antonio Pereira

Cataguases,a literatura e o cinema

Dois eventos culturais dominaram a

cena de Cataguases nos últimos meses, o

Festival Ver e Fazer Filmes, em agosto e o

Felica - Festival Literário de Cataguases em

setembro.

No primeiro, a proposta era trabalhar-se

cinematograficamente contos de Luiz Ruffato,

sem duvida a maior expressão literária de

Cataguases, que também foi uma das grandes

atrações do primeiro Felica no ano passado.

Quando no Ver e Fazer Filme trabalhou-se

contos de Machado de Assis.

No Felica, tive o prazer de conhecer entre

papos e copos o Alexei Bueno transpirando

poesia por todos os poros, o bom humor e a

boa “prosa” do Carlos Herculano. Revi

também Marcelino Freire, apresentado a mim

por Ronaldo Cagiano, na última Bienal do

Livro de São Paulo em que estive, a grande

atração do evento era Bruna Surfistinha. Os

poetas Joaquim Branco, Ronaldo Werneck e

Fernando Abritta falaram da efervescência

cultural em que foram co-participes nos anos

60 e 70. Vi o Ronaldo Brito Roque, que acabou

de lançar o seu Romance Barato, dividir com

muita competência uma mesa com Carlos

Brito e Melo. Participei de uma mesa ao lado

dos amigos Emerson Teixeira Cardoso,

Vanderlei Pequeno e Zeca Junqueira e o

Giovani Ramos onde fizemos um debate em

torno do tema “Literatura e Política”. Ah, teve

também a presença de Nicolas Behr, o rei de

Brasília, com sua popular e pungente poesia.

No ano passado vi a obra do bruxo do Cosme

Velho ganhar vida no corpo de vários amigos

atores como o Carlos Sérgio, a Fernanda Lobo,

o Eduardo Dascar, prá ficarmos só entre os

cataguasenses, enquanto Ruffato era uma das

grandes atrações do Felica. Na ocasião, ao

lado de Fernando Cesário e Ronaldo Cagiano.

Os três, numa bela manhã de sábado, fizeram

a literatura circular pelo palco do Centro

Cultural Humberto Mauro. Onde noutros

épocas curti filmes fundamentais nos tempos

do Cine Machado. Ainda naquele dia eu e meu

filho Caio encontramos com Fernando

Cesário, Ruffato e o Giovani lá no Café do

Museu onde almoçamos. Caio até hoje se

diverte muito quando relembramos da estória

que Ruffato ali contou, de certa carne de caça

que comeu em um restaurante na Alemanha,

só vindo a descobrir depois o que era com o

auxilio de um tradutor. Rindo muito

concluímos: ele saiu daqui para comer veado

na Alemanha.

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José Antonio Pereira

A primeira vez que li Ruffato foi em uma

edição de abril de 1983 – Quatro poetas não

alinhados, que guardo com carinho até hoje.

Fui conhecê-lo pessoalmente, numa Bienal do

Livro de São Paulo no final dos anos 80,

quando esta ainda ocorria no Ibirapuera.

Numa das “esquinas” do evento dei de cara

com Fernando Cesário, Pequeno e Ruffato, ali

fomos apresentados.

Para minha tristeza, ainda não vi os curtas

produzidos no Ver e Fazer Filmes, deste ano.

No dia da apresentação ao público tinha

compromissos de trabalho que me fizeram

estar ausente de Cataguases, naquele

momento. Antes disto, Juliana Junqueira, em

nome da produção do evento, convidou-me

para gravar um depoimento sobre nosso

escritor. Deixei lá uma singela e pequena fala.

O cinema iniciou-se aqui com Humberto

Mauro e na mesma década a literatura assistia

o brotar da Revista Verde. De lá para cá,

literatura e cinema caminharam em paralelo

até os anos 60 quando o poeta Chico Cabral

produziu O Anunciador.

Agora, em 2010, cinema e a obra de um autor

cataguasense estabelecem um diálogo até

então inimaginável. Com direito até a

performance do autor como ator.

No sábado de manhã, último dia do Felica, lá

no Memorial Humberto Mauro, não houve

jeito: antes de chegarmos à poesia, Eu,

Emerson Teixeira, Enzo Menta, Vanderlei

Pequeno e três jovens, mantivemos uma boa

conversa com Alexei Bueno sobre cinema que,

efervescente, concluiu ótimo papo lendo: “...

Um velho Timbira, coberto de glória, /

Guardou a memória / Do moço guerreiro, do

velho Tupi! / E à noite, nas tabas, se alguém

duvidava / Do que ele contava, / Dizia

prudente: “Meninos eu vi!” / Eu vi o brioso no

largo terreiro / Cantar prisioneiro / Seu canto

de morte, que nunca esqueci: / Valente, como

era, chorou sem ter pejo; / Parece que o vejo,

/ Que o tenho nest’hora diante de mi. // “Eu

disse comigo: Que infâmia d’escravo! / Pois

não, era um bravo; / Valente e brioso, como

ele, não vi! / E à fé que vos digo: parece-me

encanto / Que quem chorou tanto, / Tivesse a

coragem que tinha o Tupi.” / Assim o

Timbira, coberto de glória, / Guardava a

memória / Do moço guerreiro, do velho Tupi.

/ E à noite nas tabas, se alguém duvidava /

Do que ele contava, / tornava prudente:

“meninos, eu vi!”... Isto é ou não é cinema

em versos?

Felica encerrado, ainda naquela noite nas

mesas do Goiaba, Alexei Bueno, após coletar

pedras de bauxita no leito da ferrovia, teve

fôlego para declamar Castro Alves para nosso

deleite e pasmo de incrédulos freqüentadores

daquele bar.

José Antonio Pereira Cataguases - MG

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W. H. Alden

Um poema não escrito

A verdade do poeta (como a verdade do autentico escritor) difere por completo dos pronomes pessoais. O poeta finge o “eu”, o “tu” e o “ele” de maneira inconsciente, porém em sua sinceridade fala-se a verdade, jamais em sua biografia ( No máximo há que pedir-lhe que a veracidade pareça autentica, exigir-lhe que a tenha vivido, que seja uma experiência assimilada de seu eu oculto). A qualquer poema escrito por outra pessoa, o que lhe exijo primeiro é que seja bom (quem o escreveu tem uma importância menor); a qualquer poema escrito por mim, o que primeiro lhe exijo é que seja genuino, reconhecivel, o mesmo que minha letra, como algo que tenha sido escrito, para o bem ou para o mal, para mim. (No tocante a seus próprios poemas, as preferencias do poeta e as de seus leitores muitas vezes se aproximam porem raras vezes coincidem.) Porém este poema que gostaria escrever neste momento teria que ser não só bom e genuino: alem de me satisfazer, também deve ser verdadeiro. Leio o poema de outra pessoa no qual se despede de sua amada entre lágrimas; o poema é bom (me comove como o fazem outros bons poemas) é genuino (reconheço a “letra do poeta”). Em seguida, em uma biografia, descubro que, na mesma data em que o escreveu, o poeta estava de saco cheio da moça porém fingiu chorar a fim de evitar uma cena e não ferir seus sentimentos. Afeta este dado a minha apreciação do seu poema? Em absoluto; nunca conheci seu autor pessoalmente e sua vida privada não é assunto meu. Afetaria a minha apreciação se eu tivesse escrito o poema? Do mesmo modo espero que não.

O sentido da poesia

Abstenho-me de expressar o sentido que a poesia tem para mim em público, mais que nada por que este mundo é tão fragil e paradoxal que um pode chegar a ofender ao outro de um modo inaudito por acercar-se a uma teoria estética ou por defender um valor apreciado completamente distante a essa outra pessoa. O mais incrivel é ofender alguém que nem sequer trocara duas palavras contigo sobre o sentido de um poema, ou desiludir a um leitor porque descobre em tua biografia que somente tomas um copo de vinho no café da manhã. Tudo que sei de poesia (e de literatura, e de vida) o tenho dito em meus poemas. A maior parte de minhas verdades estão precisamente em minhas elaboradas mentiras. Quando escrevo nunca minto. Sou só palavra, tempo, espaço, pronomes, ritmo, onde repousa e espressa minha experiencia, meu eu, minha memória e meu desejo, minha tradição... o que tudo muda e sempre permanece, o que sou, o rosto que busco e o que encontro em cada um dos meus momentos, ele que se transforma passado amanhã sem perder meus traços sem deixar de ser eu.

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Flausina Márcia da Silva

Antes do Fim

Onde vão os cabelos de nossas cabeças caídos? Se os leva o vento podem estar entre as estrelas. Se água os leva rodeiam, rodeiam embolam-se. O fio de cabelo passa em fundo de agulha até. No pincel pinta cores, movimentos do rabo do camelo. A música, essa está cheia de caudas, crinas, couros cabeludos. Feiticeiros feiticereiam muitas eras e destinos com cabelos. Chifres derretidos em mil e um ornamentos morrem depois do fim.

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Flausina Márcia da Silva

Linhagem

Cupins, roc,roc, roc roeram meus papéis. Nas mãos de Eurídice me calo, com voz de quem procura um traço. Alexandrinos são versos de outra pessoa, os meus são flausinos, cheios de asas e cantadas para os magníficos. Só decifráveis após lutar contra o azar e os códigos. Memorizo manchas e penhascos da normandia, me esqueço das matas pagãs. Poema condescendente com as armas e os barões, clama origem singular e própria, nua, crua e sem livro. Hora de escrever com mãos primaveris.

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Flausina Márcia da Silva

Eleição & Poesia

Anti-Comício Candidato, quero falar do dinheiro. Escasso, juros altos, escasso e a dívidas, loucura! Credores arriscam ....... o quê mesmo? A força da gravidade exclui o dinheiro, ou decidiram já nossa ida. Candidato, quanto vale meu voto na sua massa salarial? O reino da necessidade está duro, candidato, em todos os sentidos.

Ato-Público Se fizermos greves protestos, demonstrações Candidato, seremos baderneiros, ilegítimos monstros? Aos policiais, no entanto em prol da categoria faculta-se o porte de armas a ocupação de quartéis sem o menor espanto. Ah! república proclamada dos coronéis, dos tenentes do voto proporcional de ninguém...... Candidato, qual é a sua, República ou curral?

Passeata Candidato, eu sou sem-terra sem-teto sem-renda Você é sem-paixão sem-emoção sem-memória O carroceiro está certo, lá de Itajubá, vaticina: "O Brasil não tem povo, o Brasil tem público". Sem votos, como negociar, Candidato???

Flausina Márcia da Silva (Cataguases – MG)

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Antônio Perin

As flores de Munique

A Sophie e Hans School

As flores de Munique, brancas rosas brotaram da clandestinidade com a fé e a coragem de seus jovens estudantes. Escondiam em invisíveis e sombrias frestas todas as vítimas da estupidez hitlerista. Ao vento, folhas esfumavam apocalípticas pelos céus da Alemanha bíblicos castigos numa oração juvenil contra a ferocidade daquelas hemorroidais caras dos nazistas. Zás. Pela suástica guilhotina escorreu o sangue de uma rosa branca na escuridão da crueldade nazista. Uma a uma... pétala a pétala... o carrasco desfez a rosa branca mas, suas palavras, rubras palavras sufocadas no próprio sangue não calaram ao silêncio imposto.

Antônio Perin (Itaobim – MG)

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Rubens Shirassu Jr

O teu corpo muda

O teu corpo muda não pedes consentimento a ti. Os teus cabelos, frisos brancos flores da natureza. Você atravessou os tapetes abrindo portas. Os teus lábios, os teus olhos carros alegóricos Jogam rosas e folhas verdes ao léu O teu corpo tem a finesse de uma estátua grega. Pele de pêssegos ao leite, ventre oval, modelo em mármore. O teu corpo é grávido não pedes consentimento a ti. O tempo é grávido trabalha nesta barriga.

Rubens Shirassu Júnior (Presidente Prudente – SP)

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Emanuel Medeiros

Adeus, Grécia

Não bastaram fibra e amor, cai, Grécia, universo solar adequação entre ser e destino, envelhecemos – morte na soleira da porta, fragmentos de sonhos – só fragmentos – não a totalidade, adeus, Grécia, adeus, despedidas – só despedidas. Ulisses: somos apenas seres virtuais, Homero envolto em brumas, homens sem fibra carregando engenhocas eletrônicas, caindo como folhas ao vento (prenhes de cobiça – soberbos -, e miseravelmente rotos), Não, não eram eternos, onipotência só de papel, deuses de barro, TV. O Espírito sopra onde quer? Adeus, Grécia, adeus, pátria dos homens, adeus, pássaro da juventude, inunda-nos o lamento de homens afundados – uma doída lembrança.

De que barro somos feitos? Não, não só de vileza, também busca, mesmo acampados em sucursais do inferno, caminhando em sombras: sonho da eternidade pela arte. Para todos – fúteis, deslumbrados, sábios – haverá sim – como haverá!, o momento da Revelação – e será tarde, muito tarde. Adeus, Grécia, adeus, desfeitos, como pó, varridas cinzas, irrelevantes ou – para alguns – nobres nessa finitude. Sonâmbulos, clones dos nossos sonhos, escritores de narrativas epigonais. Não naveguei nos melhores mares: preciso navegar – sempre – infinitamente humano.

Emanuel Medeiros Vieira (Brasília DF)

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Leonardo Garet

Sinais

Os barcos

A cada espaço de tempo Golpeiam o cais não alcançam a prudência o costume a ordem das coisas eles vêm assim confiantes como cachorros ou namorados e põem toda a amplitude do mar a bater a cabeça contra o casco deve ser para que eu festeje meu aniversário à volta de uma viagem sem fim deve ser que o casco estilhaçado aponta meu dia para voltar a encontrá-lo.

Propósito

Outra vez pra cima

para a água a tocar antes o corpo quando é pureza e alegria outra vez amarrando o pacote de meus dias tristes para deixá-lo em um lugar onde não me encontre outra vez umas poucas palavras das que vão dando o impulso completo da alegria.

As frutas

A derrota das laranjas se estendeu aos sulcos recém-plantados caminha-se pisando a cor apoiando o sapato sujo sobre o gosto os palhaços colocam laranjas nas calçadas vendem-se os venenos disfarçados de laranjas e os livros se empilham e as palavras dos pregadores e cai como única esperança a ressurreição verdadeira das frutas.

Tradução: Ronaldo Cagiano

Leonardo Garet Nasceu em 1948 em Salto (Uruguai), onde vive e dirige o Cntro Cultural Casa

Horacio Quiroga. È Contista, poeta e ensaísta. Entre obras publicadas,

destacam-se Pentalogia (1972), Primeiro cenário (Venezuela 1975), Máquina

final (1978) Pássaros estrangeiros (1988) Palavra sobre palavra (1991) Os

homens do fogo (1993), Outubro,(1994), A casa do julgar (1996), Os dias de

Rogelio (1998), Anbákoros (1999), Cantros e desencantos (2000), Saída de

página (2001) e Vigília de armas (2003).

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Masaoki Shiki

Haicais

Misturados aos arbustos das cerejeiras as asas dos pássaros

Na frialdade Deuses e Budas vivem como vizinhos.

Dou as costas para Buda e olho para a fria lua.

Agitando a cauda na brisa primaveril, veja – o pavão!

Colheita de arroz sem fumaça no solo de queimada.

Vetusto jardim – ela esvazia uma garrafa – férvida sob a lua.

Chuva primaveril apalpando sob o guarda–chuva na loja de gravuras.

Versão em português

Emerson Teixeira Cardoso

Page 17: Chicos 28   novembro de 2010

Masaoki Shiki

Tancas

Cortinas cerradas o amor de imperador

ainda dorme em flores rubras

brilha o sol da manhã.

O homem que eu sempre via no espelho

morreu agora vejo uma face desolada que engana lágrimas.

A água do balde escorria até o fim gota por gota

o orvalho pinga como pérolas das flores outonais.

Na extremidade da varanda abre suas folhas encolhidas, e liga a vasilha de água de seis pés de verde.

Page 18: Chicos 28   novembro de 2010

Masaoki Shiki

O campo contemplava e voltava – agora na escura noite

fico deitado e campos de flores de mostarda florescem diante de meus olhos.

A água do balde escorria até o fim gota por gota

o orvalho pinga como pérolas das flores outonais.

Nas agulhas do pinheiro cada longo espinheiro capta uma gota de sereno

mil pérolas que se equilibram trêmulas, nunca caem.

Versão em português

Emerson Teixeira Cardoso

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Ramos Rosa

António Ramos Rosa poeta e ensaísta português, nascido no Faro em 1924. Ao fim da Segunda Guerra Mundial mudou-se para

Lisboa, depois de ter passado a juventude em Faro. Na capital, trabalhou no comércio, atividade que logo abandonou para se dedicar à

poesia.

Nos anos cinquenta, foi um dos diretores das revistas Árvore, Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia. Colaborou como crítico literário na Seara

Nova e na Colóquio Letras, entre outras publicações. Como poeta, estreou com O Grito Claro (1958). Estava criado o movimento da

moderna poesia portuguesa. Ramos Rosa era o poeta do presente absoluto, da “liberdade livre”. Em Portugal é comparado com os grandes

escritores nacionais. Urbano Tavares Rodrigues considerou-o como o empolgante poeta das coisas primordiais, da luz, da pedra e da água.

Em 1960, publicou Viagem Através Duma Nebulosa (1960). Um dos mais fecundos poetas portugueses da contemporaneidade, sua produção

reflete uma evolução do subjetivismo, em relação à objetividade. Refletem-se nela variadas tendências, desde certas formas experimentais

até um neobarroquismo. A sua escrita, caracterizada por uma grande originalidade e riqueza de imagens tácteis e visuais, testemunha

muitas vezes uma fusão com a natureza, uma busca de unidade universal em que o humano participa e se integra no mundo, estabelecendo

uma linha de continuidade entre si e os objetos materiais, numa afirmação de vida e sensualidade. Nos seus textos, está frequentemente

presente uma reflexão sobre o próprio ato da escrita e a natureza da criação poética, a questão do dizível e do indizível.

A noite chega com todos os seus rebanhos

Uma cidade amadurece nas vertentes do crepúsculo

Há um íman que nos atrai para o interior da montanha.

Os navios deslizam nos estuários do vento.

Alguma coisa ascende de uma região negra.

Alguém escreve sobre os espelhos da sombra.

A passageira da noite vacila como um ser silencioso.

O último pássaro calou-se.As estrelas acenderam-se.

As ondas adormeceram com as cores e as imagens.

As portas subterrâneas têm perfumes silvestres.

Que sedosa e fluida é a água desta noite!

Dir-se-ia que as pedras entendem os meus passos.

Alguém me habita como uma árvore ou um planeta.

Estou perto e estou longe no coração do mundo.

de A Rosa Esquerda(1991)

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Ramos Rosa

A palavra

A palavra é uma estátua submersa,um leopardo que estremece em escuros bosques,uma anémona sobre uma cabeleira. Por vezes é uma estrela que projecta a sua sombra sobre um torso. Ei-la sem destino no clamor da noite, cega e nua,mas vibrante de desejo como uma magnólia molhada.Rápida é a boca que apenas aflora os raios de uma outra luz. Toco-lhe os subtis tornozelos,os cabelos ardentes e vejo uma água límpida numa concha marinha. É sempre um corpo amante e fugidio que canta num mar musical o sangue das vogais.

de Acordes(1989)

Amo o teu túmido candor de astro

a tua pura integridade delicada a tua permanente adolescência de segredo a tua fragilidade acesa sempre altiva Por ti eu sou a leve segurança de um peito que pulsa e canta a sua chama que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro ou à chuva das tuas pétalas de prata Se guardo algum tesouro não o prendo porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto que dure e flua nas tuas veias lentas e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva para que sintas a verde frescura de um pomar de brancas cortesias porque é por ti que vivo é por ti que nasço porque amo o ouro vivo do teu rosto

de O Teu Rosto(1994)

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Ramos Rosa

As palavras

Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo As palavras identificam-se com o asfalto negro o tropel das nuvens a espessura azul das árvores acesas pelos faróis o rumor verde As palavras saem de um ferida exangue de teclas de metal fresco de caminhos e sombras da vertigem de ser só um deserto de armas de gume branco Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos e há palavras como giestas vivas Matrizes primordiais matéria habitada forma indizível num rectângulo de argila quem alimenta este silêncio senão o gosto de colocar pedra sobre pedra até á oblíqua exactidão? As palavras vêm de lugares fragmentários de uma disseminação de iniciais de magmas respirados de odor de gérmen de olhos As palavras podem formar uma escrita nativa de corpos claros Que são as palavras?Imprecisas armas em praias concêntricas torres de sílex e de cal aves insólitas As palavras são travessias brancas faces giratórias elas permitem a ascensão das formas elevam-se estrato após estrato ou voam em diagonal até à cúpula diáfana As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado Que enfrentam as palavras?O espelho da noite a sua impossível elipse Saem da noite despedaçadas feridas e são signos do acaso pedras de sol e sal a da sua língua nascem estrelas trituradas

de Gravitações(1984)

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Ramos Rosa

Mediadora da palavra Um rumor irrompe das nocturnas margens. Sombras deslumbrantes. Um fulgor que desnuda e que despoja. Campo de água ágil. Dança Imóvel. Uma cegueira arde Incendiando o tempo. Pátria áspera de delicado alento. Soberano marulhar do inexplorável. Unânime é a pedra. Selvagem a palavra despedaça a língua. Um silêncio central domina e orienta A substancia primária. A palavra inicia. Rapidez da água entre resíduos obscuros. Talvez o diadema. Talvez a obscura dança aérea. O leve poder do fogo, as suas marcas ácidas. Pulsação dos poros. Ardor do silêncio no nocturno centro. Fulgor do desejo. Uma deusa de água espraia-se nas palavras

Casa de sol onde os animais pensam Erguida nos ares com raízes na terra ampla e pequena como um pagode com salas nuas e baixas camas casa de andorinhas e gatos nos sótãos grande nau navegando imóvel num mar de ócio e de nuvens brancas com antigos ditados e flores picantes com frescura de passado e pó de rebanhos ó casa de sonos e silêncios tão longos e de alegrias ruidosas e pães cheirosos ó casa onde se dorme para se renascer ó casa onde a pobreza resplende de fartura onde a liberdade ri segura

de Voz Inicial(1960)

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Ramos Rosa

Este homem que pensou

Este homem que pensou com uma pedra na mão tranformá-la num pão tranformá-la num beijo Este homem que parou no meio da sua vida e se sentiu mais leve

que a sua própria sombra

Estou vivo e escrevo sol

Eu escrevo versos ao meio-dia e a morte ao sol é uma cabeleira que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo Estou vivo e escrevo sol Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam no vazio fresco é porque aboli todas as mentiras e não sou mais que este momento puro a coincidência perfeita no acto de escrever e sol A vertigem única da verdade em riste a nulidade de todas as próximas paragens navego para o cimo tombo na claridade simples e os objectos atiram suas faces e na minha língua o sol trepida Melhor que beber vinho é mais claro ser no olhar o próprio olhar a maraviha é este espaço aberto a rua um grito a grande toalha do silêncio verde

de Estou Vivo E Escrevo Sol (1966)

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