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Revista Eletrônica da Pós-Graduação da Cásper Líbero ISSN 2176-6231 Volume 7, nº 2, Ano 2015 Av. Paulista, 900 – 5º andar CEP 01310-940 – São Paulo - SP Fax: (011) 3170-5891 Tel.: (011) 3170-5880/3170-5881/3170-5883 http://casperlibero.edu.br E-mail: [email protected] Artigo As relações entre o digital e o presencial Um estudo das Manifestações de 2013 a partir da Escalada da Abstração André Bontempo 1 Resumo O presente artigo pretende trabalhar a questão das manifestações de junho de 2013 sob a ótica da Escalada da Abstração do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser. Cabe entender como se deu o processo de organização e convite aos atos públicos por intermediação da rede social digital Facebook até a concretização dos atos com a presença dos cidadãos que se manifestaram, em termos de comunicação tridimensional, no espaço físico das ruas. Para estudo e compreensão dos fenômenos observados por Flusser investigaremos a possível retroalimentação ou recursividade entre processos de comunicação marcados pela forte presença dos cidadãos se manifestando nas ruas e a interação dos mesmos nas redes sociais conectadas. Palavras-chave Manifestações. Redes Sociais Digitais. Vílém Flusser. Escalada da Abstração. Ecologia da Comunicação. Abstract This article aims to address the issue of the manifestations of June 2013 from the perspective of climbing the abstraction of Czech-Brazilian philosopher Vílem Flusser. We try to undestrand how was the process of organizing and inviting the public acts by intermediation of online social network Facebook to achieving the acts in the presence of citizens who expressed in terms of three-dimensional communication, on the physical space of the streets. To study and understanding of the phenomenal observed by Flusser we investigate the possible feedback or recursion between communication processes marked by the strong presence of citizens speaking out on the streets and the interaction between them in the connected social networks. Keywords Manifestations, Digital Social Networks, Vílem Flusser, Escalation of abstraction, Communication Ecology. Resumen Este artículo pretende abordar el tema de las manifestaciones de junio de 2013 desde la perspectiva de la Escalada de la Abstracción del filósofo checo-brasileño Vilém Flusser. Buscamos entender cómo se há dado el proceso de organización e invitación a los actos públicos por medio de la red social digitale Facebook al logro de los actos en presencia de ciudadanos que se expresa, en términos de comunicación tridimensional, el espacio físico de las calles. Para la comprensión de los fenómenos observados por Flusser, habemos de investigar la posible votación o recursividad entre los procesos de comunicación 1 Mestrando do programa de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero

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ISSN 2176-6231

Volume 7, nº 2, Ano 2015

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Artigo

As relações entre o digital e o presencial Um estudo das Manifestações de 2013 a partir da Escalada da Abstração André Bontempo1

Resumo O presente artigo pretende trabalhar a questão das manifestações de junho de 2013 sob a ótica da

Escalada da Abstração do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser. Cabe entender como se deu o processo

de organização e convite aos atos públicos por intermediação da rede social digital Facebook até a

concretização dos atos com a presença dos cidadãos que se manifestaram, em termos de comunicação

tridimensional, no espaço físico das ruas. Para estudo e compreensão dos fenômenos observados por

Flusser investigaremos a possível retroalimentação ou recursividade entre processos de comunicação

marcados pela forte presença dos cidadãos se manifestando nas ruas e a interação dos mesmos nas redes

sociais conectadas.

Palavras-chave Manifestações. Redes Sociais Digitais. Vílém Flusser. Escalada da Abstração. Ecologia da Comunicação.

Abstract

This article aims to address the issue of the manifestations of June 2013 from the perspective of climbing

the abstraction of Czech-Brazilian philosopher Vílem Flusser. We try to undestrand how was the process

of organizing and inviting the public acts by intermediation of online social network Facebook to

achieving the acts in the presence of citizens who expressed in terms of three-dimensional

communication, on the physical space of the streets. To study and understanding of the phenomenal

observed by Flusser we investigate the possible feedback or recursion between communication processes

marked by the strong presence of citizens speaking out on the streets and the interaction between them in

the connected social networks.

Keywords Manifestations, Digital Social Networks, Vílem Flusser, Escalation of abstraction, Communication

Ecology.

Resumen Este artículo pretende abordar el tema de las manifestaciones de junio de 2013 desde la perspectiva de

la Escalada de la Abstracción del filósofo checo-brasileño Vilém Flusser. Buscamos entender cómo se há

dado el proceso de organización e invitación a los actos públicos por medio de la red social digitale

Facebook al logro de los actos en presencia de ciudadanos que se expresa, en términos de comunicación

tridimensional, el espacio físico de las calles. Para la comprensión de los fenómenos observados por

Flusser, habemos de investigar la posible votación o recursividad entre los procesos de comunicación

1 Mestrando do programa de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero

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marcada por la fuerte presencia de ciudadanos en las calles y la interacción entre ellos en las redes

sociales conectadas.

Palabras-clave Manifestaciones. Redes Sociales Digitales. Vilém Flusser. Escalada de la Abstracción. Ecología de la

Comunicación.

Introdução

As manifestações no junho de 2013 foram amplamente marcadas pela presença física e

virtual dos seus diversos personagens, fenômeno que chamou a atenção de diversos

pesquisadores e estudiosos, principalmente no campo da comunicação. Coube buscar

entender, além das questões políticas, sociais e econômicas expostas pela “voz das

ruas”, fenômenos para além. A antropologia e a comunicação podem servir de base para

interpretarmos melhor a realidade apresentada e como as interações humanas ocorreram

durante este período.

Diria o jornalista alemão Harry Pross que “corpo necessita corpo” e essa interação

permitiu a alavancada das manifestações tal qual ocorreram em 2013. E ocorreram pela

presença de corpos em protesto ocupando as ruas de diversas cidades brasileiras. Mas

houve também a manifestação virtual, aquela mediada pelas conexões às diversas redes

sociais nos mais requisitados aparelhos do mercado (smartphones, tablets, iPhones...) e

as mídias mais tradicionais, vide o papel também desempenhado por jornais, televisões

e rádios.

Nessa ação humana feita por outros mecanismos para além do corpo cabe observarmos

o que o filósofo tcheco-brasileiro Vílem Flusser chamaria de Escalada da Abstração.

Esse pensamento muito se faz valer nos dias de hoje, mesmo sendo anteriores aos anos

de 1990. A divagação ao seu respeito caberá em parágrafos futuros. A priori será

interessante discutirmos um pouco este ser do qual chamamos Homem, num sentido

latto, que tem corpo e busca utilizá-lo nas suas ações.

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1 O Homem

Em uma categorização biológica, o filósofo francês Edgar Morin estabelece que somos

homens “da classe dos mamíferos, da ordem dos primatas, da família dos homínidas, do

gênero homo e da espécie sapiens”. Mas seu conceito vai além, pois este homem capaz

de ter o sapien e comer, caçar, se reproduzir, mexer com ferramentas, falar, também é o

homem que sabe criar, pensar, criticar, contemplar e buscar compreender o mundo ao

seu redor.

Morin, por fim, também nos lembra estar este mesmo homem fadado às crises, doenças,

intempéries, loucuras e projeções do pensamento muitas vezes estabelecidos como

“irracionalidades”. Este homem animal racional também está fadado à irracionalidade.

Sua definição mais singular, observa Morin, seria Homo sapiens sapiens demens.

Este homem a nós apresentados e do qual todos nos encaixamos por categorização é um

ser social. Vive em núcleos familiares, comunitários e no mais amplo em sua própria

sociedade. Compartilha suas paixões, suas angústias, seus medos, suas loucuras, taras e

dissabores. É prestativo, companheiro, mas também pode ser infiel e traiçoeiro. Mas nos

interessa mais observar a sua capacidade de relacionar-se com os demais da sua espécie

e como isso possibilita ações de sobrevivência contra um mundo de calamidades

imprevisíveis.

2 Redes sociais

Nosso Homem aprendeu a sobreviver no mundo e contar com a ajuda de outros Homens

para construir e habitar as diversas sociedades como conhecemos na atualidade. Sua

capacidade intelectual gerou oportunidades de aprimorar a comunicação, antes reduzida

por falas e gestos, em um universo semiótico de capacidades colossais seja em

quantidade ou distância para possibilitar uma comunicação efetiva.

Seus aparatos tecnológicos conseguiram conversar com centenas, milhares, milhões e

hoje já podemos considerar bilhões de seres humanos dentre os 7 bilhões existentes.

Parte desse grande avanço comunicacional foi capacitado pelo surgimento da internet (a

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rede mundial) e invenção, nas últimas décadas, de redes sociais digitais – observemos,

atualmente, o caso do Facebook de Mark Zukerberg – integrando grande parcela da

população mundial, ainda que nem todos, evidentemente, por não possuírem ou

dominarem o aparato seja por vias materiais ou simbólicas.

A interatividade humana permitiu ao homem desenvolver ferramentas para aprimorá-las

e vice-versa. Vílem Flusser vê com notória curiosidade de um experimentador o

desenvolvimento destas ferramentas, além de fazer interessantes projeções para o

futuro, vide o seu Elogio à Superficialidade.

Pelo fato de Flusser se referir às relações entre pessoas e/ou coisas, percebemos que

sua metodologia é marcada por perguntas, pela observação atenta dos fenômenos e,

especialmente, pela coragem de duvidar (MENEZES, 2009 p.169).

Flusser pondera um mundo de seres amplamente conectados e capazes de solucionar os

problemas comunitários exatamente pela cada vez maior capacidade de interação com a

tecnologia e a democratização dos aparatos e da técnica. E este homem se encontra em

um universo fenomenológico:

As coisas representavam algo, eram símbolos de algo, e era possível adorar esse algo

atrás das coisas. Os instrumentos representam, no melhor dos casos, o trabalho

manipulador da existência humana, e a única coisa que é possível adorar nos

instrumentos é o trabalho humano atrás deles.

[...]. Dada essa nossa situação, compreendem-se as tentativas de uma reconquista do

espanto, que são, no fundo, tentativas de dar significação à existência humana pela

procura deliberada de uma segunda ingenuidade.

É deste ângulo que devemos interpretar a fenomenologia husserliana, que é um

método de deixar a coisa ser coisa. Pela redução eidética, isto é, pela supressão de

todos os conhecimentos a respeito da coisa, procura Husserl redescobrir a coisidade,

o eidos da coisa, o espanto da coisa. [...].

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Enquanto esse espanto da filosofia persistir, não há motivo para matar-se (FLUSSER,

2002, p. 96).

2 Escalada da Abstração

Para compreender o uso da teoria flusseriana na forma como as manifestações

ocorreram no Brasil podemos partir primeiramente por uma interpretação mais cotidiana

e não menos importante de como o filósofo observava este fenômeno abstracionista das

nossas vidas. Não que fosse algo negativo ou positivo em si, há no entanto formas de

olharmos para o fenômeno.

É evidente que interpretações particulares são perfeitamente cabíveis, mas de momento

será essencial compreendermos seu funcionamento.

Vílem Flusser entende que existem 4 formas de comunicação que podemos entender

como formas de projeção do corpo em escala. Essas quatro dimensões seriam a escala

tridimensional, ou a primeira do ser humano, na qual nos encontramos conforme nós

nos percebemos no campo-espaço. É a escala da corporização, onde os elementos

representados possuem medidas denominadas matematicamente por altura,

comprimento e largura. Por questão de exemplo, imaginemos o corpo humano.

Este corpo, no entanto, pode ser representado através de imagens, figuras, retratos e,

embora tenham a tendência de ser uma réplica do nosso personagem em questão, não o

são fidedignamente por terem perdido algumas particularidades cabíveis apenas ao

campo tridimensional. Essa nova escala atende pela denominação de bidimensional.

Aqui encontramos as figuras, as fotografias, os quadros e retratos palpáveis, físicos, mas

que são apenas representações do corpo em 3 dimensões.

Em paralelo, este corpo tridimensional que pode ser representado por imagem

bidimensional possui mais formas de definição. Com o advento da escrita o objeto pode

ter seu nome e suas características grafadas, caligrafadas em papel, documento, folhas

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avulsas e afins. Estamos lidando, então, com a escala unidimensional e nesta o objeto

não é mais ele em si e também não é sua representação imagética, mas uma grafia

correspondente para fazer valer a comunicação com relação àquilo do qual estou

falando. É o campo-espaço da linha, do plano, do não edificável.

Por último, com contribuição expressiva da tecnologia dos eletroeletrônicos,

caminhamos para o espaço da representação nulodimensional. Esta forma de

comunicação abrange as demais em um campo-espaço indefinido, onde as dimensões

conforme conhecemos se perdem. É a representação por meio do universo digital, dos

pixels, dos mosaicos imperceptíveis ao olho nu nas telas, mas com poderosa capacidade

de transpor o objeto e representa-lo para outros públicos.

Flusser percorre a evolução dos meios de comunicação do homem pontuando que nas

remotas origens a espécie humana – como outras espécies animais – se comunicava

com o corpo, seus gestos, seus sons, seus odores, seus movimentos. Tratava-se de

uma comunicação tridimensional.

Quando o homem começou a utilizar objetos como suportes, sobre os quais deixava

sinais, nasceu o mundo das imagens, da comunicação bidimensional.

Algumas imagens se transformaram em pictogramas e depois em ideogramas e

depois em letras, inaugurando o mundo da escrita, da comunicação unidimensional,

do traço e da linha.

E finalmente, com o desenvolvimento das tecnoimagens, alcançamos o mundo da

comunicação nulodimensional, uma vez que as imagens técnicas, produzidas por

aparelhos, nada mais são que uma fórmula abstrata, um algoritmo, um número.

Flusser não se demonstra pessimista com a metamorfose adquirida pela comunicação

ao longo das eras, pelo contrário, é assíduo pesquisador e curioso das inovações e

contribuições das quais a humanidade poderia usufruir com as novas tecnologias

comunicacionais, por isso entendemos que a análise flusseriana do espaço está

presente quando falamos de processos comunicativos, quando falamos de vínculos.

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Os vínculos são formas de aproximação espacial, são formas de aproximação entre os

corpos. Os vínculos permitem a comunicação ou, até podemos dizer, são

“comunicação” no sentido que permitem a constituição das sociedades.

Uma constituição que se dá na medida em que cruzar espaços significa gastar tempo

(BAITELLO JR. 2003 p. 81).

3 Escalada da Abstração nas manifestações

O Rebelde Desconhecido é uma das pessoas mais influentes do século XX. A imagem

de seu protesto silencioso e solitário, pelas câmeras do fotógrafo Jeff Widener,

da Associated Press, ganhou os principais jornais do mundo.

Uma imagem marcante para muitos nos anos de 1980 quando um jovem chinês desafiou

uma fileira composta por 4 tanques de guerra em direção aos estudantes que

protestavam contra o governo totalitário chinês. Pouco se sabia e sabe-se até hoje sobre

o rapaz, apenas se recordam da desistência dos tanques em passar por cima da multidão.

A prisão, julgamento e execução do jovem entrou para os misteriosos arquivos secretos

zelados por todo governo antidemocrático.

A famosa cena de manifestação percorreu o mundo devido as diversas mídias capazes

de divulgar o instante para o resto do globo. A ação foi comunicada

tridimensionalmente, pela atitude do jovem em impor o corpo material, porém frágil,

diante de quatro pesados tanques com considerável poder de fogo e espessura.

Bidimensionalmente pelas fotografias e vídeos responsáveis pela imortalização do

momento histórico. Unidimensionalmente pelos relatos dos jornalistas e demais

personagens daquela fatídica luta política, em jornais, revistas, cartas e livros. E hoje,

em 2014, podendo todo esse material ser acessado pelo computador, visto a partir de

diversos aparatos tecnológicos e compartilhado (retransmitido) para outras partes do

mundo. Nesta última forma de comunicar está presente o universo do nulodimensional.

Assim como nas manifestações chinesas exemplificadas acima podemos ver o mesmo

fenômeno no nosso objeto, temporalmente mais recente e simbólico para nós: as

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manifestações de junho de 2013. Caberá traçarmos um caminho de raciocínio sem nos

preocuparmos com lógicas cartesianas e 2 + 2 = 4. A observação do fenômeno se fará

clara com o seu próprio caminhar.

3 Nulodimensional

Quando os protestos tiveram seu início marcados por reuniões de grupos participantes

em espaços físicos e redes sociais ainda eram as cenas habituais de outrora, com uma

série de passeatas e vozes contrárias ao aumento da passagem do transporte público,

veio a repressão policial, característica do Estado brasileiro, e ao envolver jornalistas

após uma dosagem extra de violência acabaram marcando o início das passeatas com

centenas de milhares de pessoas em proporção nacional.

Foi significativo o papel dos manifestantes ao utilizarem a plataforma Facebook na

divulgação daquilo que ocorria nas ruas mostrando suas versões do fato em contraponto

ao enunciado pela polícia militar, governos municipais, estaduais, União e jornais

considerados “conservadores”. Acompanhar esses ocorridos provocou revolta em

parcela considerável da população, em especial nas classes B e C, principais

protagonistas das ocupações de ruas.

A comunicação nulodimensional exerceu grande influência para o êxito dos protestos

pela sua capacidade de facilitar a interação entre os agentes e possibilitar a comunicação

de maneira mais dinâmica. Principalmente pelo Facebook, manifestantes divulgavam as

futuras manifestações, datas, horários, além de ganharem mais espaço na rede

chamando a atenção daquele usuário pouco ou nada acostumado em participar desse

tipo de evento. O resultado foi a adesão significativa em números, impossíveis de serem

menosprezados inclusive pelos órgãos contrários ao levante popular.

4 Unidimensional

Sua presença mais significativa pode ser destacada nas reportagens diárias sobre o que

estava ocorrendo no país e os possíveis resultados das mobilizações. O texto expressou

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opiniões, relatos, frases de efeito e livros para reunir o debate travado por intelectuais

que acompanhavam de perto (ou não) as lutas travadas no espaço público.

5 Bidimensional

Essa forma de comunicação soube integrar grupos. Ao verem a multidão nas fotografias

estampadas pelos jornais, o cidadão comum lembrou-se da sua condição de cidadão e se

enxergou como parte daquele jogo. Queria fazer parte daquele momento histórico do

seu país e guardar os registros obtidos pela participação atuante.

A imagem consolidou um apelo usado pelos vários lados da história para compor suas

versões. Seria o caso da polícia buscar, repreender e incriminar manifestantes alegando

práticas de vandalismo (deveras comuns nas manifestações de junho, em especial por

apoiadores da tática black bloc) e o caso dos próprios manifestantes em desmentir

governos, imprensa e apelar para a justiça contra abusos de autoridade.

Outro cenário, este com certa dose de comicidade, foram os manifestantes – se assim

cabe chama-los - pouco preocupados com os motivos pelos quais milhares estavam às

ruas ou o cenário político-econômico-social do país. Interessavam-lhes registrar o

momento em suas câmeras e celulares, uma forma de avisar aos amigos conectados nas

redes sociais “oi, estou aqui”, “cara, foi muito bom”, “#vemprarua” e demais falas para

se fazerem presentes nas próprias postagens.

6 Tridimensional

Destaque especial para a comunicação tridimensional nas manifestações de junho de

2013. Aqui se apresenta a comunicação a priori, em sua forma de se expressar através

do corpo. O objeto, o corpo tridimensional se desloca, se desdobra e preenche espaço na

rua buscando se incluir com outros corpos. Ocorre uma rede, antes manifestada pela

internet com todas as possibilidades oferecidas pelas redes sociais no nulodimensional,

mas agora incorporada nas ruas associando grupos diante de causas, mesmo que

indefinidas, mas que chamam para compor a “massa”.

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A rede social dos protestos agora ocupa o espaço tridimensional gerando todas as

consequências possíveis do fenômeno. E esta ação provoca reação também

tridimensional, visível com a repressão – negativa do ponto de vista dos manifestantes –

e a posição do governo em, alguns importantes casos, abdicar da decisão de aumentar a

tarifa do transporte público – positivo do ponto de vista dos manifestantes – pivô da

crise político-social desse período.

As manifestações permitiram observar um movimento de vai e vem da Escalada da

Abstração proposta por Vílem Flusser demonstrando novas formas de enxergarmos os

fenômenos sociais da comunicação e apostar em uma maior interatividade. Norval

Baitello Jr. diria estarmos diante de um processo de caminhar para frente e para trás, a

maneira do próprio Flusser

Comparando o período de produção intelectual de Flusser com o período de

mudanças no qual viveu Platão, observamos que o autor descreveu um cenário das

transformações que experimentamos. Não pretendeu catalogar todos os processos

comunicativos, mas apenas nos convidar a pensar a respeito do que ganhamos e do

que perdemos no trânsito entre os diferentes processos de abstração.

Essa possibilidade de trânsito, já que não podemos mais viver apenas na

comunicação tridimensional e não podemos nos satisfazer apenas com a

nulodimensional, retiramos de uma conferência performática na qual, conforme

testemunho de Dietmar Kamper11, o próprio Flusser ex-pôs propositalmente com o

seu corpo os quatro passos no caminho da abstração. Segundo Kamper, conforme

tradução de Norval Baitello Jr., “ele [Flusser] caminhou para trás, falando e

gesticulando sobre o palco do auditório, até bater com as costas na lousa. Depois veio

de novo para frente do palco e lecionou (dozierte) sobre a tecnoimaginação e as

imagens sintéticas” (MENEZES, 2009 p. 179).

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Considerações Finais

Vílem Flusser e sua obra ainda guardam indagações provocativas sobre comunicação e

indaga sobre um período de transição que talvez estejamos ainda passando, mas não

sendo contemporâneos o suficiente para percebermos, ao entender o contemporâneo

com a visão do filósofo italiano Giorgio Agambén. Flusser é contemporâneo, pois

o contato com as obras de Flusser e com seus leitores brasileiros revela uma postura

dialógica fundamental, uma concepção de filosofia que supõe um “engajar-se contra

a ideologização e em favor da dúvida diante do mundo, que, de fato, é complexo e

não-simplificável” (MENEZES, 2009 p. 171).

As manifestações conseguem representar esse pensamento permitindo enxergarmos a

Escalada da Abstração nos processos comunicacionais dos agentes envolvidos. Os

corpos exerceram vínculos e as redes sociais foram tecidas desde o espaço

nulodimensional até o espaço tridimensional e o inverso também foi viável. Essas redes

tecidas dão forma a uma colônia de seres vivos vinculados, como em uma floresta ou

um recife marinho. Paralelo a esta comparação com a natureza, podemos conceber uma

ecologia da comunicação em desenvolvimento. E será vital compreender essa ecologia

da comunicação no nosso meio ambiente:

A solidão na massa é consequência da dificuldade crescente para entrarmos em

comunicação dialógica uns com os outros. Sob o bombardeio quotidiano pelos

discursos extremamente bem distribuídos dispomos, todos, das mesmas informações,

e todo intercâmbio dialógico de tais informações está se tornando redundante. A

nossa sensação de solidão se deve a nossa incapacidade crescente de elaborarmos

informações novas em diálogo com os outros. Sob o domínio dos discursos o tecido

social do Ocidente vai se decompondo. Urge pois analisar tais discursos (FLUSSER,

1983p. 59)

O mundo digital deu outro caráter para a ação de manifestar. Governos e demais

instituições precisam se preparar para o que está por vir. Sindicatos, associações, corpo

Page 12: As relações entre o digital e o presencial · 2020. 1. 6. · Flusser percorre a evolução dos meios de comunicação do homem pontuando que nas remotas origens a espécie humana

Revista Eletrônica da Pós-Graduação da Cásper Líbero

ISSN 2176-6231

Volume 7, nº 2, Ano 2015

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estudantil, proletariado deverão se atualizar sobre as mudanças proporcionadas pela

interatividade nulodimensional. Não cabe fazer afirmações arriscadas do que será no

futuro, mas podemos crer, com alguma segurança, nas modificações necessárias na

forma de nos comunicarmos em paralelo com os projetos desejados para a sociedade.

Referências

AGAMBEN, G. O Que é o Contemporâneo e Outros Ensaios. Santa Catarina: Argos, 2009.

PROSS, H. Sociedade do Protesto. São Paulo: Annablume, 1997.

FLUSSER, V. O mundo codificado. Por uma filosofia do desing e da comunicação. São Paulo:

Cosac Naify, 2007b.

MENEZES, J. E. O. “Comunicação e cultura do ouvir”, in KÜNSCH, D.; BARROS, L. M. de

(Orgs.). Comunicação. Saber, arte ou ciência. Questões de teoria e epistemologia. São Paulo:

Plêiade, 2008.

MENEZES, J. E. O. “Comunicação, Espaço e Tempo: Vilém Flusser e os Processos de

Vinculação. Disponível em: <http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/151>

Acesso em 29 de jul. de 2014.