artigo - neopositivismo

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O Positivismo sem Negacionismo 1 na Geografia RESUMO Este artigo objetiva comentar o capítulo “A Filosofia (Neo) Positivista e a Geografia Quantitativa 2 ”, de José Carlos Godoy Camargo e Dante Flávio da Costa Reis Júnior, inserido na obra “Contribuições à História e à Epistemologia da Geografia”. Busca-se destacar a amplitude da Geografia, em sua relação dialética com a ciência, e como os paradigmas nela estabelecidos não são excludentes entre si, até pelo caráter plural da disciplina, sendo perfeitamente factível a coexistência de correntes como a teoretica-quantitativa, radical-crítica, e humanista- cultural, entre outras, da mesma forma que se faz necessário um diálogo entre elas. A estrutura deste artigo está composta por: 1. Introdução, onde se destacam os principais argumentos do trabalho de Camargo e Reis Júnior (2007), incluindo comentários; 2. Questões epistemológicas envolvendo a geografia; 3. A geografia teoretica-quantitativa e sua relação com o (neo) positivismo: possibilidades e limites; 4. Considerações finais, destacando a pluralidade da geografia e a necessidade do diálogo entre suas várias correntes. ABSTRACT This article aims to comment on the chapter “The (Neo) Positivistic Philosophy and the Quantitative Geography”, by José Carlos Godoy Camargo e Dante Flávio da Costa Reis Júnior, in “Contributions to the History and Epistemology of Geography” 3 . Particular emphasis is given to Geography’s wide scope, and its dialectical relationship with science, also showing how paradigms in that field are not mutually exclusive, due to its pluralistic character, and how feasible it is their co-existence, be it, for instance, the theoretic-quantitative, radical-critical, or humanistic- cultural branch, calling for a necessary dialogue among them. The structure of this article goes as follows: 1. Introduction, where the main points of Camargo & Reis Júnior (2007) ideas, including comments; 2. Epistemological issues concerning Geography; 3. The Theoretic-quantitative Geography and its relationship with (neo) positivism: possibilities and limits; 4. Final remarks, evidencing Geography’s plurality and the need of dialogue among its multiple tendencies. 1. Introdução As diversas correntes da geografia lhe conferem um caráter dinâmico e plural – uma característica que leva a repensar constantemente sua natureza. Camargo e Reis Júnior (2007, p. 84) enfatizam a necessidade de os geógrafos terem conhecimento das várias escolas epistemológicas, e a consequente opção/apoio a uma ou outra corrente que mais se identifica com suas respectivas áreas de trabalho. Denomina-se Geografia “Teorética e Quantitativa” ou Geografia “Neopositivista” a corrente que começou a se formar logo após a Segunda Guerra Mundial e que terminou por trazer 1 Negacionismo (do francês négationnisme) é a escolha de negar a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável. Fonte: Maslin, J. Michael Specter fires bullets of data at cozy antiscience in “denialism”. The New York Times. 4 de novembro de 2009. Acesso em 17 de fevereiro de 2011. 2 Neste trabalho, a Geografia Quantitativa poderá ser chamada de Teoretico-quantitativa ou mesmo Nova Geografia. 3 CAMARGO, J. C. G.; REIS JUNIOR, D. F. da Costa.A Filosofia (Neo) Positivista e a Geografia Quantitativa. In: Contribuições à História e à Epistemologia da Geografia (Org: Vitte, A. C.) Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2007, pp. 83-99. Luiz Eduardo Pereira de Oliveira O Positivismo sem Negacionismo na Geografia 1

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O Positivismo sem Negacionismo1 na Geografia

RESUMO

Este artigo objetiva comentar o capítulo “A Filosofia (Neo) Positivista e a Geografia Quantitativa2”, de José Carlos Godoy Camargo e Dante Flávio da Costa Reis Júnior, inserido na obra “Contribuições à História e à Epistemologia da Geografia”. Busca-se destacar a amplitude da Geografia, em sua relação dialética com a ciência, e como os paradigmas nela estabelecidos não são excludentes entre si, até pelo caráter plural da disciplina, sendo perfeitamente factível a coexistência de correntes como a teoretica-quantitativa, radical-crítica, e humanista-cultural, entre outras, da mesma forma que se faz necessário um diálogo entre elas.

A estrutura deste artigo está composta por: 1. Introdução, onde se destacam os principais argumentos do trabalho de Camargo e Reis Júnior (2007), incluindo comentários; 2. Questões epistemológicas envolvendo a geografia; 3. A geografia teoretica-quantitativa e sua relação com o (neo) positivismo: possibilidades e limites; 4. Considerações finais, destacando a pluralidade da geografia e a necessidade do diálogo entre suas várias correntes.

ABSTRACT

This article aims to comment on the chapter “The (Neo) Positivistic Philosophy and the Quantitative Geography”, by José Carlos Godoy Camargo e Dante Flávio da Costa Reis Júnior, in “Contributions to the History and Epistemology of Geography” 3. Particular emphasis is given to Geography’s wide scope, and its dialectical relationship with science, also showing how paradigms in that field are not mutually exclusive, due to its pluralistic character, and how feasible it is their co-existence, be it, for instance, the theoretic-quantitative, radical-critical, or humanistic-cultural branch, calling for a necessary dialogue among them.

The structure of this article goes as follows: 1. Introduction, where the main points of Camargo & Reis Júnior (2007) ideas, including comments; 2. Epistemological issues concerning Geography; 3. The Theoretic-quantitative Geography and its relationship with (neo) positivism: possibilities and limits; 4. Final remarks, evidencing Geography’s plurality and the need of dialogue among its multiple tendencies.

1. IntroduçãoAs diversas correntes da geografia lhe conferem um caráter dinâmico e plural –

uma característica que leva a repensar constantemente sua natureza. Camargo e Reis Júnior (2007, p. 84) enfatizam a necessidade de os geógrafos terem conhecimento das várias escolas epistemológicas, e a consequente opção/apoio a uma ou outra corrente que mais se identifica com suas respectivas áreas de trabalho.

Denomina-se Geografia “Teorética e Quantitativa” ou Geografia “Neopositivista” a corrente que começou a se formar logo após a Segunda Guerra Mundial e que terminou por trazer

1 Negacionismo (do francês négationnisme) é a escolha de negar a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável. Fonte: Maslin, J. Michael Specter fires bullets of data at cozy antiscience in “denialism”. The New York Times. 4 de novembro de 2009. Acesso em 17 de fevereiro de 2011.2 Neste trabalho, a Geografia Quantitativa poderá ser chamada de Teoretico-quantitativa ou mesmo Nova Geografia.3 CAMARGO, J. C. G.; REIS JUNIOR, D. F. da Costa.A Filosofia (Neo) Positivista e a Geografia Quantitativa. In: Contribuições à História e à Epistemologia da Geografia (Org: Vitte, A. C.) Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2007, pp. 83-99.

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profundas modificações teóricas e metodológicas, caracterizando-se pelo emprego maciço das técnicas matematico-estatisticas na geografia. Segundo Burton, “a revolução quantitativa na Geografia começou no fim da década de 1940 ou no início da de 1950, atingiu seu máximo no período de 1957 a 1960 e agora está terminada [ou seja, se tornou corriqueira]” (Burton, 1977, p. 66) 4.

Em seu trabalho original5, Burton afirma que técnicas quantitativas são o método mais apropriado para o desenvolvimento da teoria em geografia. O autor enfatiza que qualquer ramo da geografia que se diz científico tem a necessidade do desenvolvimento de uma teoria, e qualquer ramo da geografia que necessite de teoria necessita de técnicas quantitativas. Camargo e Reis Júnior (2007, p. 84) seguem afirmando que os geógrafos que adotaram a linha “quantitativa”, na ânsia de tornar a geografia uma verdadeira ciência, foram buscar os embasamentos teóricos na chamada Filosofia Neopositivista.

O positivismo6 é um movimento relacionado com o empirismo e o naturalismo introduzido em meados do sec. XIX por Auguste Comte, juntamente com o reformador social Saint-Simon. O que destaca o positivismo na sua forma original é a tentativa de descrever a história do pensamento humano como uma evolução em certos estágios definidos, que Comte classificou de religioso, metafísico, e científico. A ciência se tornou mais autoconsciente, e mais preocupada em extirpar os elementos metafísicos da própria ciência. Ela é baseada na observação, e não deveria apelar para aquilo que não puder ser observado.

No seu aspecto social e ideológico, o pensamento conservador subjacente ao positivismo encarnava os interesses das classes dominantes européias, que precisavam encontrar uma solução para suas crises políticas e sociais, particularmente no final do século XIX. Vale lembrar que a República brasileira nasceu sob a égide positivista, permeada nas forças armadas de então, e sintetizada pelo slogan da bandeira da “Ordem e Progresso”, numa tentativa de inocular o princípio na cultura da jovem nação que se formava7.

Na vertente científica, o positivismo assume o papel de valorizar o conhecimento racionalizado, que era considerado útil, técnico, objetivo, baseado nos fatos concretos observados no mundo real e que poderiam ser apreendidos pelo sujeito do conhecimento. Depreende-se daí o quanto a filosofia dá importância ao que se verifica pela via empírica, a ponto de considerar a observação e a experimentação os únicos critérios para atestar a veracidade, a única base possível para se atingir o conhecimento de fato.

O empirismo é o método positivista por excelência: qualquer observação que embasa o nosso conhecimento, ou os elementos pelos quais é construído pela experiência dos cinco sentidos tradicionais8. O empirismo tem suas raízes na idéia de que todos nós podemos saber sobre o mundo e o que o mundo quer nos dizer; nós devemos observá-lo de forma neutra e não passional, e qualquer tentativa de moldar ou interferir no processo de receber tal informação pode levar à distorção e imaginação arbitrária.

A passagem do positivismo tradicional para um novo – o Positivismo Lógico (ou Neopositivismo ou empirismo lógico/linguístico) – se deu nas primeiras décadas do século XX, em Viena, Áustria. O princípio central da doutrina do movimento, normalmente chamado de princípio

4 BURTON, I. A revolução quantitativa e a geografia teorética. Boletim de Geografia Teorética. Rio Claro, v. 7, n. 13, 1977, p. 63-84. Apud CAMARGO e REIS JUNIOR (2007, p. 84). Considera-se finalizada pelo método ter alcançado o status de “normal” dentro da geografia.5 BURTON, I (1968).6 HONDERICH (1995, p.705-706).7 Comentário deste autor.8HONDERICH (1995, p.226-229).

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da verificação9, com a noção de que sentenças individuais ganham seu sentido por alguma especificação dos passos reais que tomamos para se determinar sua veracidade ou falsidade. Se as sentenças sob escrutínio não se enquadram no teste de verificabilidade, então são consideradas sem sentido. Segundo Feijó (2003, p. 33) 10, para os membros do Círculo de Viena, a tarefa essencial da filosofia consiste em analisar as sentenças do conhecimento com o propósito de torná-las claras e não ambíguas.

A valorização do procedimento indutivo, por exemplo, começa a ser novamente ensejada, ao contrário do positivismo tradicional. E este processo de inferir resultados genéricos (replicáveis) a partir de fatos particulares devidamente experimentados trouxe avanço no conhecimento (…). Reverenciando a física como modelo e acatando os efeitos epistemológicos da adoção de um viés matematizante, o neopositivismo acarretou o estabelecimento da teorização, pressupondo leis gerais operantes na manifestação de fenômenos11. Por sua vez, Lacoste (1992, p. 4)12 enuncia que “a linguagem da física é de imediato considerada, por princípio, como linguagem universal da ciência, como a única linguagem que permite aos homens comunicar-se com clareza”.

Para Reis Júnior (2003, p. 22) 13, a principal diferença entre o positivismo e o neopositivismo é a existência de enunciados protocolares ou axiomas no segundo, enquanto que o primeiro não admitia apriorismos. Pode-se dizer que o neopositivismo conserva o monismo ideológico original, auxiliado pela análise lógica.

No âmbito da geografia, Camargo e Reis Junior (2007, p. 94) relembram que entre as décadas de 50 e 60 passaram a ser comuns declarações solicitando a quantificação e a matematização em áreas de interesse da geografia, atacando os sistemas explicativos de até então. Neste sentido, Fred Schaefer foi um dos autores seminais para a mudança de postura da geografia – de idiográfica (análise das partes separadamente) para nomotética (estabelecimento de leis gerais), o que culminou com o aparecimento da geografia quantitativa, de cunho neopositivista. Em seu artigo Exceptionalism in geography: a methodological examination (1953), o autor enuncia:

“Uma descrição, mesmo seguida por uma classificação, não explica a maneira pela qual os fenômenos estão distribuídos no mundo. Explicar os fenômenos, que foram descritos, significa sempre reconhecê-los como casos ligados a leis. (…) a ciência não se interessa tanto pelos casos individuais quanto pelos padrões que eles exibem.” 14

Schaefer (1953)15 classificou de “excepcionalista” qualquer crença de que a metodologia científica da geografia era de alguma forma diferente daquela praticada geralmente na ciência. Uma das principais razões para ter uma visão excepcionalista era a singularidade da localização dos dados arranjados no espaço: “o grau em que os fenômenos são únicos não é somente maior na geografia do que em muitas outras ciências, mas a singularidade é de primordial importância (Hartshorne, 193916, p. 432). Schaefer (1953, p. 239), ao comentar o enunciado, disse:

9 ibid10 Apud CAMARGO e REIS JUNIOR (2007, p. 89)11 RUSSEL, B. Significado e verdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. Apud CAMARGO e REIS JUNIOR (2007, p. 90)12 LACOSTE, J. A filosofia no século XX: ensaios e textos. Campinas: Papirus, 1992. Apud CAMARGO e REIS JUNIOR (2007, p. 91)13 REIS JÚNIOR, D.F. da C. O humano pelo viés quantitativo: um exame do (neo) positivismo em Speridião Faissol através da análise de textos selecionados. 2003. 141 f. Dissertação de mestrado em geografia. Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2003. Apud CAMARGO e REIS JUNIOR (2007, p. 92).14 SCHAEFER, F. K. O excepcionalismo na geografia: um estudo metodológico. Boletim de Geografia Teorética. Rio Claro, v. 7, no. 13, 1977, p. 5-37. Apud CAMARGO e REIS JUNIOR (2007, p. 94)15 Schaefer, F. K. 1953. Exceptionalism in geography: a methodological examination. Annals of the Association of American Geographers, 43, 226-49 Apud BIRD (1993, p. 11).

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“Daí, as generalizações na forma de leis são inúteis, se não impossíveis, e qualquer predição em geografia é de valor insignificante.”

Por outro lado, para Camargo e Reis Junior (2007, p. 94), à medida que a matemática foi se mostrando capaz de abarcar também relações de natureza mais qualitativa, ela foi ganhando crédito junto aos que viriam a se constituir nos defensores de seu uso nas ciências sociais ou humanas – é, portanto, neste sentido que a matematização mantém elo com a visão neopositivista do mundo. Muito embora os conceitos em matemática não possuam propriamente um conteúdo realístico, fato é que eles advêm de alguma maneira, do mundo real (...)

Vale reforçar que, além da transmutação da física para a geografia (conceitos de gravidade, atração-repulsão, difusão, equilíbrio, entropia, homeostase, sistema aberto etc.), a nova geografia apela para a quantificação maciça, ou seja, o uso das técnicas matematico-estatísticas que se mostravam à disposição.

Sobre o emprego da matemática na geografia, Burton (1977, p. 75) é enfático:

“Dada a necessidade de concordar com os ditames rigorosos do método científico, a necessidade de aperfeiçoar a teoria e de testá-la pela previsão, a Matemática é então o melhor instrumento de que dispomos para este fim.”17

Burton também destaca que outro método importante incorporado à Nova Geografia foi a construção e o emprego de modelos.

Vale ressaltar que os geógrafos da corrente neopositivista ocuparam-se com estudos de processo e difusão espacial a partir do momento em que, mais ou menos consensualmente, a geografia foi assumindo a tarefa de lidar com a “organização espacial” dos fenômenos. E, a fim de melhor compreender as organizações verificadas no espaço, os geógrafos neopositivistas assimilaram prontamente a Teoria Geral dos Sistemas, mesclando-a tanto quanto possível, com um instrumental teórico e/ou quantitativo, ora trivial (Teoria dos Conjuntos), ora mais aprimorado (Teoria dos Jogos, Teoria da Complexidade).

2. Questões epistemológicas envolvendo a geografia.A epistemologia18 é abordada em seu senso etimológico como teoria da ciência,

como dinâmica de um pensamento e de um discurso científicos. Ela visa três objetivos:

1. Um objetivo de conhecimento do pensamento dominante, ou seja, a pesquisa da problemática ou das problemáticas maiores;

2. Um objetivo metodológico para fazer compreender as modalidades de aquisição e de organização dos conhecimentos que serão utilizados;

3. Um objetivo de iluminar as maneiras de agir privilegiadas pela organização do pensamento científico, no empenho da coleta das idéias fundamentais dos procedimentos de controle dos resultados.

De acordo com Bailly e Ferras (2001, p. 5), a epistemologia adquiriu seu estatuto científico dentro da linhagem da filosofia das ciências após dois trabalhos seminais: o Discurso do Método de Descartes (1637) e o Ensaio sobre a filosofia das ciências de Ampère (1860) 19.16 Hartshorne, R. 1939. The nature of geography. Lancaster, Penn: Asociation of American Geographers. BIRD (1993, p. 11).17 Op. Cit. Apud CAMARGO e REIS JUNIOR (2007, p. 95) 18 Segundo Bailly e Ferras (2001, p. 5)19 André-Marie Ampère (Lyon, 20 de janeiro 1775 — Marselha, 10 de junho 1836) foi um físico, filósofo, cientista e matemático francês que fez importantes contribuições para o estudo do eletromagnetismo. Entre suas obras, deixou por

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Nesse sentido, não há como falar de método científico sem que se remeta ao cartesianismo, nome dado ao movimento inaugurado por René Descartes (31/03/1596 – 11/02/1650), matemático francês, cientista e filósofo, que moldou o cenário filosófico do começo do período moderno, cuja influência, mesmo hoje, ainda se faz sentir20 (…). O programa cartesiano pressupunha que todos os fenômenos físicos são explicáveis em termos de modelos ou modificações de extensão; com efeito, isto significava mostrar como que toda a aparente complexidade e diversidade da matéria poderiam ser contabilizadas pela simples referência de tamanho, forma, e movimento das partículas das quais era composta.

O método cartesiano envolve quatro ações distintas, a seguir21:

1. Nunca aceitar nada como verdadeiro aquilo que não tiver total certeza; ou seja, cuidado no sentido de evitar precipitação e preconceito, e não adicionar nada a mais no julgamento do que aquilo que foi apresentado na mente tão clara e distintamente, excluindo-se qualquer sombra de dúvidas;

2. Dividir cada uma das dificuldades sob escrutínio em tantas partes quanto possível, de tal forma a conduzir a uma resposta adequada;

3. Conduzir os pensamentos de tal forma que, começando pelos objetos mais simples e fáceis se possa ascender pouco a pouco, passo a passo, ao conhecimento do mais complexo; e,

4. Em todas as ocorrências, fazer enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que se possa ter certeza de que nada foi omitido.

Um grande contraponto ao discurso cartesiano foi o trabalho seminal de Immanuel Kant (1724-1804), considerado o mais importante filósofo europeu dos tempos modernos: Crítica da Razão Pura. Na obra, o autor ressalta a questão metafísica, entendida como o conhecimento filosófico que transcende os limites da experiência22. Para Kant, tal conhecimento é tanto sintético como apriorístico. Em outras palavras, a metafísica se propõe não somente prover as verdades necessárias, que, dessa forma, não podem ser baseadas na evidência empírica (sua aprioridade), mas também propõe que seus referentes podem ser derivados de uma análise de seus conceitos (sua sinteticidade). Os enunciados: “Deus existe” e “Todo evento tem uma causa”, são exemplos de tais proposições.

Para Kant, o conhecimento humano é limitado a aparências ou fenômenos, conquanto a essência das coisas [ou noumena] pode ser pensada, mas não sabida. O filósofo argumenta que, uma vez que os objetos devem parecer para nós de acordo com as formas percebidas pelos sentidos, isto resulta que nós podemos conhecê-los somente na forma que parecem, não como realmente são.

De acordo com Harvey (1969) 23, há dois caminhos para a explicação científica. O primeiro, ocasionalmente conhecido como o caminho “baconiano” ou indutivo, deriva suas generalizações das observações: um padrão é observado e uma explicação é desenvolvida a partir dele e para ele. Entretanto, isso envolve uma forma perigosa de generalização a partir do caso particular, porque, como argumenta Moss (1970) 24, a aceitação das interpretações depende muitíssimo do carisma do estudioso envolvido. Assim, o método científico é o do segundo caminho

terminar Ensaio sobre a filosofia das Ciências, na qual iniciou a classificação do conhecimento do homem. Fonte: Wikipédia. Acesso em 16 de fevereiro de 2011.20 HONDERICH (1995, p. 122-124)21 DESCARTES (2008; p. 21)22 HONDERICH (1995, p. 435-438)23 Harvey, D. Explanation in geography. Londres: Edward Arnold, 1969. Apud JOHNSTON (1986, p. 100)24 Moss, R. P. Authority and charisma: criteria of validity in geographical method. South African Geographical Journal. V. 52, 13-37, 1970 Apud JOHNSTON (1986, p. 100)

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[ou dedutivo]. Este também começa com um observador percebendo padrões no mundo; ele então faz experimentos, ou alguma outra espécie de teste, para provar a veracidade das explicações que ele produziu para esses padrões. Somente quando suas idéias forem testadas com sucesso, em relação a dados diferentes daqueles dos quais elas foram derivadas, é que uma generalização pode ser feita.

“Uma lei científica pode ser interpretada como uma generalização que é empírica e universalmente verdadeira, e que é também uma parte integral de um sistema teórico no qual temos uma confiança suprema. Tal interpretação rígida poderia provavelmente significar que as leis científicas não teriam existência em todas as ciências. Entretanto, os cientistas afrouxam, numa certa medida, seus critérios na aplicação prática do termo.” (Harvey, 1969, p. 105) 25

Lakatos (2001, p. 2-3) lembra que os cientistas querem fazer com que suas teorias sejam respeitáveis, merecedoras do título “ciência”, que é conhecimento genuíno. Após o advento do Iluminismo, a nova crença consistia na negação de uma teologia científica, ou do conhecimento teológico. O conhecimento pode ser somente sobre a Natureza, mas este novo tipo de conhecimento tinha de ser julgado pelos padrões tirados diretamente da teologia: ele tinha de ser provado além da dúvida. Um cientista, digno do nome, não podia “achar”: ele tinha que provar cada sentença proferida através dos fatos. Tal era o critério da honestidade científica (...). Foi somente com a queda da teoria Newtoniana no século XX que fez com que os cientistas tomassem consciência de que seus padrões de honestidade tinham sido utópicos.

O autor cita que, em 1934, Karl Popper, um dos mais influentes filósofos de nossa era, argumentou que a probabilidade matemática de todas as teorias, científicas ou pseudocientíficas, dado qualquer quantidade de evidência, seria zero. Popper (1963, p. 47-48), em suas reflexões, destaca que:

1. É fácil obter confirmação, ou verificação, praticamente em toda teoria, se procurarmos por confirmações;

2. Confirmações deveriam contar somente se elas forem o resultado de predições arriscadas; ou seja, se, não elaboradas pela teoria em questão, deveríamos ter esperado um evento que era incompatível com a teoria – um evento que teria refutado a teoria;

3. Toda boa teoria científica é uma proibição: ela proíbe certas coisas de acontecer. Quanto mais uma teoria proíbe, melhor ela é;

4. Uma teoria que não é refutável por nenhum evento concebível não é científica. Irrefutabilidade não é uma virtude de uma teoria, mas um vício;

5. Todo teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de faseá-la, ou refutá-la. Testabilidade é falsificabilidade; mas há graus de testabilidade: algumas teorias são mais testáveis, mais expostas à refutação, do que outras; elas se sujeitam a maiores riscos;

6. Confirmação de evidência não deveria contar exceto quando ela é resultado de um teste genuíno da teoria; e isto significa que ela pode ser apresentada como uma tentativa séria, mas mal sucedida em falsear a teoria;

7. Algumas teorias genuinamente testáveis, quando provadas em contrário, são ainda encampadas por seus admiradores – por exemplo, pela introdução ad hoc de alguma condição auxiliar, ou pela reinterpretação da teoria ad hoc de tal forma que ela escapa à refutação.

25 Ibid

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Concluindo, para Popper, o critério do status científico de uma teoria é sua falseabilidade, ou refutabilidade, ou testabilidade.

Lakatos argumenta que, se Popper estiver certo, as teorias científicas não somente são improváveis como também não-prováveis. Para o autor, uma teoria é “científica” se alguém está preparado para especificar antes um experimento (ou observação) crucial que possa falseá-la, e é pseudocientífica se alguém se recusa a especificar tal “falseador potencial” – neste caso, não demarcaríamos teorias científicas das pseudocientíficas, mas um método científico do não científico.

O autor coloca que o critério de falseabilidade de Popper não é a solução do problema da demarcação entre ciência da pseudociência. Isto porque não leva em conta a admirável tenacidade das teorias científicas. Os cientistas não abandonam uma teoria meramente por causa dos fatos que a contradizem. Eles normalmente ou inventam alguma hipótese de resgate para explicar o que chamam de mera anomalia ou, se não puderem explicar a anomalia, eles a ignoram e dirigem sua atenção para outros problemas. Neste último aspecto, há concordância com o que disse Popper.

Vale destacar que o principal trabalho de Kuhn sobre filosofia da ciência, A Estrutura das Revoluções Científicas (1962) 26, tem sido muito influente no âmbito da ciência. Um dos conceitos-chave do livro é o de paradigma27, que, apesar de usado por Kuhn em diversas maneiras, pode significar uma filosofia compartilhada por um grupo de pensadores, uma metateoria a orientar seu trabalho, que pode então ser descrito como “ciência normal”. Segundo define o autor, “é o conjunto de crenças, de valores comuns e das técnicas próprias a um grupo (característica sociológica) que permitem trazer as soluções de problemas científicos pendentes (característica filosófica)”. 28

Uma diferença fundamental entre o pensamento de Kuhn e Popper29 é a crença da ciência “normal” como o estado básico da ciência, considerado pelo segundo como uma ameaça à ciência. A ciência normal lida com três classes de problema, de acordo com Kuhn: “determinação do fato significativo, comparação dos fatos com a teoria, e articulação da teoria” (Kuhn, 1962, p. 34). O autor complementa que é uma característica notável desses problemas normais de pesquisa o quão pouco eles estão propensos a produzir maiores novidades, conceituais ou fenomenológicas. Uma crise é uma pré-condição para a emergência de novas teorias, via pesquisa “extraordinária” levando a um novo metaparadigma via revolução científica.

Uma crítica implícita à proposta de Kuhn vem da pergunta: quais os critérios científicos para a mudança da crença de um metaparadigma para outro? Popper, ao seu turno, critica a “ciência normal” em seu trabalho O Mito do Arcabouço, afirmando que, “se tentarmos, podemos quebrar o arcabouço a qualquer momento. Então, nos encontraremos num outro arcabouço, melhor e mais espaçoso; e podemos quebrá-lo novamente” 30 (...) arcabouços para ações de pesquisa em geografia são diferentes de qualquer perspectiva que pudesse ser chamada de método científico; além do mais, tais abordagens são muito diferentes umas das outras. Para alguns geógrafos, isto constitui num pluralismo intolerável; outros buscam acomodação via ecletismo.

26 Kuhn, T. S. 1970. The structure of scientific revolutions. First Pub. 1962. Chicago: University of Chicago Press. Apud BIRD (1993, P. 13).27 Segundo o Merriam Webster’s Collegiate Dictionary (10ª. Ed), “paradigma é um arcabouço filosófico e teórico de uma escola ou disciplina científica dentro do qual teorias, leis, generalizações e experimentos executados para prová-lo são formulados.” Tradução livre.28 Bailly e Ferras (2001, p. 6)29 Popper, K. R. 1970. Normal science and its dangers. In I. Lakatos, and A. Musgrave (eds.), Criticisms and the growth of knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 51-8. Apud BIRD (1993, p. 15).30 Ibid

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Lakatos (2001, p. 6) defende que a crítica elaborada é sempre construtiva: não há rejeição sem uma teoria melhor. Kuhn estaria errado ao pensar que as revoluções científicas são mudanças súbitas e irracionais de visão. A História da Ciência refuta tanto Popper quanto Kuhn: numa inspeção de perto tanto os experimentos cruciais popperianos quanto as revoluções kuhnianas não passam de mitos: o que acontece normalmente é que os programas progressivos de pesquisa substituem os decadentes.

O autor argumenta que (p. 102):

1. A Filosofia da ciência proporciona metodologias normativas em termos de que o historiador reconstrói a “história interna”, e, portanto proporciona uma explicação racional para o crescimento do conhecimento objetivo;

2. Duas metodologias concorrentes podem ser avaliadas com a ajuda da história (interpretada normativamente);

3. Qualquer reconstrução racional da história precisa ser suplementada por uma história externa empírica (sócio-psicológica).

Historicamente, a geografia, enquanto ciência, não caminha por saltos, como poderia prever o modelo kuhniano: ao invés disso, a imagem de uma espiral ascendente reflete melhor a realidade, na qual a disciplina sempre recorre a modelos históricos das diversas escolas, agregando elementos gerados pela própria evolução científica.. Neste sentido, a geografia [pós-moderna] não pode prescindir do caráter físico da escola alemã, nem do regionalismo da escola francesa; por outro lado, as correntes teoretica-quantitativa, radical-crítica, e humanista-cultural acabam encontrando pontos de interseção, o que implica na necessidade de um melhor diálogo entre elas, sob pena do dogmatismo ou da redução de seu caráter científico.

3. A geografia teoretica-quantitativa e sua relação com o (neo) positivismo: possibilidades e limites.

Os proponentes da “Nova Geografia” [ou teoretica-quantitativa] argumentavam que a geografia tradicional era intelectualmente fraca e que os acadêmicos de outras disciplinas a enxergavam meramente como uma interpretação de lugares únicos (Gould, 1979) 31. Eles também acreditavam que através da nova metodologia a geografia poderia se juntar às principais tendências da ciência, em busca de um entendimento e de sua respectiva sedimentação da organização e da evolução da paisagem. Essa geografia recém-criada procurava analisar o que dava à paisagem sua feição (tanto física quanto cultural). Numa certa medida, a divisão entre a nova e antiga geografia seria a divisão entre os novos e velhos geógrafos (Martin, 2005, p. 419).

(...) A nova geografia prometeu maior precisão, poderia ser verificada, levaria a generalizações, e poderia ser cumulativa na sua construção do conhecimento científico. Ela também ocupava significativas áreas de crescimento da disciplina. Assuntos como o tamanho e localização das cidades e a localização dos negócios tinham sido estudados por geógrafos urbanos e econômicos, duas das mais desenvolvidas áreas na geografia americana por décadas. (...) Inicialmente ela adicionou menos ao conteúdo do que ao método. Ela tentou reorganizar a maneira com que os geógrafos faziam medidas, mudando a linguagem usada de narrativa para numérica, e procurava leis de dados aleatórios e processados em computador. O objetivo era fazer a geografia mais científica (ibid).

31 GOULD, P. R. “Geography, 1957-1977: the Augean Period” Annals AAG 69: 139-150, 1979 Apud Martin (2005, p. 419)

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O conhecimento científico obtido através do método dedutivo é “uma espécie de especulação controlada” (Harvey, 1969, p. 5) 32, e foi esse conhecimento que um número crescente de geógrafos humanos procurou aplicar durante os anos 50. O método, conhecido como positivismo, foi desenvolvido por um grupo de filósofos de Viena, durante as décadas de 20 e 30 [como mencionado anteriormente] (...) Ele está baseado na concepção de um mundo objetivo, no qual uma ordem existe – padrões espaciais de variação e covariação no caso da Geografia – ela não pode ser contaminada pelo observador. Um observador neutro, com base tanto em observações como em suas leituras das pesquisas de outros, derivará uma hipótese (uma lei especulativa) sobre algum aspecto da realidade e, então, testará aquela hipótese: a verificação de sua hipótese traduz a lei especulativa para o nível de lei aceita.

Vale destacar que, para Bird (1993, p. 46), é uma prática comum considerar o método científico e o positivismo moderno como sinônimos, com as seguintes cinco características principais:

• Objetividade (via uma metodologia livre de valores);• Método hipotético-dedutivo (via observação guiada por teoria);• Testabilidade;• Replicabilidade;• Habilidade preditiva.

Da mesma forma, o desenvolvimento de uma ciência espacial [no contexto da geografia quantitativa] subentendia a assunção da filosofia positivista – que limita o conhecimento a fatos que podem ser observados e a relações entre os fatos. Isto levaria a uma aceitação na comunidade científica ampla e propiciaria tanto a explicação quanto a predição.

Segundo Fotheringham et al (2005, p. xi), um dos mais intrigantes paradoxos aos analistas do desenvolvimento da geografia é o fato de que, ao final do século XX, uma corrente relevante deste campo se voltou contra a análise de dados espaciais quantitativos, na mesma medida em que outras disciplinas passaram a reconhecer sua importância.

Uma razão comumente expressada para tal atitude negativa contra um dos elementos básicos da disciplina é a desilusão com a filosofia positivista subjacente aos primeiros trabalhos da geografia quantitativa (décadas de 1950 e 1960), que acabou relegada ao segundo plano pelos novos paradigmas em geografia humana, tal como o Marxismo, pós-modernismo, estruturalismo e humanismo. Tal posicionamento não leva em conta os trabalhos mais abrangentes desenvolvidos nas duas últimas décadas.

Fotheringham et al (2005, p. 4) alegam que seu livro foi escrito num período quando a geografia quantitativa alcançou o estágio da maturidade, no qual seus discípulos não são mais meros importadores de técnicas de outras disciplinas, mas principalmente exportadores de novas idéias sobre a análise de dados espaciais. Como delimitação do campo, os autores colocam que a geografia quantitativa consiste em uma ou mais das seguintes atividades: a análise dos dados espaciais numéricos; o desenvolvimento da teoria espacial; e a construção e o teste dos modelos matemáticos dos processos espaciais.

Murray (2009, p. 1) fala de seis grandes categorias usadas para discutir a amplitude dos métodos encontrados na geografia quantitativa: sistemas de informação geográfica; sensoriamento aéreo; estatística e análise exploratória de dados espaciais; matemática e otimização; análise regional; e, ciência da computação e simulação, todas33 de ampla utilização prática na sociedade moderna, tanto no setor público quanto no privado.

32 HARVEY, D. Explanation in Geography. Londres: Edward Arnold, 1969. Apud Johnston (1986, p. 100)33 Observação deste autor

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De acordo com Fotheringham et al (2005, p. 5), os geógrafos fisico-quantitativos, pelo fato de suas investigações serem mais prováveis de envolver processos previsíveis, tendem a adotar um ponto de vista naturalista mais frequentemente do que seus colegas humanistas. Na geografia humana, onde o objeto é tipicamente obscurecido pelas idiossincrasias humanas, problemas de medida e incerteza, a procura não é geralmente pela evidência pura de que leis globais do comportamento humano existem. Ao invés disso, a ênfase da análise quantitativa na geografia humana é de reunir evidência suficiente que torne a adoção de uma linha particular de pensamento convincente.

Tipicamente na geografia, como em outras disciplinas, a pesquisa empírica tem dependido das idéias teóricas como guia, e a sua dependência ainda se faz sentir nesta direção. Contudo, com o advento de novas idéias e técnicas na análise de dados espaciais exploratórios, a pesquisa empírica está sendo cada vez mais usada para guiar o desenvolvimento teórico para formar uma simbiose equilibrada (Ibid, p. 7).

Existem no mínimo duas limitações envolvendo a pesquisa empirico-quantitativa na geografia. Uma consiste na nossa limitada habilidade de pensar sobre como os processos espaciais operam e para produzir insights que levem a formas melhoradas dos modelos espaciais. A outra é o conjunto restrito de ferramentas que temos para testar e refinar tais modelos (Ibid, p.13).

Amorim Filho (1985, p. 46) destaca a polarização das críticas à Nova Geografia (ou teoretico-quantitativa) em duas grandes direções:

1. De um lado, a acusação de que a “Nova Geografia” se transformou em um neopositivismo cientificista e “reducionista”, cujos trabalhos – conscientemente ou não – colocam a serviço da ideologia dominante, no caso, o capitalismo. A aplicação de modelos matemáticos puros ou de esquemas teóricos como os sistêmicos, por exemplo, sem um embasamento teórico suficiente ou sem um teste empírico adequado, levou à “neutralização” da geografia como uma ciência crítica e ao insucesso de muitas de suas explicações, uma vez que os componentes socioeconômicos e históricos do fenômeno estudado não tinham sido analisados de forma eficaz (...);

2. De outro lado, a acusação de que o desenvolvimento teórico e metodológico da “Nova Geografia” tem sido insuficiente, gerando uma expectativa não satisfeita em relação à capacidade de explicação científica da geografia. Para essa corrente crítica a “Nova Geografia” foi capaz de desenvolver uma explicação no máximo estruturalista, atemporal, utilizando um instrumento estatístico ainda muito limitado, baseado praticamente apenas na estatística descritiva e inferencial.

Guelke (1971, p. 50-1) 34 sumariza que:

“A Nova Geografia (...) não produziu ainda quaisquer leis científicas e (...) parece pouco provável que possa produzi-las no futuro. (...) As teorias e modelos (...) não são suscetíveis de teste empírico. (...) Os novos geógrafos têm insistido com (...) teorias e modelos lógica e internamente consistentes. Todavia, nenhum de seus construtos teóricos foi complexo o suficiente para descrever com exatidão o mundo real. Eles alcançaram consistência interna, enquanto perderam sua compreensão da realidade.”

34 GUELKE, L. Problems of scientific explanation in geography. The Canadian Geographer 15, 38-53, 1971 Apud Johnston (1986, p. 206)

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Em outro trabalho, Guelke (1981, p. 133) 35coloca que:

“O mundo só pode ser conhecido indiretamente através de idéias (...) de que todo conhecimento está, em última análise, baseado em uma experiência individual subjetiva do mundo, e compreende construtos mentais e idéias. Não há nenhum mundo real que possa ser conhecido independentemente da mente.”

Lukerman (1965, p. 194) 36 afirma que:

“Assim, vemos a explicação científica afastar-se do contexto ao qual os geógrafos macroscópicos queriam nos levar, o produto final da pesquisa geográfica. A ciência não explica a realidade, ela explica a conseqüência de suas hipóteses.”Bird (1993, p.46) destaca as cinco maiores críticas da metodologia positivista:

1. Uma metodologia livre de valores é por si uma ideologia, que, por causa de sua alegada neutralidade apóia o status quo subliminarmente, e, portanto, torna-se uma ideologia classificada como de direita no mundo ocidental;

2. É pouco factível assumir que o observador, o “cientista” possa objetivamente se separar do objeto observado;

3. Uma observação direcionada pela teoria enxerga os dados em isolamento do “ruído” em volta, e os ganhos resultantes da seletividade e canalização de esforço pode amputar o que poderia ser um contexto essencial;

4. O objetivo de um geógrafo humanista não é a explicação dos fenômenos, mas a compreensão das ações dos seus pares humanos;

5. Para assumir uma realidade independente do observador é ilógico porque o observador é sempre parte do mundo real sendo observado.

Um geógrafo positivista poderia replicar (p. 47):

1. A assunção de uma metodologia livre de valores é um experimento do pensamento (via hipótese) do tipo possibilitante “se”, que pode gerar resultados por métodos aceitáveis de testes. Pode-se mostrar que a metodologia de fato vicia os resultados, isto é uma crítica sustentável ou não, e todo trabalho é sujeito a crítica;

2. Se o cientista assume que ele é separado dos dados, que é uma das condições subentendidas na hipótese a ser testada;

3. Porque tudo é conectado a tudo, todas as metodologias têm de colocar limites entre elas e um contexto infinito;

O método científico não impede a inserção de detalhes humanos esclarecedores exemplificando questões importantes;

4. É verdade que o olho tende a ver o que procura, mas na observação apoiada na teoria é necessária, contudo, a possibilidade dos dados contrariarem a hipótese inicial.

Segundo Swartz37, Bourdieu é um crítico feroz do positivismo, dentro do argumento de que a ciência é empírica, mas não positivista. Bourdieu defende que a evidência não fica simplesmente esperando por ser descoberta. O conhecimento científico social é construído conscientemente contra o conhecimento assumido como certo do mundo social (Bourdieu e

35 GUELKE, L. Idealism. In: M. E. Harvey e B. P. Holly (eds.). Themes in geographic thought. Londres, Croom Helm, 1981, p 133-47 Apud Johnston (1986, p. 210)36 LUKERMANN, F. Geography: de facto or de jure. Journal of the Minnesota Academy of Science, 32, 189-96, 1965 Apud Johnston (1986, p. 109)37 SWARTZ (1997, p.250-251)

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Wacquant 1992:23538). Para Bourdieu, a ciência progride pelos novos insights críticos dentro do mundo das relações de poder do que é assumido como certo, ao invés de um acúmulo de fatos.

Além do mais, Bourdieu (1975b39; Bourdieu e Wacquant 1992:17640) argumenta que a ciência é um campo de luta pela legitimação social. Ele coloca que a razão científica se realiza quando se inscreve não em normas éticas de uma razão prática ou nas regras técnicas de uma metodologia científica, mas nos aparentes mecanismos sociais anárquicos de competição entre estratégias armadas com instrumentos de ação e de pensamento capazes de regular seus próprios usos, e nas disposições duráveis que o funcionamento deste campo produz e pressupõe (Bourdieu e Wacquant 1992:18941).

Por outro lado, a ênfase que Bourdieu dá para o poder e violência simbólicos sugere fortemente que o estudo de fatos “sociais” é bem diferente do estudo de fatos “naturais”. O conhecimento sociológico é fundamentalmente histórico e político, ao invés de natural. As propostas teóricas originam da posição do pesquisador no campo intelectual tal como dos limites conceituais da disciplina intelectual. O autor admite (1975B42) que a ciência social não pode nunca alcançar o grau de autonomia das forças externas presente na ciência natural.

Em suma, ao invés de estabelecer uma razão universal ou um sujeito racional tal como o cogito cartesiano, Bourdieu sugere que haja o desenvolvimento de uma possibilidade histórica de algo como uma razão universal ou um sujeito racional, e que isto seria um evento desejável. No lugar da idéia de um sujeito de escolha livre presente na natureza humana, Bourdieu pensa sobre a racionalidade humana como uma possibilidade histórica que não é inata, mas deve ser conquistada pouco a pouco numa luta sem fim contra o mundo das determinações sociais. A posição do autor, então, é paradoxal: ele propõe tanto uma visão histórica da razão como uma visão normativa e universal. Ele admite que “o sujeito universal é uma realização histórica que jamais será completada. É através das lutas históricas, nos espaços históricos de forças, que progredimos em direção a um pouco mais de universalidade” (Bourdieu e Wacquant, 1992:19043).

A seguir, dois exemplos [recentes] que ilustram o quão inexato – ou manipulável – pode se tornar o método quantitativo, no âmbito da geografia, tendo impactos sociais diretos na execução de políticas públicas, tanto no âmbito interno quanto internacional.

Nas décadas de 70 e 80 havia uma corrente na geografia econômica brasileira que compartilhava o preceito da célebre frase de Antonio Delfim Netto44: “É preciso crescer o bolo para depois reparti-lo” - os números daquela época talvez o justificassem: o Gráfico 1 ilustra que a economia brasileira cresceu vertiginosamente até a década de 1970, diminuindo o ritmo após este período, até meados dos anos 2000.

38 BOURDIEU, P; WACQUANT, L. J. D. An invitation to reflexive sociology. Chicago: University of Chicago Press, 1992 apud Swartz (1997)

39 BOURDIEU, P. La spécifité du champ scientifique et les conditions sociaux du propre de la raison. Sociologie et Sociétés. Montréal, avr. 1975 apud Swartz (1997)

40 Op. Cit.41 Op. Cit.42 Op. Cit.43 Op. Cit.44 Economista, professor universitário, e político brasileiro, nascido em São Paulo em 1º. de maio de 1928. Fonte: Wikipedia. Acesso em 16 de fevereiro de 2011.

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Por sua vez, desde a década de 70 até meados dos anos 2000, o coeficiente de GINI, que exprime a desigualdade da renda familiar per capita [no Brasil], não demonstrava melhoras palpáveis, tanto num ambiente de crescimento econômico quanto de recessão (Ver Gráfico 2); deduz-se, pelo gráfico, que é possível repartir o bolo, mesmo num contexto de crescimento econômico (especialmente nos anos 2004-2005, quando o país cresceu em torno de 10% 45), tendo o índice alcançado um mínimo histórico no contexto brasileiro, indicando menor desigualdade.

Fica implícita a tentativa de se justificar [através de números de crescimento de PIB] uma política econômica concentradora de renda, com o concomitante retardo do desenvolvimento social brasileiro. Não obstante, podemos verificar através da Figura 1 que, mesmo com a evolução dos indicadores de desigualdade de distribuição de renda no Brasil, a situação de assimetria social relativa ao resto do mundo é ainda bastante desfavorável, implicando em um problema de escala.

45 Dados disponíveis em http://www.bcb.gov.br/pec/appron/apres/Palestra%20IBEF%20160410%20v03.pdf . Acesso em 22 de janeiro de 2011.

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Outra questão envolvendo posições controversas é a do aquecimento global (Ver Figura 2), no âmbito da Geografia do Clima. Enquanto uma corrente [aparentemente majoritária] apela para o envolvimento urgente dos líderes mundiais no sentido de mitigar o problema, outra argumenta que não há evidências que subsidiem o pânico. O jornal New York Times assim estabelece um lado da questão:

“O Aquecimento Global tem se tornado talvez a questão mais complicada para os líderes mundiais. Por um lado, os avisos da comunidade científica estão se tornando mais enfáticos, uma vez que um número cada vez maior de elaborações científicas aponta para os perigos crescentes do aumento dos gases do efeito estufa provocados pelo homem – produzidos principalmente pela queima de combustíveis fósseis e de florestas. Por outro lado, questões tecnológicas, econômicas e políticas têm de ser resolvidas antes que um esforço mundial coordenado para a redução de emissões possa começar, particularmente diante de um cenário de desaceleração econômica mundial.” 46

O outro lado da moeda está contido no artigo do estatístico Edward Wegman47, enfatizando que os cientistas do clima tem feito um trabalho inadequado na incorporação da tecnologia estatística. O autor coloca que:

“No debate sobre aquecimento global, há essencialmente dois campos majoritários. Um acredita que a ciência está estabelecida, que o aquecimento global é sério e provocado pelo homem, e que ações urgentes devem ser tomadas para mitigar ou prevenir uma calamidade futura. O outro acredita que a ciência está longe de ser estabelecida, que pouco é conhecido sobre aquecimento global ou seus efeitos prováveis, e que a prudência pede mais pesquisa e cuidado antes de uma intervenção maciça na economia.”

46 The New York Times, global warming, ed. 13.01.2011. Disponível em http://topics.nytimes.com/top/news/science/topics/globalwarming/index.html .

Acesso em 26 de janeiro de 2011. Tradução livre.47 PhD em estatística matemática pela Universidade de Iowa. Artigo disponível em http://www.canada.com/nationalpost/story.html?id=22003a0d-37cc-4399-8bcc-39cd20bed2f6&k=0 . Acesso em 26 de janeiro de 2011. Tradução livre.

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4. Considerações finais.

“Filosofia da ciência sem história da ciência é vazia; história da ciência sem filosofia da ciência é cega.” Imanuel Kant.

Depois de refletirmos sobre o papel do positivismo na geografia, e percebermos as virtudes e limitações inerentes ao modelo, enquanto metodologia científica, finalizaremos com algumas reflexões filosóficas no sentido de salientar os limites da racionalidade humana, reduzindo a capacidade de apreensão da realidade, destacando o valor do contexto histórico no desenvolvimento epistemológico e identitário da geografia, enquanto ciência, e como que tais elementos implicam na necessidade de melhoria do diálogo entre as múltiplas correntes que a compõem.

Mills (1980, p.190) questiona se não devemos, em nossa época, enfrentar a possibilidade de que a mente humana, como realidade social, possa estar se deteriorando qualitativamente e em nível cultural, e não obstante, muitos não o percebem devido à esmagadora acumulação de recursos técnicos... Não será esse um dos sentidos da racionalidade sem razão? Da alienação humana? Da ausência de qualquer papel livre para a razão nas questões humanas? A acumulação dos recursos técnicos oculta esses sentidos: os que usam tais recursos não os compreendem; seus inventores também não compreendem muito mais (…). A formulação de qualquer problema exige que exponhamos os valores em causa e as ameaças que sobre ele pesam. Pois é a ameaça aos valores existentes – como a liberdade e a razão – que constitui a substância moral necessária de todos os problemas significativos da pesquisa social, bem como de todas as questões públicas e perturbações privadas.

O autor (p. 11) também coloca que não é apenas informação que [os homens comuns] precisam – nesta Idade do Fato, a informação lhes domina com frequência a atenção e esmaga a capacidade de assimilá-la (...). O que precisam, e o que sentem precisar, é uma qualidade de espírito que lhes ajude a usar a informação e a desenvolver a razão, a fim de perceber, com lucidez, o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmos. É essa qualidade que jornalistas e professores, artistas e públicos, cientistas e editores estão começando a esperar daquilo que poderemos chamar de imaginação sociológica. (...). É por isso, em suma, que por meio da imaginação sociológica os homens esperam, hoje, perceber o que está acontecendo no mundo, e compreender o que está acontecendo com eles, como minúsculos pontos de cruzamento da biografia e da história, dentro da sociedade (ibid, p. 14).

Muito do que se considerava como “ciência” passou a ser visto hoje como uma filosofia dúbia; muito do que se considerava como “verdadeira ciência” frequentemente nos proporciona apenas fragmentos confusos das realidades entre as quais vive o homem. Homens de ciência, pelo que se acredita geralmente, já não tentam retratar a realidade como um todo ou apresentar um esboço verdadeiro do destino humano. Além disso, a “ciência” parece [a muitos] menos um elemento moral criador e uma forma de orientação do que um grupo de Máquinas Científicas, operadas por técnicos e controladas por economistas e militares, que não a representam nem a compreendem como ética e orientação. Enquanto isso, os filósofos que falam em nome da ciência com frequência a transformam num “cientificismo”, considerando sua experiência idêntica à experiência humana, e pretendendo que somente pelos seus métodos podem os problemas da vida ser resolvidos (ibid, p. 23).

Por sua vez, Bailly e Ferras (2001, p. 20-21) citam Piaget, que distingue dois aspectos do conhecimento “irredutíveis, mas indissociáveis”: as racionalizações são geradas pela

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zona dita “intencional” da alma (crenças, desejos, motivações, vivências), e que a cognição mobiliza as capacidades para lhes racionalizar a posteriori... Ele fala de uma racionalização dos processos subconscientes para chegar a resultados científicos através de diversas linguagens, como as matemáticas, ou à expressão verbo-conceitual. Do ponto de vista epistêmico esta verdade “psicológica”, racionalizada a posteriori (Ein Gefühl fur Wahrheit), não passa de uma crença, apesar de sua utilidade prática.

Par suite de la diversité des représentations, si la réalité est une, ses connaissances sont multiples et rien n'assure a priori leur intercohésion. Toute étude de géographie, en organisant la connaissance par valorisation de certains points de vue et de certaines logiques, est donc éminemment subjective. Même si chaque chercheur peut défendre la logique de son modèle, il ne faut pas oublier la diversité des visions du monde, donc de ses modèles potentiels... et réduire la géographie à une idéologie disciplinaire dominante. 48

Bird (1993, p. 55) afirma que, enquanto autores como Hill49 sugerem que deveria ser possível conectar os resultados de todas as ciências empíricas num único sistema unificado dedutivamente... e que é uma estupidez injustificável insistir que as ciências naturais e humanas lidam com diferentes tipos de realidade (p. 55-6), autores como Paul Feyerabend50 atacam os defensores do método científico ou positivistas: por “anarquismo” o autor quer dizer suspeita de uma filosofia que é regida por algum objetivo abstrato tal como a “busca da verdade (ou verisimilitude segundo Popper)”; que o anarquismo teórico é mais humanitário do que suas alternativas de “ lei-e-ordem”.

Por sua vez, Keat51 afirma que a ciência é autoritária ao não permitir competidores, e isto tem implicações políticas: o conhecimento científico, concebido positivisticamente, é inerentemente repressivo, e contribui para a manutenção de uma forma de sociedade na qual a ciência é um dos recursos empregados para a dominação de uma classe por outra, e que as possibilidades da transformação radical em direção a uma sociedade mais racional são bloqueadas e ocultas (ibid, p. 2).

Tipicamente na geografia, como em outras disciplinas, a pesquisa empírica tem dependido das idéias teóricas como guia, e a sua dependência ainda se faz sentir nesta direção. Contudo, com o advento de novas idéias e técnicas na análise de dados espaciais exploratórios, a pesquisa empírica está sendo cada vez mais usada para guiar o desenvolvimento teórico para formar uma simbiose equilibrada (Fotheringham et al, 2005, p. 7)

Existem no mínimo duas limitações envolvendo a pesquisa empirico-quantitativa na geografia. Uma consiste na nossa limitada habilidade de pensar sobre como os processos espaciais operam e para produzir insights que levem a formas melhoradas dos modelos espaciais. A outra é o conjunto restrito de ferramentas que temos para testar e refinar tais modelos (ibid, p.13).

48 “Pela lógica da diversidade das representações, se a realidade é uma, seus conhecimentos são múltiplos, e nada garante a priori sua inter-coesão. Todo estudo de geografia, ao organizar o conhecimento pela valorização de certos pontos de vista e de certas lógicas, é portanto eminentemente subjetivo. Mesmo se cada pesquisador pudesse defender a lógica de seu modelo, ele não deveria esquecer a diversidade das visões do mundo, portanto de seus modelos potenciais...e reduzir a geografia a uma ideologia disciplinar dominante.” Bailly e Ferras (2001, p. 21). Tradução livre.49 Hill, M. R 1981. Positivism: a “hidden” philosophy in geography. In M. E Harvey; B. P. Holly (eds.). Themes in geographic thought. London: Croom Helm, 38-60.50 Feyerabend, P. 1975. Against method: outline of an anarchistic theory of knowledge. London: New Left Books. (p. 11)51 Keat, R. 1981. A política da teoria social. Oxford: Blackwell. Apud Bird (1993, p. 2)

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Martin (2005, p. 500) chama a atenção para a existência de dicotomias, por causa do significado dado à representação simbólica das palavras, e que tem sido prejudicial ao pensamento geográfico, destacando cinco casos:

1. Que a geografia deve ser abordada idiograficamente ou nomoteticamente, mas não as duas condições simultaneamente;2. Que a geografia física e humana são áreas diferentes de estudo, com diferentes estruturas conceituais;3. Que a geografia deve ser tópica ou regional;4. Que a geografia deve ser indutiva ou dedutiva; e,5. Que a geografia como um campo de estudo deve ser classificada ou como uma ciência ou como arte.

Ao final, o autor comenta que o fato da literatura geográfica estar colocada em todas estas categorias destrói a validade das dicotomias - daí seu caráter plural52.

O autor destaca que as alterações no pêndulo acadêmico podem ser observadas na interação entre as duas tradições básicas da geografia – matemática e literária. Seria errôneo equivaler o uso da matemática com um objetivo de estabelecer uma lei, e o uso da linguagem com um objetivo descritivo. Na realidade, a matemática em muitos casos proporciona um método descritivo notavelmente mais preciso. Estudos na forma literária podem propiciar excitantes abordagens inovadoras na formulação de conceitos (ibid, p. 527).

Por seu turno, Bird (1993, p. 2) parte do princípio de que a disciplina acadêmica da geografia tem um caráter sempre inacabado, e isto até mesmo se aplica à visão adotada de sua própria história – qualquer sistema proposto deve de alguma forma lidar com o fato da propensão inerente de ser trocado, modificado, ou mesmo refutado.

Em meados da década de 70, ganha força a corrente radical-crítica (neomarxista): trata-se de uma reação à suposta neutralidade científica da geografia, enfatizada pela geografia teoretico-quantitativa (...). Pretende deixar claro que existe uma íntima relação entre ideologia e geografia e que o espaço geográfico só poderá ser compreendido em suas estruturas e processos a partir do momento em que for considerado como um produto social, um produto do modo de produção dominante da sociedade (Amorim Filho, 1982, p. 14).

Outra corrente, segundo Amorim Filho et al (1987), é a Geografia da Percepção e do Comportamento Espacial ou Humanística (hoje humanista-cultural), que constitui uma outra forma de reação à Geografia Teorético-Quantitativa, e seu pressuposto fundamental é a afirmação segundo a qual as pessoas se comportam no mundo real não a partir de um conhecimento objetivo desse mundo, mas com base nas imagens subjetivas dele.

Com o desenvolvimento das várias correntes na geografia, o ecletismo parecia caracterizar a disciplina, que por outro lado parecia perder o seu centro de referência (...). E, com a chegada do pós-modernismo, uma teoria geral não era mais possível (...). Martin (2005, p. 424).

Johnston (1986, p. 307-8) comenta que:

“A Geografia Humana de certo modo tem sido sempre pluralística como disciplina, contendo mais de um discurso. Atualmente, sem dúvida, ela é pluralística. Nenhum discurso controla a organização institucional da disciplina – suas sociedades eruditas e seus corpos pedagógicos. E nenhum parece estar em condição de fazê-lo num futuro previsível.”

52 Comentário deste autor

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Alisdair Rogers53, citado por Amorim Filho (1997, p. 16), descreve o que seria uma geografia pós-moderna:

“A realidade é complexa, não há caminhos garantidos de representação ou de modelagem, nossas explicações são parciais e nossas interioridades se parecem mais com o criticismo literário ou à psicanálise... nossa fé na planificação racional e no progresso se debilitou... a ausência de cada uma das explicações e uma incapacidade para predizer e controlar a realidade poderia ser um resultado positivo se for concebido como que o dito controle é exercido principalmente pelos poderes centralizados e hierárquicos. A abertura, pluralidade e possibilidade são os lemas do pós-modernismo.Amorim Filho (1997, p. 16) também cita Monteiro (1988) na sua ênfase de que:

“... mais do que as novas técnicas e teorias espetaculares, os geógrafos deste ou do próximo século precisam de uma nova sensibilidade.” 54

Essa nova sensibilidade passa pela eliminação do negacionismo contido nas diversas correntes da geografia em relação às demais, numa postura de humildade ética ao reconhecer que a geografia são muitas, dependendo do contexto - nem por isso desprovida de validação científica ou de unidade filosófica, congruente com o zeitgeist 55 respectivo de cada época e lugar.

É inegável o quanto o positivismo fez avançar a geografia, em sua matriz teoretico-quantitativa, com vantagens e desvantagens. Se, por um lado, resultou na melhoria da sistematização do estudo das interações entre geografia física e comportamental, principalmente pela vertente da “análise espacial”; por outro, possibilitou a manipulação de dados ou recortes da realidade, no sentido de justificar ações onde o interesse de grupos minoritários (ou de ideologias espúrias) subjugasse o da maioria [ou de grupos antagônicos].

Mills (1980), através da imaginação sociológica, nos dá a dimensão de quão extensa é a capacidade criadora do ser humano operando na superfície terrestre – tanto nas ações como na tentativa de encaixá-las em algum recorte ou classificação racional [ou ideológica], encerrando uma complexidade no âmbito da geografia humana. O diálogo deve permear as diversas visões de mundo, permitindo uma melhor compreensão dos vários recortes vinculados à realidade complexa, na busca da convivência de um ideário geográfico plural.

Concluindo, os geógrafos devem continuar seu trabalho [científico], dialogando as diferenças, no sentido de criar, refletir, ou refazer a realidade, visando tornar nossa Oikoúmene 56

um lugar melhor e mais harmonioso para se viver.

53 ROGERS, A. Key themes and debates. In: ROGERS, A. et al (eds.) The student’s companion to geography. Oxford: Blackwell, 1993. 386 p. Ref. na p. 250. Tradução livre.54 MONTEIRO, C. A. F.. Travessia da crise: tendências atuais da geografia. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, no. 50, t. 2, p. 127-150, 198855 Segundo o Merriam Webster’s Collegiate Dictionary (10ª. Ed), zeitgeist é o contexto cultural, moral e intelectual geral de uma era.56 Do grego “mundo conhecido e habitado”,

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