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DUARTE, Lcia Castro Silva; RUMIN, Cassiano Ricardo. Prticas assistenciais e
Psicologia da Sade: enlaces e proposies tcnicas. Omnia Sade, v.5, supl., p.29-44,
2008.
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Lucia Castro Silva Duarte; Cassiano Ricardo Rumin. Prticas assistenciais e Psicologia da Sade: enlaces e proposies tcnicas.
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PRTICAS ASSISTENCIAIS E PSICOLOGIA DA SADE:
ENLACES E PROPOSIES TCNICAS
PRACTICAL ASSISTANCE AND HEALTH PSYCHOLOGY:
TECHNICAL LINKS AND PROPOSALS
Lcia Castro Silva Duarte Especialista em Psicologia da Sade (FAI)
Cassiano Ricardo Rumin Mestre em Cincias Mdicas (FMRP/USP)
RESUMO
Durante o desenvolvimento histrico da Psicologia sedimentou-se a perspectiva de que
a prtica profissional estava restrita a enquadres especficos. Contudo, diversos
condicionantes alavancaram as prticas dirigidas comunidade, preconizando a rua e o
domiclio como setting. Neste sentido o presente trabalho teve o objetivo de oferecer
acolhimento ao sofrimento psquico de famlias atendidas pela Associao Assistencial
do Po de Santo Antonio de Adamantina (SP). Como metodologia de interveno
utilizou-se as visitas domiciliares e empregou-se a psicoterapia breve como tcnica
teraputica. Os resultados indicaram que o acolhimento a conflitos familiares de grande
complexidade, a mobilizao para o enfrentamento de situaes de risco social e
intervenes ligadas a reabilitao, se apresentaram como situaes que se beneficiaram
da interveno em Psicologia. Apesar de no se estabelecerem como situaes
preponderantes de agravo sade mental foi possvel que a prtica interpretativa
resignificasse a condio de existncia. A anlise das complexas relaes de
sociabilidade que se ordenam na singularidade afetiva instrumentaliza o indivduo para
o engajamento s aes promotoras da cidadania.
Palavras-chaves: Psicologia Comunitria; Visita Domiciliar; Psicologia da Sade
ABSTRACT
During the historical development of psychology is cemented the view that the practice
was restricted to a specific framework. However, several constraints leveraged practices
directed at the community, advocating the street and the home like setting. In this sense
the present work aimed to offer shelter to the psychological distress of families served
by the Healthcare Association of the Bread of St. Anthony of Adamantina (SP). As
intervention methodology we used home visits and employed to brief psychotherapy as
a therapeutic technique. The results indicated that the host family conflict of great
complexity, the mobilization for coping with situations of social risk and interventions
related to rehabilitation, presented as situations that have benefited from intervention in
Psychology. Although not establish themselves as compelling situations of deteriorating
mental health was an interpretative practice that can reframe the existing condition. The
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analysis of complex social relationships that are ordered in the affective singularity
instrumentalizes the individual to engage in actions that promote citizenship.
Key words: Community Psychology; Home Visit; Health Psychology
INTRODUO
Durante o desenvolvimento histrico da Psicologia sedimentou-se a perspectiva de que a
prtica profissional s se desenvolve em cenrios e enquadramentos especficos, onde
restrito ao psiclogo a deteno do suposto saber da rea de sade mental. No entanto, os
seguintes fatores contriburam para a remodelao das prticas em Psicologia:
a) a urgncia de estabelecer aes polticas e de orientao comunitria como respostas s
crises ditatoriais e polticas das dcadas de 1970 a 1990 (SCARPARO e GUARESCHI,
2007);
b) a aprovao do Sistema nico de Sade na constituio Federal de 1988 que estendeu
a toda a populao brasileira os servios de sade;
c) as reorganizaes da rede bsica de sade com a viabilidade de projetos em prol da
sade da famlia (SOARES, 2005: GAMA e KODA, 2008);
d) a definio de polticas de Assistncia Social para conter a vulnerabilidade e o risco
social de camadas da populao (XIMENES, PAULA e BARROS, 2009).
Os condicionantes citados acima serviram de alavancas para a aproximao com as
comunidades, redirecionando alguns princpios da formao profissional visando suprir as
necessidades de sade da populao menos favorecida utilizando a rua e o domicilio
como settings (SOUSA e CURY, 2009).
Estabelece-se a fundamentao da ao profissional do Psiclogo na rea da higiene
mental que de acordo com Bleger (1996), consiste nas atividades e tcnicas que
promovem e mantm a sade mental. O autor acrescenta ainda que a prtica do psiclogo
no se atem s terapias da neuroses e psicoses e sim a preveno, tratando e intervindo
nos processos psicolgicos que ameaam a estrutura da personalidade e dificulta as
relaes humanas.
A atuao profissional ligada psico-higiene abrange uma perspectiva ampliada para
alm da doena e do doente, analisando a complexidade das relaes sociais que se
alinham no cotidiano dos indivduos e de suas comunidades (PIETROLUONGO e
REZENDE, 2007).
As redes assistenciais em grande nmero agem como continentes da queixa, ou seja,
oferecem um suporte emergencial condio crtica sem propiciar o desenvolvimento da
autonomia. J as prticas psicolgicas comunitrias visam diminuir a dependncia do
usurio em relao ao sistema de sade de maior complexidade, promovendo a ateno
primria (SPINK, 2003). Prioriza a preveno de doenas, potencializando melhores
condies de vida no aspecto biopsicossocial, resgatando a dignidade e a plena cidadania
do sujeito (OLIVEIRA et al, 2008).
Dessa forma, ao no atender ao carter assistencialista que historicamente caracteriza as
entidades que articulam projetos s necessidades comunitrias, as prticas psicolgicas
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proporcionam o surgimento de sujeitos engajados na integralizao do acesso aos
direitos civis e recursos determinantes de sade.
Os recursos utilizados na atuao comunitria so o conhecimento e as tcnicas
psicolgicas do enfoque clnico, de observao rigorosa, metdica, prolongada, intensiva
e profunda da dinmica familiar e das relaes de sociabilidade. De acordo com Andrade
e Simon, (2009), as modalidades de clnica, se reformuladas, alargaro o foco de
interveno transformando-as numa prtica clnica ampliada. Bleger (2003) afirma a
modalidade clnica como uma indagao operativa por meio de interpretaes, num
interjogo de papis com os indivduos e o terapeuta, numa observao participante.
A ateno Bsica e a contribuio da Psicologia da Sade
Ao longo do perodo de aplicao dos princpios do SUS, a ateno bsica de sade
realizada por profissionais de Psicologia foi direcionada para atender determinantes de
agravo sade da coletividade, procurando comprometer-se com os direitos sociais e a
prpria cidadania dos sujeitos. Tais aes so orientadas pela Psicologia Social da
Sade que, segundo Spink (2003):
tem como caractersticas principais atuao centrada em uma perspectiva coletiva e o comprometimento com os direitos sociais e com a cidadania. Rompe,
portanto, enfoques mais tradicionais centrados no indivduo. A atuao se d
principalmente nos servios de ateno primria sade, focaliza a preveno da
doena e a promoo da sade e incentiva os atores sociais envolvidos para a
gerao de propostas de transformao do ambiente em que vivem. Trata-se,
portanto de um processo de transformao crtica e democrtica que potencializa e
fortalece a qualidade de vida (SPINK, 2003 p. 132).
Segundo a Portaria N 648 GM/2006, aprovando a Poltica Nacional de Ateno Bsica
para o Programa Sade da Famlia (PSF) e o Programa Agentes Comunitrios de Sade
(PACS), (BRASIL, 2006) define Ateno Bsica como:
um conjunto de aes de sade, no mbito individual e coletivo, que abrangem a promoo e a proteo da sade, a preveno de agravos, o diagnstico, o
tratamento, a reabilitao e a manuteno da sade. desenvolvida por meio do
exerccio de prticas gerenciais e sanitrias democrticas e participativas, sob
forma de trabalho em equipe, dirigidas a populaes de territrios bem
delimitados, pelas quais assume a responsabilidade sanitria, considerando a
dinamicidade existente no territrio em que vivem essas populaes. Utiliza
tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que devem resolver os
problemas de sade de maior freqncia e relevncia em seu territrio. (...)
Orienta-se pelos princpios da universalidade, da acessibilidade e da coordenao
do cuidado, do vnculo e continuidade, da integralidade, da responsabilizao, da
humanizao, da equidade e da participao social (BRASIL, 2006 p. 2).
Com as mudanas nas polticas sociais e conseqentemente no sistema de sade a visita
domiciliar retomada como prtica dos profissionais que trabalham nas Estratgia da
Sade da Famlia atendendo a necessidade de integrao da equipe profissional, cliente e
sua famlia. De acordo com Duarte e Diogo (2000, apud LACERDA et al 2006 ) esta
mudana decorre do envelhecimento populacional e conseqente aumento das doenas
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crnico-no transmissveis; do encarecimento dos custos do sistema hospitalar aliando-se
ao avano tecnolgico possibilitando maior taxa de sobrevida das pessoas; da crescente
conscientizao da populao pelos direitos sade; da procura por novos campos de
atuao por parte dos profissionais de sade e da reorganizao da poltica nacional de
ateno bsica.
Acrescenta ainda Santos e Kirschbaum (2008), que as visitas domiciliares so um
instrumento facilitador da compreenso da dinmica familiar e suas interferncias no
processo de restabelecimento da sade. uma prtica de atendimento investigativo
dirigida ao indivduo em seu meio social e familiar. Segundo Lacerda et al (2006), no
Brasil, tais aes profissionais recebem denominaes variadas como; home health care, domiciliary care, atendimento domiciliar sade, ateno domiciliar, visita domiciliria, cuidado domiciliar, cuidados de sade no domiclio entre outros.
No Brasil as visitas domiciliares tiveram inicio com as atividades de enfermagem na
dcada de 1920 por meio de assistncia preventiva s famlias, com o intuito de
modificar a realidade epidemiolgica da poca. Essa forma de atuao perdurou at a
dcada de 1940 sendo esquecida no perodo da ditadura militar, ressurgindo entre as
dcadas de 1970 a 1990, com a reforma sanitria, buscando garantir uma assistncia
universal, integral e equnime a toda populao brasileira (SANTOS, e
KIRSCHBAUM, 2008).
Com a reformulao do programa de ateno a sade, criou-se a exigncia de equipes
multidisciplinares compostas por diversos profissionais da sade entre eles: um mdico,
um enfermeiro, um dentista, um psiclogo e um fisioterapeuta que juntos participam da
promoo da sade da populao menos favorecida em suas residncias e comunidades.
A visita domiciliar e a ao em Psicologia
A atuao dos profissionais da sade que utilizam a visita domiciliar alcana a relao
doente/famlia que se materializa em um sentido metafrico. Pode-se perceber a
funcionalidade do sintoma em seu significado mais abrangente, que expressa formas de
lidar com a doena no intuito de minimizar o sofrimento (PUSCHEL, IDE e CHAVES,
2006).
Esse meio de atuao atingido pelo olhar facilitador do acolhimento que transfere o
foco da doena para o doente. O acolher o estar com, o estar perto, o compreender
a desestruturao em que o sujeito se encontra favorecendo a abertura de um canal
propiciador para o emergir das mais intimas necessidades e desejos que, cristalizados no
decorrer dos anos, vem a tona pela efetivao da vinculao teraputica conseguida
atravs desse espao acolhedor (BRASIL, 2006).
O discurso do paciente, mesmo que em ordem desconexa, constri algum sentido e
enuncia algo de sua vivncia transmitindo formas de agir no dia a dia. Ao se formar um
entendimento mais preciso em relao a demanda afetiva exposta, esta reordenada e
apresentada numa sentena interpretativa. O se ver frente a uma nova tica de seu
sofrimento possibilita a mudana do olhar que produz a compreenso das expresses
manifestas no vivenciar de seu sofrimento.
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Na interpretao, o profissional por meio de uma escuta divergente, (HERRMANN,
2001), isto , uma escuta que se realiza de um outro campo emocional, atenta a alguma
representao angustiante que possa passar desapercebidamente pela fala do paciente,
lhe possibilita a compreenso do significado que este est a transmitir.
De acordo com Bleger (2003), o material colhido na visita, os desejos emergentes e as
pistas de situaes vivenciadas pelo paciente, so utilizadas pelo profissional para a
compreenso da situao problema em benefcio da interveno teraputica realizando-
se assim a interpretao de seus sentimentos em formas concretas de se relacionar no
seu existir. Acontece a ruptura de campo aps o interpretar do que se perspicazmente
entendido na sesso. Quando o que foi simbolicamente apresentado, mesmo que no
totalmente consciente para quem apresentou decifrado, h uma expectativa sobre o
que se passa, pois a ordenao de sua fala pelo terapeuta, foi significante ao seu
sofrimento e a ento, espera-se pela formao de uma nova representao sobre o que
foi vivenciado, pois a situao conflitante anterior fora desativada pela ruptura de
campo.
Herrmann (2001) ressalta que as representaes retidas explodem no paciente e sucede
o libertar do aprisionamento em que se mantinha mesmo com pesar. Deste modo, as
idias j comeam a tomar um caminho, quando j se consegue ver a delimitao do que
era e do que se formou e ainda, das formas que podem vir a ter, ou seja, ao sair da
expectativa de transito rompe-se o campo em que se encontrava mergulhado.
Knobel (1984) vem nos clarear afirmando que a interpretao a nvel verbal de
fundamental importncia para o sucesso do processo psicoterpico, pois ao ser
devolvida ao paciente, possibilita a internalizao e a resignificao, ou seja, a
elaborao dos sentimentos experimentados oferecendo-lhe meios para reconhecer
situaes de risco futuros que possam causar-lhe sofrimento. As emoes revividas
afloram e se misturam. Atravs de sentenas interpretativas, ou do encadeamento que
feito sobre a dinmica do padecer, do adoecimento, das pistas captadas com preciso e
oportunamente apresentadas de forma compreensvel confere sentido no vivenciar de
seu sofrimento.
O experienciar desse espao de trnsito nos sentimentos ainda no completamente
uniformes a vagar entre dois campos delimitados pela interpretao, de acordo com
Herrmann (2001) a experincia da expectativa de trnsito, ou seja, o estado transitrio
entre aquilo que representava ao indivduo e ao que foi configurado pela interpretao,
para ento possivelmente se consolidar em nova representao da experincia subjetiva.
At que o indivduo possa se identificar com esse novo campo oferecido pela prtica
interpretativa, se mantm em expectativa de trnsito, transitando entre seu campo
rompido e o novo campo apresentado (RUMIN e MUNHOZ, 2008).
Nesse espao reflexivo atemporal se d ento a compreenso, a internalizaao do
determinante que lhe causa dor, ocorre o insight, viabilizando a produo de condies
para o enfrentamento do futuro caminhar de sua vida. O ato de analisar as idias que
para o paciente so significativas e que nos foi transmitida, ativa o desbloquear de um
campo, conduzindo a um questionamento reflexivo, pela ao da expectativa de transito
atualizando-se emocionalmente na situao conflituosa vivenciada com menor carga
afetiva. H ento uma abertura de relaes novas, que Hermann (2001), denomina como
vrtice, onde o paciente rememora, revive acontecimentos que lhe foram penosos com
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outro olhar, com um peso emocional diferente do vivenciado quando na situao
original, produzindo-se dessa forma uma nova dimenso para o seu existir.
Metodologia
O trabalho foi realizado por meio de visitas domiciliares s residncias das famlias
assistidas pela Associao Assistencial do Po de Santo Antonio de Adamantina (SP) a
partir do ms de agosto de 2010. Desenvolveu-se num enfoque qualitativo, tendo como
base terica a Psicologia Social da Sade com atendimentos que utilizavam o domicilio
como setting.
A tcnica de atendimento foi fundamentada na psicoterapia breve de orientao
psicanaltica de curta durao. A proposio de ofertar um dispositivo em sade mental
que visava a diminuio da dependncia das famlias em relao aos sistemas
assistenciais considerava a desconstruo de estabilidades conhecidas e reconhecidas, para que se produza o desvendamento daquilo que, enquanto inconsciente,
determinante e no est sob controle da conscincia (GUIRADO, 1991 p. 25).
A escolha da psicoterapia breve como tcnica se deve ao fato de entender que o foco do
dispositivo teraputico deve ser estruturado, pois se origina de uma situao-problema,
de uma ao descompensadora que faz aflorar conflitos que barram o desenvolvimento
do individuo. Conforme elucida Braier (2000), essa forma de atuao psicodinmica,
por ser ativa e funcionar dentro de uma abordagem flexvel torna possvel a produo de
um princpio de insight.
As visitas para triagem se realizaram de agosto a novembro de 2010, envolvendo 28
famlias designadas pela Associao Assistencial do Po de Santo Antonio de
Adamantina, (SP). A triagem das demandas expostas pelos indivduos e familiares
pautaram-se no reconhecimento da alteridade e no dilogo, como indica Campos
(2006), atua na busca de reordenaes para uma mudana da realidade vivida a partir de
uma tica da solidariedade em prol da melhoria da qualidade de vida da populao
focalizada.
Num segundo momento realizou-se visitas domiciliares quelas famlias em que se
distinguiu demandas em sade mental como campo para a interveno em Psicologia. A
proposio do acolhimento como recurso teraputico possibilitou a compreenso dos
vnculos organizados pela famlia para o enfrentamento de suas necessidades
(PUSCHEL, IDE e CHAVES, 2006).
O acolhimento, conforme destaca Frana (2006), propicia a delimitao do desejo do
individuo, permitindo o seu constituir como sujeito ao se deparar com a aceitao sem
reservas do terapeuta. O interessar-se pelo outro com olhar sem julgamento numa
demonstrao de estar ao lado de, um olhar que transfere o foco da doena para o
doente leva-o a compreender-se como enfatiza Hermann (1999), como ser de direito e
merecedor de confiana pela abertura facilitadora do terapeuta ao desejo de tais
representaes se manifestarem, possibilitando o minimizar de seu sofrimento.
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OBJETIVO
O objetivo deste trabalho oferecer acolhimento ao sofrimento psquico de famlias
atendidas pela Associao Assistencial do Po de Santo Antonio de Adamantina, (SP).
Esta prtica constitui-se como um campo de atuao para o profissional psiclogo na
rea da ateno primria em sade s famlias na comunidade, privilegiando a
preveno e a promoo da sade coletiva.
RESULTADOS E DISCUSSO
A Associao Assistencial do Po de Santo Antonio de Adamantina, SP, uma
associao filantrpica fundada em 1 de julho de 1980, sem fins lucrativos e tem como
objetivo proporcionar as famlias assistidas melhores condies de vida no aspecto
social e econmico. A entidade cadastrada no programa da Companhia Nacional de
Abastecimento (CONAB) da qual recebe colaborao para composio das cestas
bsicas de alimentos.
Atende cerca de 80 famlias mensalmente que so cadastradas aps avaliao do perfil
scioeconmico. Recebem uma cesta bsica de acordo com o numero de pessoas e suas
necessidades, sendo encaminhadas para rgos pblicos quando necessrio para
atendimento na rea jurdica, hospitalar e de assistncia social. Para ter acesso ao
auxilio da entidade, as famlias que se encontram em vulnerabilidade se apresentam na
secretaria da igreja fazendo o pedido ou so indicadas por outros, geralmente por algum
vizinho ou voluntrio da entidade.
Dessa forma os atendimentos dirigiram-se no somente aos indivduos com agravos
mentais, mas tambm os conflitos familiares, as reabilitaes e situaes aqum da
perspectiva restrita do sofrimento psquico, que se beneficiariam com a ateno
psicolgica. Fez-se um planejamento para a abordagem das famlias a serem visitadas,
dividindo-as em grupos por proximidade de localizao, objetivando a reduo de
custos em locomoo e para melhor aproveitamento do tempo de deslocamento.
Na primeira visita realizou-se uma triagem das demandas expostas pelos indivduos e
familiares com registros das observaes de campo. Nestas ocasies nos dispusemos
para eventuais necessidades de preveno e promoo da sade mental deixando clara a
posio da interveno em parceria com o Po de Santo Antonio. Enfatizou-se o servio
profissional apto para as possveis intervenes psicolgicas que se fizessem
necessrias.
Das 28 famlias triadas, duas no foram encontradas por erro no endereo, outras duas
estavam viajando e em trs famlias os responsveis estavam em horrio de servio
incompatvel com o das visitantes domiciliares. Das famlias restantes, sete afirmaram
no precisar de acolhimento psicolgico e duas deixaram de receber o auxilio por
falecimento do beneficirio, (um convalescendo de cirurgia do intestino com suspeita
clnica de cncer e outro em recuperao de cirurgia do estmago com complicaes
renais), e ainda outra, que se mudou para a rea rural do municpio.
Em seguida, aps uma avaliao psicodinmica averiguou-se as condies de
enfrentamento do paciente, familiares e cuidador, frente situao de doena ou de
conflito vivenciado e potencialidades para o enfrentamento das respectivas situaes.
Neste ponto, efetivou-se um prognostico com encaminhamento aos servios jurdicos
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de assistncia social ou a interveno em Psicologia tomando como parmetro a
estruturao da autonomia a partir dos conflitos que os pacientes vivenciam quando
submetidos a novas perspectivas de relao com seu corpo e com os espaos de
sociabilidade (LAHAM, 2004).
A institucionalizao do agravo sade mental no espao domiciliar
Trata-se de uma famlia composta por 5 irmos adultos. Uma portadora de sndrome
de Down, outro vive recluso ao quarto dos fundos nos intervalos das internaes
psiquitricas, um terceiro considerado deficiente mental com agravos a sade
decorrente do alcoolismo, uma irm, ex-interna de uma clnica psiquitrica que
responde pelos trabalhos domsticos, apresenta fala ininterrupta e agressividade na
recepo impedindo qualquer tipo de abertura para o espao externo e J., o que nos
atendeu mesmo contra a vontade da irm. Apresenta desorganizao mental, fala que as
verduras e frutas que cultivam so envenenadas pela vizinhana e pelas crianas do
bairro, que os estigmatizam com pedradas e risos. Tem dificuldade na fala e se nega a
circular pelo espao social, olhando-o apenas, pelo porto entreaberto por onde nos
recebeu. Em uma das visitas deixa que se entenda que a irm representa um fator
limitante para sua circulao, mas enfatiza a proteo oferecida por ela.
Convivem em uma dinmica simbitica, se mantendo dentro dos limites da residncia
no admitindo a entrada de ningum. Quando tem alimento, comem sem parar, ficando
sem o que comer at que seja providenciado o suprimento de suas necessidades por uma
cunhada que os supervisiona.
Esta famlia vive um processo de institucionalizao dentro dos limites da prpria
residncia. A restrio da circulao social refora a dependncia em relao figura da
irm. No se questiona a importncia desta integrante da famlia na continncia da
persecutoriedade dos seus irmos. Entretanto enfatiza-se o risco da perda desta figura
continente; caso ela falea ou adoea a famlia vivenciaria o desterramento de suas
ordenaes cotidianas. plausvel a configurao desta situao como uma ruptura catastrfica com seus conseqentes efeitos psicotizantes. Castelo Filho (2004, p 208) destaca que, catstrofe implica uma completa reverso de perspectiva. Pode ser vivida como potencialmente diruptiva e destrutiva.
Na tentativa de fomentar outro membro da famlia como possvel cuidador, buscou-se
conter o efeito diruptivo e destrutivo de uma possvel ausncia da irm cuidadora. Tal
perspectiva era encarada pela mesma como um questionamento de suas aes de
cuidados famlia. O cliente afirmava que qualquer movimento em direo a
constituio de autonomia era vivenciado na famlia como uma traio. A proposio de
desenvolver vnculos societrios que lanassem o individuo na participao social
plena, era atacada no espao psquico familiar.
A ciso dos afetos apresentava-se na estruturao discursiva pela ameaa representada
pelos elementos externos a famlia (vizinhos, transeuntes, profissionais da sade). Esta
ameaa era materializada na nfase dada a irm cuidadora de que as frutas que haviam
no quintal da residncia no podiam ser consumidas, pois os vizinhos teriam
envenenado-as para mata-los. Neste exemplo, encontra-se a expresso do temor
associados aos componentes da comunidade e visualiza-se a explorao da
persecutoriedade como elemento de controle dos irmos. At mesmo cuidados em sade
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no podem ser buscados em virtude da ameaa presente na confluncia de vnculos com
a comunidade.
Percebeu-se o sentimento de apropriao da irm cuidadora para com todos,
fomentando a excluso social da famlia e a submisso dos que com ela convive.
Ressalta-se a constrio dos afetos que permeia todo o relacionamento familiar e a
interveno psicolgica se fez presente para intermediar o sofrimento do calado, pois
segundo Mller (2005b, citado por MLLER, BEIRAS e CRUZ, 2007), a mediao de
conflitos vem a ser uma estratgia utilizada para que sobressaia o desejo de ambas as
partes, por isso, o acordo mediado traz uma soluo mutuamente aceitvel e ser estruturado de forma a preservar as relaes dos envolvidos no conflito (MLLER, 2005b).
A tcnica de mediao empregada nesta interveno possibilita a preservao de alguma
parcela do espao social sem a impregnao de elementos persecutrios. Os
profissionais em psicologia podem representar um elemento intrusivo ao mobilizarem
alguma reordenao dos afetos entre os familiares. No caso em questo, o desejo de
apropriar-se dos espaos comunitrios (at mesmo dos servios oferecidos pelo Centro
de Ateno Psicossocial) esbarrava frontalmente nas fantasias da irm cuidadora. Por
isso constituiu-se o reconhecimento da realidade externa, ou seja, a sobrecarga que recai
sobre a irm cuidadora e tambm as situaes de impotncia quando a mesma no
conseguia suprir as necessidades da famlia, por considerar o espao de sociabilidade
como um elemento persecutrio. Aps esse procedimento articulou-se a possibilidade
do cliente auxilia-la no cotidiano familiar, especialmente, nas funes tomadas como
aterrorizantes para ela. Entre estas situaes encontrava-se a busca por medicamentos
nos servios de sade e at mesmo alimentos.
A funo mediadora estabelecida pelos profissionais de psicologia destacava o
reconhecimento da realidade externa sem que houvesse um embate entre direitos e
posies no aparato da famlia. Conforme destaca Segal (1998 p. 48) o reconhecimento da realidade externa (...) inextrincavelmente ligado ao reconhecimento da realidade
interna dos prprios desejos e fantasias. Esse reconhecimento requer a capacidade de tolerar lapsos de satisfao e consequentemente, a prpria ambivalncia em relao ao
objeto desejado.
O reconhecimento da ambivalncia um fundamento que propicia o investimento de
afetos no espao social. Se por um lado as relaes de sociabilidade podem ser hostis e
frustradoras, podem tambm propiciar satisfao aos desejos e continncia a momentos
crticos (como no caso dos servios de sade). Enfatiza-se que a mediao desdobra
sentidos para alm da resoluo de um conflito
ela pode mudar a organizao das fantasias primitivas, que distorcem a percepo, levando a atos compulsivos, para uma organizao que permita um
aumento da capacidade de testar a realidade. Esta mudana se reflete ento, na
natureza e na funo das fantasias, refletindo basicamente a mudana da
organizao esquizo-paranide para a posio esquizo-depressiva (SEGAL, 1998, p.489).
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Representao sobre o casamento e a doena: o foco na dialogicidade
Sr. L, 70 anos, aposentado por invalidez e acamado devido a 4 AVC. A esposa
posiciona-se como cuidadora e queixou-se da agressividade com que tratada e do
fluxo de ateno exigida pelo marido, deixando-a sem tempo para cuidados com a
prpria higiene e sade. Relata vivncias relacionadas a traies do marido e diz sofrer
diversas dores. Afirma que gostaria de poder ouvir uma msica de sua escolha ou fazer
algo com tempo para si a fim de se distrair um pouco, mas a sobrecarga como cuidadora
a ocupa 24 horas por dia. Destaca que se tentasse se afastar um pouco do doente
rapidamente era chamada para qualquer emergncia, que segundo ela no se fazia
necessria.
Percebeu-se como foco da queixa, o conflito existente pela incompreenso do outro
como ser de desejo e de direitos. A esposa informa-nos de que o esposo fuma
intensamente e queixa-se de qualquer barulho. Tem o rdio perto da cama somente para
saber as horas. Apresenta dificuldade na fala e consegue se fazer entender com um
pouco de esforo. Evitou a proximidade, mas possibilitou abertura para a estruturao
de um vnculo.
A escuta das situaes de sofrimento articuladas ao corpo parcialmente paralisado pelos
acidentes vasculares mobilizou a agressividade decorrente da limitada autonomia e da
conseqente ruptura da funo de provedor. Discutiu-se as projees de suas limitaes
nas relaes familiares com o estabelecimento de paralelos entre o ouvir musicas da
esposa e a utilizao do rdio apenas para saber as horas.
Esta ao interpretativa buscava desestabilizar o encontro no-dilogo, caracterizado
pela falta de reconhecimento e a dominao que isto acarreta a perspectiva expressa no conhecimento do outro negada e o reconhecimento permanece preso ao poder de
um sistema de saber sobre o outro (JOVCHELOVITCH, 2008 P. 241).
O conjunto de projees no-dialgicas compreendia tambm a exacerbao de queixas
apresentadas como emergentes e que determinariam a participao solcita e constante
de sua esposa no territrio de um objeto a servio das necessidades de seu cnjuge.
Constitui-se um paralelo entre os desejos do paciente aprisionados no corpo doente e os
desejos da esposa amarrados s suas imposies. A metfora da castrao (PENGA E
RUMIN, 2008), envolveria a dinmica familiar e potencializaria a agressividade como
modelo de reproduo do vnculo familiar.
A agressividade fomentada pela cognio monolgica, expe os interlocutores do
vnculo familiar a um contexto intersubjetivo em que assimetrias no status e na valorao de sistemas de saber se tornam preponderantes e impedem a incluso de
perspectivas. O objetivo impor sobre o outro a perspectiva do Eu (JOVCHELOVITCH, 2008 p. 242).
A compreenso do outro como dignatrio de sentimentos e de direitos foi empregada no
campo discursivo criado pela visita familiar com o cuidado de no enfatizar a violncia
oriunda da cognio monolgica. O sentimento de culpa decorrente da violncia
simblica foi apenas abarcado como impulsionador da efetivao de atos reparatrios. A
orientao ao estabelecimento de insight mantinha os sentimentos de culpa no espao
intrapsquico impulsionando a polifasia cognitiva como ato reparador.
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A polifasia cognitiva refere-se, pois, a um estado em que diferentes tipos de saber, possuindo diferentes racionalidades, vivem lado a lado no mesmo indivduo ou
coletivo (JOVCHELOVITCH, 2008 p.125).
A orientao da prtica psicolgica de analisar as representaes na dinmica familiar
proporcionou a ruptura da ordem patgena presente na cognio monolgica e orientou
a efetivao da polifasia cognitiva. Incentivou-se a possibilidade de se fazer escolhas, a
compreenso do outro como ser de diferenas e com direito de exercer sua cidadania
mesmo em situao de vulnerabilidades fsicas, econmicas ou sociais.
A constituio da autonomia frente a um estado melanclico
A expresso da relao de cuidados com os filhos constitui um quadro de perdas e
ruptura de vnculos que compe a melancolia desta cliente. No momento da primeira
perda estava separada h seis meses. Ficou com a guarda de duas crianas com idade de
18 meses e 36 meses, respectivamente. Outros dois filhos que se aproximam da
adolescncia, passaram a morar com o pai aps a separao. Alegava que estes ltimos
eram explorados pelo pai nos trabalhos domsticos e no trfico de drogas. Alm do
distanciamento e preocupaes com os filhos, relata que dois outros filhos haviam
falecidos. O primeiro, no segundo ano de vida, havia se afogado em uma piscina que
havia num antigo local de trabalho. O segundo a falecer estava com nove meses e
passou a apresentar uma febre elevada com origem no identificada pelos servios
mdicos. Afirma que a morte deste filho ocorreu por negligencia mdica e que desde
ento apresenta um estado depressivo que a impede de cuidar adequadamente dos
filhos.
De acordo com Kvacs (2002, p.154) a morte como perda supe um sentimento, uma pessoa e um tempo. a morte que envolve, basicamente, a relao entre pessoas. Se
ocorre de maneira brusca e inesperada tem uma potencialidade de desorganizao,
paralisao e impotncia.
A vivncia macia de impotncia frente ao falecimento destes dois filhos ampliada
com a separao do marido. Esta perda impulsionou a tentativa de suicdio por trs
vezes, ingerindo grande quantidade de medicamentos. Kvacs (2002) ressalta a ligao
entre o suicdio e a melancolia, ao destacar o direcionamento da agressividade
despertada pela perda do objeto contra si prprio. Haveria a ligao da libido
anteriormente investida no objeto de amor com o prprio ego, num processo regressivo
com caractersticas da fase oral narcsica.
O posicionamento subjetivo que demanda a condio de ser suprida dificulta a
organizao do contrato narcsico desta famlia. Este tipo de organizao dos vnculos
intersubjetivos garantem o investimento narcsico vital a cada membro da famlia e
transmite a criana seu lugar de participao num grupo (KAES, 2005). A condio
exposta neste caso vai alm do sofrimento psquico materno, pois, a desestabilizao do
contrato narcsico expe os filhos vulnerabilidade e risco social. Por isso a interveno
em Psicologia estaria acolhendo o sofrimento da me e promovendo a proteo das
crianas.
A interpretao das perspectivas desejantes que envolveriam seu retraimento narcsico
foi realizado com o intuito de constituir o reconhecimento de seus anseios. Esta ao
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despertou a historizaao do abandono em sua famlia, ao relatar que tambm havia
sofrido com o prejuzo ao contrato narcsico em sua infncia. O momento crtico que se
constituiu envolvia os pontos de identificao com sua referencia materna. Esta
identificao vivificava a posio desptica da me que abandona, que priva de afetos
seus filhos e que se orienta as gratificaes narcsicas singulares em detrimento do
contrato narcsico da famlia. Aproximar-se destas representaes numa prtica
psicoterpica guardava o risco de elevar ainda mais o ataque destrutivo contra o prprio
ego.
Dimensionada tal situao crtica, orientou-se para a construo de um campo
discursivo onde as sentenas interpretativas buscavam integrar aspectos idealizados que
encontravam-se cindidos no ego melanclico. Seguia-se a formao de compromissos
que em espaos futuros, seu histrico de trabalho, sua formao profissionalizante e as
estruturas de proteo social que a auxiliavam podiam potencializar uma outra
condio. Conforme destaca Sawaia (2004 p. 114), potencializar pressupe o desenvolvimento de valores ticos na forma de sentimentos, desejos e necessidades. O
valor tico abordado na proposio psicoterpica de proteo desta famlia seria a
alteridade. Esta concepo se apia nas contribuies de Santa Clara (2007, p. 148) que
afirma: o melanclico no sai de si, no se reconhece e, assim, no reconhece a alteridade do outro. Vive como escravo da busca de seu ideal.
CONSIDERAES FINAIS
As visitas domiciliares permitem a observao da ambivalncia referente aos programas
assistencialistas apontadas por Guareschi (2006). O autor destaca que alm da doao
de produtos concretos, os laos afetivos propiciados pelo assistencialismo no
viabilizam a emergncia do sujeito como ator social.
Da decorre a importncia de se utilizar o pressuposto tcnico da psicoterapia breve, de
conduzir o indivduo organizao de insights sobre sua vida e cotidiano. Assim,
define-se a potencialidade do indivduo observar-se nas relaes interpsquicas e
escolher os trajetos de sua individuao.
A interpretao, no pressuposto de dimensionar os aparatos qualificantes do cotidiano,
pode interromper a lgica alienante da serialidade. Ao romp-la, lana-se fundamentos
para a materializao de um corpo que deseja. Entre uma e outra visita domiciliar a
expectativa de trnsito, conforme proposto por Hermann (2001a) faz com que o
indivduo mobilize sua representao discursiva para explicitar as vivncias
ambientadas pelo contato com a ateno em Psicologia.
Os usos do corpo e das vinculaes perdem a representao unsona e revestem-se de
pluralidades. O trabalho analtico de demover campos cristalizados e estagnados recria
condies de escolha para o posicionamento em prticas fomentadoras da cidadania.
Conclui-se afirmando que as visitas domiciliares estruturam-se como instrumento
promotor de sade mental ao focalizar-se em dispositivos dialgicos orientados ao
reconhecimento da singularidade dos indivduos.
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