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CAPÍTULO II A dinâmica do culto dos Senhor Jesus na orla costeira O conhecimento das comunidades, ou apenas de alguns dos seus factos, torna pertinente a compreensão de factores que contribuíram para as construções sociais geradoras de uma identidade colectiva específica. Esta avaliação é complexa, uma vez que sugere a análise e articulação de vários domínios como: a geografia, a demografia, a economia, a história, a arte, entre outros. A sua interacção reflecte o processo cultural contribuindo para a constituição da identidade cultural de um povo. Neste sentido, o principal objectivo deste capítulo é o de demonstrar a interacção do contexto sócio-geográfico e histórico no culto do Senhor Jesus dos Milagres. Apresentamos também a comparação dos Senhor Jesus da costa atlântica, especificamente a norte da península de Setúbal. Entre eles existem vários elementos comuns – lendas, cultos, calendarização – que merecem a nossa atenção. A devoção a Jesus Cristo crucificado teve um incremento notório no século XVIII que se reflectiu na construção de santuários destinados a manifestações religiosas de diversa natureza (missas, pregações, procissões, cortejos de oferendas, cumprimento de promessas, etc.). O Senhor Jesus dos Milagres de Leiria não deve ser estudado como um fenómeno sócio-religioso único pois, integra-se nesta rota de centros devocionais a Jesus Cristo. 1. Contexto sócio-geográfico 20

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CAPÍTULO II

A dinâmica do culto dos Senhor Jesus na orla costeira

O conhecimento das comunidades, ou apenas de alguns dos seus factos, torna pertinente a compreensão de factores que contribuíram para as construções sociais geradoras de uma identidade colectiva específica. Esta avaliação é complexa, uma vez que sugere a análise e articulação de vários domínios como: a geografia, a demografia, a economia, a história, a arte, entre outros. A sua interacção reflecte o processo cultural contribuindo para a constituição da identidade cultural de um povo. Neste sentido, o principal objectivo deste capítulo é o de demonstrar a interacção do contexto sócio-geográfico e histórico no culto do Senhor Jesus dos Milagres.

Apresentamos também a comparação dos Senhor Jesus da costa atlântica, especificamente a norte da península de Setúbal. Entre eles existem vários elementos comuns – lendas, cultos, calendarização – que merecem a nossa atenção. A devoção a Jesus Cristo crucificado teve um incremento notório no século XVIII que se reflectiu na construção de santuários destinados a manifestações religiosas de diversa natureza (missas, pregações, procissões, cortejos de oferendas, cumprimento de promessas, etc.). O Senhor Jesus dos Milagres de Leiria não deve ser estudado como um fenómeno sócio-religioso único pois, integra-se nesta rota de centros devocionais a Jesus Cristo.

1. Contexto sócio-geográfico

Apesar de Portugal possuir uma área geográfica consideravelmente pequena (92 000 km2), as realidades sociológicas são relativamente diferentes.

É bem sabido que os rios unem os aglomerados habitacionais, enquanto que as serras têm tendência para separar as sociabilidades conferindo-lhes redes sociais próprias. Por seu turno, o povoamento concentrado promove interacções sociais diferentes relativamente ao povoamento disperso. E deve-se ter também em linha de conta, que a posse de terra, predominante a norte do Tejo, influencia de forma crucial o modo de ser, pensar e de agir de uma comunidade, conferindo-lhe características sociais distintas das comunidades localizadas a sul do Tejo onde não se verifica a posse da terra pela maioria do corpo social. De acordo com José Cutileiro, “ (...) permanece de pé o facto de que a acentuada diferença de riqueza, os interesses antagónicos dos lavradores prósperos e dos trabalhadores pobres e o rol das dificuldades por estes experimentadas ao longo dos últimos cem anos, abundantemente ilustradas pelas descrições das crises de desemprego, criaram na mente dos trabalhadores a convicção firme de que vivem numa sociedade injusta, assim como um profundo, ainda que raramente evidenciado, ódio aos latifundiários: o grupo «amortecedor» dos pequenos proprietários não basta para

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explicar os motivos por que este ódio não encontrou formas de expressão mais abertas e organizadas.”43 .

Mas a diversidade própria da cultura portuguesa não se analisa apenas em termos de divisão norte/ sul do Tejo. Também é possível depararmo-nos com dinâmicas culturais específicas no binómio interior/ litoral.

Podemos então afirmar que os condicionalismos geográficos44 do interior português actuam de forma específica sobre actividade humana. Assim sendo, o relevo montanhoso, retalhado por planaltos, mais ou menos extensos, e por vales mais ou menos dissecados com fundos alargados e planos, demarca-se nitidamente da faixa de planície junto ao litoral, proporcionando uma identidade cultural própria.

O clima, reflexo da disposição das massas de relevo, subjugado pelas condições gerais da circulação atmosférica e pelo jogo das massas de ar nestas latitudes, alterna tempo quente e seco, no Verão, com chuva e baixas temperaturas no Inverno. As estações Primavera e Outono abarcam uma grande panóplia de situações climatéricas intermédias. O facto de a passagem de depressões ser mais frequente a Norte e de aí o relevo ser mais acidentado leva a que se registem maiores níveis de precipitação. A influência marítima, na orla costeira, atenua a amplitude térmica, não se registando, por isso, temperaturas demasiadamente altas ou baixas nas quatro estações do ano.

Os condicionalismos geográficos acima apresentados (ainda que de uma forma breve, pois não é esse o objectivo do nosso trabalho) influenciam e suportam, entre outros (a título de exemplo a fauna, flora, valorização do solo, traçado das vias de comunicação), o meio onde se desenvolve a actividade humana impregnada de valores, comportamentos e atitudes de cariz social, económico e cultural.

Na orla costeira, a planície permite a existência de povoamento disperso. Esta é a área territorial do país com a maior densidade populacional. A foz dos rios e a influência marítima propiciam diferentes práticas agrícolas. E, enquanto que no interior a agricultura se concilia fundamentalmente com a pastorícia e floresta, no litoral, concilia-se primordialmente com a pesca. A maioria da indústria existente no país encontra-se aqui sedeada.

Referenciadas as comunidades – como realidades culturais, institucionais e organizacionais condicionadas pelas características geográficas ao nível das actividades humanas – convém ressalvar que nas mesmas, independentemente da densidade populacional, predomina a identidade cultural da comunidade rural.

A vivência comunitária reflecte a rede de relações humanas, condicionando a actuação, comportamentos, interacções diversas, valores e educação do indivíduo. Nesta ordem de

43 José Cutileiro, Ricos e Pobres no Alentejo, Lisboa, Livros Horizonte, 2004, pág. 25844 A propósito da noção Condicionalismos Geográficos como condicionadores de cultura, Raquel Soeiro de Brito defende: “Muito se tem falado e discutido sobre a influência das condições geográficas na evolução dos territórios; defendeu-se mesmo um «determinismo geográfico», que Pierre Gourou «mudou», a meio do século, para «possibilismo geográfico»: o meio influencia o homem, para logo de seguida ser por ele influenciado e transformado, na medida das suas técnicas e filosofia. Entre os vários condicionalismos geográficos que afectam uma região, a posição assume um papel de primordial importância.” Raquel Soeiro de Brito, Introdução Geográfica, in José Mattoso, História de Portugal – Antes de Portugal, Volume 1, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, pág. 19

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ideias, a mentalidade rural é dominante, uma vez que o modo de pensar e agir individual está condicionado pelo conjunto dos valores, atitudes e crenças.

Se atendermos ainda ao facto de este tipo de comunidades ter tendência para resistir à mudança, vive-se com relativa satisfação e com resignação fatalista e uma vez que as instituições e organização social são também resistentes, facilmente compreendemos a dinâmica dos fenómenos religiosos tradicionais.

Quando se encontra perante fenómenos sociais ou naturais que não consegue explicar, o Homem cria ou recria mitos ou rituais de forma a atingir um certo equilíbrio e tranquilidade. Para isso, estabelece relações com o divino apoiando-se em elementos da natureza, na tentativa de responder às suas necessidades e de assegurar a ordem no mundo. Mircea Eliade partilha idêntica opinião: ”Vê-se, portanto, em que medida a descoberta – quer dizer: a revelação – do espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso; porque nada pode começar, nada se pode fazer, sem uma orientação prévia – e toda a orientação implica a aquisição de um ponto fixo. É por essa razão que o homem religioso se esforçou sempre por estabelecer-se no «Centro do Mundo». Para viver no mundo é preciso fundá-lo – e nenhum mundo pode nascer no «caos» da homogeneidade e da relatividade do espaço profano. A descoberta ou a projecção de um ponto fixo – o «Centro» – equivale à criação do mundo”45.

A vivência da religião faz-se através de diversas manifestações46. Cada comunidade configura a linguagem e os ritos religiosos às suas realidades e às suas necessidades. Neste sentido, no interior predomina o culto a entidades femininas associadas ao culto da terra mãe e sua fecundidade – a criação do gado também depende da riqueza dos pastos – para protecção das comunidades.

A montanha, meio privilegiado de união entre a terra e o céu, por vezes de difícil acesso (condicionado pela sua elevada altitude), faz parte do conjunto simbólico religioso do interior do país. Nela se integram igrejas ou santuários onde se presta culto a entidades femininas. Simbolizam também a mãe protectora a quem se pede auxílio e conforto. Nas suas lendas de fundação, “que concitam a unanimidade dos habitantes, incluindo os não praticantes, entrelaçam-se simbólicas religiosas e mitologias antigas, fenómenos sociais e imagens oníricas da mãe carnal; nelas se descobre ainda uma visão da terra provedora e a expressão dos conflitos locais e nacionais, ou entre pastores e agricultores. Um elemento aproxima todas estas lendas religiosas: a ideia de nascimento e de regeneração: o mito da aparição de uma estátua numa gruta ou sobre um penedo é a visão do próprio nascimento e manifesta o desejo da presença da mãe. (….) Um outro ponto comum diz respeito à época em que as histórias situam as aparições das imagens: trata-se sempre ou do século XII (momento da independência do país), ou do século XIV, quando o Estado português se encontra já estruturado, toma corpo a consciência nacional e terminam (por algum tempo) as aspirações hegemónicas de Castela, ou, ainda, de outros momentos críticos para a independência do país, nomeadamente quando as invasões do território nacional pelas tropas de Napoleão.”47.

45 Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões, Lisboa, Livros do Brasil, 2002, pág. 3646 O mesmo autor propõe o termo hierofania e esclarece: “ O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como qualquer coisa absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o acto de manifestação do sagrado propusemos o termo hierofania.” op. cit. pág. 2547 Moisés Espírito Santo, A Religião Popular Portuguesa, Lisboa, Assírio e Alvim, 1990, 2ª edição, págs. 97, 98

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Para além do culto a Nossa Senhora, surge também o culto a um vasto número de santos. Moisés Espírito Santo advoga: “ A «fé», a aposta [no santo] não recai indiferentemente sobre qualquer personagem. Cada um tem a sua especialidade, que lhe é conferida pelo consenso local. Raramente, para não dizer mesmo nunca, se encontra na vita do santo (na hipótese de ele ter de facto existido) um elemento que justifique a sua escolha, a qual, aliás, varia de uma aldeia para a outra. Na maior parte dos casos, a origem da especialização reside no próprio nome do santo.”48 .

O mesmo autor noutra obra esclarece: “ Na Beira, os santos (salvo uma ou outra excepção) são representados como velhos, alguns com um aspecto «terrível», um misto de santo e de demónio. É a representação tradicional do santo masculino. As relações cultuais que os fiéis tecem com eles derivam do medo: têm mau génio e são vingativos. Tendo poder e mando sobre as coisas e as pessoas, exigem que lhes prestem culto, que lhes façam festa anual em paga da sua função de «padroeiro». Apesar de tudo, é ainda mais frequente (portanto preferível) tratar com os santos do que com Deus, que é distante, o Deus dos trovões. Ninguém faz uma festa nem presta culto a Deus. Deus é sobretudo «temor de Deus». As feições rígidas e «feias» dos santos masculinos contrasta com os rostos sorridentes e amáveis da Senhora: todas são «bonitas» (…) O santo beirão sugere o medo. (…) desempenha assim uma função importante: é um auxiliar da mãe na educação dos filhos. Uma vez que na cultura portuguesa cabe à mãe todo o processo educativo das crianças e, depois, a sua emancipação, o santo feio e rígido é um substituto do pai disciplinador”49

No litoral português domina a planície. A orla costeira, pontilhada com diversos portos marítimos, permite a implementação de um sistema económico associado à indústria, aos transportes e sobretudo à pesca. Esta tem sido a actividade de carácter mais duradouro e consistente50, apesar das constantes crises estruturais e conjunturais que vai enfrentando. Enquanto elemento construtor e condicionador de cultura, a pesca contribuiu para a aquisição e prática de valores religiosos específicos.

A religião é um reflexo do modo de pensar e agir do homem; nesta ordem de ideias, é um produto de cultura. O ser humano, a nível individual ou inserido no colectivo, apoia-se nela. Assim sendo, os imperativos sociais das comunidades piscatórias arquitectam os valores religiosos para satisfazer necessidades psicológicas e sociais.

No grupo das divindades a quem recorrem e em volta dos quais constroem uma teia de relações, encontramos o culto a Jesus Cristo. Mas seria prematuro pensar que este culto apenas surgiu com a fixação do Cristianismo, no actual território português. Este «culto marítimo» pode ter existido neste espaço geográfico desde há muito.

O culto das águas é inerente ao homem. Todos os povos ancestrais fixados nesta zona, incluindo os que, através das rotas marítimas, aqui se deslocaram (a título de exemplo,

48 op. cit. pág.13449 Moisés Espírito Santo, Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa seguido de Ensaio Sobre Toponímia Antiga, Lisboa, Assírio e Alvim, 1988, pág. 16550 José Leite de Vasconcelos em Etnografia Portuguesa vol. III, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1980, págs. 356, 357 a propósito da antiguidade desta actividade escreveu: “ A pesca tem, como a navegação, uma longa e antiquíssima história. (…) Em Portugal a pesca tem velhíssimas tradições. Na Idade Média, juntamente com a caça, formava o modo de vida de inúmeras pessoas das classes inferiores. Hoje em dia, quanto à pesca, ainda é assim.”

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os fenícios) possuíram as suas lendas e rituais próprios associados a este culto. Na religião fenícia sobressai Thammuze (ou Adónis), cujo nome significa «filho fiel das águas profundas».

Posteriormente, o Cristianismo assimilou toda esta cultura religiosa ancestral, conferindo-lhe novas formas. Podemos então falar de continuidade na mudança. As «religiões antigas» não morrem; o que sucede, por via da religião popular, é a sua readaptação a novos contextos sociais.

E na doutrina cristã, a presença mítica do mar também é marcante. Existem mesmo alguns textos nos Evangelhos que nos dão a conhecer a relação de Jesus Cristo com o mar51. Afinal, alguns dos seus apóstolos foram pescadores.

Na ida ao mar, os pescadores encontram a mesma analogia, dado que também eles necessitam de ser imortais perante os perigos imprevisíveis com que pontualmente se deparam. Surge então a noção de que o pescador, quando se encontra em situações que interpreta como terminais, de perigos extremos, apela ao filho de Deus. É neste universo sociológico que surge o Senhor Jesus dos Milagres. De realçar que na cultura popular portuguesa o culto ao filho de Deus é maioritariamente direccionado à fase da sua crucificação e morte. È o culto do crucifixo, dos Passos, do Cristo sofredor. As imagens dos mitos de origem de vários locais transmitem a imagem de Jesus em agonia. De todo o calendário litúrgico, apenas no Natal se evoca o Jesus menino; os restantes momentos direccionam-se para a fase terminal da sua vida que resultou na sua condenação, calvário e morte.

Mas o culto religioso não se restringe apenas aos momentos em que os pescadores se encontram no mar, ou aos seus momentos de vida difíceis. Toda a comunidade participa no culto ao Senhor Jesus, ao longo do ano, apesar de com maior intensidade em determinados momentos festivos, associados a um calendário pré-determinado.

2. Contexto histórico

Como anteriormente referimos, no actual território português, o fenómeno religioso de vivência comunitária não assenta as suas origens no momento da fixação do Cristianismo. Podemos mesmo afirmar, que ele é de extrema complexidade, dado ter acompanhado a evolução humana ao longo dos tempos, moldando-se de acordo com as necessidades sociais e individuais, em cada momento histórico.

Elemento imprescindível na análise e compreensão da cultura, aglutinador de uma simbologia vasta e complexa, o fenómeno religioso popular caracteriza-se pela readaptação das várias devoções religiosas ocorridas ao longo dos tempos. É portador

51 Cf anexo – Textos dos Evangelhos demonstrativos da presença do mar na vida de Jesus Cristo

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de crenças52 e ritos próprios, sempre caucionado pelo universo social que o adoptou, lhe deu continuidade e, inconscientemente, o foi transformando.

A mudança deu-se na continuidade. Na religião popular não se verificaram imposições de carácter teológico ou filosófico, mas antes assimilações ideológicas que se processaram de uma forma inconsciente em sintonia com as necessidades e costumes do local. Com a introdução do Cristianismo na Península Ibérica, ocorreu uma adaptação progressiva a práticas religiosas já existentes; desta simbiose de rituais religiosos surge uma prática com novas «roupagens».

Mircea Eliade, consagrado estudioso da história das religiões, desenvolve o conceito de Cristianismo Cósmico. No seu livro Aspectos do Mito explora clara e detalhadamente esta problemática e esclarece: “As verdadeiras dificuldades surgiram mais tarde, quando os missionários cristãos foram confrontados, sobretudo na Europa central e ocidental, com religiões populares vivas. De boa ou má vontade, as Figuras divinas e os mitos «pagãos» que resistiam à eliminação acabaram por ser «cristianizados». Um grande número de deuses ou heróis matadores de dragões converteram-se em S. Jorge; os deuses da tempestade transformaram-se em Santo Elias; inúmeras deusas da fertilidade foram identificadas com a Virgem ou as Santas. Poder-se-ia mesmo dizer que uma parte da religião popular da Europa pré-cristã sobreviveu, camuflada ou transformada, nas festas do calendário e no culto dos Santos. A Igreja teve que lutar durante mais de dez séculos contra o afluxo contínuo de elementos «pagãos» (isto é, pertencentes à religião cósmica) nas práticas e lendas cristãs. O resultado dessa luta feroz foi bastante limitado, sobretudo no Sul e Sudeste da Europa, onde o folclore e as práticas religiosas das populações rurais apresentavam ainda, no fim do século XIX, figuras, mitos e rituais da mais remota antiguidade, senão mesmo da proto-história. As Igrejas católica romana e ortodoxa foram criticadas por terem aceite um número tão elevado de elementos pagãos? Teriam sido essas críticas sempre justificadas? Por um lado o «paganismo» só pode sobreviver cristianizado, ainda que superficialmente. Esta política de assimilação de um «paganismo» que não era possível eliminar não era uma inovação; já que a Igreja primitiva tinha aceitado e assimilado uma grande parte do calendário sagrado pré-cristão. Por outro lado, os camponeses, pelo seu próprio modo de estar no Cosmos, não eram atraídos por um cristianismo «histórico» e moral. A experiência religiosa específica das populações rurais era alimentada por aquilo a que se poderia chamar um «cristianismo cósmico». Os camponeses da Europa entendiam o cristianismo como uma liturgia cósmica. O mistério cristológico englobava também o destino do Cosmos. «Toda a Natureza suspira, na expectativa da Ressurreição» (…) é necessário constatar que o cristianismo cósmico das populações rurais está dominado pela nostalgia de uma Natureza santificada pela presença de Jesus.”53

De igual forma, este autor, ressalta também, a ideia de circularidade. Ao viver nos seus tempos, profano e sagrado, a sua religiosidade, o ser social revê-se nos seus mitos54

ciclicamente; estamos perante a sacralização do tempo e a concretização plena (a nível

52 Relativamente a este conceito Malinowski refere: “cada crença reflecte-se em todas as mentes de uma dada sociedade e manifesta-se em muitos fenómenos sociais. É, por conseguinte, complexa e, na verdade, apresenta-se à realidade social com uma variedade extraordinária, muitas vezes confusa, caótica e elusiva. Por outras palavras, existe uma «dimensão social» para uma crença, que deve ser cuidadosamente estudada; a crença deve ser analisada à medida que se movimenta nesta dimensão social; deve ser examinada à luz dos diversos tipos de mentalidade e das diversas instituições em que pode ser localizada.” Bronislaw Malinowski, Magia, Ciência e Religião, Lisboa, Edições 70, 1988, pág. 25753 Mircea Eliade, Aspectos do Mito, Lisboa, Edições 70, 2000, págs 144 a 146

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de necessidades materiais e espirituais) do ser humano. Portador de um tempo profano e sagrado, impregnado de rituais míticos, o fenómeno religioso, por repetição é então transportado para a História55.

No labirinto das diversas concepções de tempo, surge uma que nos parece relevante no estudo de O Culto do Senhor Jesus dos Milagres: o tempo histórico. É essencial acompanhar a evolução deste culto, verificar quando assumiu uma maior dinâmica e tentar descortinar quais os motivos que a isso levaram. É de igual modo pertinente reflectir sobre a conjuntura social que proporcionou a actual dimensão do fenómeno religioso em estudo. Essa é a tarefa a que agora nos propomos.

No altar do Santuário do Senhor Jesus dos Milagres está descrita, em azulejo, a lenda que deu origem ao culto e à construção do santuário. Nesta narrativa surgem várias datas: 1728, ano em que ocorreu o primeiro milagre no local onde agora existe o santuário; 1730, ano da realização do painel votivo; 1795, aplicação do painel de azulejos que relata a narrativa dos «primeiros acontecimentos milagrosos» ocorridos no local. De imediato concluímos que o despoletar desta forma de culto ocorreu durante o século XVIII. Sob o nosso ponto de vista, é essencial interceptar três vectores para concretizar o enquadramento da época: Contra-Reforma, Barroco e Absolutismo.

* Reforma

O Protestantismo ou Reforma impulsionou as grandes modificações religiosas a partir de 1500. Lutero foi o seu autor com a publicação das 95 Teses (31 de Outubro de 1517), na Alemanha. Este texto crítico, contra o comportamento da Igreja, foi redigido a propósito da questão das Indulgências56 levantada pela Santa Sé57. A sua mensagem foi

54 Por mito entendemos: narrativa de acontecimentos da autoria de deuses, de heróis (humanos) ou de seres sobrenaturais que esclarece a origem e o destino do mundo, da humanidade, de um grupo ou das forças divinas. O mito é o objecto de uma crença colectiva e participa na estruturação e organização social de um grupo, ou sociedade. Pelo seu valor simbólico, o mito distingue-se da lenda (narrativa onde as atitudes e gestos de uma personagem histórica real são embelezados e amplificados) e da fábula ou da alegoria (que têm como principal objectivo retirar da narrativa uma lição moral). “Preenche uma função sui generis intimamente relacionada com a natureza da tradição e a continuidade da cultura, com a relação entre a idade e a juventude e com a atitude humana para com o passado. Em breves palavras, a função do mito é fortalecer a tradição dotando-a de maior valor e prestígio, remontando a uma maior, melhor e mais sobrenatural realidade dos acontecimentos iniciais. Deste modo, o mito é um ingrediente indispensável a toda a cultura. É, como vimos, constantemente recriado; cada mudança histórica gera a sua mitologia, que, no entanto, apenas se relaciona indirectamente com o facto histórico. O mito é um constante derivado da fé viva, que carece de milagres; de estatuto sociológico, que exige antecedentes; de norma moral, que requer sanção.” Bronislaw Malinowski, op. cit., pag. 15255 São vários os autores que abordam a problemática Mito e História (fronteiras e simbioses), deparámo-nos com Claude Levi-Strauss e Mircea Eliade. Quanto a nós, este não nos parece o momento apropriado para desenvolver esta temática. Limitamo-nos a partir do princípio que dadas as suas características e impacto sobre o universo humano, o mito contribui para a construção da História. 56 Indulgência: “ DIR. CAN. É a remissão total ou parcial da pena temporal devida a Deus pelos pecados já perdoados quanto à culpa, remissão que a Igreja concede fora do tribunal da penitência, pela aplicação das satisfações ou méritos de Jesus Cristo, da S. Virgem e dos santos, o que se chama «tesoiro da Igreja». Se as indulgências perdoam parte da pena temporal, são parciais; se perdoam toda a pena, plenárias. As princ. obras geralmente prescritas são a confissão e a comunhão, visita a uma igreja ou capela, alguma obra piedosa, etc..” Enciclopédia Luso-Brasileira, Volume 10, Lisboa Editorial Verbo, 1970, 133357 “Em 1515, a fim de recolher fundos para a conclusão da Basílica de S. Pedro, Leão X concedeu uma indulgência plenária aos que colaborassem com esmolas. Na Saxónia e Brandeburgo a propaganda desta Indulgência. foi confiada (1517) ao arcebispo Alberto de Brandeburgo. Como este se encontrava em

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apreendida pelos Humanistas da época levando Lutero a assumir um papel de destaque em inúmeros debates e palestras onde as controvérsias se sucederam.

Estava iniciado um novo percurso ideológico que rapidamente assumiu repercussões a nível europeu. E apesar de o conteúdo apresentado neste protesto não ser completamente dissidente da política religiosa do momento, Lutero passou a adoptar uma nova postura rejeitando toda a autoridade eclesiástica, para se restringir única e exclusivamente ao conteúdo da Bíblia. Em simultâneo, Roma condena a sua postura, através da bula Exhurge domine (15 de Junho de 1520), o que não impediu Lutero de continuar a expressar a sua ideologia relativamente a questões estruturais relacionadas com a conduta da Igreja.

A partir de então desenvolveu-se e aprofundou-se uma nova corrente cristã por toda a Europa Central e Europa do Norte, com algumas variações de carácter teológico e até ideológico. Surgiram «ramificações» condicionadas por imperativos geográficos, políticos e sociais. O Protestantismo passava a abarcar o luteranismo, o calvinismo e o anglicanismo.

A Bíblia foi traduzida em várias línguas, inicialmente em alemão pelo próprio Lutero. A produção escrita, preconizando novas formas de cristianismo, avolumou-se. Defendeu-se a supressão do celibato religioso, bem como a secularização dos bens religiosos, a abolição das imagens dos santos e a substituição da liturgia católica por uma missa reduzida a um sermão e à comunhão. Colocou-se a tónica no sentimento religioso, na necessidade de oração e na santificação pessoal conseguida através de uma relação directa com Deus. Em suma, um vasto conjunto de normas morais, religiosas e sociais surgiram abalando o «equilíbrio social» da época, uma vez que alguns elementos da classe social vigente visavam a conversão da sociedade e a inerente cultura.

A Reforma, tal como a Contra-Reforma, contribuiu para a criação de novos instrumentos para um exercício mais eficaz da autoridade associada à imposição de uma ordem uniformizante protestante por um lado e católica por outro. “Muitos príncipes da Alemanha do Norte e do Centro aderiram ao reformador para se apoderarem dos bens eclesiásticos; a mais importante destas secularizações foi operada em 1525 por Alberto de Brandeburgo, último grão-mestre dos Cavaleiros Teutões, que chamou a si a posse dos imensos domínios da ordem e os transformou em ducado hereditário, o ducado da Prússia” (…) Na medida em que o luteranismo entabulou, desde 1525, estreitos laços com os príncipes alemães, a história do seu desenvolvimento no século XVI confunde-se em parte com a história política da Alemanha”58. O mesmo ocorreu noutros pontos da Europa, a título de exemplo: “O cisma de Henrique VIII encontrou no país simpatias e cumplicidades, tanto entre a pequena nobreza, que cobiçava os bens monásticos, como entre a população, onde certas tendências de misticismo anárquico se mantiveram desde Wyclif, os legistas, que desejavam a supressão das jurisdições eclesiásticas, e os

dívida com os Fugger, e obtivesse autorização para ficar com metade das esmolas recolhidas, empenhou-se na difusão da indulgência papal, recorrendo aos serviços do célebre dominicano J. Tetzel que se não terá furtado de todo aos processos por outros usados de propagandear a indulgência. como uma mercadoria de efeitos quase mágicos, aliando a exageros doutrinais o manifesto interesse pecuniário. Lutero tomou daí ocasião para lançar a público em Wittenberg as 95 teses que marcam o início do protestantismo.” Enciclopédia Luso-Brasileira, Volume 10, Lisboa Editorial Verbo, 1970, 133458 Michel Mourre, Dicionário de História Universal, Volume III, Porto, Edições Asa, 1998, pág. 1109

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intelectuais, ganhos para as ideias humanistas divulgadas pelo «cenáculo de Oxford», com John Colet, Erasmo e Thomas More.”59

Em Portugal, o Humanismo teve alguma aceitação na sociedade do início século XVI levando o país a participar, ainda que de forma ténue, na dinâmica cultural que então se vivia na Europa. Progressivamente, os valores humanistas, veiculados pelo classicismo e pelas mais valias dos Descobrimentos, foram-se transmitindo na vida cultural portuguesa.

No início do reinado de D. João III, tentou-se introduzir o pensamento de Erasmo no universo cultural português. “ O prestígio do sábio de Roterdão estava por essa altura no auge; a sua doutrina, que associava as técnicas e conteúdos do património humanístico – o método histórico-filológico e a defesa das belas-letras contras os esquemas e processos da escolástica – com as aspirações de um cristianismo espiritual, ético e evangélico.”60.

Contudo, na fase final do reinado deste monarca, Erasmo e as suas obras foram fortemente rejeitadas e acusadas de pertencerem a uma ideologia religiosa-cultural que conduziria ao luteranismo. “ O fluir da história, com maioria de razão o da cultura, não comporta rupturas, mas processos; e nestes, a convergência de episódios políticos, religiosos e culturais inclina a postular um período de cerca de um vinténio no decurso do qual se registou uma sucessão de mudanças articuladas, externas e internas, que culminaram no advento de uma ordem ideológica de carácter imobilista e intransigente. (…) O movimento dos humanistas dos decénios de 30 e 40 também assumira, a seu modo, uma resistência à Reforma protestante, que destruíra a unidade cristã –, mas uma resistência operada de forma positiva e criadora, ditada por um sincero desejo de renovação espiritual e cultural, de secularização e convivência civil, com vista a restaurar uma concórdia contínua e universal na Cristandade. Em contrapartida, a reacção que se foi plasmando a partir da década de 50 cedo evoluiu de uma atitude defensiva e de visceral desconfiança face ao pluralismo de pensamento no âmbito cristão, ostensivamente assimilado a luteranismo encoberto ou potencial, para uma estratégia dirigida a erradicar, se necessário pela força, quaisquer tendências susceptíveis de afectar o rígido monismo ideológico.”61

Como facilmente constatamos, a dinâmica religiosa associada ao Protestantismo não teve qualquer aceitação no universo sociológico português, e até o Humanismo se resignou face às determinações sociais e mentais da época.

* Contra-Reforma

Perante todas estas convulsões religiosas e políticas, com inequívocas consequências sociais, a Igreja Católica actuou no sentido de travar a expansão do Protestantismo. Surge a Contra-Reforma como movimento de reacção, a partir de meados do século XVI, cujas primeiras manifestações se verificaram na renovação das ordens religiosas, com o aparecimento dos «clérigos regulares», que passaram a centrar a sua actuação no

59 Op. cit. Volume I, pág. 6560António Mendes, A Geração de Quinhentos e a Modernização, in José Mattoso, História de Portugal, Volume 3, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, pág. 38161 Op. cit., pág. 402, 403

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apostolado, no ensino e na assistência aos carenciados. Nesta fase de renovação, destaca-se a criação da Ordem dos Jesuítas.

Mas o que verdadeiramente marca esta fase da vida da Igreja Católica é sem dúvida o Concílio de Trento (1545-1563). “O Concílio de Trento, iniciado em 1545, tornar-se-ia um marco de capital importância no desenrolar ulterior da confissão católica, cujos efeitos perduram até hoje. É certo que falhou no que era para muitos o seu objecto primordial: a reunificação dos cristãos, separados após a excomunhão de Lutero, em 1520. O Papa Paulo III, que, após muitas hesitações o convocou, organizou também a Inquisição, a partir de 1542, para travar o avanço das ideias protestantes, que ameaçavam a própria Itália. (…) Respondia às aspirações de então. Acabavam as incertezas teológicas, apontavam-se caminhos seguros para atingir Deus, respondendo-se portanto aos anseios dos fiéis, cansados de dúvidas e enredos nas lutas de facções ou ideias. Eles precisavam de uma doutrina clara, afirmativa, tranquilizadora.”62.

Muito haverá para explorar relativamente ao Protestantismo, Contra-Reforma e inerente Concílio de Trento, no entanto, corremos neste momento o perigo de nos desviarmos do fio condutor deste sub capítulo: o enquadramento histórico do Culto do Senhor Jesus dos Milagres. Assim sendo, destacaremos apenas os factores que implicitamente condicionaram este fenómeno religioso.

Com o Protestantismo propõe-se aos crentes uma nova forma de relacionamento com Deus. Pretende-se um relacionamento «directo», através da leitura da bíblia, logo a função do clero, entidade intermediária, é desprestigiada. O culto a outras entidades divinas, nomeadamente santos, santas e a mãe de Jesus Cristo, passa a ser desvalorizado, defende-se mesmo a abolição das imagens dos locais de culto. Nenhuma destas propostas poderia ter eco na religião popular portuguesa. A sua tradição cultural não permitiria uma mudança tão abrupta. O culto a várias entidades divinas é ancestral. As formas de religiosidade sempre foram colectivas e pouco introspectivas, próprias de um povo pouco instruído que sempre valorizou o fantástico e a vertente cénica envolta em rituais, prolongadas encenações, proporcionadora de momentos catárticos quer a nível individual ou colectivo.

Por seu turno, as grandes medidas preconizadas na Contra-Reforma, onde inserimos o Concílio de Trento, foram ao encontro do sentimento religioso popular português da época. Defende-se o culto dos santos e santas, da mãe do filho de Deus, da Santíssima Trindade, bem com a veneração das imagens e relíquias. Na sessão XXV, a 3 de Dezembro de 1563, declarou-se que as relíquias são dignas de serem veneradas, quando não associadas a qualquer superstição e depois de aprovadas pelo bispo. O corpo de um santo, ou um fragmento seu, continuava a agir miraculosamente. As esculturas e pinturas passaram a assumir uma função pedagógica, dando, deste modo, a conhecer episódios, factos ou acontecimentos religiosos (a mensagem é transmitida pelo imediatismo da imagem e não pela reflexão dos textos).

Nesta ordem de ideias, não será inverosímil admitir que, o corpo social português ao tomar conhecimento que, em terras distantes, se “maltratam” imagens tenha assumido a função de salvador das mesmas. Bastará para o provar analisar as lendas que suportam a nova camuflagem de certos cultos em Portugal, a partir do século XVI. A título de exemplo o Senhor Jesus das Cruzes, o Senhor Jesus de Matosinhos ou o Senhor Jesus

62 João Medina, História de Portugal, Volume VII, Lisboa, Ediclube, 1994, pág. 190

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do Carvalhal. No próximo sub capítulo retomaremos a esta problemática. Depois de descortinado o espaço geográfico e o contexto histórico, há que ter presente as lendas que se crê terem dado origem a este fenómeno social total de raiz popular: o culto a Jesus Cristo ao longo da costa atlântica, em cuja dinâmica religiosa se insere o culto do Senhor Jesus dos Milagres.

Vale ainda a pena mencionar que a postura dos membros do clero foi debatida e ratificada durante este Concílio de Trento. Mas na prática, a conduta do clero regular português não se alterou significativamente; este continuou a ser visto como incapaz de uma adequada actuação pastoral, apesar da publicação do catecismo63. Distante das comunidades, comodista, sendo alguns deles manifestamente incultos, levando, por vezes, uma vida pouco exemplar, apenas se fazia notar em determinadas manifestações públicas da liturgia (as romarias, as procissões ou os jubileus), momentos onde predominavam as formas exteriores de culto.

Em Setembro de 1564, no decorrer do reinado de D. Sebastião, foi publicado um alvará que dava todo o apoio à execução dos decretos emanados do Concílio de Trento quer a nível dogmático, litúrgico ou disciplinar. Portugal foi o único país que aprovou integralmente as normas deste concílio; esta postura contribuiu para o condicionamento da produção artística a todos os níveis, a longo prazo. Como facilmente constatamos, a Igreja e o poder político português actuavam em uníssono. A paz do Estado e da Igreja encontravam-se estreitamente solidárias na unidade da crença, tendo como suporte de apoio aos seus fins a Inquisição.

As políticas sociais e as práticas religiosas características da sociedade portuguesa dos séculos XVI ao XVIII não se conseguiam destrinçar. As ordens eclesiásticas centravam em si a caridade aos necessitados, o socorro aos pobres, o auxílio aos doentes, a formação humanística e universitária, além da instrução catequética, a prática da eucaristia, o controle de jejuns e actos de penitência, a difusão da reza do rosário e a gestão de relíquias. Como refere Sérgio Gorjão: “O poder da Igreja durante todo o séc. XVII e XVIII é enorme, verdadeiramente um Estado dentro do Estado, com legislação, hierarquias e tribunais próprios, respondendo em obediência a uma entidade supra nacional: o Papa. Coroa e Igreja são indissociáveis, sobretudo após o concílio tridentino cujas normas foram, integralmente, aceites em Portugal. O Estado e a Igreja articulavam a sua acção de forma mutualista, embora tecnicamente coubesse ao Estado a última palavra em diversas matérias. Com o período joanino, a Igreja não perde terreno, mas o Estado ganha maior desempenho e revela a sua posição de forma mais determinada. Se por um lado vemos o reforço do poder político do Estado, ao nível cultural, a sociedade mantém-se profundamente religiosa e orientada a partir do púlpito.”64

63 “ O Catecismo Romano é, finalmente publicado em 1566 (…) Estruturado em quatro partes, símbolo, sacramentos, decálogo e oração, apresenta-se como o Catechismus ex decreto Concilii Tridentini ad parochos Pii V Pontificis Maximi iussu editus, catecismo ad parochos, não se dirige nem ao comum dos fiéis, nem a teólogos profissionais, pretende-se antes oferecer uma exposição doutrinal capaz de completar a instrução teológica do clero e de motivar a pregação e a catequese.É apresentado, no prefácio, como uma resposta aos inúmeros livros que por toda a parte, até nas mais remotas paragens, espalham a heresia. Revelando aguda consciência do poder da comunicação das massas possível com a imprensa, oferece-se um catecismo universal contra os livros que, sob a aparência da piedade, difundem o erro e enganam os incautos, oferece-se um texto de referência aos pastores e a todos os que exercem o munus docendi”. Belmiro Fernandes Pereira Nova Catequese e Artes de Pregar A propósito do recente Catecismo da Igreja Católica, Brotéria 140 (1995) 203 – 228, pág. 22464 Sérgio Gorjão, Santuário do Senhor Jesus da Pedra - Óbidos, Lisboa, Edições Colibri, 1998, pág. 21

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As confrarias, ainda hoje com uma função social bem marcante no universo sociológico português, assumiram um papel de destaque em muitas comunidades, focando a sua actuação nas práticas e nas exigências religiosas e sociais de cada momento. Assim sendo, para além de enquadrarem a vida religiosa e social dos leigos e de auxiliarem material e espiritualmente os mais necessitados, também promoveram a realização das festividades religiosas comunitárias, assegurando momentos de grande vivência colectiva. A sua conduta proporcionou o desenvolvimento de manifestações cultuais onde imperava a afirmação social e política dos seus membros, criando oportunidades de exercício de poder e de exibição social.

Muitas destas confrarias encontravam-se associadas ao culto de Cristo. O ciclo litúrgico da vida de Jesus Cristo, especialmente a Quaresma, Paixão e Semana Santa, eram momentos propícios a uma forte exteriorização da afectividade popular. Nestes momentos, onde ocorria, e ainda ocorre, a evocação dos sofrimentos de Cristo, pretendia-se despoletar a piedade e a afectividade do temperamento popular português, com o intuito de provocar a reflexão sobre as consequências do pecado e a necessidade do arrependimento (constante da espiritualidade afectiva ante e pós-tridentina). No culto de Jesus Cristo sofrente pretende-se passar a mensagem da conversão dos pecadores e do aperfeiçoamento dos crentes, através do desprezo dos bens do mundo e da prática das virtudes da humildade, da obediência e resignação.

Entidade divina, associada ao sofrimento na Cruz, também ela convida a actos de fé e esperança ao assumir o estatuto de filho divino. A devoção a Cristo propaga-se no seio da religião popular portuguesa. “Os séculos XVII e XVIII foram também marcados pelo crescimento da devoção popular ao crucifixo. Muitos situavam-se em ermidas e oratórios no exterior dos povoados, onde as povoações os visitavam, principalmente durante as celebrações da Paixão. O sucesso das narrativas dos milagres que eram atribuídos a algumas figuras de Cristo contribuiu para o incremento da sua importância. Com efeito, o acréscimo do fervor religioso e do número de visitantes, atraídos pela aura dos milagres, possibilitou o enriquecimento dos referidos lugares de culto. Muitos dos administradores preocuparam-se em dignificar os templos e as imagens de acordo com os níveis de devoção. Estes eram construídos e decorados ao encontro das preferências estéticas do momento, o que fornecia novos motivos para a visita dos romeiros (…) Pode, pois, afirmar-se que muitos dos responsáveis de santuários procuravam alimentar o dinamismo das peregrinações através de uma renovação constante dos espaços sagrados e da sua ornamentação. No Bom Jesus de Bouças (Matosinhos), que ainda em 1692, no dia da sua festa principal, teria acolhido mais de 20 000 visitantes, em 1726, uma parte dos múltiplos rendimentos da sua irmandade eram aplicados à criação de um novo retábulo e de um novo trono para a imagem principal, profusamente decorados com talha barroca. As obras no interior da igreja prolongar-se-iam até à segunda metade do século XIX. Outras vezes, eram inovações arquitectónicas mais profundas que constituíam o meio preferido para dar novo alento a devoções já existentes. (…) Alguns santuários de natureza cristológica tiveram origem numa forma de piedade muito particular, desenvolvida no século XVIII. Referimo-nos a painéis ou pinturas de Cristo, localizadas em locais de passagem dos fiéis, de modo a captar a sua atenção e proporcionar a adoração. Foi assim que nasceu o Santuário do Senhor Jesus dos Milagres de Leiria, em 1731 (...) a atribuição dos milagres pressupostamente ocorridos por intermédio de um destes painéis, estimulou a vinda de peregrinos, captados pela fama destes prodígios. As suas oferendas possibilitaram a

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construção do templo.”65Envolto em relíquias e crucifixos, festas e devoções, santuários e grandes igrejas, congregações e confrarias, é assim que o homem português, dos séculos XVII e XVIII, vive o maravilhoso cristão.

* Barroco

A apoiar este forte sentido de teatralidade que o acompanha do berço ao túmulo, surge o barroco. “Nesta linha, o barroco não é só uma manifestação artística, como também um reflexo da mentalidade e da política. O conceito de «barroco», entendido de uma forma mais lata, torna-se um instrumento de poder e de condução da sociedade. A sociedade torna-se numa espécie de grande espectáculo em que todos têm a sua função, estabelecendo-se elos indissociáveis e hierarquias entre os elementos dessa sociedade e um poder superior, de natureza divina”66

Repositório das vivências sociais das comunidades e da sua cultura popular, os locais de culto em honra a Jesus Cristo, que nesta época surgem por toda a costa atlântica a norte do Tejo, vão ser construídos, noutros casos reconstruídos ou readaptados, recorrendo ao movimento artístico do momento, ou seja, ao barroco.

Ao longo da nossa investigação partimos para o terreno com o intuito de observar os fenómenos sociais em torno dos Senhor Jesus em estudo, tais como: a festa, o cumprimento de promessas, a relação dos devotos com as imagens, os locais de culto, etc. Vários fenómenos sociais têm uma estrutura comum, como referiremos oportunamente. Mas, neste momento, impõe-se abordar o estilo que mais se evidencia a nível arquitectónico e decorativo nos santuários seleccionados: o estilo barroco. Pareceu-nos que há medida que os templos se vão situando mais a norte do país, mais vão evidenciando o estilo barroco.

Do nosso Corpus de análise, para o estudo comparativo, constam os seguintes Senhor Jesus: Senhor Jesus das Cruzes (Barcelos), Senhor Jesus de Fão (Fão), Senhor Jesus de Matosinhos (Matosinhos), Senhor Jesus dos Aflitos (Valadares), Senhor Jesus da Pedra e Senhor Jesus dos Milagres (Gulpilhares), Senhor Jesus das Barroquinhas (Aveiro), Senhor Jesus da Pedra de Óbidos (Óbidos), Senhor Jesus do Carvalhal (Bombarral) e Senhor Jesus das Chagas (Sesimbra). Todos os locais de culto em análise evidenciam características deste estilo, deixando assim transparecer a vitalidade social e religiosa do tempo. A nível arquitectónico, concretamente quanto à planta adoptada, foi-nos possível verificar que alguns templos são idênticos, ou muito semelhantes, quer a nível exterior ou interior.

É prática corrente afirmar-se que a grande maioria dos locais de culto, em Portugal, são sincréticos. Para tal contribuíram dois factores determinantes: a progressiva construção destes templos ao longo do tempo, condicionada em grande medida pelo factor de ordem financeira (a construção era custeada em grande parte, ou totalmente, por donativos dos fiéis e pelos rendimentos que as confrarias iam auferindo ao longo dos anos); a conjugação de formas e técnicas tradicionais a inovações importadas, contribuindo para o aparecimento de templos com características próprias da identidade

65 Carlos Moreira Azevedo, História Religiosa de Portugal - Humanismos e Reformas, Volume 2, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, págs. 355, 35666 Sérgio Gorjão, op. cit., pág. 23

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da religião nacional. Além disso, devemos ter sempre em consideração que os locais de culto, ao serem construídos, foram ao encontro da necessidade do cumprimento de certos ritos religiosos. Logo, podemos afirmar que a própria prática/ identidade religiosa condicionam a construção de um templo. Nesta ordem de ideias, o templo personifica uma manifestação de cultura.

Apesar do sincretismo, mais ou menos evidenciado, a nossa observação permitiu-nos concluir que o estilo Barroco. No interior, a presença da talha dourada, sugerindo o brilho e a cor, bem como do azulejo que conduz para a ampliação de espaços e dinamização cromática, está presente em todos os templos, com maior ou menor preponderância. Os símbolos naturalistas, nomeadamente, os cachos de uva, as parras, as folhas de acanto e os anjos, também estão patentes nestes espaços. O chamamento físico dos sentidos e dos sentimentos complementam-se, podendo eventualmente provocar impacto emocional, com a observação de imagens. De destacar que um dos principais objectivos das imagens era que se tornassem o mais apelativas e naturais possível, pois pretendia-se o imediatismo da transmissão da mensagem. Os elementos estéticos utilizados tinham como principal função representar a realidade de uma forma emotiva, apelando e invocando os sentimentos católicos. Por vezes, surgem em altares laterais telas alusivas à Paixão de Cristo que, ocasionalmente, se apresentam demasiado pesadas e sombrias.

A complementar a decoração interior, é frequente depararmo-nos com a presença de vários painéis votivos. Elaborados por pintores regionais, ilustram e relatam um acontecimento considerado milagroso, devido à intervenção do Senhor Jesus. Tal acontece na igreja do Senhor Bom Jesus de Fão e no santuário do Senhor Jesus dos Milagres.

Dado que se pretendia transmitir a noção de proximidade com Deus, adoptou-se, na generalidade dos templos, por construir uma cúpula a encimar o altar. A cúpula tem como propósito retratar a noção de céu/paraíso e sugerir a comunicação entre a terra e o céu. Além das cúpulas, é também comum observarmos tectos pintados, sendo então possível vislumbrar cenas sagradas alusivas à vida de Santos ou à Santíssima Trindade.

Em suma, podemos afirmar que, no seu interior, a igreja de características maioritariamente barrocas apresenta uma unidade rica e calorosa, na medida em que se tenta conjugar os altares, pinturas, esculturas, mobiliário, trabalhos em estuque e outros ornamentos de forma a criar uma atmosfera de deslumbramento e fascínio.

No que concerne à arquitectura, chegámos à conclusão de que se adoptou, em termos de construção, a forma de cruz latina e de estilo romano. Em alguns dos templos visitados, verificámos essa característica; a título de exemplo, a igreja do Senhor Bom Jesus de Fão e igreja do Senhor de Matosinhos. Sabemos que no reinado de D. João V foram vários os arquitectos conhecedores deste novo estilo arquitectónico, nomeadamente italianos, que vieram para Portugal, e que participaram na construção de prestigiados locais de culto. No caso do nosso estudo podemos referir Nicolau Nasoni que participou na restauração do templo do Senhor Jesus de Matosinhos. Mas também temos que ter em consideração que parte dos templos a que dedicámos o nosso estudo foi construída por comunidades rurais com escassos recursos financeiros, sendo de todo inviável recorrer a arquitectos para a elaboração das plantas. Se por um lado, não havia recursos para convidar arquitectos credenciados e conhecedores do estilo na sua forma erudita,

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por outro, também não existia vontade de cooperar com alguém cujos traços não fossem ao encontro dos gostos e desejos da comunidade popular. De igual modo, se deve ter em linha de conta que os agentes sociais da comunidade rural, local onde inicialmente tiveram origem os fenómenos religiosos de que o nosso estudo se ocupa, se posicionam no centro do mundo; logo, a sua opinião relativamente ao seu templo sagrado permite inferir que o consideram o mais belo de todos, apesar de construído por mestres e mão-de-obra locais. A linguagem e preferência estéticas estão claramente associadas à realidade social e hábitos culturais em que se enquadram.

Caso exemplificativo do que acima tentamos demonstrar é o do Santuário do Senhor Jesus dos Milagres. De acordo com os nossos informantes, o templo foi construído com donativos dos que por aqui passaram e por contribuições dos habitantes locais ao longo dos tempos. O santuário foi erguido com a mão-de-obra e esforço dos elementos da comunidade. Veio um mestre do Juncal orientar a construção, mas não há certezas absolutas relativamente ao autor do projecto. Nenhum dos informantes nega a sua beleza e sumptuosidade. Um folheto informativo, redigido por responsáveis paroquiais, realça as suas semelhanças com o Convento de Mafra.

* Absolutismo

Já aqui se referiu a importância da Contra-Reforma associados ao Barroco, como movimento propiciador para a devoção da imagem de Cristo Crucificado e como reacção ao Protestantismo. Torna-se agora pertinente abordar a contribuição do Absolutismo no seu incremento e desenvolvimento.

Vários historiadores, entre eles Veríssimo Serrão, advogam que após a recuperação da independência, em 1640, Portugal teve dificuldades em ocupar uma posição de credibilidade no quadro político europeu da época. Esta dificuldade também se sentiu junto da Santa Sé. ” O campo mais difícil de actuação para os nossos diplomatas foi, sem dúvida a cidade papal, devido à influência política que a Espanha ali exercia. Os interesses da Cúria Romana a nível internacional coincidiam com os de Filipe IV, pelo que as nossas primeiras embaixadas estavam de antemão condenadas ao fracasso. Bem podia D. João IV invocar, como o fez com insistência, a velha fidelidade da coroa portuguesa ao trono de S. Pedro.”67 Esta situação manteve-se durante vários anos, apesar de a nível interno a religião (popular) continuar muito activa e a moldar os comportamentos sócio-religiosos das comunidades (alheias à política internacional do Estado).

No início do século XVII, Portugal iniciou um novo percurso diplomático junto da Santa Sé. “ Roma foi sempre para D. João V o verdadeiro fiel da balança na Europa. Na época em que o papado buscava fazer-se ouvir junto das grandes potências, para impor a contenção dos conflitos que ameaçavam o equilíbrio europeu, a coroa joanina utilizou essa imensa força espiritual para robustecer a sua posição externa. Salienta Eduardo Brasão que o nosso país fora dos poucos em que a heresia não retalhara a unidade do corpo nacional, pelo que a fidelidade a Roma decorria do facto de Estado e Igreja constituírem um bloco homogéneo de pensamento e de acção. (…) Foram satisfeitos os pedidos de D. João V para a concessão do barrete de Cardeal a religiosos que gozavam

67 Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. V, Lisboa, Editorial Verbo, 1982, 2ª ed, pág.70

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do seu favor.68” José Castro partilha idêntica opinião, na sua obra Portugal em Roma refere: “O interêsse de Clemente XI pelos assuntos portugueses foi enorme não só pelo que respeita ao clero regular e secular como também pelas considerações prestadas à Família Real (…) Foi neste ano, a 4 de Dezembro de 1716, que promoveu à primeira dignidade de primeiro Patriarca de Lisboa o bispo do Pôrto, Dom Tomás (…) O Papa confirmou e ampliou a referida Bula com outra «Gregis Domini Cura» de 3 de Janeiro de 1717, e ampliou ainda mais os privilégios da Patriarcal com outra «Ineffabili Divinae Majestatis» de 4 de Março do mesmo ano, e ainda por outra de 27 de Setembro de 1720 lhe concedeu as quartas partes dos arcebispos e bispados do Reino (…) El-Rei mandou em 1712 a Roma, a prestar obediência ao Papa, o seu Embaixador Extraordinário Marquês de Fontes.”69

Esta postura político-religiosa relativamente à Santa Sé levou a que no reinado de D. João V, em Portugal, fossem apoiadas e patrocinadas todas as manifestações religiosas, incluindo a construção de templos de apoio ao culto. A situação económica do país favorecia esta postura por parte do Estado; Portugal recebia periodicamente avultadas quantias de ouro provenientes do Brasil. Temos como exemplo mais significativo, a nível da religião institucional, a construção do convento de Mafra. A nível da religião popular, as comunidades rurais apelavam aos bispos das dioceses a construção ou reconstrução dos locais de culto. Em alguns casos já naquele local se praticavam actos religiosos; a título de exemplo, o Santuário do Senhor Jesus dos Milagres, o Santuário do Senhor Jesus da Pedra em Óbidos e o Santuário do Senhor Jesus das Barrocas em Aveiro. As autoridades eclesiásticas e, ou régias davam o seu aval e por todo o país surgiram novos templos, ou templos com novas configurações. João Gonçalves Gaspar, autor de um livro sobre a igreja do Senhor das Barrocas, partilha idêntica opinião e refere: “Se a autorização para se construir a igreja não demorou muito a ser superiormente concedida, também o início das obras não se atrasou em demasia… sinal de que não houve desânimos no percurso nem faltaram meios materiais para o sonho se tornar realidade. Aliás, dentro do entusiasmo nacional e da política magnânima de el-rei D. João V, Aveiro também se encontrava entusiasmado numa febre de construções, ampliações, beneficiações e restauros, de que os conventos da urbe foram os grandes beneficiários.”70

Relativamente ao Santuário do Senhor Jesus da Pedra, em Óbidos “Os principais mecenas foram D. Tomás de Almeida, primeiro Cardeal Patriarca de Lisboa, o rei D. João V, (…), e ainda o Cardeal D. Nuno da Cunha e Ataíde, Inquisidor Geral e o próprio D. José Dantas Barbosa.”71.

No que diz respeito ao Santuário do Senhor Jesus dos Milagres, inicialmente construiu-se uma ermida, em 1732, era então governada a diocese de Leiria pelo Dr. Eugénio Boto da Silva, em substituição do bispo D. Álvaro d’Abranches e Noronha. Ao tomar conhecimento da dinâmica do culto, que segundo os registos que consultámos foi progressivamente aumentando72, várias iniciativas foram tomadas no sentido de orientar e institucionalizar o culto. Em 1750, o bispo D. João de Nossa Senhora da Porta perante

68 Op. cit. pág. 250, 25169 José Castro, Portugal em Roma, Volume I, Lisboa, União Gráfica, 1939, págs 57 a 6170 João Gonçalves Gaspar, Igreja do Senhor das Barrocas, Aveiro, Paróquia da Vera – Cruz, 1996, pág. 2371 Sérgio Gorjão, op. cit., pág. 3672 Padre José Ferreira Lacerda, Breves Apontamentos para a História da Fundação da Igreja do Senhor Jesus dos Milagres, Leiria, Typographia Leiriense, 1911, pág. 19 e sgs.

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a construção de uma capela-mor eleva este templo a igreja paroquial, criando, consequentemente uma nova paróquia.

Com efeito, podemos afirmar que a conjuntura deste momento contribuiu e caucionou, de uma forma decisiva, o incremento da vivência religiosa ao nível das representações, das práticas e das sociabilidades. Referimo-nos, evidentemente, a uma vivência religiosa popular praticada, fundamentalmente, em comunidades rurais e com uma postura diferente da religião institucional. Neste domínio não se colocava em causa a doutrina da Igreja. Aqui vivia-se a religião da continuidade com estereótipos, tradições e convenções próprias. Aqui a reprodução oral encarrega-se de a transmitir às gerações vindouras. Com o seu calendário e rituais próprios, a religião popular garante a estabilidade e continuidade cultural.

3. Os Senhor Jesus da costa atlântica

Conforme já referimos, entre a península de Setúbal e Viana do Castelo podemos encontrar vários locais de culto dedicados a Jesus Cristo73. Todos eles se caracterizam por na sua designação constar o nome Senhor Jesus, seguido da referência ao local onde se encontram ou ao mito de origem a que estão associados.

3.1 Os Senhor Jesus Irmãos

O Senhor Jesus das Cruzes, o Senhor Bom Jesus de Fão e o Senhor Jesus de Matosinhos, de acordo com a lenda, e pelos testemunhos orais recolhidos nos locais onde se encontram sedeados, são Senhores Jesus Irmãos. No norte do país narra-se o acontecimento na seguinte quadra popular:

«O Senhor de Matosinhos Mandou dizer ó de Fão

Que dissesse ó de BarcelosQue também é seu irmão”

Barcelos

O Senhor Jesus das Cruzes é cultuado em Barcelos, num templo no centro da cidade, com festa a 3 de Maio. Após algumas entrevistas no local e recolha de alguma bibliografia, ficámos a saber que existem duas versões quanto ao aparecimento da imagem neste local. Alguns informantes, sobretudo os mais idosos, referem que uma grande Cruz apareceu junto ao campo da feira a um sapateiro. «Por ser a figura de

73 De notar que a área geográfica seleccionada para a nossa investigação possui características sociológicas muito semelhantes, estando integrada na realidade social da comunidade rural a norte do Tejo, cujo estudo e caracterização se encontra patente em Moisés Espírito Santo, Comunidade Rural a Norte do Tejo seguido de Vinte Anos Depois, Lisboa, AER, UNL, 1999

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Deus», logo aí se construiu um templo e todos os anos se comemora o seu aparecimento com uma missa, uma procissão e uma feira. De acordo com essa lenda:

O Milagre das Cruzes aconteceu, a 20 de Dezembro de 1504, quando uma cruz apareceu no Campo da Feira a um sapateiro chamado João

Pires.

Perante tal visão, o sapateiro correu a chamar os habitantes da vila. Estes, quando chegaram ao local, repararam que a cruz se tornou

mais brilhante. Foi então que se descobriu que o Senhor da Cruz era irmão dos Senhores de Matosinhos e de Fão, os quais teriam sido

lançados à água em terras distantes. A corrente marítima lançou um Senhor à praia de Matosinhos, outro à de Fão e o terceiro subiu o rio

Cávado, ficando por Barcelos.

Para assinalar o aparecimento do Senhor da Cruz a Barcelos, nesse dia à tarde realizou-se uma procissão com todo o povo, clero e

nobreza da vila. Resolveu-se então construir uma ermida em honra deste Senhor.

Uma outra versão refere que esta imagem veio de Flandres [região protestante] e que foi um mercador de Barcelos que a trouxe para este local.

A diversidade de relatos remete-nos para a tradição oral que possibilita a divergência em termos de conteúdo lendário. E se, actualmente, estas lendas já se encontram em suporte escrito, tal não aconteceu durante anos. A diferença dos relatos quanto à origem da imagem não afecta o culto que lhe é prestado, segundo se diz, desde 1504.

Em 3 de Maio de 2004, tivemos oportunidade de nos deslocar ao local para assistir aos festejos / comemorações dos 500 anos do Milagre das Cruzes. Pelo que nos foi dado a conhecer, a estrutura destes festejos foi semelhante à dos anos anteriores, tendo sido apenas mais participada a procissão a nível de entidades institucionais. Os festejos iniciaram-se no dia 30 de Abril e terminaram no dia 3 de Maio (Feriado Municipal). Como é característico da cultura popular compunham-se de uma componente profana, nomeadamente, espectáculos musicais, feira, actividades desportivas, folclore, fogo de artifício, etc. e de uma componente sagrada centrada, no dia 3, com duas missas no templo do Bom Jesus da Cruz e com a “ Grandiosa Procissão da Invenção da Santa Cruz”.

Fão

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De acordo com a bibliografia consultada74, a construção do actual «mosteiro» remonta a 1710, ocorrendo a construção da torre em 1730. No entanto, já anteriormente este culto se praticava numa capela que existia neste local, no decorrer do século XVII. A lenda descrita pelos nossos informantes de Fão coincide com a versão apresentada em Barcelos.

“Diz o Povo que a Imagem do Senhor Bom Jesus, bem como a do Senhor da Cruz, de Barcelos, e a do Senhor de Matosinhos, foram

lançadas ao mar (...) para se livrarem da fúria dos iconoclastas, que perseguiam o culto das imagens.

Consta que a Imagem do Senhor Bom-Jesus foi encontrada sem um braço, à beira rio, por uma pobre mulher que andava aos «gravetos»,

para o lume.

Mais tarde, foi achado, (...) o braço que faltava. (...) saltava da lareira todas as vezes que tentavam queimá-lo.

Nesse mesmo local, onde foi achada a imagem, se levantou em sua honra, uma pequena ermida e, mais tarde, a actual Capela.”75

O Senhor Bom Jesus de Fão tem o seu apogeu festivo no domingo de pascoela, ou seja, no domingo a seguir à Páscoa. A festa tem uma estrutura semelhante à de Barcelos, com uma duração de três dias. Composta por uma parte profana e sagrada, dela fazem parte várias iniciativas destacando-se o embelezamento do «mosteiro» do Senhor Bom Jesus de Fão com um tapete de flores.

Durante os dias de festa o «mosteiro» encontra-se permanentemente aberto aos visitantes, sendo possível o pagamento de promessas, bem como a subida à parte detrás do altar e a aproximação à imagem do Bom Senhor Jesus de Fão. No decorrer da nossa visita ao local foi-nos possível observar que os visitantes quando se aproximavam da imagem tomavam de uma forma sistemática e ritmada as seguintes atitudes: beijo no calcanhar da imagem; carícias na mão, cara e barba da imagem; toque ou puxão seguido de beijo na corda que envolve a imagem; colocação de dinheiro numa bandeja posicionada em frente à imagem para este efeito. Estamos pois perante um conjunto de rituais típicos da religião popular e cujas origens remontam a rituais ancestrais que ao longo dos tempos têm subsistido.

Além da missa realizada no último dia dos festejos, ou seja, no domingo, na segunda-feira, durante a manhã, realiza-se uma procissão aos enfermos. Conforme agendado, sai do «mosteiro» do Senhor Bom Jesus de Fão uma procissão onde se encontram representadas as ordens, irmandades, colectividades e entidades eclesiásticas da 74 Comissão Promotora da Celebração das Instituições Fangueiras, Monumentos Históricos de Fão (Colectânea de Monografias de Fão e de textos históricos sobre Fão), Fão, Edição da Comissão Promotora da Celebração das Instituições Fangueiras 2000-2003, 200075 In Comissão Promotora da Celebração das Instituições Fangueiras, Monumentos Históricos de Fão (Colectânea de Monografias de Fão e de textos históricos sobre Fão), Fão, Edição da Comissão Promotora da Celebração das Instituições Fangueiras 2000-2003, 2000

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localidade De acordo com as informações recolhidas no local, esta procissão tem como propósito levar a comunhão aos acamados, que previamente a solicitam. Uma vez que de ano para ano os pedidos são diferentes, durante a procissão gera-se uma certa polémica e dúvida relativamente ao seu percurso e duração.

Convém ainda salientar que, de quatro em quatro anos, se realiza, nesta localidade, uma procissão em honra do Senhor Bom Jesus de Fão. Ao contrário das festividades em sua homenagem, esta tem data fixa, no dia 2 de Maio. Os nossos informantes foram bem claros quanto à calendarização da mesma. Esta realiza-se dia 2 para não coincidir com a de Barcelos, pois assim seria difícil poder assistir às duas festividades nos anos em que ambas se realizassem; também nos esclareceram que se celebram no início de Maio devido à Invenção da Santa Cruz.

Relativamente a este local e ao culto aqui praticado Moisés Espírito Santo escreveu: “Fão é uma das paróquias mais antigas do Minho. Tem um culto célebre, o do Senhor Jesus, perto do rio, irmão (como se diz) dos Senhores de Caminha, de Matosinhos, de Barcelos e de outros ao longo da costa, que «vieram do mar metidos numa caixa». 76”. Em Fão são célebres os Cavalos de Fão. De facto, “ Ao longo da costa marítima de Ofir alinham-se em curva duas séries de rochedos que têm a configuração dos modernos portos de abrigo; chamam a esses rochedos Cavalos de Fão.”77 Diz a lenda que o rei Salomão explorava minas de ouro em Ofir (interior de Fão) e que essa exploração terminou quando os barcos de Salomão abalroaram contra os Cavalos de Fão. Segundo a Bíblia (Iº Livro dos Reis 9:28, 10:11 e 22:49), Salomão tinha uma frota de barcos para ir buscar ouro a Ofir, em colaboração com o rei fenício de Tiro. “ ‘ Cavalo ’ era o nome que davam os Fenícios aos seus barcos; os rochedos – Cavalos de Fão são reminiscências dos barcos fenícios. O efeito destes rochedos é de apenas deixar acostar barcos de pequeno tamanho; em tempo de maré cheia os Cavalos de Fão são boas armadilhas costeiras, fazendo abalroar as embarcações intrusas que desconheçam a sua existência.”78

O autor relaciona os Cavalos de Fão - Ofir com outros topónimos fenícios dos arredores, nomeadamente Carcavelos (em fenício Karka-belus «domínio do senhor», feitoria). Defensor acérrimo da importância da relação entre os cultos populares e os topónimos que lhe são inerentes, uma vez que “A compreensão da significação dos topónimos é também (ou sobretudo) o terreno dos etnólogos e dos sociólogos. Os territórios referenciados por esses nomes são, antes de mais, espaços sociais, domesticados, apropriados e controlados pelos grupos que neles habitam. «Baptizar» um sítio é integrá-lo no território da comunidade e determinar o tipo de relacionamento com ele.”79, estabelece uma relação entre os topónimos Cavalos de Fão e Ofir, remetendo-nos assim, para os cultos populares ancestrais na cultura popular portuguesa.

O autor demonstra que os Fenícios se estabeleceram em Fão no milénio III a. C., deixando vestígios da sua civilização bem marcantes ao nível da toponímia. E se considerarmos que a sua presença na Península Ibérica se prolongou por dois milénios, muitos mais traços culturais permaneceram. No domínio da religião, sabemos que o culto de Tammuze, igualmente conhecido por Adónis, era praticado por este povo. 76 Moisés Espírito Santo, Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa, Seguido de Ensaio sobre Toponímia Antiga, Lisboa, Assírio e Alvim, 1988, págs. 35177 Moisés Espírito Santo, op. cit., pág. 35178 Op. cit., pág. 35179 Op. cit. pág. 255

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Tammuze foi o deus – filho da Istar babilónica e fenícia que foi sacrificado pela salvação da humanidade e se cultuava com prantos na primavera junto aos rios.

Nesta ordem de ideias, parece-nos credível afirmar que neste local, em tempos feitoria de fenícios, prestava-se o culto a Tammuze – divindade ligada à água. E no labirinto das lendas seleccionadas para a nossa análise, estamos em crer que para o fenómeno religioso do Bom Senhor Jesus de Fão foram integrados elementos do antigo culto de Tammuze.

Matosinhos

“Professa a lenda que a imagem foi esculpida por Nicodemus (…) considerada uma cópia fiel da face de Cristo. Nicodemus teria lançado

a imagem ao mar (...) esta teria ido dar à praia de Matosinhos, perdendo um braço. Um dia uma mulher que andava ao pé da praia a

apanhar a lenha encontrou um pedaço de madeira. (…) atirou-o à lareira várias vezes, mas este pedaço saltava sempre para fora, até

que a filha, muda de nascença, conseguiu proferir que aquele pedaço era o braço de Nosso Senhor das Bouças. E, de facto, aquele pedaço

de madeira ajustava-se perfeitamente à imagem venerada pela população. No século XVI, a imagem foi transportada para a actual

igreja, construída em sua honra.”80

No local onde foi encontrada a imagem foi construído um monumento-memória designado de Padrão do Bom Jesus de Matosinhos. Localizado no lugar do Espinheiro, data do século XVIII, e apresenta características barrocas. Constatámos que este padrão é constituído por um cruzeiro sob um alpendre. Uma das faces do cruzeiro encontra-se revestida por azulejos brancos, sobressaindo a imagem de Jesus Cristo a azulejos azuis.

O facto de aqui se encontrarem algumas velas acesas leva a crer que se praticam alguns cultos religiosos. Quando questionámos os transeuntes que por ali passam e moradoras de uma rua perto deste padrão sobre as práticas religiosas deste local, não obtivemos nenhuma resposta concreta. Todas as respostas foram direccionadas para as cerimónias religiosas da igreja do Bom Jesus de Matosinhos.

A poucos quilómetros de distância encontra-se a Igreja do Bom Jesus de Matosinhos. No seu interior encontram-se alguns dos mais representativos painéis de talha dourada de artistas do barroco nortenho. Apesar de Nicolau Nasoni estar ligado a esta igreja, este pintor e arquitecto, que marcou o barroco setecentista na cidade do Porto, apenas participou no seu restauro/ renovação. A igreja iniciou a sua construção no século XVI, apresenta características renascentistas, e desde então tem sido alvo de inúmeras alterações até à actualidade.

Relativamente à imagem de Cristo crucificado, a sua origem remonta ao século XII ou XIII. A tradição diz que a imagem é uma das mais antigas da cristandade. Trata-se de uma escultura em madeira oca, com cerca de dois metros de altura e bastante 80 in www. instituto-camoes.pt

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assimétrica e simbólica no olhar, dado que o olho esquerdo se dirige para o céu e o direito para a terra - numa clara dicotomia entre Deus e o Homem.

A festa em honra do Senhor de Matosinhos é de clara expressão a nível regional, o número de romeiros é avultado; e sempre assim foi ao longo dos tempos.

3.2 Junto à Foz do Douro existem mais Senhor Jesus Irmãos

Valadares

De acordo com a tradição oral, o Senhor dos Aflitos aqui venerado é irmão do Senhor de Matosinhos. Esta imagem de Jesus Cristo também foi lançada ao mar, vítima da iconoclastia que se vivia em paragens distantes. A costa atlântica e o povo português, assumem o espaço e função de salvadores e protectores das imagens condenadas nos países “hereges”.

No primeiro fim-de-semana do mês de Julho, na vila de Valadares, iniciam-se os festejos em honra do Nosso Senhor dos Aflitos. As festividades têm a duração de cerca de uma semana e iniciam-se com uma missa na capela do Divino, seguido do transporte da imagem da respectiva capela, que se situa na praia, para a igreja paroquial. Como é característico das festas, estas compõe-se de uma vertente profana, com a actuação de ranchos folclóricos, grupos musicais, feira e actividades desportivas, e de uma vertente religiosa através da celebração de missas e realização de procissões, aproveitando os crentes para cumprir as suas promessas. O mesmo sucede aqui em Valadares.

Gulpilhares – Miramar

Nesta praia deu à costa uma imagem de Jesus Cristo, há muitos anos atrás, «no tempo em que se fazia mal às imagens em certos sítios».

Depois de recolhida foi colocada em terra, mas de imediato a imagem fugia para a rocha. «Era a imagem a pedir para se construir uma capela na rocha. E fez-se-lhe a vontade». No decorrer da nossa

conversa, acrescentaram ainda que esta imagem é irmã da do Senhor de Matosinhos e da do Senhor dos Aflitos de Valadares, sendo as festas em sua honra em dias diferentes para se poder ir a todas.

Debruçando-nos sobre o mito da fundação do Senhor da Pedra, Henrique Manuel Moreira Guedes refere:

“A lenda do resgate milagroso de um capitão, vitimado pelo naufrágio do seu navio, faz-nos crer na possibilidade de a devoção ao Senhor da

Pedra, ter surgido entre marinheiros e pescadores que, quando perdidos ou acossados por uma tempestade, invocam a protecção de

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Jesus Cristo. Quando avistavam a Pedra da Assureira sentiam-se a salvo, tomando-a como uma manifestação da protecção divina. Deste modo, é provável que tenham passado a invocar Jesus Cristo como o

Senhor da Pedra” 81 .

A capela do Senhor da Pedra situa-se na praia de Miramar e está construída sobre a Pedra da Assureira. Relativamente ao topónimo Assureira, Moisés Espírito Santo considera que a sua origem está relacionada com o topónimo judaico - fenício Açor ‘rochedo ’.

Mas Moisés Espírito Santo leva bem mais longe o estudo do Senhor Jesus da Pedra de Gulpilhares. No seu livro Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa seguido de Ensaio sobre Toponímia Antiga, dedica-lhe um capítulo onde apresenta uma explicação etno-histórica para o facto religioso e social em análise. Depois de uma breve associação deste santuário aos prantos de Tammuze e à cultura fenícia e hebraica, este sociólogo das religiões advoga que: “É evidente que este e todos os outros cultos não têm origem nas capelas actuais; pelo contrário: muitas capelas derivam de antigos cultos, que no passado não necessitavam de templos. Uma lápide na parede da capela do mar diz claramente que esta se ergue num local onde se realizavam «ritos pagãos» ”.82

Na Pedra da Assureira, a Poente da capela do Senhor da Pedra, é possível observar a «pata do boi»; trata-se de uma marca, muito vaga, de uma ferradura gravada na rocha.”Diz-se que um barco carregado de animais naufragou e que um boi «se escapou e chegou ali milagrosamente», imprimindo a sua pata na rocha, história vulgar que todavia contém uma vaga reminiscência de um culto em que entram bois”83.

Inserido no santuário do Senhor da Pedra, junto à beira-mar existe ainda a capela do Senhor dos Amarrados, também designado por Senhor dos Milagres. Este pequeno local de culto é alvo de peregrinação complementar. E, enquanto o Senhor da Pedra – também designado de Senhor da Escuridão – é representado por um crucifixo, o Senhor dos Amarrados é representado por um Cristo vestido com uma túnica e com uma corda em volta da cintura e do pescoço.

Como podemos constatar este espaço é, por excelência, peculiar a nível paisagístico e mítico. E, como sistematiza Moisés Espírito Santo: “Qualquer ritual pode manter-se inalterado ao longo de milénios, perpetuado pela memória colectiva ligada ao espaço, mas a sua significação deteriora-se e adquire conteúdos anódinos e folclóricos. A «pata do boi» relaciona-se sem dúvida com holocaustos de bois sobre a pedra, no próprio local onde se encontra hoje a capela. Seriam os tais «ritos pagãos» a que se refere a lápide? Talvez aí tivesse existido algum bezerro sagrado, uma vez que tanto Yaveh como Baal foram representados por bezerros; a «pata do boi» seria então a marca do bezerro divino que representava Deus, que, por seu lado, habitava na pedra tal como o Senhor da Pedra mora hoje sobre ela. A actividade oracular a que se liga o santuário é

81 Henrique Manuel Moreira Guedes, O Sítio do Senhor da Pedra – Monografia Patrimonial, Gulpilhares, Confraria do Senhor da Pedra, 2000, pág. 53. De ressalvar que este autor também aflora a possibilidade de a lenda se basear no aparecimento de um crucifixo milagroso, ainda que de forma breve.82 Moisés Espírito Santo, op. cit., pág. 10283 Moisés Espírito Santo, op. cit. pág. 103.

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idêntica à daquelas religiões antigas cujos santuários eram igualmente frequentados por bruxos, adivinhos e «filhos de profeta».

O Senhor da Pedra é herdeiro igualmente da terceira pessoa da tríade fenícia Thamuze / Adónis. O título de Senhor da Escuridão era também o de Tammuze, porque o seu nome significa «filho fiel das águas profundas», relacionado com os Infernos, e porque do seu suplício por ocasião das ceifas, o trigo renascia. O nome do outro Cristo, «Senhor dos Amarrados», também podia ser o seu porque foi amarrado a uma árvore, emasculado por amor de Isthar, que ele morreu. (…) Conjugando todos os elementos, concluímos sem dificuldade que o culto do Senhor da Pedra de Gulpilhares associado à fusão entre Yaveh, Baal e Adónis tem origem nas religiões fenícia e hebraica, sobretudo fenícia.”84

Todos os anos, no domingo de Pentecostes, ou domingo da Santíssima Trindade85, realiza-se a romaria do Senhor da Pedra, prolongando-se os festejos até à Terça-feira seguinte. A romaria composta por uma componente sagrada e por uma profana, assume as características de uma festa/ romaria típica da actual cultura popular portuguesa (tema que oportunamente desenvolveremos).

3.3 O Senhor Jesus das Barrocas – Aveiro

Actualmente a capela do Senhor da Barrocas situa-se no centro da cidade de Aveiro. No entanto, na época em que este templo foi construído, o mesmo não sucedia dado a configuração da cidade ser diferente. Assim sendo, o mito de origem está associado a um caminho antigo, entre Aveiro e Esgueira, apelidado de Barrocas e a um cruzeiro que aí se encontrava. João Gonçalves Gaspar refere que barrocas “É um topónimo bastante antigo; já em 1503 havia aí, num ermo entre Esgueira e Sá, uma propriedade rústica que era foreira do Mosteiro de Jesus. A designação veio-lhe da natureza geológica da zona a que o povo chamava barrocas ou barrocos, palavra que significará sítio de barro ou – na opinião do notável arabista Frei João de Sousa (…) - terá origem árabe e designará terrenos incultos cheios de cascalho e penedia.”86. No que concerne ao cruzeiro, o mesmo autor esclarece que este se encontrava junto a uma fonte e que se caracterizava por ser “lítico, modesto e popular; sobre a coluna, fixaram um Crucifixo, em cuja cruz, pela frente, gravaram uma data – 1707 – e no reverso escreveram: - SANCTUS DEUS, SANCTUS DOMINUS, SANCTUS IMMORTALIS, MISERERE NOBIS. + CHRISTUS NOBISCUM + STATE.”87. Esta inscrição em português assume o seguinte significado: Santo Deus, Santo Senhor, Santo Imortal, tem piedade de nós. + Cristo, permanecei connosco.

Ficamos então a saber que o topónimo deste lugar remonta ao século XVI, enquanto que o cruzeiro apresenta uma data do início do século XVIII. Curiosamente, o cruzeiro é considerado modesto e popular, contudo a inscrição nele gravada surge em latim, língua utilizada apenas pelas classes letradas. O facto deste cruzeiro, cuja devoção foi aumentando progressivamente, se encontrar no lugar das Barrocas deu origem ao Senhor das Barrocas.

84 Moisés Espírito Santo, op. cit. pág. 104.85 Domingo anterior ao dia do Corpo de Deus86 João Gonçalves Gaspar, Igreja do Senhor das Barrocas, Aveiro, Paróquia da Vera -Cruz, 1996, pág. 7.87 João Gaspar, op. cit. pág. 8.

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O primeiro milagre ocorreu em 13 de Setembro de 1721. Custódio Fernandes encontrava-se bastante doente e, por sugestão de uma vizinha, pediu ao Senhor das Barrocas que o salvasse. Em troca,

prometeu-lhe uma vela de cera com uma fita vermelha. Depois de lhe rezar e de beber o seu caldo de galinha, caiu num sono profundo88, do

qual só acordou oito dias depois, mas perfeitamente recuperado. Relatou então, que nesse espaço de tempo fora levado até junto da imagem do Senhor das Barrocas e que foi ela que o salvou do perigo

que corria.

A difusão deste milagre foi imediata, chegando inclusivamente a ser publicado na “Gazeta de Lisboa Occidental”, de 20 de Novembro de 1721. O Senhor das Barrocas passou a ser visitado por romeiros provenientes de diversas zonas do reino que aqui se deslocavam, na maioria dos casos, para agradecer os pedidos concedidos. A sua fama atingiu tal proporção, e inserido na dinâmica político-religiosa do reinado de D. João V, que, a 16 de Novembro de 1732, o cruzeiro foi trasladado para a capela do Senhor das Barrocas.

A par da construção da capela criou-se a confraria do Senhor das Barrocas encarregue de assegurar o culto (não só no dia da festa principal a 25 de Julho, como durante todo o ano) e de administrar as receitas, na sua maioria provenientes do pagamento de promessas. Foi ainda sua preocupação criar infra estruturas para receber os romeiros adequadamente, dado que muitos se deslocavam de longe até este local. Como afirma João Gaspar: “ A fama taumatúrgica do Senhor das Barrocas, decerto ampliada pela imaginação popular, não arrastou apenas nos arredores de Aveiro mas chegou também a variadíssimas terras do País; muitas pessoas constantemente aqui vinham de longe ou de perto, para rezarem e para se desobrigarem de promessas. (…) Também os mareantes conservavam grande fé no Senhor das Barrocas; quando se achavam em perigo no alto-mar, prometiam trazer-lhe uma das velas do barco, se Cristo os libertasse de tamanhas angústias. Favorecidos pelo Céu, apressavam-se a cumprir os seus votos, chorando de comoção e cantando o “Bendito”; assistiam devotamente à Missa na igreja e, em seguida, era a vela de pano arrematada, destinando-se ao culto o produto da venda. (…) Por iguais motivos, eram também levados painéis ou estampas – vulgarmente conhecidos por “ex-votos” – que representavam embarcações em perigo ou marinheiros a implorarem, aflitos a protecção divina.”89.

E, enquanto que em 1732, em Aveiro, se faz a trasladação do cruzeiro do Senhor das Barrocas para a capela construída em sua honra, nos arredores de um lugar – Casal dos Maios – perto de Leiria constrói-se uma ermida em sua homenagem. O Senhor das Barrocas, que neste lugar se manifestou «milagrosamente», passa e ter dois locais de culto.

88 O mesmo sucedeu a Francisco Maio. Segundo a lenda, depois de Invocar o Senhor das Barrocas, também ele caiu em sono profundo e quando acordou estava curado, ou seja, andava. O sono profundo é comum aos dois milagres ocorridos em sítios diferentes. O de Custódio Fernandes em Aveiro e o de Francisco Maio perto de Casal dos Maios, actualmente Milagres. Ambos os milagres se caracterizam por ter sido a primeira manifestação milagrosa a ocorrer em cada um dos locais, por o milagre incidir sobre problemas de saúde e em indivíduos do sexo masculino.89 João Gonçalves Gaspar, op cit., pág. 46

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A ermida que aqui mencionamos deu, em seguida, lugar a um santuário; e o local onde, segundo a lenda, ocorreram milagres por invocação ao Senhor das Barrocas é actualmente uma aldeia à qual foi atribuído o topónimo de Milagres. Aqui, em oposição ao Senhor das Barrocas de Aveiro, o culto continua a fazer parte identidade sócio-religiosa da comunidade. E o nosso estudo tem como objectivo principal analisar e compreender a forma de expressão e comunicação popular da comunidade rural com o seu Senhor Jesus. E se no fenómeno social em causa existem elementos que lhe conferem singularidade, também existem elementos comuns a outros Senhor Jesus.

O Senhor Jesus dos Milagres, objecto principal do nosso estudo, foi inicialmente uma «ramificação» deste Senhor das Barrocas de Aveiro.

3.4 O Senhor Jesus da Pedra de Óbidos

O Senhor Jesus da Pedra de Óbidos, uma cruz em pedra, de data desconhecida, que se assume ter gravada a figura de Jesus Cristo, é celebrado a 3 de Maio, num santuário fora das muralhas da vila de Óbidos. Duas lendas apontam para a descoberta desta cruz «milagrosa»: uma relacionada com um homem injustiçado e a outra com um mau ano agrícola.

“Saberá vossemecê que vivia neste sítio um homenzinho, que andava com uma demanda, em grande risco de a perder porque o seu

contrário era pessoa de teres, e tinha comprado os juízes a poder de dinheiro; a justiça era toda do pobre homem mas, como ele tinha a

bolsa vazia, o tribunal não lhe entendia as razões, (…) Uma noite (…) ouviu uma voz de dentro de uma pedra dizer-lhe por estas palavras:-Descansa! Justiça te será feita! (…) quando na manhã seguinte foi tratar do seu negócio, já a sentença estava dada em seu favor! Este

caso foi falado em Óbidos, e logo se passou a examinar o sítio do milagre, encontrando-se na pedra que estava escondida entre as

carrasqueiras, a imagem do Senhor. Daqui se espalhou a sua fama e virtude, a ponto de se mandar construir aquela igreja do Senhor da

Pedra.”90

“A lenda que mais firmemente se tem estabelecido (…) conta que um lavrador escutou uma voz entre um silvado dizendo que não iria

chover enquanto não se venerasse condignamente a imagem. Note-se que um dos pontos altos desta situação de crise ocorreu entre

1734 e 1736 com uma grave seca que deixou os campos infrutíferos.Seja qual for o fundo verídico que possa estar diluído no quadro

lendário, o facto é que uma cruz foi encontrada num combro (…), junto à antiga estrada que ligava esta Vila à de caldas da Rainha (…). Tomando-se conhecimento deste fenómeno, de imediato se organizou uma procissão (…) Chegados ao local onde se encontrava a imagem,

90 Sérgio Gorjão, op. cit., págs. 29-30

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aí rezaram (…) Pouco tempo depois choveu abundantemente, sendo um ano de boas colheitas.”91

O santuário do Senhor Jesus da Pedra de Óbidos destaca-se no enquadramento paisagístico pela sua arquitectura: um círculo exterior com um interior em forma de hexágono. Mas apesar de neste local esta construção ter algum impacto paisagístico, não nos podemos alhear do facto de esta planta arquitectónica não ser a única no nosso país. São vários os templos religiosos que apresentam este tipo de planta circular ou centrada, com um interior em forma de hexágono. Só no nosso estudo podemos apontar os templos do Senhor Jesus das Cruzes em Barcelos, o Senhor Jesus da Pedra em Gulpilhares e o do Senhor das Barrocas; todos eles construídos no período barroco.

Relativamente a este aspecto Sérgio Gorjão clarifica: “Com o Concílio de Trento, seguiu-se um período de forte regulamentação do espaço destinado ao culto, nomeadamente com as recomendações da Sessão XXV e com as Instruções de S. Carlos Borromeo, que pretendiam acabar com qualquer tipo de sugestão ao humanismo renascentista, glosando sobre o simbolismo das formas planimétricas, promovendo a eliminação das plantas em cruz grega, em quadrado, em triângulo (ou com triângulos inscritos) ou ainda em círculo já que, sobretudo os dois últimos, têm uma clara significação antropocêntrica nas teorias neoplatónicas. Além das limitações emanadas do concílio tridentino, também outros diplomas eclesiásticos de âmbito nacional, desde meados do séc. XVI, assumem uma posição de «controlo» das novas edificações ou reedificações que, obrigatoriamente, teriam de subir à aprovação episcopal. Contudo, na prática, o Concílio não consegue eliminar radicalmente o uso da planta circular ou centrada, apenas a afasta das grandes obras de maior erudição numa primeira fase, relegando este tipo de construção para segundo plano. (…) A manutenção deste tipo de plantas em Portugal deve-se a diversos factores: por um lado, o facto de ser um país periférico, fez com que os cânones tridentinos chegassem muito mais lentamente sem o peso que poderiam ter em outras áreas da Europa; depois porque este tipo de planta deveria ter um dispêndio de construção bastante reduzido quando aplicado a pequenas capelas ou ermidas; por último, porque os próprios arquitectos não abandonaram em definitivo este tipo de programa que se adaptava bastante aos seus exercícios arquitectónicos.”92

Moisés Espírito Santo também apresenta uma explicação para este tipo de construção (a propósito do Senhor Jesus da Pedra de Gulpilhares) e refere: “ A forma hexagonal da capela assente num antigo local de culto «pagão» corresponde ao perímetro do emblema solar formado por dois triângulos cruzados, um emblema do Sol por referência à divindade Baal Seiman, Senhor Sol. O perímetro hexagonal sobre o qual assenta a capela de Gulpilhares seria a «casa do sol».”93.

Estamos pois perante um elemento cultual característico das religiões fenícia e hebraica. Podemos então considerar a possibilidade da transferência de um elemento de um culto antigo – um traçado de um templo – para o culto cristão. Não nos parece de forma alguma que as explicações de Sérgio Gorjão e de Moisés Espírito Santo, para este tipo de construção arquitectónica, sejam contraditórias, mas sim complementares.

91 Sérgio Gorjão, op. cit., pág. 3092 Sérgio Gorjão, op. cit. págs 60, 61.93 Moisés Espírito Santo, op. cit. pág. 103.

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O culto religioso na cultura popular portuguesa, por norma, proporciona a realização de uma feira junto ao templo onde se homenageia a entidade divina. A nossa observação no terreno comprovou tal fenómeno social. Tal não se verificou apenas no Senhor das Barrocas, em Aveiro, mas, ao que tudo indica, o culto aí parece estar actualmente extinto. Em Óbidos, a data escolhida para a festividade religiosa em honra do Senhor Jesus da Pedra e para a realização da feira foi o dia três de Maio, dia da Invenção da Santa Cruz.94.

No dia 3 de Maio de 2005 dirigimo-nos ao local com o intuito de observar este contexto social concreto. Às onze horas realizou se uma missa celebrada por dois padres; o número de participantes rondava as cinquenta pessoas com idades superiores a quarenta anos. Na homília proferida durante a missa um dos padres deu especial enfoque ao dia da Invenção da Santa Cruz; não nos apercebemos que se tenha feito referência alguma ao Senhor da Pedra

Cá fora, no adro da igreja, perguntámos a algumas pessoas por que motivo havia naquele dia uma feira e uma missa. Algumas desconheciam esta celebração, apenas iam à feira. Outras disseram-nos que todos os anos se realizava, no dia de três de Maio, a feira da Santa Cruz. Nenhuma alusão ao Senhor da Pedra foi feita. A feira da Santa Cruz caracteriza-se pela venda de produtos e alfaias agrícolas, roupas, calçado e outros bens de consumo.

3.5 O Senhor Jesus do Carvalhal

Próximo de Óbidos, no concelho do Bombarral fomos encontrar o santuário do Senhor Jesus do Carvalhal. O seu aparecimento neste lugar está associado a uma lenda que conta que:

Em tempos idos, ao largo de Peniche, deu à costa uma caixa onde se encontrava um Cristo crucificado. Um pescador decidiu retirá-lo da

beira-mar e transportou-o até este local. Diz-se que daqui não avançou, uma vez que a imagem se tornou demasiado pesada.

Inicialmente existia neste espaço uma ermida dedicada a S. Pedro; aquando o terramoto de 1755, esta ruiu sendo então construído o actual santuário. À antiga designação S. Pedro acrescentou-se-lhe a de Senhor Jesus do Carvalhal, uma vez que neste lugar também existia uma imagem de Jesus Cristo crucificado – símbolo de grande devoção na zona oeste.

O santuário do Carvalhal, desde o século XIX, serve de apoio ao culto a S. Pedro e ao Senhor do Carvalhal. Recentemente, também se organizam celebrações religiosas em

94 Sérgio Gorjão, op. cit. pág. 56 “ A feira de Santa Cruz foi instituída em 1762 por alvará régio de D. José I, realizando-se no terreiro fronteiro ao Santuário, no dia 3 de Maio de cada ano, dia da principal festa do Senhor Jesus da Pedra e que anteriormente ao Concílio Vaticano II, era dedicado à festividade da Invenção da Santa Cruz.”

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honra de Nossa Senhora de Fátima. As principais manifestações religiosas que aqui ocorrem relacionam-se com as datas festivas de cada uma destas entidades divinas. Assim, a festa principal da paróquia realiza-se a 29 de Junho, no dia de S. Pedro. No 5º domingo da Quaresma realiza-se a procissão do Senhor dos Passos. A festa em honra a Nossa Senhora de Fátima comemora-se a 13 de Maio.

No ambiente cultual vivido neste santuário, são ainda de destacar os círios que, de Maio a Novembro, aqui se deslocam. Provenientes de locais relativamente próximo do santuário (Casal das Oliveirinhas, Merendeiro, Rijo e Campainhas, Ribeira de Palheiros, Marquiteira, Adão-Lobo, Seixal, Carvalhal, Maxial, Ferrel, Campelos, Cabeça da Gorda, Bolhos e Papagôvas, Carrasqueiras, Sobral do Parelhão e Atouguia da Baleia), vêm com o objectivo de louvar e agradecer ao Senhor Jesus do Carvalhal as graças concedidas. Ao chegar a este templo, uma criança vestida de anjo canta as “Loas”. José Leite de Vasconcelos faz referência ao “Círio de Adão Lobo: Vai ao Senhor Jesus do Carvalhal. Antigamente iam anjos e distribuíam loas. Saíam da capelinha, e o modo de condução era o carro de bois. O pequeno templo caiu em ruínas, e passaram a sair do largo do lugar. Reconstruída a capela, a partida voltou a ser de lá, segundo o costume, ao meio-dia e a chegada pela tardinha. Agora o percurso é de trem e de automóvel; ninguém vai a pé.”95.

Desde o século XIX tem havido a preocupação de construir infra-estruturas que proporcionem o bem-estar dos romeiros. Este santuário é dotado, para além da igreja, de casas de romeiros, coreto, adro da igreja e amplo parque arborizado.

3.6 O Senhor Jesus das Chagas

À semelhança dos Senhor Jesus Irmãos localizados no norte do país, concretamente o Senhor das Cruzes, o Senhor Bom Jesus de Fão e o Senhor de Matosinhos, também o Senhor Jesus das Chagas deu à costa vindo de terras distantes, sem um braço. A lenda também coincide no que diz respeito à reposição do braço na imagem: uma velhinha, andando à lenha para se aquecer, encontrou o braço que faltava para completar a imagem, mas não se apercebeu de tal facto e deitou-o à fogueira. Contudo, este não ardeu - chega-se mesmo a relatar que este saltou do lume repetidas vezes. É então que surge a revelação: o braço pertence ao Senhor Jesus.

Tal como em alguns mitos de origem referidos anteriormente, esta imagem foi lançada ao mar para ser salva das profanações do local onde inicialmente se encontrava. A do Senhor Jesus das Chagas de Sesimbra diz-se que provém de Inglaterra. “Tradicionalmente a «aparição» deu-se no século XVI (a escultura da Imagem, magnífica, é deste século); surgida na praia junto à pedra, a nascente da fortaleza de Santiago, a Imagem teria sido transportada para o terreiro onde hoje é o jardim, e aí lhe teriam armado uma capela. (…) Da improvisada capela teria um dia sido levada para a capela da Misericórdia”96.

95 José de Leite Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, Volume IX, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985, pág. 31296 Rafael Monteiro, A Festa das Chagas, Os Painéis de Nuno Gonçalves e Outros Temas , Sesimbra, Câmara Municipal de Sesimbra, 2002, págs. 23-24

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Quanto ao início do culto ao Senhor Jesus das Chagas, na sua forma actual, Rafael Monteiro esclarece: “Pouco depois de 1755, o Prior da Matriz dizia que na Capela da Misericórdia, no altar do lado direito (lado da epístola), se encontrava a milagrosíssima Imagem do Senhor Jesus das Chagas – não sabendo nós se o superlativo referia o aparecimento, ou milagres obtidos por sua intercessão. (…) de tudo quanto conhecemos sobre Sesimbra, só no século XVIII encontremos notícia segura do culto ao Senhor das Chagas.”97.

A data de celebração do Senhor das Chagas é o dia 3 de Maio; a propósito deste dia o mesmo autor apresenta a seguinte explicação: “ que é, no calendário litúrgico, o dia da festa da Invenção da Santa Cruz, «milagre» minuciosamente relatado no século XIII pelo dominicano Jacques de Voragine, dando-o como acontecido no século III, nele tendo lugar primacial, Helena, mãe de Constantino, que dá a seu filho, após o achamento da Cruz, parte daquele santo lenho, como relíquia preciosa. Tal relíquia, depois de muito partilhada no mundo cristão, acompanha, em relicário e sob o pálio, a Imagem do Senhor Jesus das Chagas durante a procissão.”98.

Como é característico na religião popular portuguesa, as festividades em honra a uma entidade religiosa prolongam-se por mais de um dia estando a elas associadas uma feira. O mesmo sucede com o Senhor Jesus das Chagas. Em 2004, o seu início ocorreu, a 11 de Abril, com a procissão da imagem do Senhor Jesus das Chagas da Capela da Misericórdia para a Igreja Matriz de Santiago. Desde este dia até ao dia 4 de Maio, dia da «grandiosa procissão com a imagem do Senhor das Chagas», decorreram diversas iniciativas de componente religiosa – missas, novenas, cumprimento de promessas – e de componente profana – recital de poesia, feira, concertos, exposições fotográficas, fogo de artifício, entrega de condecorações municipais.

A «grandiosa procissão do Senhor das Chagas» assume principal destaque no quadro festivo deste Cristo Crucificado. A 4 de Maio, a imagem regressa à Capela da Misericórdia. O percurso, de acordo com os testemunhos orais recolhidos, é o mesmo que já se fazia no século XVIII, ocorrendo seis paragens: duas para abençoar a terra e quatro para abençoar o mar. Algumas ruas são cuidadosamente decoradas com alecrim no chão e com colchas nas janelas, quando a imagem passa são lançadas pétalas de rosas.

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Após a apresentação deste conjunto de Senhor Jesus existentes na orla costeira do território português, podemos constatar a presença de elementos comuns a vários níveis. Quanto ao conteúdo lendário, a semelhança é de tal forma evidente que se criaram laços de parentesco entre os vários Senhor Jesus. Uma breve análise cronológica permitiu-nos concluir que esta convergência se perde nos tempos. De acordo com as respectivas lendas, a imagem do Senhor de Matosinhos foi lançada ao mar por Nicodemus, a de Sesimbra por ordem de uma rainha de Inglaterra. Outras houve que se encontravam em silvados e falaram afim de serem encontradas. Mas estamos perante narrativas cujas fontes se baseiam na tradição oral e cujo conteúdo não se apresenta sustentável para a explicação do aparecimento destes cultos ao longo da costa atlântica. Como explicar então o aparecimento destes cultos?

97 Rafael Monteiro, op. cit., págs. 48, 4998 Rafael Monteiro, op. cit. pág. 22

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Há ainda que considerar que em alguns casos a estrutura arquitectónica é semelhante, caso do Senhor das Cruzes em Barcelos, do Senhor das Barrocas em Aveiro e do Senhor da Pedra em Gulpilhares e em Óbidos; noutros a convergência verifica-se a nível da data de celebração, nomeadamente o Senhor das Cruzes, o Senhor da Pedra de Óbidos e o Senhor das Chagas que se festejam a 3 de Maio. No que diz respeito ao contexto histórico, todos os cultos, incluindo o culto do Senhor dos Milagres, tiveram grande incremento no período barroco.

Por culto entendemos o conjunto de práticas e comportamentos, sobretudo de carácter colectivo, por meios dos quais o ser social se relaciona com aquilo em que acredita. É através do culto que o ser social intensifica a sua religiosidade e estreita laços de solidariedade com aqueles com quem partilha as mesmas crenças. Deste modo, facilmente deduzimos, que o culto é composto por duas vertentes: a vertente ideológica que representa o conjunto de conceitos e crenças do indivíduo e que, eventualmente, se vai desenvolvendo e aprofundando; e a vertente social que cauciona a vertente ideológica, actuando como entidade reguladora tendo por base uma organização própria (a própria comunidade).

Neste sentido, verificamos que o culto prestado ao Senhor Jesus é convergente de Barcelos a Sesimbra. As manifestações religiosas, nomeadamente os rituais: missas, pagamento de promessas, procissões, relacionamento com a imagem, são semelhantes. E a componente designada de profana também é coincidente, dado que em todos os locais, à excepção de Aveiro onde o culto se apresenta como extinto, ocorrem actividades de carácter lúdico e festivo.

Moisés Espírito Santo remete-nos para a cultura fenícia ou púnica na Península Ibérica e esclarece: “ Os Fenícios são sobretudo conhecidos pelas suas actividades mercantis, facto que contribui para que os historiadores esqueçam todas as outras suas obras como civilizadores da bacia mediterrânea e como povoadores. O facto de nunca terem constituído um estado e de conceberem apenas uma vida política no seio de cidades autónomas leva os historiadores, mais interessados nas instituições estatais do que nos povos donde emanam os estados, a passarem sob silêncio a civilização fenícia. Também é um facto que, apesar da sua obra civilizadora, a Fenícia evoca sobretudo uma cultura e uma religião específicas. Reconhece-se em Portugal a sua influência, identificaram-se as suas escalas, mas como lugares de «passagem»; dissociar o estabelecimento de feitorias comerciais durante dois ou três milénios das acções de povoamento e de civilização das regiões onde se estabeleceram essas relações mercantis, é tão acertado como dizer que os Portugueses (durante três séculos, não três milénios) instauraram feitorias na costa de Angola e do Brasil e que, fechadas as feitorias, partiram para parte incerta ou desapareceram.”99.

Especial atenção deve ser dada aos Fenícios uma vez que este povo é considerado o povo fundador da Idade Histórica da Europa. Como afirma Moisés Espírito Santo: “Se entendermos que o princípio do homem histórico data do dia em que manuseou a escrita, temos que admitir que foram os Fenícios quem inaugurou a data histórica da Europa.”100

99 Moisés Espírito Santo, op. cit. pág. 382.100 Moisés Espírito Santo, op. cit, pág. 381.

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Ao fixarem-se na Península Ibérica, os fenícios, diz J. Mattoso, “No plano social, foram responsáveis pelas primeiras formas de escrita e, naturalmente, pela emergência local do conceito de cidade, com todas as implicações de âmbito político e social que tal conceito acarreta. Finalmente, no âmbito religioso, trouxeram à Península Ibérica novos ritos, novos deuses e novas formas de lhe prestar culto.”101 Neste domínio encontramos Tammuze, para os assírios e fenícios, ou Dommuzi, para os sumérios, representando um deus – filho sacrificado na Primavera para salvar a humanidade e que foi reconduzido à vida pela sua mãe Istar ou Astarté.

Conhecido por ser a terceira pessoa da tríade suméria e fenícia, filho (ou esposo) de Ishtar, também designada por Astarté, a sua origem remonta ao milénio III A.C. O seu nome significa «verdadeiro filho das águas profundas»; o animal que a ele surge associado é o peixe, simbolizando a água. De acordo com o mito de origem, Tammuze ensinou os humanos a cultivar as terras e a pescar; transmitiu-lhes também a noção de sacrifício altruísta. Este deus era cultuado com choros. (Posteriormente estes prantos vão ver a sua continuidade na Semana Santa, em Sevilha.)

Este culto, que os gregos posteriormente designaram de Adónis, teve grande incidência na Península Ibérica. Nas feitorias fenícias invocava-se o renascimento deste jovem deus, morto por um javali e salvo por Ishtar que o lavou com a Água da Vida. As celebrações, compostas por prantos, decorriam entre as ceifas e as vindimas, pois foi nessa altura que este jovem deus foi sacrificado e trazido à vida.

Uma breve comparação entre o mito de Adónis e a vida de Jesus Cristo permite-nos encontrar elementos comuns. Ambos tiveram vivências relacionadas com a água; ambos propagaram a mensagem de sacrifício altruísta. Já no final das suas vidas morreram sendo sacrificados para depois renascerem.

Neste sentido, e tendo em conta que na religião frequentemente ocorre a transferência das devoções com a integração de elementos do antigo culto, particularmente ao nível da religião popular, podemos afirmar que o actual culto destes Senhor Jesus tem as suas origens no mito de Thammuze ou Dommuzi, também designado por mito de Adónis, de origem fenícia que, não podendo expô-lo aqui, remetemos os leitores para as obras citadas.

101 José Mattoso, A I Idade do Ferro, in José Mattoso, História de Portugal - Antes de Portugal, Volume I, Lisboa, Editorial Estampa,1993, pág. 128

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