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ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA DO SER: Reflexões sobre os pensamentos de Sócrates e Heidegger Luiz Fernando Bandeira de Melo* Gilzane Silva Naves** Resumo Este artigo visa apresentar um estudo comparativo entre pensamentos de Sócrates e Heidegger a respeito do ser, para tanto serão destacados seus conceitos nos diálogos platônicos O Primeiro Alcebíades e Fedon e na obra Ser e Tempo. Estão consideradas observações de Benedito Nunes no texto Heidegger & Ser e Tempo, e de Rubens Garcia Nunes Sobrinho em Platão e a imortalidade: mito e argumentação no Fédon. Nas análises comparativas sobre o ser foi considerado Antonio Gomes Penna quanto à antropologia filosófica, que relata Kant distinguindo como fisiológica e pragmática a antropologia. Foi utilizado ainda os comentários feitos por Rodolfo Mondolfo em Sócrates e Thomas Ransom Giles em História do Existencialismo e da Fenomenologia. Enfim, este trabalho apresenta as concordâncias e discordâncias conceituais e filosóficas, das reflexões de Sócrates e Heidegger sobre o ser, que estão separadas cronológica e contextualmente por mais de dois mil anos. Palavras-Chave: Ser. Homem. Ontologia. Introdução A leitura da realidade varia quase sempre de acordo com o olhar do observador e neste trabalho será mostrado como Sócrates e Heidegger observam e refletem sobre o ser. A filosofia tem no ente sua principal fonte de reflexão desde Parmênides que buscava o sentido do ser no mundo. Esse pensamento é transformado em busca do conhecimento da verdade sobre o ser em Sócrates que de forma racional mostra um ser para a eternidade ao compará-lo com a alma. Lendo Heidegger observa-se que ele não critica nem Parmênides nem Sócrates por essa antecipação da sua definição de ser (de maneira hermenêutica e subjetiva da fenomenologia do próprio ser no mundo). O sentido do ser a partir de uma reflexão analítica é um caminho para encontrar a verdadeira ontologia do ser segundo o pensamento de Heidegger e em Sócrates encontra-se o ser racional que se confunde com o corpo e compõe junto a esse corpo o homem representado pela sua alma. Nesse ambiente reflexivo do significado do ser apresentado especificamente na obra Ser e Tempo de Heidegger e O Primeiro Alcebíades, diálogo platônico atribuído a Sócrates é que desenvolvemos este trabalho com o objetivo de apresentar o que existe de *Graduando do Curso de Bacharelado em Filosofia na Faculdade Católica de Uberlândia. E- mail:[email protected]. **Professor Ms do Departamento de Filosofia da Faculdade Católica de Uberlândia

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ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA DO SER: Reflexões sobre os pensamentos de Sócrates e Heidegger

Luiz Fernando Bandeira de Melo* Gilzane Silva Naves**

Resumo

Este artigo visa apresentar um estudo comparativo entre pensamentos de Sócrates e Heidegger a respeito do ser, para tanto serão destacados seus conceitos nos diálogos platônicos O Primeiro Alcebíades e Fedon e na obra Ser e Tempo. Estão consideradas observações de Benedito Nunes no texto Heidegger & Ser e Tempo, e de Rubens Garcia Nunes Sobrinho em Platão e a imortalidade: mito e argumentação no Fédon. Nas análises comparativas sobre o ser foi considerado Antonio Gomes Penna quanto à antropologia filosófica, que relata Kant distinguindo como fisiológica e pragmática a antropologia. Foi utilizado ainda os comentários feitos por Rodolfo Mondolfo em Sócrates e Thomas Ransom Giles em História do Existencialismo e da Fenomenologia. Enfim, este trabalho apresenta as concordâncias e discordâncias conceituais e filosóficas, das reflexões de Sócrates e Heidegger sobre o ser, que estão separadas cronológica e contextualmente por mais de dois mil anos. Palavras-Chave: Ser. Homem. Ontologia.

Introdução

A leitura da realidade varia quase sempre de acordo com o olhar do observador e neste

trabalho será mostrado como Sócrates e Heidegger observam e refletem sobre o ser. A

filosofia tem no ente sua principal fonte de reflexão desde Parmênides que buscava o sentido

do ser no mundo. Esse pensamento é transformado em busca do conhecimento da verdade

sobre o ser em Sócrates que de forma racional mostra um ser para a eternidade ao compará-lo

com a alma. Lendo Heidegger observa-se que ele não critica nem Parmênides nem Sócrates

por essa antecipação da sua definição de ser (de maneira hermenêutica e subjetiva da

fenomenologia do próprio ser no mundo).

O sentido do ser a partir de uma reflexão analítica é um caminho para encontrar a

verdadeira ontologia do ser segundo o pensamento de Heidegger e em Sócrates encontra-se o

ser racional que se confunde com o corpo e compõe junto a esse corpo o homem representado

pela sua alma. Nesse ambiente reflexivo do significado do ser apresentado especificamente na

obra Ser e Tempo de Heidegger e O Primeiro Alcebíades, diálogo platônico atribuído a

Sócrates é que desenvolvemos este trabalho com o objetivo de apresentar o que existe de

*Graduando do Curso de Bacharelado em Filosofia na Faculdade Católica de Uberlândia. E-mail:[email protected]. **Professor Ms do Departamento de Filosofia da Faculdade Católica de Uberlândia

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proximidade ou não entre os pensamentos dos dois filósofos. Torna-se relevante destacar a

importância que ambos representam para a filosofia: tanto Sócrates como precursor da

modificação do pensamento filosófico antes direcionado à natureza e após suas indagações,

preocupado em ter no homem o principal motivo das reflexões filosóficas; quanto em

Heidegger que traz um novo modo de ver o ser, e de acordo com o próprio filósofo,

verdadeiramente ontológico diferenciando a forma de significá-lo como até então era feito,

que para ele era uma análise puramente ôntica.

Contextualizações

Sócrates – Pouco é conhecido sobre a vida deste filósofo, cujo nascimento ocorreu

provavelmente no ano 470 a.C. ou 469 a.C, – tendo como pais o escultor Sofronisco e mãe a

parteira Fenareta – no final da guerra entre gregos e persas, segundo Victor Civita no volume I

de História das Grandes Ideias do Mundo Ocidental da coleção Os Pensadores (1972, p.35).

Participou de campanhas militares em defesa de sua cidade natal Atenas, como na guerra do

Peloponeso (432 a.C) e em Delos (424 a.C.). Tendo como principais fontes de reconstituição

da vida e do pensamento de Sócrates os depoimentos em livros de seus contemporâneos e

discípulos – Xenofonte, Aristófanes e Platão – encontram-se certo seu compromisso com a

busca da verdade após uma informação recebida de seu amigo de infância Querefonte que ao

consultar um oráculo em Delfos, lhe foi dito que Sócrates era o homem mais sábio. Nessa

busca Sócrates modificou o pensamento filosófico tradicional (jônico) do início do século VI

a.C., que procurava numa filosofia da natureza – physis, os princípios ou origens (arché) do

mundo em seus próprios elementos como a água (Tales de Mileto), o fogo (Heráclito de

Éfeso), o ar (Anaxímenes de Mileto), o apeíron (Anaximandro de Mileto), os números

(Pitágoras de Samos), etc., para desenvolver um pensamento voltado para os problemas do

homem, para o ser como Parmênides de Eléia. Morreu em 399 a.C., condenado por um júri

popular a beber veneno (cicuta), sob a acusação de corromper os jovens, ser ateu e disseminar

novos deuses entre os gregos. Na história da filosofia os pensadores da antiguidade (até o

século V a.C.) são classificados como pré-socráticos devido a importância dessas

modificações nas reflexões filosóficas introduzidas por Sócrates.

Heidegger – De acordo com informações de Victor Civita contidas no volume IV de

História das Grandes Ideias do Mundo Ocidental (1972, p.898), da coleção Os Pensadores,

Heidegger nasceu em Messkirch na Alemanha, em setembro de 1889 e teve sua formação

filosófica adquirida na Universidade de Freiburg-im-Breisgau, sendo parceiro de aulas de

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Edmond Husserl – criador do método filosófico conhecido como fenomenologia com o qual

se familiarizou de forma a influenciar seus pensamentos. Após ter assumido uma das cadeiras

de filosofia da Universidade de Marburg “começou a projetar-se entre os especialistas, da

filosofia através de interpretações muito pessoais dos pensadores pré-socráticos, em especial

sobre o logos de Heráclito de Éfeso e o eu de Parmênides de Eléia” (CIVITA, vol.IV, 1972,

p.898). Esses estudos deram consequencia à publicação de sua principal obra em 1927, Ser e

Tempo, que mesmo inacabada, tornou-se a mais importante representação de um pensamento

existencialista, apesar do contragosto do próprio autor. Posteriormente com a ascensão de

Hitler ao poder alemão, Heidegger aliou-se ao partido do chanceler, sendo elevado ao cargo

de reitor da Universidade de Freiburg, dando boas vindas ao nazismo no seu discurso de

posse. Publicou mais de quinze obras, falecendo depois de sua aposentadoria em Friburgo em

maio de 1976.

Reflexões sobre o SER em Sócrates

O pensamento filosófico da Grécia no período socrático estava direcionado a resolver os

problemas da natureza (physis), havendo contradições dos naturalistas a respeito do princípio

(arché) das coisas e na definição do ser, havendo propostas que de certa forma apresentavam

problemas insolúveis como “o ser é uno, o ser é múltiplo; nada se move, tudo se move; nada

se gera nem se destrói, tudo se gera e se destrói” (REALE, vol.I, 1990, p.87). Com um foco

distinto de busca, Sócrates deixa de procurar a realidade das coisas e define como principal

objetivo de sua procura a realidade última do homem. Considerando os sofistas que eram tidos

como sábios pela própria definição da palavra, Sócrates se torna um pensador diferente como

esclarece Marilena Chaui: O sofista é um professor de técnicas, de política, de virtude e de sabedoria, portanto alguém que julga possuir conhecimentos e ser capaz de transmiti-los. (...) Diferentemente dos sofistas, Sócrates não se apresenta como professor. Pergunta, não responde. Indaga, não ensina. Não faz preleções, mas introduz o diálogo como forma de busca da verdade (CHAUI, 1994, p.188).

Por conta dessa maneira de refletir inovadora para a época do pensamento grego, a

história da filosofia tem em Sócrates uma das figuras mais notáveis principalmente pela

influência que exerceu no pensamento de filósofos por diversas gerações, iniciando em Platão,

passando pelos medievais com Agostinho e outros, além de pensadores modernos e

contemporâneos. Sua linha de pensamento “abriu caminho para a chamada filosofia do

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conceito e, portanto, para a lógica clássica, na medida em que incita à busca persistente de

uma definição satisfatória de cada noção” (LOGOS, vol.4, 1992, p.1218).

Na busca de significados para entender o ser antes de Sócrates, encontra-se o princípio

da não-contradição de Parmênides, apresentado por Giovanni Reale como uma coincidência

do pensar e do ser (vol.I, 1990, p.51), através de parte de um poema de Parmênides: “Pensar e

ser é o mesmo. Pensar é o mesmo e isso em função do que o pensamento existe. Porque sem o

ser, no qual é expresso, não encontrarás o pensar: com efeito, fora do ser nada mais ele é ou

será”. Reale mostra também o niilismo do sofista Górgia, contemporâneo a Sócrates, que

entende que: o ser não existe por conta das controvérsias sobre sua existência analisadas pelos

pensadores naturalistas; se o ser existir ele não é cognoscível, pois como Parmênides afirmou

que o pensamento é sempre o ser, existem pensamentos que não existem na realidade, logo o

ser também pode não ser real; e finalmente se o ser for pensável ele é inexprimível uma vez

que a palavra não pode exprimir o que vê assim como a vista não conhece o som e o ouvido

não ouve a cor (REALE, vol.I, 1990, p.78).

Ao procurar identificar a virtude que o homem usa para se relacionar e ter sua

experiência de vida, que pudesse compor a compreensão do ser, Sócrates tem no exercício

constante de sua filosofia uma ligação com as interpretações dos mitos descritos por Hesíodo

e Homero, assim como as fábulas de Esopo, mas não os toma nas suas formas alegóricas, pois

poderiam desconceitualizar suas definições práticas obtidas nos diálogos descritos por Platão,

conforme Rubens Garcia afirma: A rejeição à interpretação alegórica dos mitos torna-se ainda mais explícita no Fedro, quando Sócrates afirma que toda interpretação mítica se veria envolto na tarefa, infindável, de decifrar o significado de uma enorme gama de figuras míticas: tal prática constituiria uma ‘sabedoria rústica’ para a qual não dispunha de tempo. Não eram os mitos o objeto de eleição da sua investigação, mas, em vez disso, o que ele investigava era, tão-somente, a si mesmo – Fedro 229d – 230a (NUNES SOBRINHO, 2007, p.74).

Esse conhecimento de si mesmo está discutido de forma intensa no diálogo O

Primeiro Alcebíades considerado por Edson Bini como o mais socrático dos escritos por

Platão. Bini afirma ao comentar as obras de Platão que nesse diálogo, Sócrates usa seu método

de perguntas e respostas conhecido filosoficamente como maiêutica, para fundamentar sua

doutrina de autoconhecimento na resposta ao problema gnosiológico: “nenhum conhecimento

é possível sem o conhecimento de si mesmo, e o conhecimento de eu possibilita e instaura o

conhecimento do não-eu, o mundo” (PLATÃO, EDIPRO, 2007, p.24). Ao interrogar

Alcebíades Sócrates (PLATÃO, EDUFPA, 2007) mostra que o homem conhece a si quando

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pode cuidar de si mesmo (129 a11 e a12), mas conhecer o que o homem é, é necessário que

ele conheça a essência íntima do seu ser (129 b 1 a 3). Na continuidade da busca de Sócrates

para entender o que é o homem fica definido com a utilização do elenchos na conversação,

que o homem é distinto de seu corpo (129 e6 e e7), mas fica explícito que a alma comanda o

corpo (130 a1 a a4), tendo como definição a afirmação de Sócrates sobre o corpo do homem e

sua alma: “uma vez que o homem não é nem o corpo, nem o conjunto dos dois, só resta, quero

crer, ou aceitar que o homem é nada, ou, no caso de ser alguma coisa, terá de ser forçosamente

alma” (130 c1 a c4). Em sequência a essa afirmação Sócrates demonstra Que primeiro precisaremos procurar saber o que seja o ser em si. Mas em vez do ser em si mesmo, procurar a natureza de cada ser em particular, o que talvez seja o bastante, pois decerto é a alma a parte mais importante de nós mesmos (130 d4 a d8).

Para compreender o que Sócrates quer dizer como “alma a parte mais importante do

corpo”, é necessário observar que esse corpo é um ser vivente e segundo Brisson, o ser vivo

para Sócrates “é um corpo composto cuja alma é capaz de realizar certas funções – motoras,

desejantes e inteligentes” (BRISSON, 2010, P.76). Assim o ser socrático confunde-se com a

alma que anima o corpo ao qual está ligada, governando-o. Nesse dualismo não existe

separação de funções entre a alma e o corpo, sendo a alma responsável pela possibilidade de

animação do corpo que ela dá a vida, conservando-o e conservando-o. Encontra-se no diálogo

Fedro escrito por Platão antes da morte de Sócrates (segundo Edson Bini), uma

conceitualização da alma que se faz necessária destacar para esclarecer o pensamento de

Sócrates sobre o ser e a alma:

Toda alma é imortal, pois aquilo que se mantém sempre em movimento é imortal; aquilo, entretanto, que move alguma coisa mais ou é movido por alguma coisa mais, quando cessa seu movimento, deixa de viver. Assim, é somente aquilo que move a si mesmo que nunca cessa de mover-se, constituindo também a fonte e princípio de movimento para todas as demais coisas que se movem. Mas o princípio não é gerado, porque tudo que é gerado é necessariamente gerado a partir de um princípio, e o princípio não é gerado a partir de coisa alguma, pois se fosse não seria gerado a partir de um princípio. E uma vez que é não gerado, tem necessariamente que ser também indestrutível, já que se o princípio fosse destruído, jamais poderia ser gerado a partir de qualquer coisa nem qualquer coisa que lhe é distinta a partir dele, posto que todas as coisas têm que ser geradas com base num princípio. Por conseguinte, o automotor (aquilo que move a si mesmo) é necessariamente o princípio do movimento, não sendo ele nem destruído nem gerado, caso contrário todo o céu e toda a geração necessariamente se abateriam e se deteriam, e jamais teriam novamente uma causa para retomar o movimento. Mas desde que constatamos que aquilo que se move por si mesmo é imortal, aquele que afirmar que esse automovimento é a essência e o fundamento da alma não incorrerá em ignomínia. De fato, todo corpo que recebe movimento de uma fonte externa não possui alma, enquanto o que tem seu movimento dentro de si possui alma, uma vez ser essa a natureza da alma. Entretanto, na hipótese de ser isso verdadeiro, a saber,

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que aquilo que move a si mesmo (o automotor) nada é senão a alma, seria necessariamente de se inferir que a alma é não gerada e imortal. (245 c6 a 246 a3)

Portanto neste diálogo platônico, observamos com clareza o entendimento do ser dado

por Sócrates, que é o ser vivo composto de alma e corpo.

Reflexões sobre o SER em Heidegger

Com a influência de Husserl, a filosofia existencialista tem como principal expoente

Martin Heidegger (REALE, vol.III, 1990, p.581) e isso é justificado quando, na mais

importante das suas obras Ser e Tempo, ele afirma que “a elaboração do problema sobre o ser

significa o tornar-se transparente de um ente, o que busca colocando-se no seu ser” e isto

consiste segundo Reale (no mesmo volume de sua obra), a analítica existencial (1990, p.583).

Dessa forma Heidegger define o homem numa permanente proposta de investigação sobre o

sentido do ser. Para o autor, até agora o ser não foi estudado filosoficamente no seu

verdadeiro sentido ontológico – metafísico – só houve reflexões a respeito do ser ôntico –

científico – sem sentido, não sendo para Heidegger esse ser ôntico um ser original. De acordo

com Ernildo Stein no capítulo “A Fenomenologia Hermenêutica” de sua obra Compreensão e

Finitude, Heidegger aponta um duplo elemento que impediu essa compreensão: ‘primeiro, de

modo geral, a omissão do problema do ser e, correlativamente, a falta de uma ontologia

temática do ser-aí, ou na linguagem kantiana, a falta de uma analítica ontológica prévia da

subjetividade do sujeito” (2001, p185).

O real sentido do ser ficou esquecido ao longo da tradição filosófica, ou seja, o espanto

ou admiração da procura pelo verdadeiro ser perdeu sua importância. Foi analisando

Aristóteles que Heidegger se questionou e questionou o pensamento filosófico sobre o

significado do ser preocupando-se com a diferença entre ser e ente, colocando clara a

diferença entre ciência e filosofia de acordo com as observações de Antonio Gomes Penna:

“Na verdade, a filosofia toma como objeto de estudo o ente em seu conjunto, enquanto a

ciência persegue em suas pesquisas os domínios particulares do ente individualizado”

(PENNA, 2004, p.91). De acordo com Heidegger, o ser precisa ser desvelado em seu sentido,

e não apenas compreendido – como foi feito até então – o que não é a mesma coisa que dar

sentido, pois dar sentido ao ser é o que não estava sendo feito pelos filósofos até então,

conforme afirma: “A compreensão de ser vaga e mediana pode também estar impregnada de

teorias tradicionais e opiniões sobre o ser, de modo que tais teorias constituam, secretamente,

fontes da compreensão dominante” (HEIDEGGER, 2009, p.41).

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A interrogação sobre o sentido do ser é feita por Heidegger de forma análoga às

questões que a tradição filosófica grega buscava, colocando o homem como centro da própria

reflexão, de forma que o filósofo alemão usa o método fenomenológico nas suas análises

ontológicas fundamentais para descobrir a estrutura ontológica do ser. Na busca do sentido do

ser Heidegger esclarece que este ser que procura seu próprio significado, questionando o

modo de ser do ente, é designado “com o temo dasein, esse ente que cada um de nós mesmos

sempre é e que, entre outras coisas, possui em seu ser a possibilidade de questionar”

(HEIDEGGER, 2009, p.42). Dasein é o termo usado por Heidegger para definir o ser

ontológico verdadeiro, que segundo a maioria das traduções é entendido como presença e tem

a interpretação de um ser-no-mundo – ser-aí – um ser-para-a-morte, pois nela existe o sentido

ou consciência para a vida. Dessa forma o autor busca a universalidade do sentido do ser

através de seu significado.

O sentido do ser está nele mesmo e não fora dele. O dasein tem um sentido próprio,

autônomo e independente, sentido esse que a ciência não consegue conceituar por não

conhecer ser verdadeiro sentido, uma vez que seus conceitos apenas o significam o ente e para

Heidegger o ser não é idêntico ao ente. Dasein é um ente privilegiado que só o homem tem e

cujo sentido só existe nele mesmo e dessa forma se torna vazio e indefinido, mas

universalizado em seu próprio sentido e que pode conhecer o ser de todas as coisas, portanto,

o ser é do ente no homem, é o ser do homem, é o dasein, um ser entendido pelo autor como:

um ser-com; uma possibilidade de existência; um estar no mundo. O dasein possui uma

condição essencial que só se dá na existência do homem e é ele (o homem) que encontra seu

próprio ser e o ser dos outros seres. É através dele que o homem tem sentido, e conforme o

autor, o dasein é o metafísico do homem.

O ser estudado pelos filósofos está definido no campo ôntico e o ser em Heidegger –

dasein – é ontológico, na verdade pré-ontológico. A ontologia tradicional trata o ser como

existente, como ele é, e para o autor essa forma de pensar o ser é ôntica e não ontológica, pois

ele diz de acordo com Celestino Pires que “a metafísica tradicional ter-se-ia fixado nos entes e

nunca se teria interrogado pelo ser dos entes” (LOGOS, vol.2, 1992, p.1058) o para ele o ser é

presença, o ser está existente no ser do ente, ou seja, está sendo na temporalidade do mundo

entre o nascimento e a morte do homem, uma vez que o mundo existe independente do ser

que está nele. E dessa maneira o dasein permite que o homem conheça sua condição de

finitude, possibilitando o verdadeiro sentido da existência. Esse ser-com-o-mundo é uma das

condições do dasein que é o ser-no-mundo definindo a existência do homem como resultado

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do seu passado em constante projeto de possibilidades para um futuro que se realizará de

acordo com suas ações presentes.

O dasein interpretado como o ser-aí por Giles é manifestadamente um ente relacionado

com seu próprio ser que com seu ente se relaciona nesse ser-aí, e como tal faz parte da

totalidade do ser, portanto “a compreensão do ser caracteriza a existência humana como modo

de ser que lhe é próprio. Determina não a essência e, sim, a própria existência do ser-aí”

(GILES, 1989, p.99), e por ser um ser-no-mundo ele não é somente uma coisa definida nesse

mundo, uma vez que ele não é uma coisa, mas uma relação com o ambiente do mundo, melhor

esclarecendo, um ser-com-o-mundo.

Esse ser-no-mundo apresenta infinitas possibilidades de existir no mundo de acordo com

sua escolha, essas possibilidades identificam o poder ser do dasein, destacando-se que entre

todas tais possibilidades uma é diferente de todas e da qual o ser não escapa: a morte. Com

essa concepção o ser do ente é em Heidegger um ser-para-a-morte limitado desde seu

nascimento, mas que durante essa existência sua consciência procura ininterruptamente o seu

sentido conforme esclarece Reale:

A análise existencial revela que a existência anônima é um poder ser constitutivo do homem. E, segundo Heidegger, o que se encontra na base desse poder ser é a dejeção, ou seja, a queda do homem no plano das coisas do mundo. Entretanto, existe a voz da consciência, que chama à existência, quando então nos colocamos não mais no plano ‘ôntico’ ou ‘existentivo’, e sim no plano ‘ontológico’ ou ‘existencial’, procurando o sentido do ser dos entes, isto é, o sentido do seu existir. A voz da consciência pega o homem envolvido pelos cuidados e o repõe diante de si mesmo, remetendo-o à questão do que ele é no mais profundo do seu ser e que não pode ocultar. (REALE, vol.III, 1990, p.586).

Considerações comparativas

Analisando as reflexões sobre o ser que Sócrates e Heidegger legaram à filosofia,

convém na perspectiva ôntico/ontológica, ler duas afirmações: uma de Benedito Nunes

esclarecendo que: ”As duas seções publicadas da primeira parte de Ser e Tempo já compõem o perfil de uma ontologia fundamental, estudando, numa analítica, com base no método fenomenológico de Husserl, o homem do ponto de vista de seu ser, como Dasein” (NUNES, 2002, p.8);

a outra de Rodolfo Mondolfo quando observa que: “A essência, o universal, quer dizer, o que há de comum nas particularidades, representa a unidade da espécie: por isso, afirma-se vigorosamente em Sócrates a exigência de unidade no conhecimento verdadeiro” (MONDOLFO, 1963, p.63)

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A partir desses esclarecimentos, é necessário buscar nos conceitos de ôntico, ontológico

e metafísico, fundamentos para posicionar alguma comparação das reflexões socráticas e

heideggerianas. Para a compreensão desses conceitos Abbagnano distingue o ôntico do

ontológico afirmando que o ôntico difere em natureza ou essência do ser categorial, ou seja:

“a propriedade empírica de um objeto é uma propriedade ôntica; a possibilidade ou a

necessidade é uma propriedade ontológica” (ABBAGNANO, 2007, p.848). Tal distinção é

ressaltada por Heidegger que, ainda segundo Abbagnano, equipara ontologia à metafísica em

sua Introduzione a ‘Che cos´è metafísica?’ (Introdução à O que é Metafísica?), quando disse:

“O pensamento que pensa na verdade do ser em termos de retorno ao fundamento da

metafísica já abandonou desde o primeiro passo o âmbito de qualquer ontologia”

(ABBAGNANO, 2007, p.848).

Apesar da busca de uma universalidade exposta nas reflexões e afirmações dos filósofos

aqui comparados, observamos que os conceitos declarados por Sócrates do ser como alma nos

diálogos platônicos, estão eminentemente envolvidos por significados ônticos, distintos,

portanto, dos que Heidegger divulga no Ser e Tempo que está necessariamente ligado à

concepção ontológica do ser. Consideramos ainda que, mesmo essa diferença cognitiva dos

pensamentos socráticos e heideggerianos, ambos têm em comum partiram de um não

conhecimento para obter uma definição e proporcionaram importantes inovações no

movimento filosófico após a divulgação de suas teses sobre o ser. Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BRISSON, Luc, e PRADEAU, Jean-François. Vocabulário de Platão. São Paulo: Martins Fontes, 2010. CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Vol.I – Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CIVITA, Victor. História das Grandes Ideias do Mundo Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p.26 a 44. (Coleção Os Pensadores, volume I). CIVITA, Victor. História das Grandes Ideias do Mundo Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p.897 a 904. (Coleção Os Pensadores, volume IV). GILES, Thomas Ransom. História do Existencialismo e da Fenomenologia. São Paulo: EPU, 1989.

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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução revisada de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: São Francisco e Vozes, 2009. MONDOLFO, Rodolfo. Sócrates. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1963. NUNES, Benedito. Heidegger & Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. NUNES SOBRINHO, Rubens Garcia. Platão e a imortalidade: mito e argumentação no Fédon. Uberlândia: EDUFU, 2007. PENNA, Antonio Gomes. Introdução à Antropologia Filosófica. Rio de Janeiro: IMAGO, 2004. PLATÃO. Diálogos – Fédon. Tradução textos complementares e notas de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2007. (Volume III). PLATÃO. Diálogos – O Primeiro Alcebíades. Tradução de Carlos Alberto Nunes e coordenação de Benedito Nunes. Belém: EDUFPA, 2007. REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Antiguidade e Idade Média.. São Paulo/SP: PAULUS, 1990. (Volume I). REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Antiguidade e Idade Média. São Paulo/SP: PAULUS, 1990. (Volume III). SOCIEDADE Científica da Universidade Católica Portuguesa. LOGOS – Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa: VERBO, 1992. (Volume 2). SOCIEDADE Científica da Universidade Católica Portuguesa. LOGOS – Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa: VERBO, 1992. (Volume 4). STEIN, Ernildo. Compreensão e Finitude. Ijui: UNIJUI, 2001, P.184 a 199.