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ANALISANDO O RACISMO, E A DESCOLONIZAÇÃO NO CURRÍCULO: 10 ANOS PÓS-IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 10.639/03 Filipe Luiz Cerqueira Carvalho 1 RESUMO Este trabalho busca analisar possibilidades e caminhos da lei 10.639/03 durante dez anos.Identificando o que se tinha antes da lei, o que foi alterado, quais foram os avanços e retrocessos. Com isso elencamos alguns desafios que julgamos ser patente para o ensino, da história e cultura Africana e Afro-brasileira, conforme prevê a lei. Não buscamos aqui dar respostas finais, esgotando o tema. Consideramos que seja um trabalho em andamento, analisando alguns documentos e construindo um ensaio teórico, orientando as análises aqui apreendidas. Entendemos que a partir da perspectiva decolonial podemos avançar com as propostas da lei, perscrutando meticulosamente o campo curricular. Palavras-chave: Descolonização, Decolonialidade, Currículo, Racismo, Educação ANALYZING RACISM AND CURRENCY DECOLONIZATION: 10 YEARS AFTER IMPLEMENTATION OF LAW 10.639 / 03 ABSTRACT This work seeks to analyze possibilities and ways of law 10.639 / 03 for ten years. Identifying what was before the law, what was changed, what were the advances and setbacks. With this we highlight some challenges that we believe are evident for teaching, African and Afro-Brazilian history and culture, according to the law. We do not seek here to give final answers, exhausting the theme. We consider it to be a work in progress, analyzing some documents and constructing a theoretical essay, guiding the analyzes seized here. We understand that from the decolonial perspective we can move forward with the proposals of the law, meticulously examining the curricular field. Keywords: Decolonization, Decoloniality, Curriculum, Racism, Education. ANALIZANDO EL RACISMO Y LA DESCOLONIZACIÓN EN EL CURRÍCULO: 10 AÑOS POST-IMPLEMENTACIÓN DE LA LEY 10.639/03 RESUMEN Este trabajo busca analizar posibilidades y caminos de la ley 10.639 / 03 durante diez años. Identificar lo que se tenía antes de la ley, lo que fue alterado, cuáles fueron los avances y retrocesos. Con eso elegimos algunos desafíos que creemos que es patente para la enseñanza, la historia y la cultura 1 Filipe Luiz Cerqueira Carvalho Graduado em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-EDU), Mestrando em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-FEBF). Participa do Núcleo de Estudos Afro- Brasileiros NEAB/UERJ

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ANALISANDO O RACISMO, E A DESCOLONIZAÇÃO NO CURRÍCULO: 10 ANOS PÓS-IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 10.639/03 Filipe Luiz Cerqueira Carvalho1

RESUMO

Este trabalho busca analisar possibilidades e caminhos da lei 10.639/03 durante dez anos.Identificando o que se tinha antes da lei, o que foi alterado, quais foram os avanços e retrocessos. Com isso elencamos alguns desafios que julgamos ser patente para o ensino, da história e cultura Africana e Afro-brasileira, conforme prevê a lei. Não buscamos aqui dar respostas finais, esgotando o tema. Consideramos que seja um trabalho em andamento, analisando alguns documentos e construindo um ensaio teórico, orientando as análises aqui apreendidas. Entendemos que a partir da perspectiva decolonial podemos avançar com as propostas da lei, perscrutando meticulosamente o campo curricular.

Palavras-chave: Descolonização, Decolonialidade, Currículo, Racismo, Educação

ANALYZING RACISM AND CURRENCY DECOLONIZATION: 10 YEARS AFTER IMPLEMENTATION OF LAW 10.639 / 03

ABSTRACT This work seeks to analyze possibilities and ways of law 10.639 / 03 for ten years. Identifying what was before the law, what was changed, what were the advances and setbacks. With this we highlight some challenges that we believe are evident for teaching, African and Afro-Brazilian history and culture, according to the law. We do not seek here to give final answers, exhausting the theme. We consider it to be a work in progress, analyzing some documents and constructing a theoretical essay, guiding the analyzes seized here. We understand that from the decolonial perspective we can move forward with the proposals of the law, meticulously examining the curricular field.

Keywords: Decolonization, Decoloniality, Curriculum, Racism, Education.

ANALIZANDO EL RACISMO Y LA DESCOLONIZACIÓN EN EL CURRÍCULO: 10 AÑOS POST-IMPLEMENTACIÓN DE LA LEY 10.639/03 RESUMEN Este trabajo busca analizar posibilidades y caminos de la ley 10.639 / 03 durante diez años. Identificar lo que se tenía antes de la ley, lo que fue alterado, cuáles fueron los avances y retrocesos. Con eso elegimos algunos desafíos que creemos que es patente para la enseñanza, la historia y la cultura

1 Filipe Luiz Cerqueira Carvalho – Graduado em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de

Janeiro (UERJ-EDU), Mestrando em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas na

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-FEBF). Participa do Núcleo de Estudos Afro-

Brasileiros – NEAB/UERJ

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africana y afro-brasileña, conforme a la ley. No buscamos aquí dar respuestas finales, agotando el tema. Consideramos que es un trabajo en marcha, analizando algunos documentos y construyendo un ensayo teórico, orientando los análisis aquí incautados. Entendemos que desde la perspectiva decolonial podemos avanzar con las propuestas de la ley, escrutando meticulosamente el campo curricular.

Palabras clave: Descolonización, Decolonialidad, Currículo, Racismo, Educación.

Introdução

Esta pesquisa tem como ponto de partida uma sinóptica observação das

Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e Para o

Ensino de Historia e Cultura Afro-Brasileira e Africana e do Dossiê de 10 anos da lei

10.639/03. Discorreremos sobre o contexto nacional em que a lei foi implementada,

concomitantemente observando as recomendações e questionamentos levantados pela

Diretrizes Curriculares Nacionais direcionados para construção de uma educação das

relações étnico-raciais.

A partir dessa exígua inspeção, traremos à tona algumas objeções que a lei

enfrentou no contexto em que foi criada. Fundamentado em fragmentos da entrevista

contida no dossiê de dez anos da lei 10.639/03 investigaremos se houve alguma

alteração no pensamento educacional, no currículo, nos conteúdos curriculares, na

formação de professores do ensino superior brasileiro. Dito de outro modo,

identificaremos as possíveis alterações no ambiente escolar frente ao racismo, nesses

poucos mais de 10 anos. Analisar-se-á quais foram os avanços e retrocessos que

ocorreram durante todo esse processo. Com isso evidenciaremos alguns caminhos e

desafios que ainda atravessam a proposta de uma educação democrática, de

promoção da igualdade racial. De outro forma, para nós resumidamente trata-se de

estratégias para uma educação decolonial afro-brasileira.

Além disso, este trabalho, em alguns pontos, será investigado em torno do

campo curricular, pois acreditamos que o currículo possa ser uma das mais relevantes

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ferramentas quando tratamos de uma educação para relações raciais. Relevantes em

dois aspectos. O primeiro, como ferramenta na articulação de conteúdos, saberes e

conhecimentos que provoquem e tencionem caminhos para promoção da igualdade

racial. O segundo, como uma ferramenta de controle, de manutenção que não

possibilita outros saberes além do conteúdo tradicional2.

Um olhar mais inveterado ao campo do currículo poderá nos fornecer algumas

pistas, respostas e saídas de como se dá a efetivação do ensino da história e cultura

Africana e Afro-Brasileira atualmente, quais os avanços, retrocessos e barreiras que

tivemos durante esses quinze anos e os caminhos e desafios que necessitam ser

percorridos.

Localizamos o currículo como a arena de batalha para os educadores e

pensadores que vislumbram construir uma educação de combate ao racismo,

descolonizadora. Conotamos o currículo como arena de batalha, por que o enxergamos

como uma ferramenta política, permeada por disputas e uma intrínseca relação de

poder, onde um determinado saber se coloca como verdadeiro e único, se tornando

hegemônico em detrimento de outros saberes, que acabam sendo filtrados,

resignificados ou geralmente marginalizados e excluídos. Ou como salienta

FOUCAULT (2010) saberes sujeitados3.

É nesse conflito e constante relação de forças e poder que atravessam o

currículo, que faz com que o optamos como um objeto central para análise dos

caminhos que percorremos até o presente momento da efetivação da lei e como um

dos mais complexos obstáculos e desafios a serem enfrentados por educadores que

pensem saídas para uma educação das relações raciais.

Em síntese, acreditamos que o currículo pode ser nossa principal ferramenta na

busca por uma educação democrática que contemple a diversidade racial, presente no

cotidiano escolar e na sociedade brasileira. Conquanto, para tal devemos pensá-lo

2 Por conteúdos tradicionais, entendemos como, conteúdos que são privilegiados no processo de

seleção, obstruindo a diversidade. Trataremos desse mais adiantes

3 Por '‘saberes sujeitados’', eu entendo igualmente toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes.

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partindo da/e para perspectiva decolonial4 afro-brasileira, onde a questões raciais seja

levada em consideração.

Com isso faremos um epítome a partir dos olhares de Frantz Fanon (2005),

discorrendo através da concepção de descolonização que o autor nos apresenta.

Entendemos que o colonialismo, mesmo tendo seu fim formalizado, perpetuou-se por

outros meios. - O martelamento da artilharia, a política da terra arrasada deram lugar a

sujeição à sujeição econômica (FANON, 2005). - Um desses seria o campo da

educação, ou, melhor do saber. Gerando o que chamamos de colonialidade do saber

(MALDONADO-TORRES, 2018). Percebemos então, que o racismo se consolida

devido a intensos diálogos entre a colonialidade do saber, educação e o currículo.

Melhor dizendo,a colonialidade é resultado de uma imposição do poder e da dominação

colonial que consegue atingir as estruturas subjetivas de um povo, penetrando na sua

concepção de sujeito e se estendendo para sociedade de tal maneira que, mesmo após o

termino do domínio colonial, suas amarras persistem. Nesse processo existem alguns espaços

e instituições sociais, nos quais ela opera com maior contundência. As escolas da educação

básica e o campo da produção científica são alguns deles. Nestes, a colonialidade opera, entre

outros mecanismos, por meio dos currículos. (GOMES, 2018.

É partindo desse pressuposto que entendemos que o currículo torna-se o maior

revés para construção de uma educação de combate ao racismo no Brasil, por mais

que tenhamos diretrizes, resoluções e afins, pensar educação étnico-racial atualmente

nos direcionam a elaborar algumas reflexões em torno do currículo e, por conseguinte

da descolonização deste.

Nutriremo-nos também com as contribuições de alguns autores que compõe o

grupo Modernidade/Colonialidade e Muniz Sodré (2012). Consideramos que esses

autores nos darão substância para analisar criticamente nosso objeto. Quando

buscamos observar as diretrizes e, concomitantemente, o dossiê, ressaltando avanços

e destacando onde ocorreram alguns insucessos na implementação da lei.

Novamente, consideramos a questão curricular como possível motivo de alguns

fracassos no desenvolvimento da lei, nos levando a discutir como já brevemente

4 Falaremos no decorrer do texto.

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abordamos sobre o currículo como uma ferramenta que seleciona, exclui e hierarquiza

saberes, imbricado de uma constante relação de poder, onde um determinado saber se

pretende como verdadeiro e absoluto.

Com isso identificamos o currículo como instrumento de manutenção do saber

único, que para nós se trata exclusivamente do eurocentrismo5, o saber europeu, o

saber do colonizador, que se pretendem como único, absoluto, tradicional, reduzindo

todas às outras possibilidades de compreensão sobre o mundo. E é nesse aspecto que

se faz relevante os pressupostos teóricos que nos elucidaram no percurso do nosso

trabalho.

1. O currículo, formação de professores e a lei: o que mudou nesses quinze

anos? Avanços e retrocessos.

São históricas as pautas e reivindicação do movimento negro que giram em

torno da educação, seja na educação básica ou no ensino superior, o movimento negro

constantemente enxergou a educação como um campo crucial para emancipação da

população negra e redução das desigualdades. Elaborando estratégias no campo

educacional, reivindicando alterações no currículo, contribuindo para uma educação

democrática e antirracista, onde os saberes africanos e afro-brasileiros sejam incluídos.

Neste ponto, baseado na entrevista do dossiê de análise de dez anos da lei

10.639/03, concedida pela professora Iolanda de Oliveira6, onde encontramos reflexões

sobre os caminhos percorridos durante dez anos da referida lei. Considerando o

contexto em que foi implementada, destacaremos alguns pontos importantes da

entrevista para pensar o que de efetivamente mudou e o que ficou inalterado no curso

das elaborações estratégias para uma educação das relações da étnico-raciais.

5 Eurocentrismo – a Europa como centro do mundo, para além do conceito geográfico, mas como um centro cultural, do saber e do conhecimento. 6 Professora Iolanda de Oliveira do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (PENESB) da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Iolanda de Oliveira possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense, mestrado em Educação pela Universidade Federal Fluminense e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora associada atuando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Relações Raciais Currículo e Didática, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, raça, relações raciais em educação, negro e ações afirmativas, formação de profissionais do magistério.

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Bem como relatamos o movimento negro e alguns educadores que discutem a

temática racial, já muito antes da lei da 10.639/03, apresentavam algumas iniciativas

isoladas, porém o silenciamento face ao racismo na escola era predominante até

implementação. No entanto, logo nos primeiros anos pós-implementação, surgem

inúmeras iniciativas, de certo modo ainda isoladas e um tanto equivocada, pois não

tivemos de início certa regularização a nível nacional, como relata Iolanda:

“Nós temos noticiais de experiências algumas ainda pautadas no senso comum, sobretudo. Nós temos escolas que ainda estão comemorando o Dia Nacional da Consciência Negra com meninos negros desfilando com correntes nas pernas. Diante do exposto, cabe questionar o que é melhor o silêncio que havia em décadas passadas. Em 1980, o silêncio era um ritual pedagógico permanente, a favor da discriminação racial na escola, como foi descrito por Luis Alberto [Gonçalves]. Nos dias atuais, não temos mais o silêncio. Mas, há práticas que são questionáveis. O que é melhor o silêncio ou prática equivocada, que ainda ratifica o negro como alguém que somente foi escravo?” (GONÇALVES; MACHADO, 2013, p. 193 - 194).7

A partir desse relato chamamos atenção para dois fatores, que parece não terem

sido superados com a da lei, mesmo com todos os pareceres, cursos e recursos

oferecidos através dos: Núcleo Estudos Afro-Brasileiro - (NEAB’s), Secretaria de

Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – (SECADI), Secretaria

de Política de Promoção da Igualdade Racial – (SEPPIR). São para nós problemáticas

e desafios encontrados no contexto educacional em que a lei foi implementada que

perduraram até os dias atuais. Destacamos então, o currículo e a formação de

professores. Essas duas áreas foram citadas inúmeras vezes por Iolanda no dossiê,

por tanto entendemos como as principais objeções, para desenvolver uma educação

das relações raciais assentados no dialogo(com) e inserção dos saberes africanos e

afro-brasileiros. Seja na escola ou nas Universidades, o currículo e a formação de

professores carecem de demasiada atenção para postular uma agenda descolonizante

na educação.

Se em anos anteriores a lei o silenciamento diante do racismo e dos resultados

deste, era um grande obstáculo, com a lei, em parte presenciamos um rompimento

7 Citação retirada da entrevista da Professora Iolanda de Oliveira. Concedida a Revista Teias para o dossiê de 10 anos da lei 10.639

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parcial com silenciamento. No entanto, encontramos com as práticas equivocadas, e

muitas vezes omissão de gestores e determinadas instituições de ensino. Afinal, para

nós, ter uma lei não é a bastante, vide que se a principio não houver interesse por parte

dos executores da lei, simplesmente não a executam.

[...] pode-se até colocar muitas leis, você sabe, a lei se dá, mas não se cumpre. Os que estão contra, não vão dizer que estão contra, simplesmente não cumprem. Vê essa lei contra o racismo, o racismo nesse país é crime, mas quantas pessoas foram incriminadas, foram levadas a prisão por racismo aqui nesse país? (MOORE, 2005).

Com isso enfatizamos ainda mais a importância de se encarar o currículo e a

formação profissional, como os principais desafios e campo de batalha a serem

enfrentados no campo educacional. Como vimos não basta ter uma lei, nem tampouco

permanecermos quinze anos após sua a implementação, encontrando praticas isoladas

que enfatizam e recriam o imaginário racista. Mesmo que tratando diretamente

disciplinas e temáticas das relações raciais, percebemos uma hierarquização entre os

saberes considerados tradicionais e o saber africano e ou afro-brasileiro, onde os dois

últimos encontram-se marginalizados, inferiorizados e até mesmo excluídos.

Isso nos leva há outro ponto, que para nós é o eixo central para compreender,

por que mesmo depois de mais dez anos, com leis, cursos matérias didáticos e com

muitos avanços, ainda podemos perceber equívocos. Quando identificamos o campo

curricular, como grande desafio, é por que entendemos que há no currículo uma

relação de poder e essa relação de poder, que nos permite perceber mesmo com todos

os dispositivos legais, a inferiorização e hierarquização de saberes. Atribuímos a essa

relação de força e poder que permeia o currículo, como estorvo para o ensino da

história e da cultura Africana e Afro-brasileira na escola e nas universidades,

considerando o apontamento de Iolanda, que é nas universidades onde ocorre à

formação dos profissionais que atuarão na escola básica.

É preciso que a gente pense em estratégias e políticas públicas que garantam que a Lei 10.639/03 se concretize, tanto no espaço universitário, quanto na

educação básica. Uma das questões que coloco é: ninguém pode ensinar o que não sabe. [...]. Já falávamos da importância da História da África para os currículos escolares. Posto que o professor que não estudou a cultura negra e faz a associação entre negro e escravidão. Ele não pode ensinar o que não sabe. (GONÇALVES; MACHADO, 2013, p. 195).

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2. O SABER, AS RELAÇÕES DE PODER E O CURRÍCULO: O HEGEMÔNICO E O

MARGINALIZADO

Ao longo do trabalho buscamos dar centralidade ao debate em torno do

currículo, enfatizando-o como mais desafiador campo ser tratado por educadores que

discorrem sobre relações raciais. Superficialmente concebemos o currículo como uma

ferramenta prescritiva, que tem como função única organizar o ensino-aprendizagem

docente e selecionar os conteúdos e saberes que devem compor este. Justamente

nessa seleção de conteúdos e saberes, que ocorre o que já abordamos razoavelmente

ao longo deste ensaio, a hierarquização, inferiorização e exclusão entre os saberes.

Não cabe apenas discutir o que selecionar, quais critérios utilizar nessa seleção, mas efetuar a crítica do conhecimento produzido e dos seus modos de produção, ao mesmo tempo que problematizam por que determinados conhecimentos são selecionados, e outros, não. (MACEDO; LOPES, 2011, p. 77).

Quando verificamos tal seleção de saberes, percebemos a hierarquização entre

esses e para nós essa hierarquização se dar pelo fato de que o currículo é um campo

de disputa, imbricado por intensa relação de poder. A fundo é currículo em si é uma

relação de poder. Como JESUS (2008) explica:

Assim, o currículo não é um elemento neutro de transmissão do conhecimento social. Ele está imbricado em relações de poder e é expressão do equilíbrio de interesses e forças que atuam no sistema educativo em um dado momento, tendo em seu conteúdo e formas, a opção historicamente configurada de um determinado meio cultural, social, político e econômico. (JESUS, 2008, p. 2641).

Nessa relação de poder e força que podemos enxergar, o que consideramos ser

a manutenção de um saber hegemônico, do saber verdadeiro, do saber único, que

seria para nós seria o saber europeu, que é concebido como tradicional, único,

reduzindo ou excluindo as demais possibilidades de enxergar e compreender a

realidade do mundo, que SODRÉ (2012) classifica como monocultura8, que em nossa

compreensão trata-se efetivamente da consolidação do eurocentrismo. É o saber

europeu que efetiva-se predominantemente no currículo através dessa relação de

poder, pela monocultura, que a qualifica como única, racional, científica, verdadeira.

8 Monocultura – redução da realidade, do saber e da ciência a um único modo de compreensão.

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Em contraponto, de outro lado encontramos no campo curricular o saber, história e

cultura do negro, dos afro-brasileiros e africanos que seria nessa perspectiva

monocultural do eurocentrismo, o saber como mito, irracional, não científico, não

dotado de intelectualidade.

O conhecimento produzido pelo homem branco é geralmente qualificado como científico, objetivo e racional, enquanto que aquele produzido por homens de cor (ou mulheres) é mágico, subjetivo e irracional. Esta dimensão, a colonialidade epistêmica ou do saber, não apenas estabelece o eurocentrismo como perspectiva única de conhecimento, mas também descarta as outras produções intelectuais. (DAMAZIO, 2010, p. 2).

Com isso percebemos que o ensino de história e cultura Africana e Afro-

brasileira, situa-se marginalizado, inferiorizado ou como trataremos mais adiante, torna-

se saberes sujeitados.

Por 'saberes sujeitados', eu entendo igualmente toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos. (FOUCAULT, 2010, p. 8).

Então percebemos como o currículo não é um território neutro, é um mecanismo,

uma ferramenta de controle ideológico de manutenção do poder. O currículo corporifica

as relações sociais, logo o espírito europeu e o racismo advento deste encontra sua

manutenção nesta ferramenta. Por isso neste trabalho buscamos dar certa centralidade

ao currículo e conceber este como maior desafio das relações étnico raciais no Brasil.

Por tanto para ampliar, qualificar as experiências que tivemos da lei 10 639 e

fugir de praticas que reescrevem o imaginário pejorativo do negro, como apresentado

por Iolanda. É necessário permear o campo curricular com olhar clinico e enfrentar

essa relação de poder, a fim de evidenciar o saber africano e afro-brasileiro sem

ressignificar, sujeitar ou marginalizar esses referidos saberes.

Por fim mesmos com os DCN’s e leis para educação das relações étnico-raciais

é preciso discutir os fatos que permeiam o currículo e as relações de poder deste, que

obliteram uma inserção ampla e coesa dos saberes, culminando na manutenção do

racismo e na manutenção do poder eurocêntrico.

Enfim, a elaboração de um currículo é um processo social, no qual convivem lado a lado os fatores lógicos, epistemológicos, intelectuais e

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determinantes sociais como poder, interesses, conflitos simbólicos e culturais, propósitos de dominação dirigidos por fatores ligados à classe, raça, etnia e gênero. (JESUS, 2008, p. 2640).

3. DESCOLONIZAÇÃO E DECOLONIALIDADE, QUAL A SAÍDA? ESTRATÉGIAS

FRENTE AO EUROCENTRISMO NA EDUCAÇÃO.

Pois bem, para perspectiva critica do Hemisfério Sul, o tempo educacional é o da

descolonização, portanto, tempo de algo como a “reeducação” ou a reinvenção dos sistemas

de ensino. (SODRÉ, 2012)

Pois bem, essa breve citação de SODRÉ (2012) em “Reinventando a educação”

já traz a tona, como os ciclos debates de educação têm girado demasiadamente em

torno da descolonização. É um tema atual e corriqueiro, discutido, nos mais variados

sentidos, no entanto essa temática deve ser minuciosamente analisada, para não

cairmos em percepções equivocadas, como – romper com todo saber e conhecimento

que foi produzido até o presente em prol de uma simplória inversão ou mera

substituição deste9 – fazer um câmbio entre os saberes, apenas invertendo a posição

hierárquica, se pretendo igualmente como único e universal.

Consideramos que a descolonização trata-se de uma arma, ferramenta a ser

inserida nas relações de poder em face do eurocentrismo, é em primeiro ponto, uma

disputa, um duelo entre essas forças, entre o assujeitado e o hegemônico. Dito de

outro modo, “A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente

antagônicas que extraem sua originalidade precisamente dessa espécie de

substantificação que segrega e alimenta a situação colonial”. (FANON, 2005, p.52).

Conquanto, justamente por ser um encontro de força, a descolonização não se

dará de modo natural, depende de um esforço, como o próprio Frantz Fanon (2008)

nos traz, – a descolonização não resultara de um encontro amigável, de um

acontecimento mágico – ou seja, a mesma, não resultará de simples acordo.

Porém, se desejamos interpelar o saber único, verdadeiro, universal, resultante

do eurocentrismo, que em síntese trata-se do saber colonizado, o saber do colonizador.

9 Não acreditamos que seja essa a proposta da descolonização ou ainda decolonialidade, como observaremos mais adiante. Um exemplo disto é que não nos privamos neste trabalho de utilizar autores que pertencem ao cânone acadêmico, europeu.

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Afinal a colonização impulsionada pelos europeus, não resultou somente na violência

física, no genocídio, mas também no epistêmicidio dos povos colonizados. Portanto,

descolonizar é também evidenciar os saberes que foram apagados, ou, como expressa

Michel Foucault (2010), que foram assujeitados. Precisamos refletir sobre a

descolonização, compreendendo a necessidade desta para educação brasileira e seus

agentes, observando também os seus limites.

Constatamos até aqui, com base no dossiê da revista teias, que o nosso desafio

na luta por uma aplicabilidade não equivocada do ensino de história e cultura africana e

afro-brasileira, se encontra no currículo e o currículo em si é permeado por relação de

poder, na seleção de conteúdos, onde o saber europeu se encontra hierarquicamente

superior em detrimento dos demais saberes, sobretudo o africano. Logo asseveramos

que é sobre o campo curricular e sua seleção de conteúdos que devemos ruminar

contiguamente a descolonização.

É nesse aspecto que encontramos o objeto e necessidade de se descolonizar,

somente a descolonização dos saberes provocaria tensões para valorização e inserção

de saberes historicamente concebidos como mito, sem cientificidade e com isso

tencionar o monismo eurocentrado na educação brasileira, que compreende apenas

um modo ler e interpretar o mundo. O que nos leva a compreender que além de

encontro de forças, a descolonização do saber, do currículo, procede também em:

Descolonizar o processo educacional significa liberá-lo, ou emancipá-lo, do monismo ocidentalista que reduz todas as possibilidades de saber e de enunciação da verdade à dinâmica cultural de um centro, bem sintetizado na expressão “pan-Europa”. (SODRÉ, 2012, p. 19).

Descolonizar, em síntese trata-se de uma abertura, da inserção do novo, do

outro, levando em consideração que vivemos em um mundo plural, onde a diversidade

é patente. Então abrir o currículo, o cotidiano da escola e universidades há novos

saberes ou a velhos saberes que estavam encobertados, sujeitados, colonizados.

Seria, portanto, necessário uma abrangência de saberes, não é que o saber europeu

deixe de compor o currículo, não é a negação das contribuições ou da cultura europeia

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na escola, mas sim concretas adições. Que podemos compreender também como uma

ecologia de saberes, bem situado por Muniz Sodré10

A ecologia dos saberes, ou seja, admissão da possibilidade de que a ciência entre não como monocultura, mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em que o saber científico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com saber indígena, com o saber das populações urbanas marginais, com saber camponês [...]. (SODRÉ 2012, p. 42).

Bem, com isso, indicamos que não basta aos educadores, somente afirmar as

diferenças e a pluralidade cultural, é preciso um dialogo que permeie essa pluralidade

de saberes e culturas, sem hierarquizar as diferenças ou ressignificar, recodificar.

As universidades do Brasil e da América Latina como um todo, não só criou

obstáculos na inserção de negros e indígenas, como também fomentou teorias que

justificasse tal exclusão. Criando também uma exclusão de suas histórias, saberes e

epistemologias.

Percebemos com isso que as universidades cumpriu um papel importante ao lado do genocídio, que foi o epistemicídio, que então no caso da América injustiça social, injustiça econômica esta igualmente atrelada a injustiça cognitiva. (SANTOS, 2011, p.72)

É nesse sentido, que, revela-se o papel assumido pela universidade no

genocídio, epistemicídio e genocídio, de diversos povos, que nos faz utilizar outro

conceito, que igualmente remonta as hierarquizações de poder e saber instaurado pelo

eurocentrismo, a colonialidade. Talvez esse conceito explique melhor essa função

epistemicida das universidades, pois em nossa compreensão, não é que as

universidades brasileiras ou latino-americanas tenham sido a principal instituição no

processo de colonização, mas sim na construção de conhecimentos e teorias que

ampliassem e perpetuassem os seus efeitos.

Que neste caso trata-se da própria colonialidade, que são em síntese a

continuação catastrófica do período colonial, por outros meios, adquirindo novas

formas, sem uma ocupação territorial evidente.

10 Reconhecemos que o conceito em questão, “ecologia de saberes” foi formulado pelo sociólogo

português Boaventura de Sousa Santos, contudo acreditamos que modo apresentado por (SODRÉ,

2012) der conta de situar melhor objetivo deste trabalho.

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[...] Colonialidade pode ser compreendida como uma lógica global de desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência de colônias formais. A ‘descoberta’ do Novo Mundo e as formas de escravidão que imediatamente resultaram daquele acontecimento são alguns dos eventos-chaves que serviram como fundação da colonialidade. (MALDONADO-TORRES, 2018, p.72)

Se pretendermos reflexionar, uma atitude descolonizante na escola, nas

universidades e consequentemente na estrutura curricular que as rege, torna-se

indispensável pensar igualmente na perspectiva de uma proposta decolonial. Ou

melhor, uma perspectiva decolonial afro-brasileira. (GOMES, 2018).

A perspectiva decolonial afro-brasileira trata-se para nós da possibilidade de

trazer para cânone acadêmico, ou, melhor confrontar esse cânone, com obras de

autores brasileiros que em suas formulações teóricas e intelectuais já assumiam uma

postura decolonial.

A decolonialidade é instrumento que contrapõe os mais variados efeitos da

colonialidade, principalmente nas formas de produzir e conceber o conhecimento.

“refere-se à luta contra a lógica da colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e

simbólicos” (MALDONADO-TORRES 2018). Dito de outro modo a decolonialidade alia-

se no enfrentamento dos efeitos da colonialidade do saber11, que implica nas formas de

conceber o conhecimento, como bem assinalou (MALDONADO-TORRES, 2018).

É somente em virtude da articulação de formas do ser, poder e saber que modernidade/colonialidade poderia sistematicamente produzir lógicas coloniais, práticas e modos de ser que apareceram não de modo natural, mas como uma parte legítima dos objetivos da civilização ocidental moderna. Colonialidade, por isso, inclui a colonialidade do saber, a colonialidade do poder e a colonialidade do ser como três componentes fundamentais da modernidade/colonialidade. (MALDONADO-TORRES, 2018, p. 42)

Reconhecer e assumir uma postura decolonial afro-brasileira, possibilita

enfrentar os efeitos da colonialidade no saber, que possui seus desdobramentos no

campo curricular. Concomitantemente este reconhecimento mostrará como a tradição

11 Não pretendemos neste artigo esgotar o debate concernente, as três dimensões da colonialidade, para

tal esclarecimento recomendamos ver (MALDONADO-TORRES, 2018).

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do pensamento negro brasileiro, preocupou-se com a descolonização dos currículos,

da sociologia e dos métodos educacionais no geral.

A lei 10.639/03 exemplifica esta postura decolonial intrínseca a tradição do

pensamento negro brasileiro. Ela é resultante da produção de conhecimento e ativismo

de militantes e intelectuais afro-brasileiros. Como bem salienta Nilma Lino Gomes,

militantes e intelectuais negros através de denuncias e combate ao racismo, apontaram

isto que hoje chamamos de colonialidade12.

Há muito o Movimento Negro e os intelectuais negros, por meio das suas práticas e de diversas formas de organização afirmativas, identificam a presença da colonialidade nos padrões de poder, de trabalho e de conhecimento no Brasil. E o fazem destacando a questão racial, a realidade africana e a existência do racismo. Desconstroem o mito ôntico colonial do humano e não humano. Na medida em que se afirmam sujeitos de história, conhecimento e culturas, as negras e os negros afirmam e reafirmam formas alternativas de ser humanos e sujeitos de direitos não reconhecidos pelas concepções hegemônicas de humanidade e cidadania. (GOMES, 2018, p. 241)

Intelectuais negros clássicos e contemporâneos, do passado ou presente, como:

Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento, Guerreiro Ramos, Milton Santos, Muniz Sodré

Fernando Santos Jesus, Gislene Aparecida dos Santos. E muitos outros. São exemplos

disto que tratamos, mesmo que em suas brilhantes obras não apareça os conceitos

supracitados.

Ao perfilhar a perspectiva decolonial afro-brasileira, possibilitamos que as

contribuições desses referidos autores penetrem o espaço o meio acadêmico. E a partir

delas encontramos subsídios para sustentar de modo correspondente ao saber colonial

nas relações de poder sui generis do currículo.

Dito de outro modo nos garantirá ferramentas para refletir meios de atenuar o

eurocentrismo e formular uma concepção de currículo, que abranja os saberes, historia

12 Não pretendemos aprisionar ou limitar os intelectuais afro-brasileiros na perspectiva

colonialidade/decolonialidade, consideramos que qual quer esforço nesse sentido seria anacrônico. Visto

que muito antes do surgimento do conceito colonialidade/decolonialidade a tradição do pensamento

negro já refletia a partir do combate ao racismo a idéia de descolonização. Além disso é inegável as

contribuições do movimento negro brasileiro e das produções de conhecimento deste para elaboração

do pensamento decolonial.

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e cultura africana e afro-brasileira com primor. Uma perspectiva decolonial afro-

brasileira é indispensável para repensar as bases do currículo na educação brasileira.

De modo não artificial, quimérico, mas sim pensar a descolonização dos

currículos em perspectiva negra e brasileira. Esta forma nos permitira novas

formulações no campo da educação. Em síntese este reverbera na valorização do

negro, sua historia e cultura.

Portanto, a compreensão que existe uma perspectiva negra decolonial brasileira significa reconhecer negras e negros como sujeitos e seus movimentos por emancipação como produtores de conhecimento válidos que não somente podem tencionar o cânone , mas também o indagam e trazem outras perspectivas e interpretações. (GOMES, 2018, p.235).

Retirar o pensamento negro, os intelectuais negros brasileiros, da

subalternidade, que as universidades os condenaram, é fulcral para elaborar uma saída

descolonizadora frente ao eurocentrismo. Ou melhor, refletir caminhos para um

currículo decolonial.

Concebemos como currículo decolonial, uma das saídas contra a colonialidade

geradora do eurocentrismo no saber. Em resumo essa idéia de currículo decolonial

oriunda da experiência e da intelectualidade afro-brasileira. Consolidar-se-ia com

currículo, voltado para o diverso, para democracia e justiça.

É necessário esclarecer que descolonização e decolonialidade são conceitos e

estratégias distintas. Para mesma finalidade, ambas a nosso ver, só podem ser bem

realizadas considerando as contribuições do movimento negro e intelectuais negros.

Seja como for o caminho estabelecido para romper com eurocentrismo, é fundamental

admitir uma perspectiva decolonial afro-brasileira.

Objetivamente a decolonialidade seria um projeto a ser encarado dentro das

universidades. Uma descolonização desse espaço, nos modos de produzir

conhecimento, na política e suas funções, seria materialização da ecologia de saberes.

Um bom exemplo desta seria o Encontro de Saberes, movimento ocorrido em 2010 na

Universidade de Brasília (UNB). Reunindo mestres quilombolas, indígenas e doutores,

sem nenhum tipo e hierarquia, promovendo a diversidade epistêmica. “Descolonizar,

nesse contexto, significa intervir na constituição desse espaço universitário em todos os

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níveis: no copo discente, no corpo docente, no formato institucional, no modo de

convívio e na sua conformação epistêmica geral (cursos, disciplinas, ementas, teorias,

pedagogias,etc.)” (CARVALHO, 2018, p.81).

Descolonização pode ser compreendida como algo maior, ou, mais amplo em

termos práticos. O conceito de descolonização, que ocorre para além dos limites da

universidade. É um luta por transformação que pretende irradiar toda sociedade e

níveis de educação. Situando nos currículos da educação básica e nas formas de fazer

política.

Seja como for, seja como estiver colocado ambas as estratégias partem das

reivindicações históricas das populações africanas e afro-diásporica. Desde que o

primeiro humano africano se insurgiu contra forças escravistas e coloniais.

Enfatizamos que não queremos aqui, esgotar este ou aquele conceito,

descolonização e decolonialidade. Mas estamos convictos da importância destes frente

ao eurocentrismo no campo do saber, curricular. Assumir este projeto é crucial para

educação brasileira, essencialmente quando ambicionamos uma educação de

qualidade, democrática que abranja a rica diversidade da população brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[Iolanda] Posto que o movimento negro de longa data viesse já reivindicando a alteração dos currículos escolares apontando a questão racial como fator de seletividade escolar e que estava colocando a população negra em situação de inferioridade frente ao acesso e permanência no sistema educacional brasileiro. [...] Mas, se não houver a mobilização de docentes pesquisadores das universidades comprometidos com a questão e do movimento negro, completaremos vinte anos [da Lei 10.639/03] com a situação que estamos vendo hoje. E, ao mesmo tempo em que temos bons resultados, ainda precisamos de mais resultados positivos e garantias para a efetiva implantação da Lei 10.639/03. (GONÇALVES; MACHADO, 2013, p. 192; 196).

Bem como apontamos até aqui, tivemos alguns avanços, no entanto ainda

podemos identificar alguns equívocos. Como mostramos nossos desafios são árduos e

históricos, oriundo de longas datas nossas reivindicações no campo da educação,

exigem de nós zelo e diligencia, se queremos mudar, teremos de nos esforçar, estar

atento aos debates, fatos e acontecimentos, para não repetirmos os mesmos erros ou

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permanecermos equivocados quanto ao ensino de história e cultura africana e afro-

brasileira.

Observemos para que os saberes a serem penetrados, não venham ser

ressignificados, recodificados e recolonizados. Por tanto consideramos também que

quando falamos dessa ecologia de saberes para descolonizar, estamos de certo modo

nos referindo ao que FOUCAULT (2010) conceitua de “Genealogia”, que seria a

inserção, o ressurgimento desses saberes desqualificados, enterrados e inferiorizados,

que concebemos aqui como saber africano.

Todavia esses saberes ou genealogia, não serão rasamente implantados no

currículo, vão igualmente questionar, confrontar o que é ciência, o saber único,

cientifico, universal e principalmente o poder deste.

A genealogia seria, pois relativamente ao projeto de uma inserção dos saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico. (FOUCAULT, p. 11).

FOUCAULT (2010), como já foi sinalizado anteriormente, nos alerta para o

cuidado dessa genealogia, não ser recolonizada, modificadas estrategicamente pelo

próprio eurocentrismo, pela universalidade do saber, em suas próprias palavras.

A partir do momento em que se valorizam, em que se põem em circulação essas espécies de elementos de saber que tentamos desencavar, não correm eles o risco de ser recodificados, recolonizados por esses discursos unitários que, depois de os ter a princípio desqualificado e, posteriormente, ignorado quando eles reaparecem, talvez estejam agora prontos para anexá-los e para retomá-los em seu próprio discurso e em seus próprios efeitos de saber e de poder? (FOUCAULT, p, 12).

Esse representa umas das mais complexas cautelas que devemos ter, quando

falamos de descolonizar, quando falamos dessa ecologia de saberes, das relações de

poder no currículo. Por isso acreditamos que descolonização, esse duelo de forças

ocorrerá através dessa ecologia, pois está confrontará diretamente o saber científico,

ou melhor, reinventará os modos de se fazer ciência, de pensar ciência.

Resumindo, nosso caminho na educação para estabelecer de fato um ensino da

cultura e da história africana e afro-brasileira, como prever a lei 10 639/03, avançando

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sem cair novamente e em experiências equivocadas, que reproduzem e petrificam

estigmas racistas que corroboram para exclusão e inferiorização da população negra,

deve perpassar inteiramente por uma reinvenção. Reinventar, recriar as formas de se

fazer ciência na educação. Concretamente, devemos enegrecer os modos de pensar e

fazer ciência, reafricanizar como aborda Petronilha Gonçalves Silva (2005).

(...) Africanizar ou reafricanizar ciência, e a educação (Silva, 2005, p.32), ou seja, a (...) necessidade de serem adotados pensamentos e procedimentos que orientam a produção de conhecimento, oriundos de valores e princípios de raiz africana (Ibdem, p. 32), mas também (...) reconhecer nas diversas ciências, os conhecimentos chupados da tradição africana, assimilados à ciência ocidental sem que se citem fontes (Ibdem, p. 32) além de exposto, insere-se a pesquisa o contexto que busca (...) enegrecer os pensamentos científicos e educacionais (Ibdem, p 32.) [..]. (SILVA, 2005, p. 32 apud OLIVEIRA, 2014, p. 15-16).

Essa proposta apresentada por (SILVA 2005) acentua a emergência de

ponderar a descolonização como projeto fundamental para educação brasileira. Melhor

dizendo enfatiza a proposta de um projeto decolonial afro-brasileiro. Africanizar,

reafricanizar, reinventar, todos esses conceitos estão intrínsecos ao projeto decolonial

que educação brasileira deve assumir como estratégia.

Concluímos ser indispensável o reconhecimento dessa perspectiva decolonial

afro-brasileira. Intelectuais, professores, gestores, todos que atuam em espaço de

formação, formal ou não. Deve compreender esse reconhecimento como estratégia

para tencionar o cânone acadêmico ou escolar e como um agenda histórica de

intelectuais e ativistas negros.

O pensamento negro, que fundamenta decolonialidade afro-brasileira, está ao

longo de toda historia brasileira e Latina americana, tratando da descolonização, do

currículo e da educação como um todo. Por tanto, finalizando, reafirmamos o que

viemos discutindo ao longo de todo o texto. Se vislumbrarmos, uma educação, que

corresponda a diversidade racial do Brasil, uma educação que seja um bem comum e

publica, onde a lei 10.639/03 seja mais do que práticas equivocadas e romantizadas.

Precisaremos incansavelmente projetar uma agenda descolonizante, debruçado na

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tradição do pensamento negro brasileiro, latino, caribenho, norte americano, em outras

palavras, em todo pensamento Afro-diásporico.

O Racismo na educação exige uma descolonização da mesma. O currículo é

arena onde será travada essa luta.

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