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i JORGE LUIS INZUNZA HIGUERAS A REFORMA EDUCACIONAL CHILENA NA AMÉRICA LATINA (1990-2000): CIRCULAÇÃO E REGULAÇÃO DE POLÍTICAS ATRAVÉS DO CONHECIMENTO CAMPINAS 2014

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    JORGE LUIS INZUNZA HIGUERAS

    A REFORMA EDUCACIONAL CHILENA NA AMÉRICA LATINA (1990-2000): CIRCULAÇÃO E

    REGULAÇÃO DE POLÍTICAS ATRAVÉS DO CONHECIMENTO

    CAMPINAS 2014

  • ii

  • iii

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  • vi

  • vii

    RESUMO

    A presente pesquisa procura identificar e analisar os processos de circulação e regulação de políticas na América Latina, durante a década de 1990, associados às reformas educacionais do Chile. Examinamos os mecanismos e dinâmicas de propagação desses conhecimentos através de diversas instâncias: organismos não governamentais, governos, organismos internacionais e redes.

    Analisamos os antecedentes históricos, sociais e políticos que ajudam a compreender a permanente inovação chilena, ao longo do século XX, no desenvolvimento de políticas educacionais. Nessa  perspectiva,   apresentamos  a   condição  de   “laboratório  de  políticas   educacionais”   do  Chile   como  um  elemento   relevante   para   explicar   seu lugar de referência na região. Identificamos duas ondas de reformas político-educacionais no Chile após o golpe de Estado de 1973, uma de ordem neoliberal, ocorrida no período da ditadura militar (1973-1990), e outra de tipo reformista conservador a partir da restauração democrática nos anos 1990. Os conhecimentos produzidos nessas ondas de políticas se amalgamaram em sua disseminação regional, não sendo fácil estabelecer uma diferenciação entre eles.

    Destacamos a participação central de redes de políticas, formadas por uma geração de tecnocratas, especialistas, fazedores de políticas e pesquisadores nas décadas de 1970 e 1980, em ações de análise, circulação e disseminação. Essas redes desempenharam um papel fundamental na nova governança, isto é, na regulação de políticas através de um conhecimento originado em redes regionais/transnacionais. Também examinamos as principais políticas chilenas em circulação durante a década de 1990 – focadas no âmbito da ação afirmativa, informática, avaliação padronizada de aprendizagem e fundos competitivos de desenvolvimento –, propondo uma leitura de sua relevância para a regulação de políticas da região.

    A relação entre as políticas educacionais chilenas (com seus formuladores e gestores) e os organismos de financiamento internacional, especialmente o Banco Mundial, ocupa uma posição de destaque nesta pesquisa. Essa relação foi complementar. Por um lado, após a ditadura, procurou-se promover governabilidade interna no Chile, com o apoio do Banco Mundial, uma entidade internacional detentora de uma aura neutra. Por outro, para o Banco Mundial, o Chile significou a possibilidade de acesso ao laboratório neoliberal com a experiência acumulada de quase uma década de implantação; com isso, o banco obteve conhecimento que começou rapidamente a se espalhar para incentivar o início de reformas e políticas na América Latina.

    A metodologia de pesquisa incluiu entrevistas que fizemos com destacados fazedores de políticas do Chile, Argentina, Paraguai e Brasil, além de funcionários de organismos como o Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO) e Programa de Promoção da Reforma Educacional na América Latina (PREAL). Também analisamos material de arquivo do governo chileno (Ministério da Educação, Ministério das Relações Exteriores, Agência de Cooperação Internacional) e do Banco Mundial relacionado ao desenvolvimento de projetos do setor educacional no Chile e na América Latina durante a década de 1990.

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    ABSTRACT

    This research seeks to identify and analyze the processes of circulation and regulation of policies in Latin America. Our perspective specifically focuses on the circulation of Chilean educational reforms during the 1990s, and we examine the mechanisms and dynamics of the spread of knowledge through various instances: non-governmental organizations, governments, international organizations and networks.

    We analyze the social, historical and political backgrounds that help us to understand the permanent innovation of that country during the twentieth century in developing educational policies. From this outlook, the present Chilean condition as a "laboratory of educational policies" is a relevant factor in explaining the reference point occupied by this country in Latin America. We identified two waves of political educational reforms in Chile after the coup of 1973: a neoliberal order given during the military dictatorship (1973-1990); and a conservative reform from the democratic restoration in 1990. The knowledge produced about these policy waves coalesced in their regional spread, not easily discernible to differentiate.

    We highlight the essential participation of policy networks, shaped by a generation of technocrats, experts, policy makers and researchers in the 1970s and 1980s, into shares of analysis, circulation and dissemination of educational policies. These networks played a key role in the new governance, by the regulation of policies through knowledge that originated in regional and transnational networks. We also examined the main outstanding Chilean policies during the 1990s. These policies focused on the scope of affirmative action, information and communication technology, high stakes standardized tests, and competitive development funds. We propose an analysis of its relevance for the regulation of regional policies.

    The relationship between the Chilean educational policies (and their formulators and managers) and international funding agencies, especially the World Bank, occupies a prominent position in this research. This relationship was complementary. On one hand, Chile was intended to foster internal post-dictatorship governance with the support of the World Bank, an international entity entrusted with a neutral aura. On the other hand, Chile for the World Bank meant being able to access the neoliberal laboratory. Chile seemed a great opportunity, considering its experience of nearly a decade of deployment of neoliberal policies. The World Bank got knowledge of it, and started quickly to spread it to encourage the initiation of reforms and policies in the Latin American region.

    The research methodology included conducting interviews with prominent policymakers in Chile, Argentina, Paraguay and Brazil, as well as employees of organizations like the World Bank, Inter-American Development Bank, the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) and the Program for Promotion of Educational Reform in Latin America (PREAL). Also we examined archival material from the Chilean government (Ministry of Education, Ministry of Foreign Affairs, and International Cooperation Agency) and World Bank projects related to the development of the education sector in Chile and Latin America during the 1990s.

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    SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1

    CAPÍTULO 1. AS BASES HISTÓRICAS DA CIRCULAÇÃO DE IDEIAS

    EDUCACIONAIS DO CHILE

    13

    1.1. Os primeiros movimentos de disseminação de políticas educacionais 15

    1.2. Ideias em conflito: o estruturalismo da Cepal 19

    1.3. Ideias em conflito: a preparação do laboratório neoliberal 22

    1.4. A instalação do laboratório de políticas neoliberais 28

    1.4.1. Etapa 1. A repressão 28

    1.4.2. Etapa 2. O choque econômico 30

    1.4.3. Etapa 3. O laboratório de políticas educacionais neoliberais 32

    CAPÍTULO 2. METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS DA PESQUISA 37

    2.1. A coleta de dados 39

    2.1.1. A análise documental 39

    2.1.2. Limitações da base documental 40

    2.1.3. As entrevistas 41

    2.1.4. Limitações das entrevistas 44

    2.2. Categorias descritivas e de análise 44

    2.3. Comentários sobre o objeto de pesquisa 46

    CAPÍTULO 3. O CAMPO DE ELABORAÇÃO, DISSEMINAÇÃO E

    CIRCULAÇÃO DE IDEIAS

    48

    3.1. Santiago: cidade de confluência e circulação de ideias 48

    3.2. A resistência contra o neoliberalismo autoritário 49

    3.3. A observação do laboratório de políticas neoliberais à distancia 51

    3.4. As redes político-acadêmicas de educação 53

    3.4.1 A rede do CIDE 55

    3.4.2. A rede Unesco-Cepal 58

    3.5. Os analistas simbólicos 59

    3.6. O surgimento de uma agenda latino-americana 64

  • xii

    3.7. Transição política: a pressão da governabilidade 68

    3.8. A reforma educacional: o laboratório em questão? 70

    CAPÍTULO 4. UM LABORATÓRIO NA DEMOCRACIA: A

    REESTRUTURAÇÃO DO CAMPO DE POLÍTICAS EDUCACIONAIS

    79

    4.1. A reinserção internacional do Estado chileno 79

    4.2. O surgimento de um espaço de regulação regional/transnacional 81

    4.3. A reinserção regional do Chile no âmbito político-educacional 85

    4.4. O encontro do Banco Mundial com o Chile 88

    4.4.1. Os interesses da relação Banco Mundial-Chile 88

    4.4.2. Os projetos do Banco Mundial no Chile 95

    4.4.3. O ponto de partida: o P-900 98

    4.4.4. Imposição ou cooperação? 99

    4.4.5. Os novos componentes introduzidos pelos MECE 101

    4.4.6. A avaliação do Banco Mundial 104

    4.5. Chile e outros organismos internacionais 105

    CAPÍTULO 5. A CIRCULAÇÃO DE CONHECIMENTO DE POLÍTICAS

    COMO ESTRATÉGIA DE REGULAÇÃO

    109

    5.1. A circulação das políticas econômicas chilenas da ditadura 112

    5.2. O exemplo do modelo de reforma da Previdência Social 115

    5.3. A circulação de políticas educacionais na América Latina: um marco

    geral

    118

    5.3.1 Os casos de “Educo” e “Escuela Nueva” 128

    5.3.2 O caso da descentralização 130

    CAPÍTULO 6. A CIRCULAÇÃO DE POLÍTICAS EDUCACIONAIS DO

    CHILE: A REGIONALIZAÇÃO DO LABORATÓRIO

    133

    6.1. A ação afirmativa no Chile: a transição do laboratório 136

    6.1.1. A disseminação do Programa das 900 Escolas 138

    6.1.2. O Banco Mundial e o P-900 139

    6.1.3. A Unesco e o P-900 140

    6.1.4. A disseminação do P-900 como ação transnacional 142

  • xiii

    6.1.5. Os conteúdos da exposição internacional do P-900 144

    6.1.6. O cruzamento da academia com o campo da formulação de políticas 145

    6.2. Competitividade e descentralização pedagógica: os Planos de Melhoria

    Escolar (PME)

    146

    6.2.1. O entusiasmo inicial do Banco Mundial 149

    6.2.2. A transposição dos PME do Chile para a América Latina 150

    6.2.3. Um exemplo de transferência de conhecimento: Argentina, 1994 152

    6.2.4. A avaliação dos PME na América Latina 157

    6.3. A padronização da avaliação: a hegemonia do Simce 157

    6.3.1. A sociedade Unesco-Simce 159

    6.3.2. A relação Llece-Simce 162

    6.3.3. O Banco Mundial e a avaliação padronizada 166

    6.3.4. A formação universitária: a ação política da PUC no Simce 168

    6.4. Universalização descentralizada: Enlaces 169

    6.4.1. A disseminação através dos bancos de financiamento internacional 171

    6.4.2. A procura de conexão internacional 172

    6.4.3. A produção e transferência de conhecimento 173

    CAPÍTULO 7. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CIRCULAÇÃO DO

    CONHECIMENTO

    175

    7.1. A ação de disseminação de políticas a partir do laboratório 175

    7.2. O Preal: sua origem como prática de análise simbólica aplicada 181

    7.2.1. A ação complementar do Preal 186

    7.2.2. Temáticas: estruturas e políticas 187

    7.3. O Knowledge Bank: a era Wolfensohn no Banco Mundial 191

    7.4. As Chilean lessons para as políticas educacionais 195

    8. CONCLUSÃO 206

    REFERÊNCIAS 218

    DOCUMENTOS 240

    LEGISLAÇÃO 253

    Apêndice 1.Tabelas históricas 254

  • xiv

    Tabela 1. Chicago Boys que ocuparam importantes cargos na ditadura militar

    chilena (1973-1990)

    254

    Tabela 2. Lista de eventos de educação no Chile nos anos 1990 255

    Tabela 3. Lista de candidaturas chilenas nos organismos internacionais nos anos

    1990

    260

    Tabela 4. Publicações vinculadas ao Programa das 900 Escolas (1991-1994) 261

    Tabela 5. Participação de Juan Prawda e Luis Pisani em Projetos do Banco

    Mundial nos anos 1990 na América Latina

    263

    Tabela 6. Assessorias do Chile em países da América Latina, 1998 264

    Apêndice 2. Reconstrução histórica da instalação das ciências sociais na América

    Latina

    265

    Apêndice 3. Mecânica de operação dos projetos do Banco Mundial 269

    Apêndice 4. Apêndice 4. Outros projetos do Banco Interamericano de

    Desenvolvimento no Chile, 1990-2000

    272

    Apêndice 5. Roteiros de entrevistas 274

  • xv

    Aos estudantes do ensino médio da Revolução dos Pinguins do Chile de 2006

  • xvi

  • xvii

    AGRADECIMENTOS

    A minha orientadora, Nora Krawczyk, pela sua dedicada leitura, pelas permanentes

    questões, pela generosidade de pôr à disposição sua experiência de pesquisa, por sua

    vontade de construir espaços coletivos de aprendizagem, por sua compreensão e apoio nos

    diferentes momentos que acompanham a realização de um projeto fora do seu país de

    origem. Aos professores Reginaldo Moraes e Sebastián Donoso por seus valiosos

    comentários no exame de qualificação e importantes ideias e ênfases que foram

    incorporadas segundo suas sugestões. À Comisión Nacional de Investigación Científica y

    Tecnológica de Chile (Conicyt) e seu programa de apoio à formação de novos doutorandos

    no exterior. Aos professores da Faculdade de Educação da Unicamp que tive o privilégio de

    conhecer, especialmente pela leitura cuidadosa dos primórdios do projeto nas Atividades

    Programadas de Pesquisa por parte de Eloisa de Mattos Höffling, pelas profundas reflexões

    sobre as transformações do estado de Vicente Rodrigues no APP2, pela perspectiva

    histórica crítica de Mara Regina Martins Jacomelli e pelo aprofundamento na leitura de

    Pierre Bourdieu e Christian Baudelot de Ana Maria Fonseca de Almeida. Aos professores

    externos ao Programa que se deram um momento para questionar e refletir em distintos

    momentos do projeto ou nas primeiras sistematizações dessa pesquisa: Jenny Assaél,

    Christian Baudelot, Wagner Iglecias e Pauline Lipman. A meus entrevistados – os quais,

    por razões de confidencialidade, não posso nomear aqui –, que de suas diversas posições

    nos processos de elaboração de políticas na América Latina forneceram-me ideias, contatos

    e sugestões para progredir no transcurso da pesquisa. A Constanza Mekis e Fernando Vera

    pela excelente disposição pessoal em facilitar minha revisão dos arquivos da Unidade de

  • xviii

    Currículo e Avaliação do Ministério de Educação do Chile. Aos companheiros do Grupo de

    Políticas Públicas e Educação com os quais compartilhamos comentários e valiosas

    sugestões de nossas pesquisas. Aos orientandos e orientandas de mestrado e doutorado de

    Nora Krawczyk: Ananda, Luciana, Edineia, Antonio, Sandra, Fabiane, Zenaide, José, Denis

    e Andrew. A Erika, colega, amiga e grande debatedora, que me ajudou a mirar com maior

    atenção às redes de formuladores de políticas educacionais da América Latina. A

    Samantha, Alexandre e Laila por suas indispensáveis ajudas na correção ortográfica e

    gramatical do meu português. A minha mãe por sua companhia, carinho e apoio de sempre

    em meu caminho interminável de aprender. A Jeannie por sua permanente preocupação em

    facilitar espaços em sua casa para eu trabalhar na pesquisa. A Katie por seu amor e

    sensibilidade, pela sua inteligência em me formular perguntas, pela paciência, pela

    colaboração na aventura de realizar entrevistas em Washington D.C., por acreditar em meu

    trabalho. A minha pequena Natalia por me dar lindos sorrisos nos momentos mais difíceis,

    e por me distrair diariamente em seu mundo novo.

  • xix

    “serão  admitidos,  em  nome  da  reforma,  apenas  alguns  ajustes menores em todos os âmbitos, incluindo o da educação. As mudanças sob as limitações, apriorísticas e prejulgadas, são

    admissíveis apenas com o único e legítimo objetivo de corrigir algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida”

    (István Mészáros, 2007)

    “the  goal  of  the  Chile  Project  was  to  produce  ideological  warriors  who  would  win  the  battle  of  ideas  against  Latin  America’s  ‘pink’  economists”  (Naomi  Klein,  2007)

  • xx

  • xxi

    Lista de quadros Quadro 1. Distribuição da matrícula escolar do Chile, 1982-2012 9

    Quadro 2. Número de escolas segundo o tipo de administração, 1990-2012 10

    Quadro 3. Atividades de campo 39 Quadro 4. Lista de entrevistas realizadas 41 Quadro 5. Categorias descritivas 45 Quadro 6. Categorias de análise 46 Quadro 7. Lista de reformadores do campo educacional dos anos 1990 62 Quadro 8. Cargos de ministros da educação do Chile em instâncias

    internacionais dos anos 1990 87

    Quadro 9. Relações entre os fatores externos e eixos e estratégias políticas no

    Chile 89

    Quadro 10. Distribuição de temáticas e setores dos projetos do Banco Mundial

    em educação na América Latina nos anos 1990

    122

    Quadro 11. Programas e políticas dos países mais referenciados nos Projetos do

    Banco Mundial nos anos 1990 na América Latina 126

    Quadro 12. Disseminação do Programa das 900 Escolas (1990-2000) 152 Quadro 13. Equipe relacionada na elaboração das provas Replad 1991 160

    Lista de ilustrações Gráfico 1. Diferenças dos aportes financeiros dos bancos nos projetos no Chile

    nos anos 1990 106

    Gráfico 2. Projetos do Banco Mundial em educação na América Latina, 1966-2014 121

    Gráfico 3. Projetos do Banco Mundial em educação na América Latina, 1990-

    2001

    121

    Gráfico 4. Distribuição de projetos do Banco Mundial segundo sua

    porcentagem de gasto em educação 122

    Gráfico 5. Distribuição de referências dos projetos do Banco Mundial segundo

    países nos anos 1990 125

    Gráfico 6. Número de projetos do Banco Mundial com referências a políticas 128

  • xxii

    educacionais chilenas nos anos 1990 Esquema 1. Disseminação dos Programas Educo e Escuela Nueva na América

    Latina nos anos 1990 129

    Esquema 2. Referências na América Latina aos processos de descentralização

    do México, Colômbia e Chile nos anos 1990 131

    Esquema 3. Mapas da circulação de políticas educacionais chilenas nos anos

    1990

    135

    Esquema 4. Disseminação dos Projetos de Melhoria Escolar (PME) do Chile 150 Esquema 5. Pesquisadores e tomadores de decisões envolvidos em três

    iniciativas de medição da Unesco (1988-1997) 165

    Esquema 6. Modelo de circulação de conhecimento sobre políticas educacionais

    na América Latina nos anos 1990 211

    Esquema 7. Fases dos projetos do Banco Mundial 271

  • xxiii

    LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS

    AEN: Associação de Educação Nacional (Chile)

    AGCI: Agência de Cooperação Internacional (Chile)

    ALAS: Associação Latino-Americana de Sociologia

    ASDI: Agência de Cooperação Internacional da Suécia

    BID: Banco Interamericano de Desenvolvimento

    BM: Banco Mundial

    CAB: Convenio Andrés Bello

    CED: Centro de Estudios para el Desarrollo (Chile)

    Cesec: Centro de Estudos Socioeconômicos (Chile)

    CEP: Centro de Estudios Públicos (Chile)

    Cepal: Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina

    CIDE: Centro de Investigación y Desarrollo Educacional (Chile)

    Cieplan: Corporación de Estudios para Latinoamérica (Chile)

    CINDE: Corporación de Investigaciones para el Desarrollo (Chile)

    Clacso: Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais

    Clafee: Centro Latino-americano para a Formação de Especialistas em Educação

    Cpeip: Centro de Perfeccionamiento, Experimentación e Investigaciones Pedagógicas

    (Chile)

    CPU: Centro de Publicaciones Universitarias (Chile)

    CRA: Centros de Recursos de Aprendizagem (Chile)

    EFA: Conferência Mundial de Educação para Todos.

    ENU: Escola Nacional Unificada (Chile)

    FIDE: Federación de Instituciones de Educación Particular

    Flacso: Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais

    FMI: Fundo Monetário Internacional

    GPT: Grupos Profissionais de Trabalho (Chile)

    IIEP: Instituto Internacional de Planejamento Educacional (Unesco)

    Inacap: Instituto Nacional para a Capacitação Profissional (Chile)

    Integra: Fundación Nacional para el Desarrollo Integral de la Infancia (Chile)

  • xxiv

    Ilpes: Instituto Latino-Americano para o Planejamento Econômico e Social

    IRC: Relatório Final de Implementação dos projetos do Banco Mundial

    JEC: Jornada Escola Completa (Chile)

    Junaeb: Junta Nacional de Auxilio Escolar y Becas (Chile)

    JUNJI: Junta Nacional de Jardines Infantiles (Chile)

    LGE: Lei Geral de Educação (Chile)

    Llece: Laboratório Latino-americano de Avaliação da Qualidade da Educação

    LOCE: Lei N° 18.952 Orgânica Constitucional de Ensino (Chile)

    MECE: Projeto de Melhoria da Qualidade e Equidade da Educação (Chile-Banco Mundial)

    MECE Básica: Projeto de Melhoria da Qualidade e Equidade da Educação no Ensino

    Fundamental (Chile-Banco Mundial)

    MECE Média: Projeto de Melhoria da Qualidade e Equidade da Educação no Ensino

    Médio (Chile-Banco Mundial)

    Mecesup: Projeto de Melhoria da Qualidade e Equidade da Educação no Ensino Superior

    (Chile-Banco Mundial)

    Mineduc: Ministério da Educação do Chile

    OEA: Organização dos Estados Americanos

    OCDE: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico

    OEI: Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura

    OIT: Organização Internacional do Trabalho

    ONG: Organismos não governamentais

    ONU: Organização das Nações Unidas

    Orealc: Oficina Regional de Educação para a América Latina e o Caribe

    P-900: Programa das 900 Escolas

    PER: Prova de Avaliação de Rendimento (Chile)

    PIIE: Programa Interdisciplinario de Investigaciones en Educación (Chile)

    PNUD: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

    PME: Planos de Melhoria Educacional

    PMI: Programas de Melhoramento da Infância (Chile)

    Preal: Programa de Promoção da Reforma Educacional na América Latina

  • xxv

    Prealc: Programa Regional de Emprego das Nações Unidas para a América Latina e o

    Caribe

    Prodepe: Programa de Descentralização Pedagógica (nome prévio do PME)

    Promedlac: Projeto Principal de Educação para America Latina e o Caribe

    PUC: Pontifícia Universidade Católica do Chile

    Reduc: Rede Latino-americana de Informação e Documentação em Educação

    Replad: Rede Regional para o Treinamento, Inovação e Pesquisa nos campos da

    Planificação e a Administração do Ensino Fundamental e dos Programas de Alfabetização

    Simce: Sistema Nacional de Medição da Qualidade da Educação (Chile)

    SUTE: Sindicato Único de Trabalhadores da Educação (Chile)

    UCE: Unidade de Currículo e Avaliação do Mineduc (Chile)

    UCEP: Unidade de Coordenação e Execução do Programa (Mineduc-Banco Mundial)

    Unesco: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

    Unicef: Fundo das Nações Unidas para a Infância

    Usaid: Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional

  • - 1 -

    Introdução

    “¿Cuántas  veces  en  esos  instantes  de  recogimiento  había  pensado,  sin  

    acertar a explicárselo, en el porqué de aquellas odiosas desigualdades

    humanas que condenaban a los pobres, al mayor número, a sudar sangre

    para sostener el fausto de la inútil existencia de unos pocos! ¡Y si tan sólo

    se pudiera vivir sin aquella perpetua zozobra por la suerte de los seres

    queridos, cuyas vidas eran el precio, tantas veces pagado, del pan de cada

    día!”.  (Baldomero Lillo, El chiflón del diablo, 1904)

    Esta citação corresponde a uma das histórias mais conhecidas do escritor chileno

    Baldomero Lillo. Ela resume uma tragédia, a injustiça que Ulrich Beck descreve ao falar da

    relação inversamente proporcional na distribuição social dos riscos, na qual os mais pobres

    estão condenados a viver condições mais perigosas que os ricos, que contam com recursos

    econômicos para adquirir mais segurança. O mundo literário de Lillo está habitado por

    mineiros de carvão do início do século XX na cidade de Lota, 537 quilômetros ao sul de

    Santiago.

    Em 1997, sob o governo do democrata-cristão Eduardo Frei Ruiz-Tagle, decidiu-se

    fechar a mina de Lota por motivos de insolvência econômica na mineração do carvão.

    Apesar das tentativas de reestruturação produtiva, a cidade parecia continuar sendo a

    moradia dessas figuras trágicas da literatura que Lillo retratava há 90 anos. Falo dessa

    cidade chilena na apresentação desta pesquisa porque foi lá que, em 2006, um grupo de

    estudantes do ensino médio da Escola Carlos Cousiño – que leva o nome de um dos

    proprietários da mina– decidiu ocupar o prédio da escola. O motivo? Lota está localizada

    numa região de chuvas, e a água escorria através das paredes, pelas rachaduras dos tetos e

    pelas janelas quebradas da escola... as salas de aula estavam alagadas. Essa situação

    mobilizou os alunos a ocupar a escola, questão que logo encontrou uma solidariedade

    geracional nos estudantes de todo o país. O pavio da mobilização social pegou fogo,

    iniciando uma das lutas mais importantes do país. As demandas de alunos para a melhoria

    das condições de trabalho nas escolas logo passaram para temáticas de fundo referentes às

    de qualidade e de igualdade, para incluir temas como a necessidade de derrubar a Lei

  • - 2 -

    Orgânica Constitucional de Ensino (LOCE), em vigor desde o final da ditadura. A mesma

    geração de crianças e jovens que atuou na Revolução dos Pinguins (2006) participou mais

    tarde do movimento estudantil universitário (2011). A rebelião dos estudantes surpreendeu

    não só o Chile, mas também a América Latina, já que ocorria num país que parecia ter

    alcançado um equilíbrio bem-sucedido entre políticas de mercado e regulação estatal.

    As páginas seguintes vinculam-se aos resultados de uma linha de pesquisa pessoal

    que tem percorrido caminhos acadêmicos diversos, questionando a participação dos atores

    escolares nas políticas educacionais, a cidadania juvenil nas escolas chilenas ou as

    alternativas e contradições das políticas de ação afirmativa. É evidente que essa história de

    pesquisa integra-se como parte da lente através da qual observo a realidade educacional.

    Mas esta pesquisa também está inspirada em perguntas e sensações nascidas no desafio

    pronunciado pelas vozes dos estudantes chilenos para promover um sistema educacional

    desprendido das formulações políticas da ditadura militar – e que buscam, portanto, vencer

    a desigualdade ancorada na história desse país.

    Não é estranho ter visto, até hoje, diversos líderes daqueles movimentos estudantis

    chilenos entrevistados em meios de comunicação ou vê-los expondo em foros educacionais

    e políticos sobre a realidade da educação chilena e as estratégias de luta em diversos países

    de América Latina, Europa e Estados Unidos, e em organismos internacionais como a

    OCDE e a Unesco. Em todas essas intervenções podemos escutar uma crítica aguda ao

    continuísmo das políticas educacionais da ditadura militar e a incitação a não acreditar nas

    aparentes  virtudes  do  “modelo  chileno”,  o  qual  deveria  ser exposto como um bom exemplo

    das consequências do extremismo do neoliberalismo. O ponto de partida desta pesquisa

    situa-se nessa ideia de transferência de políticas educacionais chilenas que subjaz nos

    comentários dos estudantes, mas tentando identificar os mecanismos, atores e momentos

    nos quais tal transferência ocorreu.

    O laboratório neoliberal

    Quando falamos da história recente de políticas educacionais do Chile, não

    podemos evitar associar dois fatos relevantes: a ditadura cívico-militar encabeçada por

    Augusto Pinochet (1973-1990) e as políticas econômicas adotadas nesse governo – o que

  • - 3 -

    significou a incorporação do país às tendências neoliberais do mundo (CABALÍN, 2012).

    As transformações econômicas de cunho neoliberal implantadas no Chile não se

    restringiram ao âmbito econômico, mas incluíram a área social – saúde, previdência social

    e educação. O setor educacional iniciou um período de fortes reformas que consideraram a

    introdução de vales escolares – vouchers ou cheques por aluno –; a municipalização do

    ensino primário e secundário; um forte impulso para a privatização de todos os níveis

    educacionais; a regionalização e financiamento mínimo para as universidades estatais; a

    transferência dos professores aos níveis de administração local, entre outras medidas.

    Algumas destas políticas, como as de descentralização, colocaram-se na vanguarda da

    região, assentando as bases de um programa neoliberal latino-americano (KRAWCZYK,

    2009).

    A reforma educacional da ditadura militar foi parte desse laboratório de políticas

    que se instalou na década de 1970. Naomi Klein, em seu aclamado livro A doutrina do

    choque. A ascensão do capitalismo de desastre (2007), descreve o lugar privilegiado do

    Chile na história do neoliberalismo no mundo. Os economistas da Escola de Economia de

    Chicago precisavam, segundo a autora, de um território para implantar seu ideário e

    desenvolver políticas. O golpe de Estado no Chile implicou uma oportunidade para levantar

    um experimento e começar a construir políticas que mais tarde se tornaram parte de

    processos de globalização1 ou de políticas educacionais globais (VERGER et al., 2012). O

    conceito de laboratório apareceu explicitamente nas metáforas de Milton Friedman para

    falar da necessidade de implantação de políticas econômicas neoliberais, sendo o Chile o

    seu primeiro território (VALDÉS, 1995; SALAZAR e PINTO, 1999a; KLEIN 2007;

    SCHWARZTMAN, 2007; SADER s/d).

    Em nossa perspectiva, entenderemos conhecimento não apenas de acordo com a

    concepção iluminista científica que o concebe como ação intelectual dirigida de

    desvelamento de leis para a apropriação e dominação da natureza e da sociedade,

    permitindo a emancipação tanto dos indivíduos como das nações (STOER e

    1 Mato  (2003)  utiliza  o  termo  “processos  de  globalização”  em  vez  de  globalização;;  o  primeiro  faz  referência  às inter-relações significativas e interdependências entre atores sociais em níveis cada vez mais de tipo planetário. Podemos acrescentar que esses processos não são neutros, implicam relações de poder associadas às divisões internacionais do trabalho. Por outro lado, o conceito sugere a intensificação de relações de dependência dos países mais pobres em relação aos especialistas estrangeiros (VERGER et al., 2012).

  • - 4 -

    MAGALHÃES, 2003). Adotaremos também uma concepção que entende o conhecimento

    como uma ferramenta de regulação da tomada de decisões nas diversas fases da construção

    de políticas educacionais   (BARROSO,   2006;;   ‘T   HART   e VROMEN, 2008). Podemos

    acrescentar que esse conhecimento sobre políticas se expressa em normas, discursos e

    instrumentos determinados de governo. Allouch e Van Zanten (2010), pensando na ação

    estatal, classificam esse conhecimento em cinco formas: a) legal e normativo (leis através

    das quais o Estado impõe os interesses gerais); b) econômico e fiscal (ferramentas através

    das quais o Estado produz e distribui a riqueza); c) convenções e incentivos (através das

    quais o Estado procura se envolver e se asssociar com a sociedade); d) informativo e

    comunicacional (através do qual o Estado procura explicar suas decisões); e) padrões

    (standards) e boas práticas (ferramentas que têm o objetivo de introduzir mecanismos de

    ajuste no mercado). Por sua vez, Ozga (2008) e Ball (2010) pontuam que é possível

    estabelecer dois níveis de análise desse conhecimento compreendido como ferramenta de

    regulação: por um lado, podemos observar a gestão da produção, organização e utilização

    de conhecimento, sejam tecnologias estatísticas, comparações, avaliações, inspeções,

    rankings – que permitem ao governo exercer vigilância –; e por outro lado, as modalidades,

    discursos e práticas nos quais esse conhecimento é crescentemente utilizado como um

    instrumento de governo, de reforma do setor público, visando a mudanças de cultura e

    conduta.

    Especificamente, os conhecimentos de políticas ensaiados no Chile participaram de

    processos de regulamentação transnacionais dentro de “um  complexo  entrelaçamento das

    unidades  socioculturais  e  interdependências  globais”  (SCHRIEWER,  2009:  83).  A relação

    entre organismos internacionais e as nações questionou a autonomia dos governos na

    idealização, formulação, transferência e implantação de políticas, afetando as formas e

    conteúdos dos procedimentos associados à elaboração de políticas e seus resultados

    (DALE, 2007).

    O Chile marcou uma direção possível nesse deslocamento do Estado-nação do

    centro de elaboração de políticas, em nossa região.

  • - 5 -

    A democratização e a disseminação de políticas nos anos 1990

    Em 1990 o Chile voltou à democracia, graças a um consenso de governabilidade

    entre a direita e a centro-esquerda, fato que implicou a aceitação da Carta Constitucional de

    1980 e da Lei Orgânica Constitucional de Ensino (CHILE, 1990), aprovada em 10 de

    março de 1990 pela Junta Militar, um dia antes da posse do presidente Patricio Aylwin.

    Esta nova lei consolidou as políticas educacionais neoliberais e se transformou no marco de

    atuação dos governos democráticos até 2009, ano em que é publicada a nova Lei Geral de

    Educação – LGE – (CHILE, 2009).

    Na década de 1990 surgiu um interesse explícito nas políticas educacionais chilenas.

    Para efeitos históricos, nesta pesquisa faremos referência a duas ondas justapostas de

    políticas educacionais no Chile nos anos 1990: a primeira reúne as reformas estruturais da

    ditadura, a segunda reúne as novas políticas impulsionadas pelos governos democráticos.

    As políticas destes governos tentaram ir além do marco neoliberal, aperfeiçoando a ação do

    Estado quanto à ênfase nas condições mínimas – papel subsidiário –, para procurar a

    definição e condução de políticas de desenvolvimento educacional – papel promotor –

    (COX, 2005). Mesmo assim, as principais definições estruturais não mudaram o caráter

    neoliberal do sistema educacional chileno, consolidando uma aposta de reforma de

    continuidade conservadora (KRAWCZYK e VIERA, 2007) ou de mudança no marco da

    continuidade (DELANNOY, 2000), o que não conseguiu afirmar uma estratégia flexível e

    articulada. Assim, o Chile manteve as políticas de privatização, municipalização do ensino

    e financiamento via subvenção por aluno. As novas políticas, a partir de 1990, não

    mudaram este núcleo estruturador do sistema educacional e se inscreveram numa lógica de

    oferta variada para enfrentar problemáticas específicas (DONOSO e DONOSO, 2009;

    DONOSO, 2011). As linhas da reforma educacional na democracia tenderam a se justapor

    a esse núcleo constituído na ditadura, destacando: a Jornada de Tempo Integral (JEC); a

    Reforma Curricular; os Programas de Melhoria Educacional – desenvolvidos no marco dos

    projetos do Banco Mundial –; e o Fortalecimento da Formação Docente.

    Nessa década, os organismos internacionais como o Banco Mundial, Banco

    Interamericano de Desenvolvimento e o Fundo Monetário Internacional começaram a

    promover políticas econômicas na América Latina na mesma direção que haviam iniciado

  • - 6 -

    no Chile nos anos 1970 e 1980. A avaliação de bom sucesso se justificou nos resultados

    econômicos e nos indicadores educacionais que o Chile exibia, em especial a alta cobertura

    educacional e a baixa taxa de analfabetismo.

    Tanto a originalidade das experiências educacionais do Chile dos anos 1980 quanto

    as novas políticas ensaiadas a partir de 1990 constituíram uma referência significativa no

    âmbito acadêmico e na formulação de políticas públicas na região. Elas foram

    representativas de um novo patamar na construção de políticas que privilegiaram a

    racionalidade individual, a progressiva hegemonia dos seguidores da teoria do capital

    humano, teoria da escolha pública e dos princípios neoliberais sobre o campo da educação

    (TIRAMONTI, 2003). Neste sentido, as histórias das disciplinas das ciências econômicas,

    políticas e da educação na América Latina se entrecruzam em nosso relato.

    Um conhecimento que circula e regula políticas

    A década de 1990 pode ser reconhecida pela sincronização de reformas

    educacionais em diversos países da América Latina, fato impulsionado por fatores

    transnacionais, pelos diagnósticos e acordos da Conferência Mundial de Educação para

    Todos de Jomtien (Tailândia, 1990), que se configuraram como uma referência

    legitimadora das diversas políticas empreendidas nesses anos. Podemos situar esta

    Conferência como um ponto de inflexão para os processos de elaboração de políticas

    educacionais, marcado pela articulação e crescente complementaridade dos diversos

    organismos internacionais. O Banco Mundial, Unesco, PNUD, UNICEF, entre outros

    órgãos, participaram da configuração de uma regulação transnacional de políticas

    educacionais. Entenderemos regulação transnacional de políticas como:

    (...) o conjunto de normas, discursos e instrumentos (procedimentos, técnicas, materiais diversos, etc.) que são produzidos e circulam nos fóruns de decisão e consulta internacionais, no domínio da educação, e que são tomados, pelos políticos, funcionários ou especialistas nacionais, como  ‘obrigação’  ou  legitimação’  para  adotarem  ou  proporem  decisões  ao  

  • - 7 -

    nível de funcionamento do sistema educativo. (BARROSO, 2006: 44-45)2.

    Os efeitos desse tipo de regulação seriam maiores nos países em vias de

    desenvolvimento ou não desenvolvidos, já que eles dependem dos organismos

    transnacionais – tanto em termos econômicos, políticos quanto técnicos – (VERGER et al.,

    2012). A regulação transnacional se expressa em processos de contaminação de conceitos e

    políticas, que levam à imposição de diagnósticos, metodologias, técnicas e soluções.

    A formulação de políticas educacionais, no contexto da regulação transnacional,

    decorre da ação de diversas arenas de políticas – entendidas como estruturas e disposições

    de relações entre atores em torno às reformas educacionais – e de dinâmicas de regulação

    de políticas nesse âmbito – a construção de regras de jogo que permitem manter um

    equilíbrio. O campo ou as arenas das políticas são um espaço social, um campo de forças de

    relações desiguais em luta pela transformação ou conservação, com o uso do poder do qual

    dispõem, determinando por sua vez tanto as estratégias a desenvolver como a utilização de

    seus capitais: econômico, cultural, social e simbólico (LINGARD et al., 2005).

    Na América Latina, dois anos após a Conferência de Jomtien, Cepal-Unesco

    publicaram  o  documento  “Educación   y   conocimiento:   eje  de   la   tranformación  productiva  

    con   equidad”,   sintetizando uma proposta técnica para o desenvolvimento das políticas

    educacionais de nossa região, texto que marcou como veremos uma nova hegemonia

    político-técnica. Estes dois antecedentes guiaram toda uma geração de políticas em nossa

    região.

    Tanto a presença do diretor do CIDE do Chile, o sacerdote jesuíta Patricio Cariola,

    como o representante da América Latina no Comitê Organizador da Conferência de

    Jomtien (CAICEO, 2005; Preal, 1998) – além, por outro lado, da publicação na cidade de

    Santiago do texto da Cepal-Unesco – constituíram sinais do lugar central ocupado pelo

    2 Barrosso (2006) define dois outros tipos de regulação: microrregulação local e regulação nacional. A microrregulação local é o processo de coordenação de ações dos atores de um espaço local de interdependência comum – escolas, territórios educativos etc. Este processo faz referência aos reajustamentos locais das regulações nacionais, implicando ações de confrontos, interações, negociações e compromissos entre diversos interesses, lógicas, racionalidades e estratégias. A regulação nacional é o processo de coordenação, influência e controle exercido pelas autoridades públicas, através de normas, injunções e constrangimentos. O Estado Providência legitimou dois tipos de coordenações para a regulação nacional: a administração burocrática e o professionismo (a ação dos docentes), hoje enfraquecida pela acentuação da regulação transnacional.

  • - 8 -

    Chile no início da década de 1990, como cenário de encontro, análise e produção de

    políticas. Tentaremos demonstrar nestas páginas a existência de um campo de circulação e

    regulação de políticas próprio na América Latina – não isento de processos de hibridação

    (VAN ZANTEN, 2004) e transformações locais –, o qual foi possibilitado pelo papel

    articulador do Chile e da mesma circulação de conhecimentos sobre as suas reformas

    educacionais.

    Ao mesmo tempo, interessa-nos dar conta da forma de produção e espalhamento

    desses conhecimentos através de diversos níveis: pessoas (tecnocratas, especialistas, policy

    makers), instituições, governos e organismos internacionais, redes e comunidades

    epistêmicas (DRAELANTS e MAROY, 2007; BOURDIEU, 2000), identificando as

    dinâmicas de circulação da reforma educacional chilena como insumo político e técnico.

    Para este estudo escolhemos o conhecimento sobre a implantação de políticas num

    país específico, o Chile, dada sua condição de vanguarda na aplicação do ideário neoliberal

    nos anos 1980. A circulação regional de políticas educacionais tem sido um dos aspectos

    menos estudados nos processos de reforma. Sobre esta ausência de estudos, um de nossos

    entrevistados, um ex-funcionário do Ministério da Educação do Chile, recebeu-me na

    biblioteca de sua casa e, ao oferecer-me uma xícara de café, começou a justificar o seu

    interesse em participar da entrevista proposta para esta pesquisa desta forma:

    una de mis ocupaciones frecuentes en el ministerio era apoyar el trabajo o la función de relaciones exteriores del ministerio, no ocupé una responsabilidad funcionaria específica, hay un departamento para eso... Y siempre quedé con alguna reflexión que me preocupaba, era esta cara externa de nuestras reformas. Tenía una cierta visión a través de pequeñas cosas, siempre quise escribir sobre eso (Entrevista, ex-funcionário do Mineduc).

    O rosto externo das reformas educacionais chilenas se constituiu no reflexo do

    espelho da América Latina, ação que analisaremos aqui como objeto fundamental de nossa

    análise.

    Assim pretendemos responder à questão central de nossa pesquisa, tendente a

    mostrar e analisar os processos de circulação e regulação dos quais participaram as políticas

  • - 9 -

    educacionais chilenas – no marco de seus processos de reforma educacional durante a

    ditadura e a democracia na década de 1990 na América Latina.

    A situação educacional do Chile

    Um dos grandes méritos das mobilizações estudantis destes últimos anos no Chile

    foi a superação da naturalização dos diagnósticos da situação da educação desse país. Serão

    dados adiante alguns dados significativos que permitem localizar a nossa pesquisa,

    mostrando as principais mudanças estruturais desde a década de instalação do laboratório

    neoliberal nesse país.

    Um primeiro aspecto a destacar é a proliferação de escolas privadas subvencionadas

    pelo Estado, as quais representavam, no início da década de 1990, um terço da matrícula

    escolar.

    Quadro 1. Distribuição da matrícula escolar do Chile, 1982-2012

    Ano

    Tipo de Administração

    TotalEscolas

    MunicipaisEscolas PrivadasSubvencionadas

    Escolas Privadas Escolas de

    Corporações Privadas

    1982 2.682.142 75,30% 19,60% 5,10% -

    1990 2.742.743 58,40% 32,30% 7,20% 1,90%

    1994 2.782.998 57,80% 32,30% 8,20% 1,80%

    2000 3.231.148 54,20% 35,90% 8,20% 1,70%

    2006 3.652.227 48,35% 43,19% 6,89% 1,5%

    2010 2.940.665 42,08% 49,07% 7,08% 1,77%

    2012 3.057.945 39,59% 51,26% 7,29% 1,68%

    Fonte: Estadísticas de Educación 2005 e 2012, Ministerio de Educación de Chile

    Na tabela podemos observar também que a tendência para a privatização continuou

    na década de 1990. Essa situação se viu reforçada pela liberação ao mercado do

  • - 10 -

    crescimento das escolas privadas. Entre 1990 e 2000 as escolas privadas com subvenção do

    Estado passaram de 2694 para 3217 escolas, enquanto as escolas públicas diminuíram seu

    número, de 6286 para 6255.

    Quadro 2. Número de escolas segundo o tipo de administração, 1990-2012

    Ano

    Tipo de Administração

    TotalEscolas

    MunicipaisEscolas PrivadasSubvencionadas

    Escolas Privadas Escolas de

    Corporações Privadas

    1990 9 811 6 286 2 694 758 73

    1994 9 810 6 243 2 637 860 70

    2000 10 610 6 255 3 217 1 068 70

    2006 11 671 5 971 4 897 733 70

    2010 12144 5726 5674 674 70

    2012 12174 5580 5756 657 70

    DiferenciasPeríodo

    +2363 -706 +3062 - -3

    Fonte: Estadísticas de Educación 2005 e 2012, Ministerio de Educación de Chile

    Como bem assinala Kremerman (2007), a matrícula chilena cresce 22,5% entre

    1990 e 2005, mas este incremento se explica no crescimento do setor privado

    subvencionado em 63,8% – numa lógica de predomínio das lógicas de mercado, que

    limitam as possibilidades de ação do estado (OCDE, 2004). Por outro lado, observamos na

    década de 1990 o aumento da participação do Ensino Médio Técnico no total de alunos

    deste nível: de 35,5% em 1990 para 44,6% em 2000.

    O crescimento do setor privado tem sido acompanhado pelo aumento da segregação

    socioeconômica do sistema escolar: as escolas públicas concentram os alunos mais pobres,

    as escolas privadas com subvenção do Estado, os alunos da classe média – e

    crescentemente vão ocupando espaços na educação dos mais pobres –, e as escolas privadas

    educam os 7% mais ricos do país. Essa segregação correlaciona-se positivamente com os

    resultados brutos das provas padronizadas, isto é, os mais ricos das escolas privadas

    apresentam o melhor rendimento, enquanto as escolas públicas que atendem aos mais

  • - 11 -

    pobres apresentam o rendimento mais baixo do sistema. No início dos anos 1990, no Chile,

    ainda se confiava na possibilidade de reverter estas tendências mediante políticas de

    correção desenvolvidas durante toda a década.

    Organização do texto

    A pesquisa foi organizada em sete capítulos, através dos quais tentamos mostrar o

    processo que levou o Chile a se converter em modelo de políticas educacionais para a

    América Latina e os processos de disseminação de conhecimento associados a ele. Nossa

    hipótese é que esse conhecimento de políticas teria sido utilizado como um dispositivo de

    regulação na região na década de 1990, dado o caráter pioneiro desse país na implantação

    de políticas neoliberais (nos anos 1980) e, depois, da articulação do neoliberalismo e

    regulação estatal (nos anos 1990).

    O primeiro capítulo, “Bases   históricas   da   circulação   de   ideias   educacionais   do  

    Chile”, tem uma função de contextualizar a nossa hipótese de trabalho, focando na análise

    histórica de fatores que convertem o Chile num território de interesse regional. A

    consideração deste contexto social, cultural e histórico é uma necessidade teórica

    (OSZLAK e  O’DONNELL, 1995) e tem uma relevância estruturante para a emergência de

    ações de circulação e regulação de políticas. Neste capítulo são apresentados antecedentes

    históricos da formação do sistema educacional do país, destacando-se a circulação de ideias

    que o fundamentaram. Destacamos o surgimento do movimento de professores no início do

    século XX, que mais tarde deu origem à primeira grande reforma do sistema educacional, e

    a políticas de experimentação pedagógica a partir da década de 1930. Esta tradição foi

    amplamente disseminada na América Latina e nos organismos internacionais, gerando uma

    primeira fonte de prestígio regional e internacional das políticas chilenas. O Chile é situado

    na perspectiva das lutas de projetos políticos que teve lugar na América Latina a partir da

    década de 1950, revelando as condições que permitiram a esse país se transformar tanto

    num centro de elaboração teórica e política quanto de confluência de interesses

    transnacionais. Utilizamos a  figura  teórica  do  “laboratório” para analisar o papel desse país

    na região.

  • - 12 -

    No capítulo 2, “Metodologia  e  procedimentos  de  pesquisa”, mostramos os diversos

    passos tomados para a elaboração desta pesquisa, caracterizamos as fontes de pesquisa, os

    métodos e categorias de análise e pontuamos as limitações encontradas.

    Os capítulos 3, “O  campo  de  elaboração,  disseminação  e  circulação  de  ideias”, e o

    4, “Um  laboratório  na democracia: a reestruturação do campo  de  políticas  educacionais”,

    dão conta da emergência de espaços de resistência acadêmico-política sob os governos

    autoritários da América Latina. Nesta perspectiva, o Chile ocupou novamente um lugar de

    destaque na coordenação das redes de analistas simbólicos que mais tarde ocupariam

    posições de governo. Examinamos com especial interesse as transformações do laboratório

    chileno de políticas educacionais e as especificidades das relações entre o Chile e os

    organismos internacionais, especialmente o Banco Mundial.

    Mais adiante, os capítulos 5, “A   circulação   de   conhecimento   de   políticas   como

    estratégia   de   regulação”, e o 6, “A   circulação   de   políticas   educacionais   do   Chile:   a

    regionalização   do   laboratório”, procuram estabelecer quais foram as dinâmicas de

    circulação de conhecimento de políticas educacionais na década de 1990 e o lugar

    privilegiado do Chile como laboratório em andamento.

    O capítulo 7, “A  institucionalização  da  circulação  do  conhecimento”, busca explicar

    os fatores institucionais que explicam a relevância da disseminação de conhecimento para a

    regulação de políticas, especificando os caminhos que adotaram os organismos

    internacionais e o governo chileno para transferir políticas.

    Por último, interessou-nos desenvolver uma reflexão relativa aos objetivos de nossa

    pesquisa e às teorizações sobre a circulação de políticas educacionais e a necessidade de

    laboratórios no marco da globalização, a partir de uma  mirada  do  “Sul”.  

  • - 13 -

    1. AS BASES HISTÓRICAS DA CIRCULAÇÃO DE IDEIAS EDUCACIONAIS DO CHILE

    Valdés (1995) inicia seu texto “Pinochet’s   economists.   The Chicago School in

    Chile” trazendo uma imagem fantástica dos relatos do período anterior à independência

    chilena. Livros proibidos eram desembarcados nos navios ingleses no porto de Valparaíso e

    logo se espalhavam entre a população. Assim, as ideias do iluminismo e os processos de

    libertação da França e dos Estados Unidos inspiraram as lutas dos começos do século XIX

    nesse país, cenas que podiam ser observadas no resto dos portos da América Latina. Por

    outro lado, grandes nomes das guerras de independência foram educados na Europa, como

    Simón  Bolívar  (Venezuela),  José  de  San  Martín  (Argentina)  e  Bernardo  O’  Higgins  (Chile),  

    adquirindo experiências para a futura estruturação dos novos estados nacionais. Com a

    independência, o pensamento republicano da época viu na educação um papel central na

    formação de atitudes cívicas dos cidadãos circunscrita nessa época às elites dirigentes

    (RUIZ, 2010).

    No caso do Chile, a importação de ideias não só implicou a aquisição de uma

    consciência revolucionária, mas também significou a adoção da forma escolar e suas

    características particulares (VINCENT et al., 2001; OSZLAK, 1979)3. Dessa forma, nas

    primeiras décadas de vida independente do Chile, a educação teve uma importância

    estratégica na reprodução das elites sob o ideário republicano. Nesse primeiro período da

    história educacional do Chile, as principais influências estrangeiras vieram dos modelos da

    França e da escola lancasteriana da Inglaterra. No final do século XIX importou-se o

    modelo pedagógico de Johann Friedrich Herbart, além da introdução de prussianos na

    direção de escolas e na gestão do novo Instituto Pedagógico (1899)4 e do modelo

    pedagógico de John Dewey (Estados Unidos) como referenciais para as etapas seguintes de

    desenvolvimento do sistema escolar.

    3 Este   breve   relato   histórico   recebe   aportes   do   texto   elaborado   pelo   autor   desta   pesquisa   intitulado   “La  construcción  del  derecho  a  la  educación  y  la  institucionalidad  educativa  en  Chile”  (INZUNZA, 2009). 4 O Instituto Pedagógico nasceu por iniciativa de Valentín Letelier, que em sua viagem à Alemanha de 1882 conheceu o sistema educacional desse país, onde a pedagogia era definida como uma ciência e uma arte. Após vários projetos, o Instituto Pedagógico começou a funcionar em 1890 sob a direção do alemão Federico Johow (COX e GYSLING, 2009).

  • - 14 -

    Além disso, o processo de estruturação do Estado do século XIX no Chile

    considerou a participação de estrangeiros na formação de um pensamento educacional e na

    construção das instituições educacionais. Nesta perspectiva destacaram-se figuras como

    José Joaquin de Mora (Espanha), Andrés Bello (Venezuela) e Ignacio Domeyko (Polônia).

    Estes atores se integram a uma rica vida intelectual em Santiago, que via destacar as figuras

    de Francisco Bilbao, José Victorino Lastarria e Domingo Faustino Sarmiento – argentino

    exilado, diretor da primeira Escola Normal no Chile. Eles concordavam com uma corrente

    de pensamento liberal latino-americana que defendia a democracia, a instrução pública

    popular – não elitista –, o laicismo, a definição de poderes e a transparência eleitoral.

    Em 1842, 15 anos depois da independência, nasceram duas instituições

    fundamentais para o desenvolvimento do sistema nacional de educação nacional (NÚÑEZ,

    1991): a Escola Normal de Preceptores para a formação dos professores das escolas e a

    Universidade do Chile – entidade que durante várias décadas oficiou como

    superintendência de educação, com Andrés Bello como reitor. Este seria o momento

    histórico de surgimento do Estado Docente no Chile, isto é, a instalação das instituições

    que tentariam progressivamente vigiar, desenvolver e prover educação – e que seriam

    aprofundadas sob o marco do Estado de Compromisso do século XX (EGAÑA, 2003). A

    primeira lei nacional de regulamentação da educação – Lei Geral de Instrução Primária –,

    aprovada em 1860, estabeleceu que a direção da educação primária ficaria nas mãos do

    Estado, e sua gratuidade estava garantida.

    Apesar dessas definições do Estado chileno, a presença e relevância do ensino

    privado acompanhou todo o desenvolvimento do sistema educacional do Chile durante o

    século XIX. O Estado em formação aparecia dominado pelas oligarquias, as quais tinham

    na educação um dos âmbitos de reprodução dos privilégios, desenvolvimento que se

    inscreveu no que alguns autores denominam a lógica excludente do Estado (FERNANDEZ,

    2003). Foi assim que o crescimento do número de escolas esteve vinculado nesse século à

    iniciativa predominante dos proprietários privados de escolas. O escasso aporte econômico

  • - 15 -

    do Estado para a manutenção dos prédios escolares facilitou o surgimento de mais escolas

    confessionais e o nascimento da Sociedade de Instrução Primaria5.

    No final do século XIX continuou o incentivo privado e estatal para a realização de

    viagens de estudo dos sistemas escolares. Desse modo, podemos identificar os primeiros

    portadores de tipo filantrópico e mediadores de conhecimento na história educacional do

    país. Em 1878, o diretor da Sociedade de Instrução Primária José Abelardo Núñez visita

    Estados Unidos, e em seu retorno escreve o livro Organización de las Escuelas Normales.

    Ele passou a ser inspetor geral, e a partir de então impulsionou um maior investimento

    público para as escolas estatais. No período de 1886-1891 – governo de José Manuel

    Balmaceda – construíram-se 195 escolas primárias, tentando atacar o problema do

    analfabetismo da população, nesse momento situado em 71,1%.

    1.1. Os primeiros movimentos de disseminação de políticas educacionais

    Os professores das organizações nascentes também se incorporaram a uma

    circulação internacional de pedagogos, entrando em contato com novas tradições. Por volta

    de 1905, professores jovens formaram a Associação de Educação Nacional (AEN), que

    enviou uma delegação de quatro professores aos Estados Unidos para tomar conhecimento

    dos postulados de John Dewey. Desta forma, essa influente associação defendeu a

    democratização, a igualdade de oportunidades, a necessidade da obrigatoriedade escolar e

    manifestou-se contra a influência dos alemães no sistema escolar.

    Uma nova crise política, porém, ocorreu a partir de 1924 com numerosos golpes de

    Estado e com um protagonismo da pequena classe média nascente, representada pelos

    jovens oficiais militares. Esta nova força permitiu a incorporação de outros setores sociais

    como objetos e sujeitos de práticas políticas, administrativas e legais (FERNÁNDEZ,

    2003), incluindo a instalação de uma república socialista por 12 dias, em 1929. Era o

    começo da superação do Estado oligárquico do século XIX.

    A desorganização política entre 1924 e 1932 deixou paradoxalmente várias

    novidades no âmbito educacional, incluindo a reestruturação administrativa do Ministério 5 Entidade privada fundada em 1856 que se converteu numa referência para as políticas públicas em educação desde então.

  • - 16 -

    de Instrução Pública, e levando a cabo uma reforma educacional inconclusa – ambas sob o

    governo do presidente Carlos Ibáñez del Campo. Esta reforma educacional foi uma

    constatação do amadurecimento político-pedagógico daqueles professores que, já desde o

    início do século XX, estavam incorporando as ideias de Dewey em suas propostas

    educacionais. Vários deles protagonizaram a implantação de diversas linhas de reforma6

    que não conseguiram se sedimentar na época; porém, deixaram como herança as políticas

    de experimentação pedagógica, iniciadas nas escolas primárias em 1928 e, posteriormente,

    nas escolas secundárias.

    De 1938 a 1952 o Chile viveu os três governos da Frente Popular – conduzidos por

    presidentes vindos do Partido Radical7. Estes governos marcaram o definitivo surgimento

    de uma elite diferente da oligarquia que havia governado o país até então, e era composta

    por uma classe média e imigrantes identificados com setores profissionais que assumiam as

    bandeiras do laicismo e da educação (SALAZAR e PINTO, 1999b).

    Dentro das políticas educacionais da Frente Popular, podemos encontrar: a fundação

    do Corpo Cívico de Alfabetização Popular, a Reforma Curricular da Educação Primária, o

    Plano experimental de São Carlos e o Plano de Renovação Gradual da Educação

    Secundária. As ideias de John Dewey novamente são cruciais, especialmente a defesa da

    relevância maior à formação social do aluno, reconhecendo suas capacidades, interesses e

    habilidades iniciais. A novidade e o sucesso dessas experiências significaram o rápido

    interesse regional por elas e a sua disseminação na América Latina.

    A circulação de conhecimentos (ideais e experiências pedagógicas) foi viabilizada

    através de professores que foram transferidos a outros países e organismos internacionais

    para desempenhar papéis de portadores ou mediadores de conhecimentos, num movimento

    que durou várias décadas. Professores chilenos como Irma Salas e Oscar Vera foram

    convidados para orientar reformas educacionais e para participar de organismos como a

    Unesco, Organização dos Estados Americanos – OEA – e Oficina de Educação Ibero-

    6 Assim, notáveis figuras do âmbito educativo se incorporaram ao governo: o escritor Eduardo Barrios como ministro, o presidente da Associação Geral de Professores na Direção da Educação Primária Luis Gómez Catalán e o presidente da Sociedade Nacional de Professores Luis Galdames na direção de Educação Secundária. 7 O primeiro presidente da Frente Popular, o professor e advogado radical Pedro Aguirre Cerda, é lembrado ainda  hoje  pelo  lema:  “Governar  é  educar”.  Nesses três governos destacou também a criação da Universidade Técnica do Estado (1947) e a Junta Nacional de Auxilio Escolar (1953).

  • - 17 -

    americana – OEI – (SOTO, 2000). Como exemplo dessa regionalização ou

    internacionalização, Gutiérrez et al. (1998) destacaram a participação de vários docentes de

    uma das escolas de ensino médio de Santiago, o Liceu Darío Salas:

    América Central. Entre 1944 e 1945 o governo do Panamá solicita uma missão de

    professores chilenos, entre eles o professor de matemática Fernando Gutiérrez.

    Outros professores foram Elvira Collados, que foi contratada em El Salvador, e

    Aída Migone, que ensinou na Escola Superior de Professores F. Morazán de

    Honduras, entre 1957 e 1959.

    Venezuela. Destaca-se o professor Ramón Torres, que colaborou na cidade de

    Barquisimeto. Também Edith Salas, que trabalhou no Instituto Pedagógico

    Experimental nessa mesma cidade, entre 1965 e 1975, e posteriormente foi

    contratada pelo Ministério da Educação da Venezuela para participar da melhoria

    do ensino das ciências, entre 1975 e 1984. O professor Guillermo Giménez foi

    incorporado para trabalhar como professor secundário em 1959, e depois passou a

    ser catedrático da Universidade de Carabobo, entre 1963 e 1981. A professora

    Lindaura Chang foi designada como chefe de Planificação Acadêmica da

    Universidade dos Andes.

    Unesco e PNUD. A participação de professores ligados à experimentação

    pedagógica do Chile foi relevante no Primeiro Projeto Principal da Unesco

    (Promedlac) – coordenado pelo professor chileno Oscar Vera –, nos projetos do

    Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e na mesma

    Unesco, que incorporou vários chilenos como funcionários. Oscar Vera participou

    de diversas assessorias técnicas em ministérios da educação e universidades da

    região – em matérias relativas à formação de professores, planejamento e pesquisa –

    , na Costa Rica, Guatemala, Venezuela, Equador e Paraguai. Fernando Gutiérrez

    assessorou no Equador (1956-1957); Ildocira Vera, na Costa Rica (1957-1960);

    Jorge Arancibia, na Costa Rica, Peru, Colômbia, Santo Domingo e Cuba; Edith

    Salas, na República Dominicana (1967) e Guatemala (1969-1971); Elena Martínez,

    em Honduras (1957-1960) e Néstor Sandoval, no Panamá. Irma Salas organizou e

    dirigiu o Centro Latino-americano para a Formação de Especialistas em Educação

  • - 18 -

    (Clafee), formando 100 especialistas chilenos e 180 da Ibero-América, programa do

    qual foram professores Hernán Vera e Marino Pizarro. Em 1961 a Unesco criou um

    grupo de trabalho dirigido por Oscar Vera, que contou com a participação de

    Carmen Lorenzo; este grupo daria origem à Oficina Regional de Educação para a

    América Latina e o Caribe (Orealc).

    OEA e OEI. Oscar Vera desempenhou o cargo de chefe da Unidade de Currículo do

    Departamento de Educação da OEA, em Washington D.C., assessorando a

    Universidade Federal de Santa Maria, no Brasil. Edith Salas trabalhou também na

    OEA, entre 1973 e 1975, em temáticas relacionadas com o ensino das ciências,

    especialmente assessorando a Venezuela e a Colômbia. A Oficina de Educação

    Ibero-americana (OEI), sediada em Madrid, contou com Carmen Lorenzo, entre

    1955 e 1957, como organizadora de seu Departamento de Estudos, depois como

    professora do Curso de Formação de Especialistas em Documentação Pedagógica;

    posteriormente, ela preparou o primeiro volume da publicação A Educação no

    Plano Internacional.

    Gutiérrez et al. (1997) reforçam a relevância do papel destes professores na região:

    Estas funciones internacionales en las que predominaba el desarrollo de programas de capacitación y perfeccionamiento de personal docente, ofrecían a los ex profesores del Liceo excelentes oportunidades de aplicar SUS saberes y experiencias, al mismo tiempo que la participación em múltiples reuniones les permitía difundir el acervo pedagógico de la renovación educacional (1997, p. 222).

    O trabalho desenvolvido pelos pedagogos chilenos – como mediadores entre a

    experiência chilena e os contextos educacionais da América Latina – foi um

    reconhecimento internacional às políticas desenvolvidas no Chile nessa época. Essa

    participação se constituiu numa base histórica a partir da qual esse país obteve prestígio na

    cooperação internacional no âmbito educacional. Podemos levantar a hipótese de que esse

    prestígio configurou um imaginário na América Latina sobre a boa qualidade das políticas

    educacionais chilenas, justificando sua circulação.

  • - 19 -

    O projeto reformista, apesar dos notáveis avanços que representou para o sistema

    educacional, não conseguiu se instalar em plenitude por causa da oposição conservadora,

    especialmente da Igreja Católica e dos grandes fazendeiros (NÚÑEZ, 1991). O conflito de

    classe continuava se expressando na base social do país.

    1.2. Ideias em conflito: o estruturalismo da Cepal

    A partir dos anos 1950, o Chile, e em particular Santiago, transformou-se num

    centro de disputa de projetos político-sociais. De um lado, a Cepal8 protagonizou propostas

    para o desenvolvimento das economias latino-americanas, as quais tiveram uma enorme

    aceitação nos setores progressistas da região. A valorização da Cepal, de suas análises

    estruturalistas (sob a liderança do argentino Raúl Prebish), de suas propostas de nacional-

    desenvolvimentismo, influenciadas pelo neokeynesianismo e neomarxismo, deixou à

    margem as opções monetaristas de livre mercado do FMI (SALAZAR e PINTO, 1999a;

    ORTEGA, 1999; SILVA, 1991)9. Na Cepal foram elaboradas a teoria da dependência, a

    proposta de industrialização por substituição de importações e a promoção da integração de

    várias economias latino-americanas (HIRSCHMAN, 1982). Os cepalinos conseguiram uma

    ampla rede de influência nas agências internacionais, chegando a influenciar a política para

    a América Latina do governo de John F. Kennedy (ORTEGA, 1999).

    Muitas das propostas da Cepal tiveram no Chile um lugar de produção e

    implantação direta. Os economistas chilenos Aníbal Pinto, Luis Escobar, Oscar Muñoz,

    Osvaldo Sunkel, Ricardo Lagos, Sergio Molina, entre outros, promoveram na revista

    8 A criação da Cepal em 1948 e sua localização na cidade de Santiago foram fortemente promovidas pelo embaixador chileno Hernán Santa Cruz. A participação chilena na formação de organismos da ONU foi destacada entre as décadas de 1940 e 1960. Além de Hernán Santa Cruz, encontramos: José Maza, presidente da Assembleia das Nações Unidas entre 1955-1956; Rudecindo Ortega, presidente das I e II Assembleias Extraordinárias da ONU; Felipe Herrera, primeiro presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, por dez anos (1960-1970); Benjamin Cohen, secretario Geral Adjunto do Departamento de Informação Pública da ONU e Subsecretaria para Assuntos Fiduciários e Territórios não Autônomos (1945-1958); Carlos Dávila, secretário geral da OEA (1954-1955); Abraham Horwitz, diretor geral da Organização Pan-americana da Saúde (1958-1972) (BARROS, 1990; FIGUEROA, 2012). 9 Esta orientação foi causa da forte oposição dos Estados Unidos à criação da Cepal, a qual se traduziu mais tarde na negativa dos EUA para financiar os planos nacionais e hemisféricos de desenvolvimento na Conferência Interamericana de Bogotá de 1949.

  • - 20 -

    Panorama Econômico diversas reformas que começaram a ser implantadas a partir de 1964

    (SALAZAR e PINTO, 1999a).

    O papel estratégico da América Latina no contexto da Guerra Fria, após o triunfo da

    Revolução Socialista em Cuba, levou os Estados Unidos a adotar uma política para a região

    destinada a gerar mudanças na gestão das economias nacionais – através da cooperação

    técnica – e consolidar assim sua posição política internacional, além de uma ampliação de

    seus mercados (CORREA, 1985; VALDÉS, 1995). Para os Estados Unidos, a América

    Latina estava sendo muito influenciada pelo pensamento desenvolvimentista da Cepal,

    perspectiva que também foi relativamente compartilhada pelo Banco Mundial até o final

    dos anos 197010. A combinação histórica de políticas democráticas, um estado forte e

    efetivo e abertura às novas ideias fez do Chile um país muito atrativo para os Estados

    Unidos (PURYEAR, 1994). Diante do modelo cubano, segundo Puryear (1994), o Chile se

    erigia como um contraexemplo, dado seu caráter reformista do modelo capitalista –

    proposta conhecida como revolução em liberdade –, o qual justificava que a ajuda

    econômica a esse país chegasse a 14% do total dos fundos de doação regional dos Estados

    Unidos11.

    A educação, neste contexto, apareceu como um âmbito favorável para o

    planejamento e a execução de processos de reforma dirigidos pelo Estado. Estas novas

    políticas apareceram como essenciais, mesmo para os interesses americanos, que

    acreditaram que com elas podiam deter a ebulição social dada pela participação política

    crescente das classes populares e dos trabalhadores e suas demandas igualitárias. A Aliança

    para o Progresso, iniciativa do Presidente John Kennedy, significou um investimento maior

    na região latino-americana, condicionado à realização de reformas tributárias, educacionais

    e agrárias (CORREA, 2011).

    O governo democrata-cristão do presidente Eduardo Frei Montalva12 conseguiu, em

    1965, planejar e executar uma reforma integral do sistema escolar, focada na igualdade de

    10 Em 1970 o diretor da consultoria econômica do Banco Mundial Hollis Burnley Chenery foi substituído por Anne Krueger que iniciou a era neoliberal da instituição - (BIELSCHOWSKY, 2000; STIGLITZ, 2002). 11 A administração Einsenhower entregou US$ 112 milhões em doações e créditos durante oito anos, enquanto a administrações Kennedy e Johnson elevou consideravalmente o montante a US$ 750 milhões (PURYEAR, 1994). 12 O governo norte-americano, através da CIA, financiou diversas campanhas de candidatos à Presidência. O Partido Democrata Cristão foi o escolhido para obter financiamento durante a administração Kennedy, no

  • - 21 -

    oportunidades educativas, modernização e melhoria das práticas escolares e a adequação do

    desenvolvimento educacional às mudanças econômico-sociais e políticas do período

    (NÚÑEZ, 2003). A perspectiva do governo democrata-cristão buscou uma alternativa ao

    modelo socialista e marxista da luta de classes, tentando dar lugar a uma nova elite de

    classe média – empresários e técnicos de nível superior (RUIZ, 2010). Daí a importância

    regional do processo reformista chileno.

    Logo, daquela emigração de pedagogos chilenos dos anos 1950, a partir da

    fundação do Centro de Aperfeiçoamento (Cpeip), em 1967, o Chile começa a ter uma nova

    presença internacional. Mario Leyton (2010), uma das referências da reforma de 1965,

    sintetiza o valor deste organismo na época, pontuando que:

    El CPEIP fue reconocido a nivel internacional como una Escuela de Graduados o Instituto de altos estudios en Educación. La UNESCO, la OEA, la Fundación Ford y otros organismos internacionales le financiaron programas para formar líderes educacionales para América Latina, especializándose en áreas tales como Planificación Educacional, Currículum, Evaluación, Administración y Supervisión Educacional. Incluso, equipos directivos y técnicos, encabezados algunos por el propio Ministro de Educación de sus respectivos países, vinieron a conocer y a aprender de la experiencia del CPEIP. Cientos de profesionales graduados en este Centro, retornaron a sus países para ocupar cargos directivos y académicos de primer nivel en el sistema educacional y en las Universidades; todos fueron portadores del nuevo pensamiento curricular impulsado desde el CPEIP hacia América Latina (2010, p. 91).

    Este Centro poderia ser concebido como uma espécie de primeira versão de centros

    dedicados à formação do que, duas décadas depois, chamaremos de analistas simbólicos.

    Confluíram nele destacadas personalidades do mundo educacional da época, como:

    Benjamin Bloom (Universidade de Chicago), Thornton Hussein (Universidade de Grenna,

    Suécia), Noel McGinn (Universidade de Harvard) e Gastón Milaret (Universidade da

    Sorbonne). Desse modo, o Cpeip foi destacado pela Associação Internacional do Currículo

    (ICO, Genebra) como um dos três melhores centros do mundo, sendo modelo para o

    nascimento do INE (Peru), ISE (Paraguai), Senaper (Colômbia), Dinacaped (Equador),

    contexto da Aliança para o Progresso, em vez dos partidos tradicionais da direita. A direita clássica foi julgada como responsável pela ascensão dos partidos de esquerda (CORREA, 2011).

  • - 22 -

    Centro Magisterial (Venezuela), SIMAC (Guatemala) (LEYTON, 2010). O Cpeip13 foi

    uma segunda fonte de prestígio, sob a qual se constituíram as redes desenvolvidas

    posteriormente em Santiago.

    1.3. Ideias em conflito: a preparação do laboratório neoliberal

    No auge do pensamento econômico estruturalista, a América Latina recebia diversos

    tipos de assistência técnica de parte de entidades governamentais e universitárias dos

    Estados Unidos e organismos internacionais, especialmente do Fundo Monetário

    Internacional14. O que é relevante para a nossa pesquisa é que o campo de conhecimento

    fundamental das políticas – incluídas as educacionais – desenvolvidas durante a ditadura

    militar chilena foi a economia de uma perspectiva neoliberal; e podemos localizar a origem

    desta transformação precisamente no projeto de colonização que começou na década de

    1950.

    A análise histórica de Sofía Correa (1985, 2011) acrescenta que, no caso do Chile, o

    primeiro passo da chegada do neoliberalismo foi a efetivação da missão americana Klein-

    Saks, em 1955. Esta missão foi promovida por Agustín Edwards – proprietário do jornal

    conservador El Mercurio – para superar as problemáticas da inflação e o estancamento

    econômico, elegendo a assessoria de Klein e Saks, por causa do seu exitoso programa

    econômico levado a cabo no Peru e as excelentes relações com o governo e a banca norte-

    americana15.

    Mas encontramos um segundo canal simultâneo, mais silencioso, de concorrência

    contra as ideias dominantes da Cepal, que foi o âmbito acadêmico. A cooperação americana

    13 O Cpeip não diminuiu sua relevância em relação à formação de professores e fazedores de políticas mesmo na ditadura militar. Isso só ocorreu após a revolução educacional de 1980. 14 Várias missões do FMI chegaram à região na década de 1940 e continuaram até os anos 1970 – introduzindo empréstimos que constituíram a base do endividamento que explodiu na década de 1980 –: Missão Klein no Peru, em 1949; Missão Currie na Colômbia, em 1954; Missão Klein-Saks no Chile, em 1955; Missão Eder na Bolívia, em 1956; os acordos do presidente argentino Frondizzi com o FMI, em 1958; a primeira carta de intenções do governo do Uruguai, em 1969; a aceitação das propostas do FMI pelo presidente Janio Quadros no Brasil (TRIÁS, 1978). 15 As medidas econômicas dessa época incluíram: supressão do reajuste automático de salários; restrição do crédito bancário; detenção da emissão de dinheiro para enfrentar o déficit fiscal; eliminação do controle de preços; término do subsídio a empresas privadas; aumento de tarifas às empresas públicas. Porém, a aplicação desse plano se debilitou até 1958, quando a assessoria culminou.

  • - 23 -

    em matéria educacional se concretizou em acordos de universidades americanas e latino-

    americanas (VALDÉS, 1995). Este marco, nos anos 1950, no caso do Chile, significou a

    viabilização de bolsas financiadas pela Fundação Fullbright, a criação da Escola de

    Negócios de Valparaíso, a chegada do americano Joseph Grumwald para dirigir a

    Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Chile e o acordo entre a

    Universidade da Califórnia e a Universidade de Concepción para organizar a Faculdade de

    Agronomia (CORREA, 1985, 2011). Não é casual que, após poucos anos de

    institucionalização das ciências econômicas no Chile, o país tenha se tornado o mais forte

    centro de formação e pesquisa da região (PURYEAR, 1994). Começava deste modo a

    progressiva conquista da base científica das políticas por parte da economia16. Esses

    acordos não privilegiavam uma corrente econômica em particular (VALDÉS, 1995), mas o

    convênio que deu origem aos Chicago Boys foi sem dúvida aquele que teve um impacto

    estrutural maior décadas mais tarde.

    Podemos identificar o encontro de interesses de três atores no convênio PUC-

    Universidade de Chicago: a Administração da Cooperação Internacional do governo dos

    Estados Unidos (ICA), o Departamento de Economia da Universidade de Chicago e o

    Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Chile (PUC)

    (VALDÉS, 1995). Assim se constituiu a base institucional da emergência do pensamento

    neoliberal na América Latina, que teve no Chile sua primeira base operacional17.

    A ação norte-americana deve ser colocada dentro de um contexto de disputa interna

    no campo universitário da economia dos Estados Unidos. A Universidade de Chicago18,

    sem possibilidades de influir sobre as políticas americanas, optou por ocupar posições

    estratégicas nos organismos internacionais como a Unesco, Fundação Ford e FMI. Após a

    16 Estes acordos acadêmicos – que se efetivaram em diversos países da região – ocorriam em paralelo às tentativas americanas de desestabilização de governos de esquerda – incluindo desde a postergação de empréstimos do BID e BIRD ou de ajudas da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (Usaid), financiamento de partidos políticos, até intervenções da CIA e golpes de estado –, mas também outras ações como a promoção do relacionamento com universidades da América Latina, dando especial relevância ao ensino de economia (KLEIN, 2010; KORNBLUH, 2004). 17 A Escola de Chicago participou, através de vários de seus professores, da Sociedade Mont Pelerin –fundada em 1947 –, da qual fizeram parte Friederich Von Hayek, Ludwig Von Mises e Milton Friedman, para a disseminação das ideias neoconservadoras, mais tarde conhecidas como neoliberais. Desde então surgem mais de 100 thinks tanks fundados por membros dessa sociedade no mundo, através dos quais se formou uma das redes transnacionais mais refinadas de pesquisa e agitação (PLEHWE, 2005). 18 A Universidade de Chicago foi fundada por John D. Rockefeller.

  • - 24 -

    revolução cubana, a Universidade de Chicago se coordenou com a Agência Internacional

    de Desenvolvimento dos Estados Unidos (Usaid) para profissionalizar a economia,

    promovendo também a circulação de especialistas, e fundando em 1962 o Instituto

    Internacional de Planificação Educacional (IIEP) da Unesco e a Fundação Ford – órgão

    dirigido por Philip Hall Coombs, economista da Universidade de Chicago (ALMEIDA,

    2008).

    Uma primeira comissão de economistas da Universidade de Chicago integrada por

    Arnold Haberger, Theodore Schultz, Earl Hamilton e Simon Rottenberg chegou em

    Santiago, em 1955, para criar o  “Projeto  Chile”.  A  assinatura  do  acordo  especificou:

    Os chilenos treinados ali [na Universidade de Chicago] não só teriam um currículo sólido e uma instrução rigorosa, mas também um sentido de missão, a missão de um economista que, como um novo filósofo, transmita ciência e modernismo para a sociedade, ensine os leigos a defender sua liberdade e a multiplicidade de suas escolhas, e ofereça ao político o privilégio de ser orientado pela ciência, adotando-a em suas decisões de assuntos econômicos e sendo capaz de racionalizar sua visão geral da sociedade (VALDÉS, 1995, p.129)19.

    Este acordo esteve vigente até 1964 e operou através de estágios de professores e

    estudantes, envolvendo mais de 100 estudantes chilenos formados na Escola de Chicago

    (SALAZAR e PINTO, 1999a; SILVA, 1991; VALDÉS, 1995). Uma parte dessa

    intervenção americana implicou a mudança dos currículos de economia, incorporando:

    teoria do preço, estatística, cálculos custo/beneficio, análises de regressão, comércio

    internacional, além da redução de disciplinas como história econômica, sociologia e

    histórica chilena (SIQUEIRA, 2009).

    Na década de 1960, no marco da Aliança para o Progresso, a cooperação americana

    para a formação das elites acadêmicas do Chile foi viabilizada pela Agência Usaid e as

    Fundações Ford e Rockefeller.

    Progressivamente os economistas, muitos deles formados em diversas escolas

    americanas, vão ocupando postos públicos. Em 1961 o presidente Jorge Alessandri nomeou

    pela primeira vez um economista como ministro da Economia, e depois a Carlos Massad –

    19 Tradução própria do original em inglês.

  • - 25 -

    aluno da Escola de Chicago – como presidente do Banco Central, durante o governo de

    Eduardo Frei Montalva (1964-1970) (MONTECINOS, 1997; VALDÉS, 1995).20

    Com uma posição minoritária dentro da direita chilena, as propostas dos

    denominados  “Chicago  Boys”  tiveram  como  âmbito  principal  de  expressão  a  mesma  PUC,

    através de uma progressiva conquista de espaços na Escola de Economia e