À procura da escala

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À PROCURA DA ESCALA

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À Procura da Escala - cinco exercícios disciplinados sobre cultura contemporânea do António Pinto Ribeiro, publicado na Cotovia.

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À PROCURA DA ESCALA

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Título: À Procura da Escala

© António Pinto Ribeiro e

Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2009

ISBN 978-972-795-289-2

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António Pinto Ribeiro

À PROCURA DA ESCALA

cinco exercícios disciplinadossobre cultura contemporânea

Cotovia

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Índice

Exercício 1. Há, de facto, modos diferentes degovernar, inclusivamente na cultura p. 9

Exercício 2. A interculturalidade: propósitos eambiguidades 27

Exercício 3. Europa-África. E vice-versa? 39

Em Ouagadougou, Março de 2009 52

Exercício 4. À procura da escala 59

Exercício 5. Fragmentos de cidades 79

A propósito de cidades perfeitas 79Um artista de rua 80Piscinas 81Hortas 82Desempregados 84Chá 85Quarto de hotel numa cidade árabe 85

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EXERCÍCIO 1

HÁ, DE FACTO, MODOS DIFERENTES DEGOVERNAR, INCLUSIVAMENTE NA CULTURA

Durante muito tempo, as políticas culturais da res-ponsabilidade dos governos nacionais classificavam-sepoliticamente a partir de tradições presumivelmenteóbvias: uma política cultural de direita privilegiava opatrimónio — que era, em si, um conceito mais polí-tico do que histórico, antropológico ou estético —, amúsica erudita do reportório ocidental até à revoluçãomodernista, e a museologia; das artes performativastinha a ideia de que haviam de ser entretenimentocomercialmente rentável, portanto “deixado” para omercado; quanto à arte contemporânea (incluindo aliteratura), não lhe merecia particular entusiasmo nemqualquer tipo de apoio. Já os governos de esquerda,supunha-se que estimulassem e apoiassem a criaçãodas artes contemporâneas, o cinema de autor, a culturapopular desde que canonizada pela ideologia; o patri-mónio, dizia-se, estava secundarizado. Em ambos oscasos, longamente se excluíram as práticas culturais eartísticas marcadamente urbanas ou de génese subur-bana como são a música rock, a pop, o fado, a B.D., odesign, ou o grafitti.

Convém perguntarmo-nos: de onde vem esta tradi-ção que tanto tempo dividiu, de um modo mecanicista,na Europa, os apoios e as orientações estratégicas dosgovernos, conforme eram de esquerda ou de direita?

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As explicações são múltiplas: uma delas, de naturezasociológica, diz que a esquerda reivindicativa da trans-formação social pela revolução estaria mais próxima datransformação do status e dos cânones artísticos e cul-turais, do risco, da aventura, privilegiando o futurocomo tantas canções o cantavam e suspeitando sempredo mercado. A direita, por seu lado, inclinar-se-ia maispara a manutenção dos cânones sem os discutir ouquestionar, para a continuidade dos costumes, a ausên-cia de investimentos com risco, a manutenção do clas-sicismo. Quanto às artes performativas que reclama-vam o estatuto de artes efémeras, uma políticatotalmente liberal deveria corresponder a essa reivindi-cação de liberdade dos autores. Claro que a excepçãoera o reportório operático, visto proporcionar — pelomenos nas casas de ópera tradicionais — a encenaçãodo poder, cara, sempre muito cara, e, portanto, a serpaga pelo Estado.

Porém, esta tradição bipolar de políticas englobatambém algo mais essencialista e que era já visível emDiderot e em Rousseau: a ideia da experiência do cul-tural como experiência do risco — que, segundo Dide-rot, valia a pena, e, segundo Rousseau, era de evitar.(Será sempre bom reler Sobre a arte e os artistas deDiderot (1751-1766)1 e Discurso sobre a origem e osfundamentos da desigualdade entre os homens (1753) deJean-Jacques Rousseau.) Nestes dois autores está játambém presente uma noção que irá legitimar alguns

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1 Em particular o ensaio Les conditions de l’art, in Diderot,Denis. Ed. Hermann, Présentation de Jean Seznec, Paris 1967.pp. 71.

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acontecimentos culturais da esquerda quando nopoder: a ideia de Festa e de Partilha, em particular seacontecer na natureza. Nessa apologia do festivo reco-nhecer-se-á, com certeza, a origem daquilo que poste-riormente ganharia forma nas festas dos partidoscomunistas europeus do pós-guerra, de que são exem-plo a festa do jornal do Partido Comunista FrancêsL’humanité ou, até, as primeiras festas do Avante entrenós, ou também a primeira geração de festivais de tea-tro de Avignon e de Edimburgo. Quanto à direita, sefrequentava festivais optava, em princípio, pelo Bay-reuth Festspiel, ou pelo Munich Opera Festival e porWagner, com todos os equívocos associados.2

Retornemos por momentos ao princípio do séculoXX, que foi quando tudo isto tomou forma, e vejamosalguns outros paralelismos que ajudam a compreendero enraizamento desta bipolarização: Trotzky associa-seao surrealismo (numa versão radical da esquerda e dacultura), Maiakovsky, tal como Eisenstein, associam--se à revolução bolchevique; vários poetas e pintoresassociam-se às revoluções sul-americanas, com parti-cular destaque para Diego Rivera, que inventou umgénero artístico popular (e, “portanto”, de esquerda)— o muralismo; inúmeras personalidades das artes eda esquerda, com Jean-Paul Sartre à cabeça, sentem

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2 Ainda a propósito das festas culturais à esquerda ou àdireita, recordemos que a Quinzena dos Realizadores em Cannessurgiu em 1968 como revolução dos cineastas (tidos de imediatocomo de esquerda) face à apropriação e à espectacularidade —fixemos este precioso conceito — daquele festival.

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o fascínio e chegam a apoiar a revolução soviética, oMaoísmo, posteriormente, a própria Revolução dosCravos portuguesa — até às primeiras decepções, deque a invasão de Praga terá sido o início; muito depois,a Queda do Muro de Berlim restauraria alguma con-fiança nas novas esquerdas da globalização.

Pelo meio há André Malraux3, o ministro que oGeneral de Gaulle, então Presidente da França, encar-regou de criar, a 3 de Fevereiro de 1959, um ministériodos Affaires Culturelles, um “ministério correspon-dente ao estatuto do escritor”. Se Rousseau defenderaa necessidade de fazer chegar a arte “à mais humildecabana do menor dos cidadãos”, o primeiro Artigo doDecreto de 24 de Julho de 1959 estipulava que “oMinistério encarregado dos negócios culturais tinhapor missão tornar acessíveis as obras capitais da huma-nidade, e desde já as de França, ao maior número pos-sível de franceses, de assegurar a mais vasta audiênciaao nosso património cultural e favorecer a criação deobras de arte e do espírito que enriquecem”. Substitua--se França por Europa, substitua-se franceses por euro-peus e nenhum governo de esquerda ou partido deesquerda se negaria a subscrever aquele Artigo, cujoconteúdo, aliás, constituiu, durante várias décadas, apremissa fundamental das chamadas políticas culturaisde esquerda dos governos europeus — reforçada, pos-teriormente, à esquerda — com a criação de um esta-tuto de excepção para o comércio mundial das obras

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3 André Malraux foi Ministro da Cultura de França de 1959 a1969, sob a designação de Ministre des Affaires Culturelles.

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de arte e passando a incluir, em determinada altura, oapoio à circulação de obras de arte e artistas.

Esta política cultural de esquerda — que os gover-nos franceses, até mesmo os de direita, reivindicamterem iniciado — desenvolveu três orientações progra-máticas ainda hoje presentes nas discussões públicassobre governos e cultura, apesar do anacronismo dealgumas (de que falarei adiante), a saber: 1) a criaçãode obras (cinema, teatro, dança, música) subsidiadaspelo Estado; 2) a democratização no acesso aos bensculturais, e 3) a descentralização.

Foi graças a elas que tantos países europeus (e,depois, muitos outros), influenciados pela grandezafrancesa, puderam ver crescer os seus museus, nascerpúblicos e artistas, e produções no teatro, na dança, namúsica, e depois na BD, no jazz, na literatura; pude-ram testemunhar o acesso a essas obras por parte decidadãos de fora das capitais; e presenciaram o factode muitos europeus poderem agora assistir, naEuropa, às melhores obras americanas — tantas vezesproduzidas por produtores, programadores e organi-zações culturais europeias, que muito sustentaram asobras dos artistas americanos que os EUA não apoia-vam4.

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4 É sempre com muita perplexidade que ouvimos os liberaisfalar da autonomia e da auto-sustentabilidade dos artistas ameri-canos, esquecendo três coisas: que, ao contrário do que afirmam,há apoios de organismos governamentais à criação e difusão dasartes contemporâneas (o National Endownment for the Arts, porexemplo); que, graças à natureza da própria sociedade americana— que assume uma responsabilidade de cidadania civil em mui-tos Estados — existe mecenato a várias escalas e isso sustenta parte

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Dada a sua inquestionável importância, vale a penadetermo-nos a analisar as referidas três orientações“clássicas” das políticas culturais; até porque, assim,entenderemos melhor as suas consequências – anacró-nicas, imobilistas e demagógicas — na actualidade.Sobre a primeira das medidas — a criação subsidiadapelo Estado — o argumento é claro: a criação artísticaé comparável à criação científica, sem a rentabilidadepossível desta última em caso de sucesso, e por issodeve ser apoiada.

Já a democratização do acesso aos bens culturaiscedo se transformou em massificação (como, aliás,também sucedeu com a educação), e isto porque partiade um pressuposto errado: não basta que todos oscidadãos tenham portas abertas e franquias gratuitaspara usufruírem dos bens culturais com prazer e comjustiça e, consequentemente, para se tornarem melho-res, mais cultos, mais cidadãos. A recepção de umaobra de arte, qualquer que ela seja e qualquer que sejaa sua origem (popular ou erudita), requer chaves de lei-tura, mecanismos de habituação e simpatias estéticasque são independentes das expectativas que cada umterá face ao que vê ou lê ou ouve e face aos possíveis

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dessa criação artística; e, por fim, que as produções e co-produ-ções europeias, as tournées de jazz, de música, de dança, de tea-tro, de artes plásticas organizadas pelos europeus “pagam” a sus-tentabilidade das artes americanas. Perguntemos aos defensoresda auto-sustentabilidade das artes americanas: o teatro decadenteda Broadway teria ainda lugar se não fosse pago pelos turistas?Existiria cinema americano se não fosse tão maciçamente pagopelos espectadores europeus e do resto do mundo, mesmo os dedireita e liberais?

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níveis de leitura; na ausência disto, a massificação (e oseu aproveitamento político comercial) equivale àbanalização da recepção da obra e do seu impactonaqueles que passaram a consumir indiferenciada-mente e, em regra, os produtos “de mais baixa quali-dade”.

A terceira grande “bandeira” (para empregar a ter-minologia usual da esquerda) falhada foi a descentrali-zação, na sua perspectiva mais ortodoxa. Qual era oseu princípio subjacente? Fazer passar pela periferiado país (mais ou menos interior) a cultura e as artesque saíam da capital com o objectivo de fazer justiça noacesso de todos os cidadãos a esses bens culturais.O princípio — que, em abstracto, era de louvar — nãoconsiderava, porém, as assimetrias dos equipamentos(que, ou não viabilizavam essas apresentações, ou asviabilizavam em más condições), a pertinência (ou faltadela) da circulação de obras de natureza urbana, indus-trial ou nascidas num contexto internacional radical-mente diferente e cuja apresentação se afigurava exó-tica, sem público ou despropositada.

Neste ponto, há que dizer que se assistiu sempre auma desvalorização do contexto, pois a ideologiasobrepunha-se inevitavelmente ao real; e, finalmente,jamais se considerava que uma das vias possíveis para adescentralização seria a de sentido contrário, a saber: apassagem das obras do interior dos países para as capi-tais (o que, nalguns casos, e novamente considerando ocontexto, faria todo o sentido).5

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5 Há que dizer que a década de 80 foi palco de alteraçõesimportantes neste aspecto, nomeadamente quando se deixou de

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Ora, a Queda do Muro de Berlim viria destruir oque ainda restava da crença outrora inabalável na pos-sibilidade de uma sociedade comunista e infligiu umduríssimo golpe na matriz das ideologias de esquerda.A palavra de ordem passou a ser: “É urgente repensartudo, conservando os valores fundamentais da revolu-ção: Igualdade, Fraternidade, Justiça”. Já antes, Aus-chwitz trouxera consigo o fim da crença na culturacomo caminho para o bem e progresso da humani-dade; agora, a Queda relativizava a importância dehaver uma ideologia como horizonte e a política comocapaz de conduzir o presente para um futuro melhor(ousou dizer-se Utopia).6

O que então aconteceu, e continua a acontecer, foiuma revisitação, tanto do conceito como dos modosoperatórios da esquerda quando governo ou poder nascidades. Tem sido também nítido o esforço para pen-sar a produção cultural no contexto da globalização (ecomo nela intervir) — ainda que na actualidade aspolíticas culturais dos governos da União Europeiaapareçam como muito idênticas, diferentes, “apenas”,na percentagem do orçamento atribuída à cultura.Mas neste “apenas” está a substantiva diferença deinvestimento e empenhamento de quem governa a cul-tura. É certo que, para alguns governos, o essencial da

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pensar a descentralização como circulação de bens de cultura eartísticos e se equacionou a criação de equipamentos descentradosda capital.

6 Sobre esta paisagem de banalização já muitos se tinham visionariamente pronunciado: A sociedade do espectáculo de GuyDebord, ou Jean Baudrillard, ou John Frow, ou Anthony King.

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política cultural é o seu aproveitamento em termos devisibilidade, ou seja, o peso do espectáculo das suasacções, na tradição daquilo a que dantes se chamava“as obras do regime”. Daí o papel de relevo que aarquitectura e os arquitectos têm hoje enquanto capi-tal de intervenção governamental, a esteticização dapolítica (sobre a qual Walter Benjamin e a Escola deFrankfurt tanto escreveram) e a importância do audio-visual, ou o entendimento da quantidade de consumi-dores culturais enquanto potenciais votantes do pontode vista eleitoral, e clientes do ponto de vista finan-ceiro.

A crise recente em França, conhecida como a grevegeral dos intermitentes do espectáculo, veio revelarum conjunto de perversões produzido por algumasformas de apoio à criação contemporânea. Não estáem causa a maioria das razões que justificaram partedas atitudes dos intermitentes. O que deve ser ava-liado é a forma como uma medida tomada pelogoverno — originariamente sábia e bondosa como era,em termos gerais, compensar financeiramente e atri-buir um estatuto especial na segurança social aos tra-balhadores do espectáculo que, pela natureza intermi-tente do seu trabalho, não têm emprego fixo nempermanente — se transformou numa habilidosa formade muitos empresários do audiovisual em particularescaparem a contratos de emprego mais permanentes,e como algumas actividades paralelas às dos trabalha-dores dos espectáculos oportunisticamente beneficia-ram desse mesmo estatuto. Esta soma de pessoas aoabrigo do estatuto de intermitentes gerou fortes ten-sões sociais, pôs em causa o futuro dos fundos da

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segurança social e aligeirou das suas responsabilidadescontratuais muitos empregadores. A par desta perver-são do apoio à criação contemporânea houve também,muito em particular em França, um abuso do estatutopermanente de jovem criador, que em nada beneficiouas artes nem tão pouco a estética ou a criação contem-porânea.

Que os critérios estéticos são complexos já o sabe-mos, tal como sabemos que o Estado não tem como —e desejavelmente não pode — avaliar, segundo essescritérios, o apoio à criação artística. Mas se não foremesses, que critérios justificam o apoio à criação artísticacontemporânea? Estamos numa zona difusa; na ver-dade, aqueles são sempre os critérios que acabam porser considerados determinantes, mesmo quando julga-dos, não pelo Estado ou pelos governantes, mas porum órgão intermediário de confiança política doEstado e dos governantes.

Alegar-se-á sempre que, não fossem os apoios atrásreferidos, não haveria criação. Nada mais justo; mas oque tentamos fazer aqui é uma análise das contradiçõesde uma política tradicional de esquerda — com ointuito de encontrar soluções futuras.

Até ao momento, este enunciado construiu-se combase num modo tradicional de distinguir (no que podeser distinguido) as políticas culturais de esquerda e dedireita — ao qual deveríamos acrescentar ainda doispontos: 1) que, de algum modo, há uma ideia consen-sual de que a esquerda governa melhor os assuntos dacultura porque os seus agentes estão mais no “campo”

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do que os governantes e políticos da direita, 2) queparte substancial das políticas culturais depende domaior ou menor fôlego orçamental do governante res-ponsável, questão esta de ordem administrativa masque é determinante, dada a sistemática precariedadedos orçamentos para a cultura na generalidade dos países.

À referida narrativa tradicional deverá acrescentar--se hoje, nesta era da globalização e pós-Queda doMuro, uma outra que, até há pouco, poucas implica-ções tinha tido nas políticas culturais da esquerda talcomo as entendem os governantes, mas que é funda-mental na percepção do que poderá ser um novo hori-zonte de políticas culturais.

Nesta outra narrativa estabelece-se que, entre asmúltiplas razões para se ser de esquerda está a justiçasocial, ou seja, o reconhecimento de que todos os sereshumanos têm direito a uma cidadania universal, a umnome e a uma história; ora, no caso da cultura, estesvalores (intrínsecos à esquerda) apresentam contornosque raras vezes se consideram como tal. Assim: pobresnão são só os que não têm paz, pão, habitação, saúdeou educação; pobres são todos os que não se podempronunciar.

Momentos houve em que a estes pobres foi dado,por intermédio de outros, um lugar de visibilidade: nosrealismos do final do século XIX, nos vários neo-rea-lismos do século XX, nalguns modernismos sul-ameri-canos, num ou outro reportório do canto ou do cinemadocumental de intervenção. Mas poucas vezes essa visi-bilidade se traduziu em política cultural (ou, tãosomente, em política). Na excelente expressão de Wal-

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ter Benjamin, estes pobres são os “vencidos”, os quenão têm cabido na História porque a História que setem escrito tem sido a dos vencedores.

Lembremos, à laia de exemplo, um dos primeirosintelectuais (na verdade arquitecto e artista fundadorda Socialist League, em 1880) a estabelecer uma ponteentre o humanismo romântico e a classe operária: Wil-liam Morris (1834-1896), que, numa conferência emNovembro de 1894, ao denunciar a escravatura dadivisão social do trabalho, afirmava que “enquanto acasa de um trabalhador for feia, será vão desejar belosquadros”. No ambiente revolucionário da época, a rei-vindicação do direito à cultura e à beleza por parte dostrabalhadores tem uma dimensão excepcional.

Morris foi, porém, apenas um dos pioneiros; tam-bém Richard Hoggarth (nascido em 1918), RaymondWilliams (1921-1988), Edward P. Thompson (1924--1993) e Stuart Hall (nascido em 1932, de origemjamaicana) entenderam dar visibilidade às narrativasdos vencidos. Designado como Nova Esquerda (NewLeft), o grupo reunido em volta de Hall, com sede naUniversidade de Birmingham, “passou a escovar asmangas do casaco no sentido contrário ao que era cos-tume” (para usarmos outra feliz máxima de WalterBenjamin a propósito da necessidade de reescrever aHistória), dando origem ao que se viria a designarEstudos Culturais. Estes chegaram rapidamente a mui-tas universidades americanas e, num contexto de rei-vindicação dos direitos dos negros e das mulheres, aca-bariam por incentivar os estudos da História daLiteratura e da Cultura Negra, os Estudos Feministas

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e novas abordagens teóricas no domínio das teorias dasculturas e da política.

Parece evidente que a nova esquerda e as novaspolíticas culturais de esquerda não podem ignorarestes contributos tão relevantes; terão, naturalmente,de considerar as novas narrativas provocadas pelasrevisões das histórias da arte, da cultura, da literatura,do cinema, das conquistas e dos territórios — que, porsua vez, são consequência do processo de descoloniza-ção. Ou seja: também os estudos sobre o Colonialismoe o Pós-colonialismo são insubstituíveis para podermosentender, primeiro, este mundo nebuloso actual e,depois, para actualizarmos o que devem ser as práticasculturais de uma política de esquerda.7

Finalmente, há que rever o próprio conceito de cul-tura, que é fulcral na constituição de um discurso sim-bólico.

Utilizada por todas as políticas como uma área queabrange objectos, obras e temas que são propriedadede um determinado grupo do qual se tem apenas umavisão estática (uma espécie de depósito a que se vaibuscar obras de culto ou chavões de identidades fabri-

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7 Não é por acaso que as grandes questões dos Estudos Cul-turais são novíssimas: para começar, a ênfase sobre o ponto devista — dos vencidos, repetimos. Depois, o impacto do automóvele da televisão, ou dos media em geral, na sociabilidade dos traba-lhadores; os usos da alfabetização (tema que deu, aliás, título auma obra de Richard Hoggarth, The Uses of Literacy); a relaçãodo biográfico com o político; a literatura operária ou popular e, departicular importância hoje em dia, a cultura das diásporas.

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cadas), a cultura deve ser pensada como um sistema deinter-relações dos membros de um grupo — entre si,mas também entre as suas práticas e memórias — e nãocomo um armazém ou um banco de dados; um hori-zonte em permanente revisão e reconstituição, ondetambém cabem aspectos variados das vidas das comu-nidades ou dos grupos.

Por isso mesmo, todo um conjunto de actividadesdeterminantes para a vida dos cidadãos deve ser consi-derado prioritário por uma política cultural deesquerda, a saber: a melhoria dos sistemas de transpor-tes, de modo a facilitar o acesso das pessoas às activi-dades culturais; a alteração dos horários de funciona-mento dos equipamentos culturais do Estado, de modoa gerar tempos potencialmente dedicados à cultura; oincentivo à diversidade criativa; o estímulo e a criaçãode mecanismos de aprendizagem de línguas (nãonecessariamente as de uso maioritário); a vivificação dopatrimónio; a revisitação das histórias das artes; a cria-ção de instrumentos de produção múltiplos (ao invésde apoios personalizados).

Insistimos na importância da dimensão simbólicado discurso dos governantes de esquerda nas práticasculturais porque esse discurso dignifica e enobrece estetipo de actividades; e mesmo que não seja performa-tivo, ou seja, que não ordene, que não aja, o discursodeve ser incentivador. Uma política cultural deesquerda deve ter como imperativo caminhar no sen-tido de alterar substancialmente o estatuto do consu-midor, transformá-lo num receptor crítico e mais escla-recido, seja quando avalia a prestação de serviços ouaquisição de bens comuns, seja quando consome cul-

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tura. E para este tipo de formação é essencial facultaraos cidadãos o acesso à literacia tecnológica — domesmo modo que os socialistas do fim do século XIXpugnaram pela alfabetização universal.

Voltemos ao início desta reflexão: como era dema-gógica e irrealista a noção de que uma política culturaldeveria sustentar a ideia de que todos temos, ou deve-mos ter, imaginários semelhantes! Ora, o importante édesenvolver mecanismos que potenciem imagináriosdiferenciados. Afinal, é isso o que se faz quando setenta encontrar estratégias de visibilidade e de estatutoprofissional legítimo para produções de grupos mino-ritários, sejam eles de género ou imigrantes.8

A transnacionalidade é hoje uma questão fulcralnas políticas culturais. Não se veja nesta orientaçãoprogramática uma caricatura do internacionalismoproletário ou uma leviana tentativa de os governos decertos países se imiscuírem noutros países. Mas, dada acondição de viajante que tipifica a maioria dos interve-nientes protagonistas da criação cultural, dada a circu-lação permanente de bens culturais, dada, ainda, acomplexa teia de legislação diferenciada nos países

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8 Em África, como em vários países da América do Sul, os cen-tros culturais dos governos europeus são muitas vezes as poucascasas de cultura, os poucos equipamentos culturais disponíveis.Criados, em grande parte, num contexto político colonial ou nos-talgicamente colonialista, a maioria tem por missão divulgar a cul-tura e as obras de identidade dos países a que pertencem. Numaatitude de transnacionalidade, seria desejável que esses centrosculturais deixassem de ser espaços de divulgação dos países a quepertencem e se transformassem em plataformas de encontro, pro-dução, criação e difusão das obras, dos autores, dos intelectuaisdos países onde estão instalados.

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europeus bem como em países terceiros, a concordân-cia numa plataforma mínima para o entendimentoentre governos face à mobilidade é um imperativo —mobilidade esta que não deve ser exclusiva da Europa,deve, sim, ser extensível a todos os países e a todosaqueles que desejam circular mostrando as suas obrase criações.

A este propósito, há que referir um aspecto aparen-temente técnico que tem impossibilitado o acesso doscidadãos ao usufruto de obras que são património dahumanidade e que, dado o seu carácter móbil, pode-riam circular. Refiro-me em particular a obras de arte— seja arte erudita, artesanato ou arqueologia — quemuitos governos mantêm como reféns nos seusmuseus, impossibilitando a sua circulação. Excep-tuando aquelas cuja enorme fragilidade põe em risco aboa conservação fora do seu espaço habitual, é desejá-vel que todos as possam ver, devendo para isso havercooperação internacional, obedecendo não apenas aoprincípio da cidadania universal mas também a umoutro princípio: o de que uma comunidade e umademocracia não existem apenas no espaço público,manifestam-se também nos meios e nos processos detroca e de circulação. Tão importantes como o espaçopúblico, e tão influentes, são os circuitos públicos —ainda que sejam fluidos, isto é, não facilmente identifi-cáveis com um território ou um país.9

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9 A este propósito é oportuno citar a entrevista a Néstor Gar-cía Canclini “Dilemas de la Globalización: Hibridación Cultural,Comunicación y Política” por Juan de la Haba e Enrique Santa-maría, in: Voces y Culturas. Revista de Comunicación, n.º 17, Bar-celona, 2001, pp. 143-165.

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A separação conservadora entre as políticas deesquerda e de direita atribuía à direita um particularempenho na conservação, na história e no património,e à esquerda alguma desconsideração relativamente aessa dimensão cultural. Tal divisão é, de facto, falsa. Naverdade, o que nitidamente parece estar em causa é aque tipo de história, a que tipo de conservação, nosreferimos. Uma história que se narrava a partir da exis-tência de reis e rainhas, etnocêntrica, dogmática e devocação universal foi, de facto, e durante muito tempo,administrada e protegida pela direita; o mesmo se pas-sou com a forma como se entendia os monumentos, osautores ou feitos clássicos, os cânones — que serviam adireita como inibidores de actualização, como dogmas,fetiches de uma identidade produzida pelo poder. Naverdade, os monumentos ou as obras não contêm em siessa impossibilidade de participarem no presente dinâ-mico e processual.

Uma política cultural de esquerda actual e cosmo-polita deve proteger e tratar com particular cuidado eatenção os arquivos: seja os das culturas orais, seja osdas culturas escritas; os documentos em papel mastambém os documentos em película, ou em disco, ouem pedra. E a abertura à investigação, a par da suaexplicitada e contextualizada difusão, fará parte dequalquer prática política de esquerda.

Se entendemos que é nas relações que a culturaencontra a sua forma de conhecimento — mais oumenos lúdica, mais ou menos festiva —, então cabe àesquerda incentivar um relacionamento mais estreitoentre as artes e as ciências e as novas formas de tecno-

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logia de modo a que se estabeleçam cumplicidadesentre todas essas comunidades com vista a transferirconhecimentos entre áreas distintas.

Bibliografia de referência

Armand Mattelart e Érik Neveu, Introduction aux Cultural Stu-dies, Ed. Repères, Paris, 2003Jean-Michel Djian, Politique culturelle: la fin d’un mythe, Ed.Folio, Paris, 2005Marie Lind e Raimund Minichbauer (editores), European CulturalPolicies 2015, Londres, 2005Néstor García Canclini (entrevista a) “Dilemas de la Globaliza-ción: Hibridación Cultural, Comunicación y Política” por Juan dela Haba e Enrique Santamaría, in: Voces y Culturas. Revista deComunicación, n.º 17, Barcelona, 2001

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