a onda rosa choque, de rodrigo savazoni
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A ONDA
ROSA-CHOQUE
reflexessobre redes, cultura
e polticacontempornea
RODRIGO SAVAZONI
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A ONDAROSA-CHOQUERODRIGO SAVAZONI
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A ONDAROSA-CHOQUERODRIGO SAVAZONI
reflexessobre redes, cultura
e poltica
contempornea
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[ 2013 ]beco do azougue editorial ltda.rua jardim botnico, 674 sala 605cep 22461-000 - rio de janeiro - rjtel/fax 55_21_2259-7712
www.azougue.com.brazougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura
CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJS277o
Savazoni, Rodrigo, 1980- A onda rosa-choque : reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea / RodrigoSavazoni. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2013.
196 p. (Rede livre ; 1)
ISBN 978-85-7920-133-2
1. Movimentos sociais. 2. Desenvolvimento econmico. 3. Comunicao e cultura4. Sociedade da informao. I. Ttulo. II. Srie.
13-03670 CDD: 303.4833 CDU: 316.422
06/08/2013 07/08/2013
Coleo Rede livre - Conselho EditorialGabriel Cohn, Giselle Beiguelman, Ivana Bentes e Srgio Amadeu da Silveira
Coordenao da ColeoRodrigo Savazoni
Projeto grfico e capaTiago Gonalves e Jlia Parente
Assistncia editorialEvelyn Rocha
RevisoBarbara Ribeiro e Evelyn Rocha
Equipe Azougue
Barbara Ribeiro, Evelyn Rocha, Jlia Parente, Luciana Fernandes,Tiago Gonalves e Welington Portella
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CARTOGRAFIA
APRESENTAO
INTRODUO
ROSA-CHOQUE
AGRADECIMENTOS
A ONDA ROSA-CHOQUE A DISPORA HACKER: AS REDES LIVRES DE PRODUO
IMATERIAL E AO POLTICA
AS POLTICAS DE CULTURA E O MOMENTO DIGITAL
MARCHA PARA TRS: A REVIRAVOLTANAS POLTICAS PBLICAS DE CULTURADE LULA PARA DILMA
DEMOCRACIA, INOVAO E CULTURA DIGITAL UMA CONVERSA COM DANIELA B. SILVA,
SOBRE TRANSPARNCIA HACKER
A ALIANA NECESSRIA:NOVOS E VELHOS MOVIMENTOS SOCIAIS
O DUPLO-PERFIL DO FACEBOOK
UMA REFLEXO SOBRE AS REDES
REDES, OCUPAES, REVOLUES:O CAMINHO DA LIBERDADE A RUA
A CULTURA MUITO MAIS QUE DIGITAL
OTIMISMO: ATITUDE SUBVERSIVA
SOBRE O AUTOR
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Para Lia Rangel, meu amor, minha inspirao
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APRESENTAOpor Srgio Amadeu da Silveira
A onda rosa-choque um esforo de reflexo sobre a amplitude
e a intensidade poltica que a cultura digital pode liberar na socie-dade brasileira. Trata-se de um conjunto de anlises do potencial
transformador do compartilhamento de produtos e bens culturais
a partir das redes de informao. Mas, os textos aqui reunidos no
se limitam as tentativas de pensar o presente, eles querem disputar
os caminhos para o futuro.
Enquanto escrevo este prefcio, mobilizaes explodem neste
Brasil de junho de 2013, como se inspiradas na lgica do hackati-vismo. Sem grandes lderes, sem carros de som, organizadas por
microarticuladores, com o apoio de coletivos culturais, radicais,
ambientais, nerds, hackers, rappers, jovens da periferia, entre tan-
tos outros mobilizadores, os protestos desafiam a compreenso
daqueles que debochavam dos militantes de sof, agitadores do
Twitter. Pois ento, estamos assistindo um movimento distribudo
em que os sofs desceram para as ruas.
Os textos escritos pelo produtor cultural, pesquisador e ativistaRodrigo Savazoni fazem parte da antessala dessa emergncia das redes
e da tomada das ruas que tanta falta fazia ao pas. A onda rosa-choque
contra o poder careta, verticalizado, excessivamente burocratizado,
tecnocrtico, insensvel e opaco parece estar ocorrendo agora, com
novas cores alm do azul e vermelho, bem mais misturadas, remixa-
das com as diversas tonalidade ideolgicas que assumiram as ruas.
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A ONDA ROSA-CHOQUE
Savazoni j perguntava em suas reflexes sobre o que estaria em
debate: Centralizao contra descentralizao? Formas de ao
espontneas ou organizadas? Aes emergentes, construdas de
baixo para cima, ou aes de impacto, construdas clandestinamentee compartilhadas de cima abaixo?. De certo modo, tudo est em
disputa. O processo to importante quanto suas finalidades. Se
os ativistas pela radicalizao da democracia no se dispersarem
nas redes distribudas e no se envolverem na intensa conversao
das plataformas de relacionamento, poderemos ver a onda rosa se
quebrar diante de ondas conservadoras.
Esperamos que o contgio da tica hacker, dos coletivos liber-
trios, das ocupaes, dos festivais de cultura digital, dos pontos de
cultura, sejam superiores em encantamento e convencimento social
do que o reacionarismo dos novos capites do mato, da criminali-
zao do compartilhamento de arquivos digitais e dos downloads,
dos colonizadores genticos, dos fundamentalistas contrrios a
diversidade cultural, religiosa, tnica e de orientao sexual.
As multides esto ativas. Redes de opinio enfretam outras redes
de opinio. A bipolaridade se desfaz em meio aos mltiplos conflitos.Agora, bem evidente que poder comunicacional cada vez mais est
na capacidade de formar e reconfigurar redes, como bem relatou o
socilogo Manuel Castells. Os textos que Rodrigo Savazoni discutem
de modo instigante esse cenrio. So escritos mais otimistas que
cautelosos. Tambm por isso, este livro vem em boa hora. Certa-
mente, fruto da emergncia dos movimentos interconectados e da
experincia efetiva de Rodrigo, principalmente na Casa de CulturaDigital. uma tentativa de influenciar e destacar que os ciberviventes
precisam hipertrofiar a biopoltica das modulaes proibicionistas,
mais do que o do-in antropolgico do Juca-Gil, preciso estimular
o hackeamento, a inverso, a ocupao e outras linhas de fuga.
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INTRODUO
O livro que est em suas mos rene artigos, ensaios, entrevistas
e textos acadmicos compilados nos ltimos trs anos e tem comotema a relao entre poltica e cultura digital. Resolvi organiz-los
por entender que, em conjunto, apresentam coeso. Principalmente
se levarmos em conta a centralidade que o assunto ganhou a partir
dos levantes de 2011, como a Primavera rabe, o 15M, na Espanha,
e o #OccupyWallStreet, nos Estados Unidos. Os artigos, muitos de-
les, buscam refletir sobre esses acontecimentos, em comparao
com a conjuntura nacional, e descrevem a conformao de novosmovimentos poltico-culturais que emergiram como um dado novo
da realidade nacional, principalmente a partir dos efeitos do Go-
verno Lula e do Ministrio da Cultura de Gilberto Gil e Juca Ferreira
(2003-2010).
notvel a ausncia de bibliografia qualificada, escrita em por-
tugus, sobre o que estamos vivendo em nosso pas. Em contatos
internacionais, comum toparmos com pares de ativismo que ficam
estupefactos com a nossa pouca vaidade em relao relevncia eimportncia da cena brasileira, no s como modelo a perseguir
uma vez que temos podido experimentar uma tensa, mas produtiva
relao entre sociedade civil e Estado mas principalmente como
matriz de formulao. Ou seja, temos uma compreenso frgil so-
bre algo que nos distingue e no estamos dando a devida ateno a
esses fenmenos, muito menos documentando-os como merecido.
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Diante dos aportes entusisticos sobre as redes poltico-culturais
e o contexto brasileiro, fico a me perguntar: cad a nossa formula-
o? Onde est a produo terica e crtica que subsidia o esforo
cotidiano de muitos agentes que tm escrito uma histria inovadorano Brasil do Sculo 21?
Muito do que os intelectuais e ativistas das redes poltico-
-culturais produziram est disperso na internet. Isso no neces-
sariamente ruim, pois vrios dos textos so para consumo imediato,
escritos no calor de disputas internas ou de afirmao de pautas
junto a sociedade. Foram feitos para ter vida efmera e incidir di-
retamente sobre a conjuntura. bom que essa produo exista e
continue a existir, demonstrando a dinmica fluda dos processos
de construo rizomticos da internet. Entendo, no entanto, que
fazem falta compilaes que possam ajudar a ampliar o debate,
principalmente entre agentes que esto fora do processo veloz da
poltica em contexto digital.
A tarefa de reverter esse quadro de carncia bibliogrfica no
exclusividade de um ou outro ativista. coletiva. Nesse sentido, no
primeiro semestre de 2013, Henrique Parra e Pablo Ortellado lana-ram o livroMovimentos em marcha: ativismo, cultura e tecnologia,
uma compilao essencial sobre um dos mais profcuos debates
sobre o sentido da esquerda hoje, que teve lugar em blogs e sites a
partir da realizao da Marcha da Liberdade, em 2011.
Trata-se de debate inconcluso e que vem sendo estimulado, no
entender de Parra e Ortellado, por quatro fatores: (1) o vento dos
levantes internacionais de 2011, que se traduziram em protestos con-tra o aumento das tarifas de nibus nas grandes cidades e contra a
construo da Usina de Belo Monte, no Xingu; (2) a descontinuidade
das polticas de fomento s dissidncias que tiveram incio com o
Ministrio da Cultura de Gilberto Gil e Juca Ferreira, materializada
na nomeao de Ana de Hollanda ao posto de ministra; (3) o cresci-
mento do Fora do Eixo, que se articula como circuito cultural e mo-
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reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea
vimento poltico, constituindo-se numa fora nacional organizada
no campo da cultura; (4) o surgimento da Casa da Cultura Digital,
que, nos dizeres dos autores uma rede de empreendimentos
empresariais e no empresariais que utilizam ferramentas digitais.Meu livro toma parte desse esforo, iniciado por Parra e Ortella-
do, de sistematizar o pensamento sobre as redes poltico-culturais
brasileiras.A onda rosa-choque um recorte especfico, produzido
por algum que participa desse debate a partir de trs lugares
complementares: como ativista da cultura livre, fundador da Casa
da Cultura Digital; como pesquisador acadmico, que realizou um
trabalho sobre o Fora do Eixo, buscando compreender sua origem
e organizao; e como articulador de polticas pblicas, que atuou
em parceria com o Ministrio da Cultura na construo das aes
de cultura digital, em especial na organizao do Frum da Cultura
Digital Brasileira e da rede CulturaDigital.Br.
No se trata, portanto, de uma obra baseada em distanciamen-
to crtico. Pelo contrrio. O que temos aqui fruto de uma praxis
militante, em que teoria e prtica se retroalimentam. No tenho
interesse que seja diferente. Pois minha inspirao so os intelec-tuais polemistas que jamais se furtaram do papel de interveno na
sociedade, correndo riscos de errar e acertar.
Espero, sinceramente, que outros trabalhos com essa temtica
sejam publicados. Para que possamos dar conta da complexidade
e grandeza do tema em questo.
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ROSA-CHOQUE
O ttulo deste livro uma referncia escolha feita pelos co-
letivos organizadores do #ExisteAmoremSP, festival que durantea campanha eleitoral para a prefeitura de So Paulo reuniu 20 mil
pessoas na Praa Roosevelt em um protesto pacfico e articulado
por meio da internet. Tive o prazer de participar de algumas das
reunies preparatrias, de convocar pessoas a tomarem parte desse
processo com manifestos amorosos na rede, e tambm estive na
Praa Roosevelt no dia marcado. Sou um articulador, como tantos
outros o foram, deste belssimo momento. Escolhemos a cor rosapara o movimento em uma aluso como me explicou certa vez o
artista e ativista Paulo Fvero (Paulinho InFluxus...) s cores azul
e vermelha quando fundidas em um feixe de luz.
Fvero autor da alegoria Tanq_ ROSA Choq_, que durante as
ocupaes e manifestaes estudantis na Universidade de So Paulo,
funciona como fora de conteno mantendo a polcia afastada dos
manifestantes. Veste-se com adereos rosa-choque bem gritantes,
portando armas de brinquedo e pilotando um carrinho de supermer-cado reinventado como tanque de guerra. Fvero foi uma espcie
de precursor do Festival #ExisteAmoremSP e um de seus principais
articuladores. No dia do festival, pendurado sobre as caixas de som
ao lado do pequeno palco onde se apresentaram Criolo, Emicida e
Gabi Amarantos, entre outros artistas, ele lanava fumaas e luzes
cor-de-rosa no ar, forjando um clima fabuloso de liberdade.
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A ideia de fundir azul e vermelho numa aliana rosa surgiu
do desconforto com os mapas eleitorais da cidade, que opem a
periferia (vermelha) ao centro (azul), aludindo a petistas e tucanos.
Esse mapa, explorado exausto pelos grandes veculos de comu-nicao, criou nos ltimos anos um estigma que impede a cidade
de enxergar as nuances complexas de sua configurao poltica.
Como se houvesse apenas um bloco slido branco e conservador, a
ocupar os bairros centrais, e outro negro e progressista nas bordas
da metrpole. Nada mais simplista. Combater essa dualidade taca-
nha era um dos objetivos do #ExisteAmoremSP, que, longe de ser a
proposio de uma terceira via, procurou vocalizar a necessidade de
se construir, na cidade betaglobal, pactos alternativos, em torno de
temas como a generalizada violncia policial que nos assola. Como
tratava-se de um movimento de afirmao da diversidade e das li-
berdades individuais, o uso do rosa-choque, cor estranha poltica,
tambm se apresentou como forma de questionar o patriarcado e o
comportamento sexualmente repressor.
Cunhei, ento, a expresso Onda Rosa-Choque para dar
ttulo a um artigo que escrevi sob encomenda para o SeminrioTramas da Rede, sobre cibercultura, organizado pelo Museu Vale
em 2013. Esse ensaio abre o livro e resolvi ento utilizar a expresso
novamente, neste novo ttulo. Na sequncia, A Dispora Hacker:
as redes livres de produo imaterial e ao poltica um artigo
acadmico produzido para o livro Tenses em Rede: os limites e
possibilidades da cidadania na internet. resultado da ampliao
de um outro trabalho apresentado em janeiro de 2012 no SeminrioMarxismo e Novas Mdias, na Universidade de Duke, Estados Uni-
dos. O terceiro texto indito. Rene uma avaliao crtica dos oito
anos de cultura digital durante as gestes de Gil e Juca. O quarto,
escrito em parceria com o professor Srgio Amadeu da Silveira e o
pesquisador Murilo Bansi Machado, integrantes comigo do Grupo
de Pesquisa em Cultura Digital e Redes de Compartilhamento da
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reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea
Universidade Federal do ABC, foi publicado originalmente em in-
gls na revistaMedia, Culture & Society, uma das mais importantes
de seu segmento em lngua inglesa. Esta verso em portugus
indita. Trata-se de uma anlise comparativa das polticas pblicasde cultura entre os governos Lula e Dilma, em especfico as gestes
Gil-Juca e Ana de Hollanda.
O artigo Democracia, inovao e cultura digital foi publicado
inicialmente no Le Monde Diplomatique, no Brasil, mas tambm
possui verses em espanhol, ingls e catalo, publicadas pela revista
Digithum, de Barcelona. Publiquei tambm no livro uma entrevista
com a pesquisadora e ativista Daniela Silva, minha parceira de fun-
dao da Casa da Cultura Digital, e criadora da rede Transparncia
Hacker. Fiz essa entrevista por escrito com Daniela para o site do
Festival CulturaDigital.Br, que organizei, e entendo que alguns dos
pontos sobre os quais ela discorre so essenciais para entendermos o
debate contemporneo. Os artigos A aliana necessria, O duplo-
-perfil do Facebook e Redes, ocupaes, revolues: o caminho
da liberdade a rua foram originalmente publicados nas revistas
Frum e Reportagem, duas das mais importantes publicaes daesquerda brasileira, e Select, referncia na rea de cultura digital.
As entrevistas foram para o catlogo do Festival Multiplicidade,
realizado por Batman Zavarese na Oi Futuro, do Rio de Janeiro, e
para a revistaA Rede. Fecha o livro uma conversa com o editor Sergio
Cohn, com quem em 2009 realizei o livro CulturaDigital.Br, com
entrevistas que abriram caminho para a discusso das implicaes
polticas, econmicas e sociais da cultura digital.
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AGRADECIMENTOS
No teria realizado esse trabalho sem a fundamental parceria
de inmeros companheiros que tm construdo comigo a mili-tncia por uma sociedade mais justa e livre. Em especial, destaco
a colaborao com o professor Srgio Amadeu da Silveira, autor
tambm do prefcio deste livro. Agradeo tambm a Lia Rangel,
a quem o livro dedicado. Lia minha principal interlocutora e
tem sido uma leitora implacvel h mais de uma dcada. Cludio
Prado e Pablo Capil, em diferentes medidas, viveram cada uma
dessas linhas comigo. Dr. Jaime, meu pai, e Solange, minha me,participaram ativamente desta construo fragmentada que sou
eu. Jlia e Chico, meus filhos, pela pacincia com o pai que no
sai do computador e/ou do telefone.
Aos parceiros que construram comigo a Casa da Cultura
Digital, todos vocs, em especial Gabriela Agustini, Georgia Ni-
colau, Roberto Romano Taddei, Bianca Santana, Fbio Maleronka
Ferron, Andr Deak, Dalva Santos, Daniela Silva, Pedro Markun,
Thiago Carrapatoso, Caru Schwingel, VJ Pixel, Maira Begalli, PauloFehlauer, Rodrigo Marcondes, Leo Caobelli, Diego Casaes, Andressa
Viana, Paula Alves, Rafael Frazo, Rafael Mantarro. Aos compa-
nheiros de movimentos Alvaro Malaguti, Ccero Silva, Jos Murilo
Jr., Fabiano Rangel, Felipe Fonseca e a galera da MetaReciclagem,
Leo Germani, Oona Castro, Joo Brant, Diogo Moyses, Adriano de
Angelis, Antonio Biondi e todos do Intervozes, Alfredo Manevy, Juca
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Ferreira, Eliane Costa, Heloisa Buarque de Hollanda, Ivana Bentes,
Giselle Beiguelman, Andr Lemos, Renato Rovai, Guilherme Varella,
Jeferson Assuno, Felipe Altenfelder, Lenissa Lenza e todos os
Fora do Eixo. Essa uma obra de interveno e espero que ajudena construo dos prximos passos da luta.
Aos mestres amigos Celso Nucci, Eugnio Bucci, Marco Antonio
Araujo e Srgio Gomes.
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Olho para a foto da Praa Roosevelt no fim da tarde de 21 de outu-
bro de 2012. Tenho certeza de que se trata de uma imagem histrica. possvel visualizar nela no apenas as cerca de 20 mil pessoas que
participaram do festival auto-organizado #ExisteAmoremSP, mas o
surgimento de algo muito forte, que reflexo do crescimento das
redes poltico-culturais no Brasil.
A foto me remete para a Praa Tahir, no Egito e para a Puerta del
Sol, em Madrid. Trata-se, como nos habituamos a ver no infinito ano
de 2011 que comeou com a Primavera rabe e terminou com asacampadas nos Estados Unidos de uma foto de uma praa tomada
por uma multido que, por meio da internet, se organizou para estar
ali. A Praa Rosa difere em proporo desses outros momentos, mas
tem em comum com eles ser um grito muito potente por liberdade,
igualdade e mais e melhor democracia.
Essa foto histrica tambm pelo que h por trs de sua produ-
o. Seu autor um fotgrafo vinculado ao Circuito Fora do Eixo, uma
rede de produo cultural e ativismo digital que surgiu em 2005 e quehoje est organizada em todos os estados do pas. O Fora do Eixo 2
um fenmeno em expanso, que esteve por trs da concepo,
1 Artigo produzido para o Seminrio A Trama das Redes, do Museu Vale, ocorrido no pri-meiro semetre de 2013.2 Conclu em 2013 uma dissertao de mestrado sobre o Circuito Fora do Eixo no curso deCincias Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC, que ser tambm editadaem livro.
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organizao e logstica desse ato poltico da Praa Rosa. Seus ativis-
tas no s trabalharam para aproximar os grupos que produziram
o evento, como forneceram mo de obra, recursos e conhecimento
para a execuo da atividade, alm de terem documentado o pro-cesso por meio de contedos multimdia e conversaes em rede.
Outro aspecto faz da foto histrica: ela expressa um dos mais fas-
cinantes momentos das eleies municipais de 2012. O ato #ExisteA-
moremSP a continuidade da atividade #AmorSIMRussomanoNo,
que ocorreu no primeiro turno da eleio para prefeito de So Paulo.
Diante do avano do candidato conservador Celso Russomano, que
surgiu liderando pesquisas de opinio, grupos da cidade se organi-
zaram para protestar nas redes e nas ruas. Essa mobilizao surtiu
efeito e Russomano no foi sequer para o segundo turno.
A mobilizao foi mais longe. Desvelou uma agenda positiva,
um desejo dos cidados por uma cidade menos proibida, com
mais espaos pblicos, menos violenta e intolerante. Essa agenda
comum atraiu mais e mais gente para o processo, sensibilizou artis-
tas independentes do porte de Gaby Amarantos, Emicida e Criolo,
e construiu o argumento necessrio para a realizao do festival,consequentemente da foto. Ou seja, a foto o smbolo eloquente
de uma vontade partilhada.
Algo se discutiu sobre o carter partidrio do evento. Debate por
vezes estril. Enxergo a Praa Rosa como um momento de afirmao
da possibilidade de ao ps-partidria. O que seria isso? Uma for-
ma de agir que no se recusa o dilogo com as foras e instituies
existentes, mas que no segue as regras e padres estabelecidoshistoricamente por essas mesmas instituies.
O #ExisteAmoremSP expressa, acima de tudo, a capacidade de
tecer redes que os coletivos culturais e urbanos veem demonstrando
nos ltimos anos. Como ocorreu no 15M espanhol ou no Occupy
WallStreet estadunidense, foi a dinmica de associao em rede
entre diferentes foras com alguns propsitos em comum sendo
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o principal deles reinventar as formas de fazer poltica que criou
as condies para essa exploso de afetos e colaborao. A Praa
Rosa persistir, materializada na foto, como um smbolo desse
momento matricial.Voltarei a esse tema no final do ensaio. Peo licena para uma
digresso conceitual.
ASREDESPOLTICO-CULTURAIS
Falo em redes poltico-culturais na perspectiva de construir um
conceito que nos permita comear a classificar alguns dos mais
expressivos fenmenos contemporneos nos campos da cultura e
da poltica. Recorro expresso poltico-culturalpor enxergar nela
uma forma de expressar concentradamente trs caractersticas que
observo nesses grupos que esto produzindo a histria do nosso
tempo: (1) a organizao do campo da produo imaterial, ou sim-
blica, ou cultural; (2) a formulao de uma nova cultura poltica,
baseada na colaborao, no afeto e em dinmicas em rede (mais ou
menos horizontais); e (3) a interferncia, a partir da comunicao e
da cultura, nas dinmicas de poder tradicionais.Na concluso de seu livro Communication Power, o terico
Manuel Castells afirma que o poder exercido na Sociedade da
Informao programando redes ou dominando os mecanismos de
trocas entre essas redes. Para ele, portanto, o contrapoder a forma
de mudar as relaes de poder se exerce reprogramando redes em
torno de valores e interesses alternativos. Ora, se assim , poderamos
dizer que as redes poltico-culturais seriam, justamente, um modode contrapoder que age na disputa os modelos de produo cultural,
de criao e de inovao?
fato que nos ltimos anos vm crescendo, em todo o mundo,
formas de resistncia no campo da cultura. Em um artigo chamado
Sistemas y redes culturales: como y para qu?, George Yudice fala em
ativismo reticulador. Recupero esse conceito, que todavia Yudice
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no desenvolve em profundidade em seu texto, e trago-o para ela-
borar um pouco sobre ele.
Em minha opinio, o ativismo reticulador aquele que tece redes,
que se incumbe de, como no delicado tecido reticular de nossoscrebros, desenvolver-se estabelecendo conexes entre diferentes
elementos. Esse ativismo digital reticulador tem no ato de organizar
redes um fim em si e um meio para atingir seus objetivos estrat-
gicos, to amplos como confrontar os 1% do planeta que dirigem
o capitalismo global, ou to especficos como reorganizar a vida
comunitria em bairros perifricos, como o caso do Grupo Cultural
AfroReggae, exemplo que Yudice utiliza no estudo supracitado. Esse
texto tem o mrito de, ao final, sistematizar pioneiramente o que
seriam as caractersticas das redes culturais. Tomo a liberdade de
elaborar uma traduo livre do trecho, que um pouco longo, mas
que, justamente por isso, nos ser til.
As redes complexas tm a capacidade de obter informa-
es que de outra maneira seria impossvel de se obter por
meio de instituies oficiais, porque essas redes tm cone-xes com atores que se esquivam do contato com o estado
e que o mercado ignora;
Mais que gestores profissionais, seus agentes so atores
envolvidos na produo, circulao, distribuio e prosumi-
dores de artes e cultura. Tm o mrito de jogar um papel im-
portante na oferta de educao informal, onde a educao
cultural no existe ou insuficiente. Por outro lado, buscamlevar suas programaes para o espao formal das escolas;
As redes culturais podem conectar processos novos com
processos tradicionais. Por exemplo a produo cultural
de bairro com a produo das indstrias culturais. [Neste
ponto Yudice cita a parceria entre o Afroreggae e o dirigente
da indstria da msica Andr Midani];
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As redes so teis para articular criadores de setores
cultos e tradicionais e dos novos meios (do mundo digital
e da internet);
As redes culturais tambm aportam seu dinamismo parao turismo cultural, pois aproveitam os vnculos com atores
mltiplos da sociedade para estabelecer novos tipos de
oferta e novos territrios de circulao. [Aqui Yudice cita o
Centro Cultural do Afroreggae, que se tornou um lugar para
ser visitado no meio da favela, antes do incio dos processos
de pacificao no Rio de Janeiro];
Para voltar analogia com a ecologia e a biodiversidade,
as redes servem para manter vivo o bosque primrio per-
mitem que se conectem atores, comunidades e processos
que de outra forma se desarticulam. As redes permitem a
criao de microssistemas que, por sua vez, se vinculam a
sistemas maiores, mas sem perder essa conexo com esse
manancial comunal;
Um pouco mais adiante, Yudice conclui:
Seguindo esta ltima analogia, poderamos dizer que as
redes so maneiras de alavancar para cima o capital social
e cultural. Essas redes criam sistemas de cooperao para
atingir objetivos especficos que no definem a totalidade
das atividades dos atores em reticulados.
Tecer redes passa a ser, ento, a forma que as dissidncias pos-
suem para estabelecer linhas de fuga, comportamentos alternativos,
prticas desviantes. tambm uma forma de acumular capital so-
cial e cultural, na anlise de Yudice. Ou seja, valor em torno de sua
produo. Cada vez mais, essas formas de se organizar so reconhe-
cidas como as principais prticas das novas geraes. No prlogo do
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livroJvenes, culturas urbanas e redes digitais: prcticas emergentes
em las artes, las editoriales y la msica, Nestor Garcia Canclini afirma
que as noes de redes e commonsso a expresso para falar de ou-
tra maneira sobre o que est acontecendo nas sociedades, porqueexpressam a transversalidade que marca a vida contempornea.
Seu ensaio nesse livro, intitulado De la cultura postindustrial a las
estrategias de los jvenes, busca atualizar o desafio do pesquisador
de cultura no contexto da sociedade ps-industrial e visualiza nas
redes culturais a principal forma de estratgia da juventude para
se organizar, de forma hbrida, em arranjos poltico e econmicos
distintos do que se vislumbrou at recentemente.
Ns lemos Marx, Bourdieu, Durkhein, Geertz, antroplogos
de vrios pases, escreve, no prlogo. E nos damos conta agora
que essas ferramentas nos servem muito parcialmente. preciso
completar a aprendizagem acompanhando os atores que se mo-
vem hoje na sociedade. Acompanhando as foras que se movi-
mentam, encontro um processo muito interessante que est em
curso na Amrica Latina: trata-se do Cultura de Rede. Coletivos e
articulaes brasileiras como o Fora do Eixo, Pontos de Cultura emovimentos de cultura digital esto participando dessa articulao
continental. Esse processo j produziu trs encontros, o primeiro
deles em Quito, Equador, o segundo em Braslia, Brasil, e o terceiro
em Cochabamba, Bolvia.
Entre os objetivos dessa articulao est justamente definir me-
lhor o que seriam essas redes poltico-culturais. Na Carta de Quito,
disponvel on-line, h uma tentativa de definio, ainda que ampla,de redes poltico-culturais3:
As redes so formas de trabalho que se caracterizam por
seu profundo compromisso pela transformao social
3 Para uma apreciao mais detalhada das definies do Cultura de Rede, ver a carta na in-tegra em .Acesso em11/11/2012.
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reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea
da realidade, com base no trabalho horizontal, solidrio e
colaborativo. Dada a flexibilidade de suas formas organiza-
cionais, quando falamos de redes, o fazemos nos referindo
tanto a organizaes locais que trabalham de maneiracoordenada, at formas organizacionais mais complexas e
de mbitos de ao mais amplos. As redes se articulam em
torno de objetivos comuns, que entendem a cultura como
um direito coletivo adquirido e como resultado de processos
histricos, cujo exerccio demanda dilogo democrtico
entre Estado e cidadania.
Poderamos dizer que a criao de mundos e a dominao de
subjetividades por meio de redes tornou-se o centro de reproduo
do capitalismo em sua etapa de permanente crise. Se isso verdade,
tambm seria bom apreciarmos a possibilidade de criao de redes
poltico-culturais cujo foco est justamente na fabricao de mundos
alternativos. Neste momento, as prticas dissidentes devem ser o
foco de nossa ateno.
UMAINCUBADORADEREDESPOLTICO-CULTURAISUma das expresses desse crescimento das redes poltico-culturais
no pas a Casa da Cultura Digital, experincia que ajudei a desen-
volver a partir de 2008. Naquele ano, comeamos a reunir pessoas em
torno de projetos sociais e culturais aliados s novas tecnologias. A
primeira gerao da CCD era formada por grupos j constitudos que
se uniram para a construo dessa experincia de partilha. Talvez amelhor definio para o que construmos em quatro anos de histria
seja laboratrio de vivncias, pois a vida que est no centro de tudo.
Nosso foco so as relaes de investigao sobre possveis alternati-
vas de viver nesse planeta dirigido pelo capitalismo interconectado.
Por isso mesmo, no seria possvel definir a Casa da Cultura Digital
exclusivamente como um espao de trabalho, ou de formao, ou de
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articulao, ou para a expresso das manifestaes culturais de seus
integrantes, ou de promoo de solues inovadoras para diferentes
reas do conhecimento. A CCD tudo isso, porque justamente per-
mite a construo de uma outra forma de viver, ou seja, de cada umse relacionar com o tempo especfico de sua existncia. Quase todos
ns que estamos associados a essa experincia entramos nela para
fazer uma coisa e mudamos completamente de plano. Ainda assim,
seguimos conectados. Os que no entenderam essa dinmica fluida,
partiram para novas jornadas. E acabam por se conectar rede de
outras maneiras, mantendo-se prximos de alguma forma.
Essa descrio pode parecer demasiado abstrata. Em parte . No
entanto, se quisermos recorrer teoria j escrita, recupero questes
abordadas por Andr Gorz no livro O Imaterial. Nessa obra seminal,
o escritor francs se debrua sobre as formas contemporneas de
produo, associao e luta poltica. Escreve Gorz: Esse colaborador
tender a demonstrar que vale mais do que realiza profissionalmen-
te, e investir sua dignidade no exerccio gratuito, fora do trabalho,
das suas capacidades: jornalistas que escrevem livros, grficos do
meio publicitrio que criam obras de arte, programadores de com-putadores que demonstram suas habilidades como hackers e como
desenvolvedores de programas livres etc.; so muitas as maneiras
de salvar sua honra e sua alma. Para subtrair uma parte de sua vida
aplicao integral no trabalho, os trabalhadores do imaterial do
as atividades ldicas, esportivas, culturais e associativas, nas quais
a produo de si a prpria finalidade, uma importncia que enfim
ultrapassa a do trabalho. (pg. 23)Foi para criar um espao associativo de pessoas com esse perfil
descrito por Gorz que criamos a Casa da Cultura Digital. Partimos,
singulares e conectados, de algumas questes: Por que, se queremos
produzir livremente, devemos manter relaes com o ambiente
esttico do mercado tradicional que no corresponde nossa ne-
cessidade? Por que recorrer ao meio publicitrio se queremos ser
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artistas? Por que vender horas e horas de trabalho aos jornais se
queremos contar nossas prprias histrias? Por que trabalhar para
conglomerados do espetculo se queremos produzir uma cultura
que seja conectada expresso autntica dos nossos afetos? Omercado, como o conhecemos, nos propicia algo que no possamos
conseguir pela unio de nossas foras? E se criarmos um espao em
que no faz distino entre viver e produzir? Esse espao pode ser
sustentvel? Ou, ainda, melhor que sustentvel, ele pode, como
reclama Viveiros de Castro, ser antropologicamente suficiente? No
seria esse o salto radical a ser dado, do ponto de vista ambiental,
para estabelecermos uma outra forma de nos relacionarmos com
o planeta, massacrado por um desenvolvimento que o dilacera?
Nenhuma dessas perguntas tm respostas fceis. Mas so ex-
celentes provocaes para um incio de investigao. Disso surgiu
a necessidade de construirmos um laboratrio, um espao para
testar hipteses e situaes que possam desenhar novos caminhos
para nossas vidas e, eventualmente, permitir que outras pessoas e
organizaes se aproveitem dessas descobertas.
Acredito que foi justamente a conjugao de desafios to flui-dos que nos permitiu desenvolver um arranjo inovador. A Casa da
Cultura Digital composta por pequenas empresas, produtoras,
organizaes sem fins lucrativos, redes que no dispem de pessoa
jurdica prpria e indivduos adeptos do sevirismo (se virar para
viver). Os custos de infraestrutura so compartilhados, como numa
repblica estudantil, entre as instituies integrantes. No restante,
vive-se dos projetos que so desenvolvidos, isoladamente ou emparceria. So muitas iniciativas que esto em curso atualmente,
a maior parte delas com receitas prprias, que permitem no s
remunerar seus idealizadores como as equipes que atuam nos
processos. O que est baseado na troca de servios e em doaes
por meio de cooperao totalmente vivel. J houve vrios pro-
jetos aprovados por meio de crowdfunding(financiamento pelos
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pares), e a CCD uma das organizaes que mantm uma pgina
prpria no site Catarse.
Para especificar melhor como funciona nossa sustentabilidade,
peguemos o exemplo do Festival CulturaDigital.Br. Ele contou compatrocnios do Governo do Estado do Rio de Janeiro, por meio da
Lei Estadual de Incentivo Cultura, e do Governo Federal, por meio
da Lei Rouanet. Recebeu aportes das empresas Petrobras, Vale e
Vivo Telefnica, das organizaes sem fins lucrativos Comit Gestor
da Internet do Brasil, Mozilla Foundation, Fundao Ford, Centro
Cultural de Espanha e Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP),
estabeleceu parcerias e permutas com o Museu de Arte Moderna
(MAM), a PRODERJ, o Cine Odeon, sem contar no aporte em troca
de trabalho e servios de uma gama enorme de aliados e parceiros.
Como este, poderia citar o rol de apoiadores de outras iniciativas
lideradas pela CCD, o que iria demonstrar nossa capacidade de man-
ter relaes com governos e foras do Estado brasileiro, organismos
multilaterais, instituies e fundaes de cooperao internacional,
organizaes da sociedade civil e empresas.
No seria exagero nem cabotino dizer que a Casa da CulturaDigital tornou-se, nesses poucos anos de existncia, uma referncia
para jovens ativistas, hackers, comunicadores, desenvolvedores e
produtores culturais que esto em busca de uma vida baseada em
um compromisso profundo com a democracia e a liberdade. Isso
pode ser medido pelo nmero de pessoas que nos procuram, pelo
interesse dos meios de comunicao de massa e on-line nas nossas
aes, pela presena e circulao das informaes produzidas pelae sobre a CCD nas redes sociais, pelo posicionamento das coisas
que fazemos nos resultados de busca. Digitando no Google, em por-
tugus, a expresso cultura digital, as quinze primeiras remisses
apontam para trabalhos e aes da CCD ou nas quais estivemos
envolvidos. como se, ao longo dos anos, tivssemos nos tornado
sinnimo de quem pensa a cultura a partir das transformaes
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ocasionadas pela tecnologia. Depois do ncleo de So Paulo, em
2012 tiveram incio clulas autnomas da CCD em Santos, Porto
Alegre e Florianpolis.
De todas as dimenses que eventualmente a Casa da CulturaDigital possua, a que mais me agrada pens-la como uma espcie
de incubadora de redes. Temos sido uma rede que conecta pessoas
e projetos. Mas tambm um arranjo que produz e conecta outras
redes, as quais possuem dinmicas e caractersticas especficas,
como demonstra o quadro abaixo.
Essa imagem descreve oito redes que surgiram das entranhas da Casa
da Cultura Digital. A primeira que cito a rede CulturaDigital.Br, criada
em 2008 com a finalidade de articular, em parceria com o Ministrioda Cultura, polticas pblicas para esse campo. Toda a inteligncia de
rede e o trabalho de articulao concentrados em torno da Plata-
forma CulturaDigital.Br (http://www.culturadigital.br), que tambm
culminou na realizao de dois fruns de cultura digital, foi gestada
dentro da CCD. Chegamos a mobilizar mais de oito mil pessoas nesse
processo, alm de ter fomentado inmeras iniciativas poderosas
HACKER
REDE REA
CULTURADIGITAL.BR
JORNALISMODIGITAL
BAIXOCENTRO
PRODUO
BRASIL
OPEN VIDEOANIANCE
HACKERSPACE
CASA DA
CULTURA
DIGITAL
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no Brasil e fora dele, como o caso da Universidade da Cultura, das
redes de arte digital, do Movimento Cultura Digital, entre outros.
Tambm foi nos corredores do Parque Savoia, onde territorial-
mente nos estabelecemos, que surgiu, com a realizao dos Ha-ckDays, a rede Transparncia Hacker, que conforma uma experincia
de hacktivismo voltado para a melhoria da democracia. Essa rede
possui mais de mil membros em todo o Brasil, e de dentro dela sur-
giram projetos como o nibus Hacker e o Clone do Blog do Planalto.
A Transparncia Hacker surgiu na CCD, mas estabeleceu articulaes
especficas, prprias, que no necessariamente envolvem todos os
agentes que atuam na Casa da Cultura Digital.
Outra rede que est citada na imagem e produz enorme ateno
o Garoa Hacker Clube, que se constituiu como um hackerspace,
um clube para aficcionados por tecnologias livres. Esse clube
tambm tem como premissa estimular a criao de outros espa-
os semelhantes no Brasil e no mundo. Destaca-se por ter sido o
primeiro do Brasil.
Por fim, para no me estender demais em uma descrio mui-
to minuciosa, vale citar o caso do Movimento Baixo Centro. Esseprocesso tambm teve incio da Casa da Cultura Digital, e partia da
inquietao de alguns dos integrantes de nossa rede, em especial
dos produtores culturais, com o cerceamento s expresses livres
nas ruas da cidade, em especial na regio central, onde se encontra
nossa sede. Esse grupo props ento a criao de um festival nas
imediaes do Minhoco, uma via elevada que corta alguns bairros
centrais, e esse festival acabou se tornando uma rede de ativismopelo direito cidade, que inclusive pode ser considerada um dos
embries e inspiradores do #ExisteAmoremSP.
A reputao obtida pela Casa da Cultura Digital, no entanto, no
tem sido explorada em benefcio prprio. Ela vista como potncia
para fortalecer os movimentos sociais e as organizaes da sociedade
civil que nos precederam; para aprofundar as disputar por trans-
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parncia, abertura e radicalizao da democracia; para defender
uma ideia de cultura que seja baseada na viso de que todos somos
potenciais criadores e que o mercado no deve dirigir as relaes de
produo simblica; para desenvolver tecnologias inovadoras quesirvam ao fortalecimento da cidadania e estejam conectadas com
as reais necessidades da populao brasileira.
Por isso mesmo, alm de operar como uma incubadora de re-
des, a CCD tambm tem sido abrigo para articulaes e formao
de redes em torno das causas polticas que se afirmaram na Praa
Rosa. Causas que, podemos dizer, atualizam os desafios da luta social
no pas. Produzi a imagem abaixo com a finalidade de evidenciar
algumas das temticas com as quais viemos lidando nos ltimos
anos, e como dessa sistematizao podemos comear a delinear
uma agenda de lutas contemporneas que marcam os interesses
da juventude urbana brasileira.
SOFTWARELIVRE
XINGUVIVO
DIREITO COMUNICAO
LEI DEACESSO
INFORMAOPBLICA
REFORMA DODIREITOAUTORAL
REFORMAAGRRIA
MOBILIDADEURBANA
DIREITO CIDADE
CASA DA
CULTURA
DIGITAL
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So muitas as iniciativas da CCD associadas afirmao, pro-
moo e defesa do software livre, que o movimento que constitui a
essncia da cultura digital livre. Na Casa da Cultura Digital ocorrem
articulaes e aes em parceria com organizaes como MozillaFoundation, Free Software Foundation, Open Knowledge Society,
Eletronic Frontier Foundation (EFF), Wikimedia, Wikileaks, Festival
Internacional de Software Livre (FISL), para citar alguns dos exem-
plos mais eloquentes. No caso, por exemplo, da luta pela reforma
da lei de direito autoral, funcionamos como um ponto de encontro
para os grupos que se mobilizam pela aprovao de uma lei ade-
quada s transformaes operadas pela internet e desenvolvemos
uma plataforma de comunicao para essa campanha (http://www.
reformadireitoautoral.org/). Na luta contra a construo da Usina de
Belo Monte as organizaes da CCD produziram o site da campanha
Xingu Vivo para Sempre e atuaram na mobilizao e gesto de redes
em parceria com organizaes ambientais.
Esses trabalhos, na maioria dos casos, foram desenvolvidos
numa associao entre prestao de servios e militncia. H outras
situaes reveladoras, como no caso da Lei de Acesso InformaoPblica, onde ativistas ligadas rede da casa da cultura digital atu-
aram na redao de artigos da lei para que ela estivesse de acordo
com os princpios da internet livre. Esse esforo foi recompensado
com a aprovao de uma das mais avanadas leis de transparn-
cia do mundo, que estabelece que os dados pblicos devem ser
disponibilizados em formato legvel por mquinas, o que permite
o processo e recombinao das informaes pela cidadania. Ouseja, no possvel ler a experincia da Casa da Cultura Digital sem
entend-la como uma expresso poltica. Tampouco isso quer dizer
que velhos conceitos de como a poltica se processa sirvam para nos
analisar. O mesmo pode ser dito sobre o que ocorreu em So Paulo
no dia 21 de outubro.
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reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea
DEVOLTAMULTIPLICIDADEROSA-CHOQUEPara a organizao do festival da Praa da Rosa consorciaram-se
mltiplas foras que compem um enorme mosaico de coletivos da
cidade de So Paulo. Registro isso porque esse um dos fenmenosmais fascinantes que est em curso na maior metrpole do sul do
planeta. O historiador Pablo Ortelado, professor da USP Leste, fala
em mais de cinco mil coletivos organizados na periferia da cidade.
Algumas dessas foras j tm muitos anos de estrada. So iniciativas
que abriram caminho para a renovao da msica jovem brasileira,
como o Coletivo Instituto, de Daniel Ganjaman, que se fez indire-
tamente presente no ato #ExisteAmoremSP.
O Instituto, que surgiu na virada do sculo, teve papel prepon-
derante na afirmao do hip-hop como cultura e do rap como lin-
guagem artstica. Atualmente Ganja produtor de Criolo, autor do
rap-cano No existe amor em SP, que, com a praa tomada, foi
cantado em unssono, numa espcie de catarse coletivo que produziu
uma leitura reversa da letra. No lugar do desencanto denunciado pela
crnica do artista da periferia aqui ningum vai pro cu a pos-
sibilidade latente de se desenhar solidariamente um novo destino.Esse consrcio de foras vivas forjou em poucos dias, uma festa
sem a presena de seguranas mas com muitos palcos e interven-
es poltico-culturais e produziu uma aglomerao de felicidade
como poucas vezes vivenciei. Naquela tarde, naquele festival, na-
quela Praa Rosa, juntaram-se cidados do centro e da periferia em
torno de causas e objetivos comuns. Isso, por si s, j constitui um
feito notvel. Mas h mais a dizer.Entre as caractersticas que vislumbro com a emergncia das
redes poltico-culturais est a formatao de uma nova cultura
poltica, baseada na colaborao e no compartilhamento do co-
nhecimento. A palavra compartilhar talvez seja a mais importante
desse processo, pois ela denuncia positivamente o surgimento de
tecnologias sociais baseadas na ideia solidria de troca entre pares,
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na perspectiva de que juntos fazemos melhor. Isso mexe com valo-
res muito slidos e que se cristalizaram nas ltimas dcadas, com o
avano do pensamento neoliberal, entre elas a crena de que o ser
humano essencialmente autointeressado. Essa ideia fortssima deque eu, para fazer o bem para os outros, preciso primeiro garantir
o meu, reacendeu-se com o fim do bloco sovitico e a ideia de fim
da histria. Nesse contexto, a regulao adviria naturalmente do
choque dos vrios interesses individuais contrapostos. preciso
ficar claro que essa ideia deu errado e levou o planeta a um colapso
scio-ambiental.
Com a popularizao da internet e o consequente fortalecimento
do engajamento e do protagonismo juvenil temos uma chance de
pr fim nessa hiperindividualizao que alguns povos ocidentais
inventaram e impuseram ao mundo. Sem dvida, o movimento
software livre, a ideia de cdigo aberto, de partilhar rpido e sempre,
d outro sentido para nossa prtica. Esse valor do compartilhamen-
to , como citei acima, um amlgama da nova cultura poltica que
os coletivos em rede esto criando. Por baixo, portanto, do mar de
pessoas que podemos vislumbrar na imagem que abre este ensaio,corria uma corrente de solidariedade produzindo essa enorme onda
rosa-choque, que apenas comeou, mas j d mostras de que tem
fora para irrigar o futuro.
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A DISPORA HACKER:AS REDES LIVRES DE PRODUO IMATERIALE AO POLTICA1
Uma autntica economia do saber seria uma
economia comunitria2
As redes livres de produo imaterial e ao poltica so um fen-
meno poltico mundial e tambm do Brasil contemporneo. Surgem
aqui em um contexto que articula os sopros renovadores do Frum
Social Mundial com o desenvolvimento do governo do presidente Luiz
Incio Lula da Silva, e conformam um lugar destacado de construo
de alternativas polticas, sociais, econmicas e culturais. Nesta anlise,
iremos explorar como essas redes se desenvolvem a partir de umadispora no sentido de obteno de novos espaos dos valores das
comunidades de software livre por diferentes agrupamentos jovens
de nossa sociedade. Esses grupos esto transformando as ideias de
liberdade presentes no movimento hacker em aspecto organizador de
novas formas de produzir e agir em diferentes campos: da produo
de shows luta por direitos humanos em favelas, passando pela exi-
gncia de abertura dos gabinetes da poltica institucional chegandoat a reciclagem de equipamentos eletroeletrnicos.
O foco deste trabalho fazer uma breve descrio dessas redes
cooperativas e comunicativas de trabalho social, conforme po-
1 Artigo elaborado sob orientao do Professor Doutor Srgio Amadeu da Silveira. Agradeoa colaborao e os comentrios do pesquisar Murilo B. Machado, integrante do grupo depesquisa em cultura digital e redes de compartilhamento da UFABC.2 Trecho do livro O Imaterial, de Andr Gorz, p. 59.
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demos defini-las a partir da conceituao feita por Michael Hardt
e Antonio Negri em seu ensaio Multido. Para estes autores, so
as redes que, do ponto de vista sociolgico, guardam consigo o
poder constituinte da multido, que se configura como a principalfora de contestao do Imprio (HARDT & NEGRI: 2001). Neste
trabalho, as redes so analisadas por sua potncia de enfrentamento
do capitalismo, que, em sua etapa cultural, centrada na produo
imaterial (GORZ: 2003), mobiliza no mais a produo, mas formas
de viver. A hiptese aqui que, justamente por meio de articulaes
baseadas na apropriao avanada das novas tecnologias, essas
redes operam o enfrentamento, inventando colnias livres no seio
da sociedade do controle (DELEUZE: 2010).
Analisaremos quatro redes: (1) MetaReciclagem, (2) Circuito Fora
do Eixo, (3) Transparncia Hacker e (4) Enraizados. Em um primeiro
momento, essas redes sero descritas em suas especificidades, bus-
cando no decorrer da elaborao apontar como se constituram e
como se organizam atualmente. A escolha por essas redes se deve ao
fato de possurem grande reputao entre seus pares e de operarem
com alcance internacional. Nesta leitura, no temos o objetivo debuscar exemplos para encaixarmos em teorias pr-existentes, mas
de articular o referencial terico de anlise adequado a um deter-
minado fenmeno social dado. Sem o reforo da teoria, no entanto,
ficaramos suspensos em interpretaes superficiais. Por isso, parte
importante deste artigo dedicada tambm a dialogar com obras
recentes que se debruam sobre a realidade poltica na perspectiva
de apontar caminhos de transformao.Por fim, na concluso, o artigo se dedica a fazer algumas apro-
ximaes entre essas redes. Extrair, das observaes e das leituras,
caractersticas presentes em todas elas que permitem uma anlise
em paralelo de seu desenvolvimento. No so aproximaes simples
de serem feitas, uma vez que cada uma se dedica a um aspecto dis-
tinto do mundo cotidiano em alguns casos essa articulao pode
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reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea
at parecer muito distante. Ainda assim, possvel identificar vrias
caractersticas semelhantes, seja no seu processo formativo, seja
nas tticas do agir, seja na interpretao do processo poltico, que,
analisadas em conjunto, nos permitiriam dizer que estamos diantede um movimento em construo, com potencial de reorganizar a
ao poltica jovem no pas.
Vale destacar que, neste trabalho, entendemos a cultura hacker
como a cultura daqueles que compartilham uma tica baseada na
liberdade do conhecimento e do compartilhamento dos cdigos
(SILVEIRA: 2007, p. 24). Essa cultura teve incio com os expertsem
programao e em segurana de sistemas informacionais, mas no
correr dos anos foi apropriada por diferentes agentes sociais, num
processo que aqui denominamos de dispora hacker e iremos de-
senvolver na concluso do artigo.
A REDEEAPOLTICAO papel da internet para a construo de alternativas polticas
central j no de hoje. Em seu livro,Sem Logoa tirania das marcas
em um planeta vendido, a ativista canadense Naomi Klein, analisa,no posfcio Adeus ao fim da histria, o movimento altermundista3
que se desenvolveu no final dos anos 1990 do sculo passado. Para
ela, mais que um instrumento para a organizao, a internet j se
revelava, naquele momento, como um elemento de moldagem do
movimento sua prpria imagem (KLEIN: 2002).
Graas net, as mobilizaes so capazes de se desdobrarcom pouca burocracia e hierarquia mnima; o consenso
forado e manifestos elaborados desaparecem ao fundo,
3 O altermundismo um amplo conjunto de movimentos sociais que surgiu no final dosanos 1990, que se reuniu em torno dos dias de Ao Global e do processo do Frum SocialMundial, que teve incio em Porto Alegre, RS, Brasil. Esse movimento, formado por ativistasde diferentes correntes polticas, propunha uma outra globalizao e realizava a crtica socialdo pensamento nico neoliberal e do processo de mundializao capitalista.
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substitudos por uma poltica de troca de informaes
constante, frouxamente estruturada e s vezes compulsiva.
(KLEIN: 2002, p. 479)
Para a autora, surge nesta idade do processo de lutas polticas
um modelo de militncia que espelha as vias orgnicas, descentra-
lizadas e interligadas da internet (KLEIN: 2002, p. 480).
No Brasil, um conjunto de agentes tomou parte desse processo
de construo poltica altermundista, em especial porque um dos
momentos cruciais dessa era de mobilizaes globais teve lugar em
Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, cidade que recebeu as
primeiras edies do Frum Social Mundial. Klein afirma que o FSM
aponta para a passagem do perodo de contestao marcado por
aes em contraposio aos encontros dos principais organismos
polticos multilaterais, como as que ocorreram em Seattle, Praga e
Gnova para uma poca de proposio de alternativas. A ausncia,
no entanto, de respostas gerais e de um programa unificado levou
o movimento a se diluir em diferentes linhas de ao.
Analisando esse movimento altermundista, Andr Gorz localizaque so essas redes livres a matriz comum das mobilizaes na virada
do sculo 20 para o 21, baseadas em estrutura no hierrquica, em
redes horizontais descentradas em vias de se autoproduzir e de se
auto-organizar, fundadas no princpio da democracia consensual
(GORZ: 2003).
No ano da segunda edio do Frum Social Mundial, realizado
em janeiro de 2002, o torneiro mecnico Luiz Incio Lula da Silva eleito Presidente da Repblica do Brasil, levando pela primeira vez na
histria do pas o Partido dos Trabalhadores (PT) ao posto mais alto
da Repblica. Esse fato histrico promove a atrao de um conjunto
de ativistas e militantes do altermundismopara dentro do governo
Lula. Muitos desses ativistas seriam responsveis pela elaborao e
gesto de importantes polticas pblicas, s quais se pode atribuir
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reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea
o importante fomento s dissidncias (GORZ: 2002), por meio
do reconhecimento institucional e do repasse de recursos para o
desenvolvimento de aes sociais e poltico-culturais.
Para compreender essa importante induo, que se constituiucomo um dos aspectos centrais para o fortalecimento das redes
de produo imaterial, precisamos retornar a 2003, quando dois
vetores se articulam no interior do governo Lula: a poltica de
utilizao e fomento do software livre, capitaneada pelo socilogo
Srgio Amadeu da Silveira, ento recm-empossado presidente do
Instituto Nacional de Tecnologia da Informao (ITI), da Casa Civil
da Presidncia da Repblica, e o redirecionamento estratgico das
polticas culturais no Ministrio da Cultura, que, com a chegada do
msico Gilberto Gil pasta, passam a ter foco nas foras vivas da
cultura brasileira (GIL: 2003). Esses dois acontecimentos, como
narrado pela pesquisadora Eliane Costa no livro Jangada Digital,
culminariam no desenvolvimento de polticas pblicas de cultura
digital que colocaram o Brasil em evidncia internacional.
Durante os oito anos seguintes, os articuladores dessas redes de
produo imaterial se tornaram cogestores de polticas em vriasesferas do governo. Aes que foram desenvolvidas por setores
responsveis pela incluso digital, pelos programas de fomento
conectividade da populao e pelo compartilhamento da cultura
popular, como o Programa Cultura Viva (responsvel pela rede de
Pontos de Cultura). Essas redes tambm foram parceiras de primeira
hora na elaborao de projetos de lei cujo foco era fortalecer as li-
berdades na era digital, como o projeto de reforma da Lei de DireitosAutorais (LDA), o projeto da Lei de Informao Pblica, e o Marco
Civil de direitos digitais dos cidados redigido pelo Ministrio da
Justia em parceria com a sociedade, por meio de uma plataforma
web aberta e voltada ao compartilhamento.
Em um artigo chamado Polticas da Tropiclia, publicado no
catlogo da exposio Tropiclia, que produziu um balano da guer-
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rilha esttico-poltica dos anos 1960, o antroplogo Hermano Vianna
faz uma anlise do Ministrio da Cultura liderado por Gilberto Gil,
destacando-o como elemento dissonante no cenrio da poltica
tradicional justamente por dedicar-se ao fomento dos agentes liga-dos ao software livre, os quais para Negri e Hardt so exemplos de
articuladores da democracia da multido:
Seguindo essa trilha natural tambm que Gil tenha se
transformado, entre os ministros brasileiros do governo Lula
(e talvez entre os ministros da Cultura de qualquer pas, hoje
to temerosos diante do debate sobre a pirataria das artes
digitais ou digitalizadas), no principal militante na defesa
do software livre e de seus cdigos abertos, entendida como
a principal batalha que est sendo hoje travada nos campos
polticos, econmicos e culturais. (ViANNA: 2007, p. 141)
Na sequncia desse artigo, Vianna cita a passagem no discurso de
Gil proferido em aula magna na Universidade de So Paulo, quando
ele se assume inspirado pela tica hacker.Esse exerccio de reflexo sobre o curto-circuito antropolgico
(GIL: 2003) ocorrido nos ltimos anos no se completa se deixarmos
de lado o processo de distribuio das tecnologias de informao
e comunicao (TICs), no pas, nos ltimos dez anos. Desde 2008,
a venda de computadores maior que a de televisores no pas, se-
gundo dados colhidos pela Escola de Administrao de Empresas da
Fundao Getlio Vargas (FGV)4
. Atualmente, cerca de 80 milhesde brasileiros acessam a internet e o pas segue, de acordo com le-
vantamento do Ibope/NetRatingstendo o usurio que mais tempo
permanece conectado5. Em 2002, quando estavam nascendo a rede
4 Dados em . Acesso em 12/11/2011.5 Para um detalhamento completo do perfil de navegao atual do brasileiro, vale a visita aolink .
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reflexes sobre redes, cultura e poltica contempornea
MetaReciclagem e o Cubo Mgico, coletivo pioneiro do Circuito
Fora do Eixo, o Brasil tinha menos de 15 milhes de internautas6.
Gorz, em O Imaterial, atribui aos artesos dos programas de
computador e das redes livres o papel de enfrentamento do capita-lismo contemporneo por se oporem ao cercamento do saber. Para
ele, esses grupos se constituem em uma dissidncia social e cultu-
ral (GORZ: 2003, p. 63) que prope outra concepo de sociedade.
Ser a partir dessa perspectiva, que orientou as polticas culturais
brasileiras durante o governo Lula, como vimos, que iremos analisar
os agentes integrantes das redes de produo imaterial e ao pol-
tica brasileiras articulados em torno do MetaReciclagem, do Fora do
Eixo, do Transparncia Hacker e do Enraizados. Antes, no entanto,
faz-se necessrio um aprofundamento terico.
A PRODUOIMATERIALEABIOPOLTICAGorz, em seu estudo sobre a produo imaterial, cita uma pro-
posio de Patrick Viveret, para quem preciso:
detectar as pessoas e os grupos portadores de vises cul-turais e espirituais que tm ou tero um papel essencial
para dar vida ideia de que a humanidade est centrada
numa nova era, necessitando de novos quadros conceituais,
culturais e ticos para acompanhar essa grande mutao.
(GORZ: 2003, p. 63)
exatamente este o fito desta nota: localizar novos quadrosconceituais, culturais e ticos desta grande mutao. As ideias cen-
trais da comunidade virtual, virtualmente universal, dos usurios-
-produtores de programas de computador e de redes livres (GORZ:
2003, p. 66) foram apropriadas e deram origem, no Brasil, a grupos
6 Dado publicado em tabela comparativa do CIA World Factbook, tambm disponvel em:.
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polticos que partilham de vises e mtodos dessa fora matricial,
aplicando-a em diferentes reas do fazer, em especial na produo
de comunicao e cultura (imaterial).
A utilizao de autores de origem marxista, que se debruamsobre esse deslocamento ocasionado pela passagem do capitalismo
de sua fase industrial para a sua fase ps-industrial, nos ajuda a per-
ceber tambm quais so as foras que trazem consigo a possibilidade
de realizar um enfrentamento no centro da nova disputa mobilizada
pelo capital. Para Gorz, as redes livres instauram relaes sociais
que esboam uma negao prtica das relaes sociais capitalistas.
(GORZ: 2003, p. 66) Podemos estender essa concluso para as redes
surgidas no Brasil no incio do sculo 21?
Anlise semelhante de Gorz, autor com o qual mantm profcuo
dilogo intelectual, fazem Michael Hardt e Antonio Negri, autores
da trilogia Imprio, Multidoe Commonwealth, obras de filosofia
poltica que procuram traar uma viso do capitalismo contempo-
rneo bem como apontar formas de enfrent-lo.
Falamos anteriormente das novas formas hegemnicas detrabalho imaterial que dependem de redes comunicativas
e colaborativas que compartilhamos e que, por sua vez,
tambm produzem novas redes de relaes intelectuais,
afetivas e sociais. Essas novas formas de trabalho, como
explicamos, apresentam novas possibilidades de autogesto
econmica, pois os mecanismos de cooperao necessrios
para a produo esto contidos no prprio trabalho. (HAR-DT & NEGRI: 2005, p. 421)
No interior das redes livres de produo imaterial e ao poltica
novas redes de relaes intelectuais, afetivas e sociais reside
a possibilidade de autogesto econmica, justamente porque os
mecanismos de cooperao necessrios para a produo partem
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do trabalho cuja forma reificada, na viso de Gorz est virtualmente
abolida. O terico radicado na Frana, recentemente falecido, afirma
que os meios de produo se tornaram apropriveis e suscetveis
de serem partilhados. (GORZ: p. 21) O computador, ento, revela-secomo instrumento universal, universalmente acessvel, por meio
do qual todos os saberes e todas as atividades podem, em princpio,
ser partilhados. (GORZ: p. 21)
o computador, e sua interconexo em rede, aliado s demais
tecnologias digitais apropriveis e recombinveis, o instrumento do
trabalho das redes aqui analisadas. Trazem elas, consigo, portanto, a
potncia de produzir de forma no alienada, transformando-se em
laboratrios de alternativas sociais e econmicas. Outro aspecto que
precisa ser considerado que, ao falarmos de produo imaterial,
estamos falando da produo de saber, conhecimento e cultura, que
no se constituem como uma mercadoria qualquer (GORZ: p. 59),
porque possuem valor (monetrio) indeterminvel. Uma vez digi-
talizados, esses produtos podem se multiplicar infinitamente, sem
perda de qualidade e sem que sejam necessrios custos adicionais
para produzir essa multiplicao.O objetivo deste texto no forar a mo para encaixar os movi-
mentos em anlise nas teorias supracitadas, mas observar o quanto
esse raciocnio til para compreender esse fenmeno, abrindo-se
para demonstrar sua potncia poltica.
Na realidade, quando produtos do trabalho no so bens ma-
teriais, mas relaes sociais, redes de comunicao e formasde vida, torna-se claro que a produo econmica implica
imediatamente uma forma de produo poltica, ou a pro-
duo da prpria sociedade. (HARDT & NEGRI: 2005, p. 421)
Produo imaterial e ao poltica, portanto, nesse contexto, so
indissociveis. Afinal, o poder tomou de assalto a vida (PELBART:
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2007), fazendo da vida e das relaes sociais o motor do capitalismo
contemporneo. Com isso, as formas de luta biopoltica so as que
podem apresentar alternativas (biopotncia), nos termos do que
nos explicam os autores do movimento da autonomia italiana7
.
Poderamos resumir este movimento do seguinte modo: ao
poder sobre a vida responde a potncia da vida. Mas esse
responder no significa uma reao, j que o que se vai
constatando cada vez mais que essa potncia de vida j
estava l e por toda a parte, desde o incio. A vitalidade social,
quando iluminada pelos poderes que a pretendem vampiri-
zar, aparece subitamente na sua primazia ontolgica. Aquilo
que parecia inteiramente submetido ao capital, ou reduzido
a mera passividade, isto , a vida, aparece agora como um
reservatrio inesgotvel de sentido, como um manancial
de formas de existncia, como um germe de direes que
extrapolam, e muito, as estruturas de comando e os clculos
dos poderes constitudos. (PELBART: 2007, p. 57-65)
Para Hardt e Negri:
A produo econmica torna-se cada vez mais biopoltica,
voltada no s para a produo de bens, mas em ltima
anlise para a produo de informao, comunicao,
cooperao em suma, a produo de relaes sociais e de
ordem social. (HARDT & NEGRI: 2005, p. 419)
Por isso, afirmam, que cultura vem a ser diretamente um
elemento tanto da ordem poltica quanto da produo econmica
(HARDT & NEGRI: 2005).
7 A autonomia italiana tem como representantes autores como Paolo Virno, Giuseppe Cocco(radicado no Brasil), Maurcio Lazaratto e Antonio Negri, entre outros.
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ASREDESGANHAMASREDESPercorrido o aprofundamento terico, hora de descrever as
redes livres de produo imaterial e ao poltica que surgiram na
ltima dcada no Brasil. Essa descrio, ainda que superficialmente posto que cada uma delas poderia ser objeto de um estudo
especfico nos ajudar a perceber o que h nelas que as distingue
e permite a anlise que estamos buscando estruturar.
1. METARECICLAGEMA rede MetaReciclagem, articulada em torno da plataforma
, teve incio a partir da lista de
discusso do projeto Met:Fora, que reuniu, a partir do ano de
2002, articuladores de aes ligadas s novas tecnologias e que
tinham como interesse entender e propor aplicaes para uma
realidade em que passaremos do on-line/off-line para uma cultura
permanentemente conectada8. Nesse mesmo ano, em conversaes
na lista de discusso, surge o termo MetaReciclagem, conforme est
descrito no site oficial:
A MetaReciclagem uma rede distribuda que atua desde
2002 no desenvolvimento de aes de apropriao de
tecnologia, de maneira descentralizada e aberta. A rede
comeou em So Paulo em parceria com a ONG Agente
Cidado, como um projeto de captao e remanufatura
de computadores usados que posteriormente eram dis-
tribudos para projetos sociais de base. A MetaReciclagemsempre teve por base a desconstruo do hardware, o uso
de software livre e de licenas abertas, a ao em rede e a
busca por transformao social.9
8 Disponvel em: .9 Disponvel em: . Acesso em22/11/2011.
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Muitos dos agentes dessa rede teriam papel fundamental na
estruturao das polticas pblicas de incluso digital do governo
Lula, em especial no Programa Cultura Viva, cuja ao principal so
os Pontos de Cultura. Durante os anos de 2003 e 2004, uma rede dejovens articuladores proporia ao Ministrio da Cultura a criao dos
kits multimdia, utilizando-se de software livre, que seriam distribu-
dos aos Pontos de Cultura, organizaes da sociedade civil premiadas
por meio de edital pblico por sua reconhecida contribuio para
a cultura brasileira, em especial a cultura popular.
A participao da rede MetaReciclagem destacada por Cludio
Prado, coordenador da ao cultura digital no Ministrio da Cultura,
em entrevista no livro CulturaDigital.Br:
[...] eram vrios grupos. O Arca, que era mais ligado ao
software livre propriamente dito, o Met:Fora, j estava
trabalhando a ideia do MetaReciclagem. MetaReciclagem
reciclar dentro de uma percepo quntica e no puramente
material. Houve uma enorme confuso justamente com essa
questo de qual o limite do hardware e do software. Essascoisas se confundem de uma forma fantstica. O hardware
se submete ao software em um determinado momento,
depois inverte, e nesse ping-pong de hardware e software
foi que aconteceu a revoluo toda. (PRADO: 2009, p. 48)
A partir de 2009, com a dissoluo das aes vinculadas ao
Ministrio da Cultura e com o aprofundamento da cooperaointernacional, o grupo passa a se entender essencialmente como
uma rede aberta que promovia a desconstruo e apropriao de
tecnologias10com a finalidade de promover transformao social.
Como afirma Fonseca em seu livro Laboratrios do Ps-Digital,
a MetaReciclagem foi concebida genuinamente em rede, e imple-
10 Ibidem.
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mentada de forma distribuda e totalmente livre. (FONSECA: 2011,
p. 18). Nesse mesmo texto, o ativista faz cinco afirmaes sobre os
primrdios da Metarec, como conhecida por parte de seus agentes,
entre os quais, a compreenso do carter cultural das redes livresconectadas, a emergncia de novas formas de relacionamento social
e de inovao a partir delas. (FONSECA: 2011, p. 18)
Atualmente, a rede MetaReciclagem conta com cerca de 500
membros em sua lista aberta de discusso, e possui em funciona-
mento 10 pontos locais de articulao, conhecidos como Esporos11.
Essa dimenso afirmada de busca pela transformao social afir-
ma a perspectiva eminentemente poltica da rede, cujas decises
so tomadas internamente por meio de consensos e em encontros
autogestionados.
2. FORADOEIXOO Fora do Eixo () uma rede de coleti-
vos de produo cultural que est presente em todos os estados do
Brasil. Sua histria remonta criao, em Cuiab, do coletivo Cubo
Mgico, em 2002. Seria por meio das lideranas ligadas ao Cubo, cujagrande inovao foi a criao de uma moeda social, o Cubo Card,
para organizar a cena local de msica jovem na capital do Mato
Grosso, que o Circuito Fora do Eixo teria incio. A rede ser articula
em 2005, por meio de uma parceria entre produtores matogrossenses
e seus pares de Rio Branco (AC), Uberlndia (MG) e Londrina (PR).
Conforme registra Pablo Capil, ativista que o principal porta-voz
da rede, em entrevista no livro Produo Cultural no Brasil.
O Fora do Eixo surge como movimento social, sem natu-
reza jurdica clara, mas que j estava muito mais disposto
a debater comportamento do que propriamente a cadeia
11 Um esporo um espao autogestionado de referncia, desenvolvimentoe replicaodaMetaReciclagem., trecho retirado de .
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produtiva da msica. Era uma forma de a gente tentar visu-
alizar como aquela moeda complementar poderia interferir
no comportamento do agente produtivo. Buscamos, em
vez de produtoras, coletivos que quisessem debater comesse movimento social. O Circuito Fora do Eixo trabalhava
para organizar o terceiro setor, j entendendo que, a partir
do movimento ligado musica, a gente poderia entender
melhor o sentido antropolgico de cultura, que no fosse s
mercado, mas que fosse comportamental. O circuito surge
no meio disso. (CAPIL: 201012)
O Fora do Eixo hoje uma expresso poltico-cultural brasileira
de dimenso nacional e grande reputao. Rene, em sua articula-
o, cerca de 2 mil integrantes, que participam dos coletivos locais
e da organizao nacional13. Sua conformao como rede de produ-
o imaterial transcende inclusive o que costuma ser considerado
cultura pelos poderes pblicos e pelo mercado, centrados em geral
nas artes reconhecidas e no patrimnio edificado.
O principal ponto de avano a gente ter conseguido defi-
nitivamente sair da perspectiva de ser coletivos de msica
para a perspectiva de coletivos de tecnologia social.A galera
conseguiu deixar de entender cultura como nica e exclusi-
vamente linguagem artstica. O que a gente tenta estabelecer
uma transformao comportamental, em que cada um dos
agentes desses coletivos pode ser construtor de um alicercepara uma srie de linguagens, mas no necessariamente
dentro da arte. (CAPIL: 2010)
12 Disponvel em: .13 Estabelecendo um comparativo, o movimento poltico-cultural Centro Popular de Cultura(CPC), que teve origem no Rio de Janeiro na dcada de 1960 e at hoje considerado uma gran-de referncia desse tipo de articulao no pas no chegou a reunir 500 membros em seu auge.
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Destaque-se a afirmao de Capil sobre o circuito Fora do Eixo
como uma rede de produo de tecnologia social e tambm a n-
fase dada pelo ativista no papel de movimento poltico que se est
buscando. No toa, foi a partir das articulaes lideradas por essemesmo grupo que surgiram outras iniciativas de grande importn-
cia no cenrio cultural contemporneo, como o fortalecimento da
Associao Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin), a criao
do Partido da Cultura, que vem buscando interlocuo com a classe
poltica tradicional sobre questes de interesse das novas geraes14,
a reunio da Universidade da Cultura15, que tem elaborado mode-
los abertos de formao, e as Marchas da Liberdade16, que levaram
milhares de pessoas s ruas em vrias cidades do pas.
Em 2011, o Fora do Eixo assumiu uma ao permanente em So
Paulo, onde alugaram uma casa no bairro do Cambuci que serve
como sede operacional para o comando nacional. Nesse mesmo
ano, casas semelhantes foram criadas em Porto Alegre, Fortaleza,
Belo Horizonte, Manaus, So Carlos, ampliando ainda mais a fora
aglutinadora do circuito. Importante destacar que, conforme apon-
tam os relatrios de produtividade publicamente compartilhadospela organizao, a maior parte do valor produzido17internamente
segue sendo trocado por meio do uso de moeda social, o que faz
do Fora do Eixo pioneiro no uso da economia solidria para a arti-
culao de circuitos de produo imaterial. Nas casas Fora do Eixo
os moradores partilham todos os seus bens por meio de um caixa
coletivo, utilizado para os gastos correntes e as necessidades bsicas
de seus habitantes.No discurso de construo do circuito, Capil atribui democra-
tizao do acesso internet de alta velocidade importncia central.
Para o porta-voz, foi por meio da rede que ele pde articular as
14 Disponvel em: .15 Disponvel em: .16 Disponvel em: .17 Disponvel em: .
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primeiras aes com seus pares e por meio das novas tecnologias
que segue tecendo as associaes.
A internet to veloz quanto o que a gente est construin-do. Essa a plataforma poltica que consegue olhar para a
gente de igual para igual. A gente parceiro. Velozes iguais.
a ferramenta ideal para que essa histria pudesse acon-
tecer. No fosse isso, dificilmente conseguiramos com
tanta agilidade chegar onde chegamos, no desterritrio,
na zona de contaminao, nas trocas de tecnologia e na
inteligncia colaborativa. 18
3. TRANSPARNCIAHACKER
A comunidade Transparncia Hacker a rede mais nova em
anlise neste trabalho. Por esse fator, h pouca documentao
publicada sobre o que vem sendo desenvolvido por essa articulao,
formada eminentemente por desenvolvedores, jornalistas e
gestores pblicos interessados em promover a transparncia na
poltica. Daniela Silva, uma das principais articuladoras da rede,explica:
A Transparncia Hacker uma comunidade de hackers e ati-
vistas das novas formas de fazer poltica na rede. Isso passa
pela questo da informao pblica, dos dados abertos, das
tecnologias livres, mas tambm corresponde a uma causa
maior que tem a ver com reverter a ordem como trata-mos de assuntos coletivos, com engajar grupos que antes
no participavam da ao e do discurso pblico (por falta
de espao no debate ou por falta de interesse em formatos
muito antigos), com fazer mudana usando os recursos que
18 Afirmao feita por Capil em entrevista a Rodrigo Savazoni, publicada parcialmente nareportagem A reinveno da poltica, na revista Frum, edio 99, junho de 2011: .
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temos, simplesmente porque possvel. Eu gosto de pensar
que somos ativistas do direito de fazer. bizarro perceber a
quantidade de impossibilidades a que grupos e indivduos
so submetidos quando querem provocar mudanas. (...)Por isso os ativistas do direito de fazer ou do direito de
agir publica e coletivamente em prol do que acreditamos
ser importante so necessrios.19
O grupo ganhou notoriedade quando clonou o blog do Planalto,
que fora lanado pelo ento presidente Luiz Incio Lula da Silva
sem permitir aos usurios interao por meio de comentrios. Os
ativistas hackers criaram uma pgina semelhante oficial, a qual
reproduzia integralmente os contedos originais, com o diferencial
de permitirem interao sem qualquer moderao.
A partir da, passaram a realizar encontros para raquear20dados
pblicos e criar aplicativos polticos. Atualmente, a lista aberta de
discusso do THacker, como tambm so conhecidos, j superou a
marca de 800 participantes. Daniela Silva avalia as caractersticas
polticas especficas da rede que ajudou a articular:
Olhando pra esses dois anos de comunidade, percebo que
a THacker manifesta alguns princpios na sua prtica. No
temos carta de tica, nem regras de uso. O que quero dizer
que, de acordo com o que essas mais de 800 pessoas
praticam, d pra perceber quais so os princpios que nos
agregam na mesma rede. Para citar alguns deles: colabo-rao, liberdade, autonomia, tica hacker, abertura pra
formas novas de agir e de pensar sobre o mundo, valores
19 Entrevista de Daniela Silva, uma das principais articuladoras da comunidade Transparn-cia Hacker, a Rodrigo Savazoni, publicada no site do Festival CulturaDigital.Br20 A expresso raquear um abrasileiramento, a criao de um verbo em portugus para oato de realizar um hack(hackear). Essa expresso vem sendo adotada j h alguns anos pelosativistas da liberdade do conhecimento.
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polticos emergentes e mutveis (ou mutantes) e um certo
gostinho pela provocao. Todas essas so coisas altamente
poderosas na poltica.21
Uma das recentes iniciativas articuladas pela comunidade
o projeto Queremos Saber22, um portal voltado para o envio
de perguntas abertas para os canais de fale conosco dos rgos
pblicos. Tambm h o SACSP, que raqueou os dados do servio de
atendimento ao cidado da prefeitura de So Paulo, e o Deputado
Analytics23, que utiliza dados pblicos para criar um ranking de
comportamento dos congressistas. Essas iniciativas so construdas
com grande celeridade pelos ativistas do Thacker, na perspectiva
do faa voc mesmo. Essa forma de agir uma das caractersticas
centrais dessa rede, mas no a nica, como detalha Daniela Silva:
Falando sobre referncias e sobre nossas interaes com
movimentos contemporneos, acho que vale reparar que
nos inspiramos muito na forma independente e ao mesmo
tempo coesa como funcionam as comunidades de softwarelivre, mas no nos identificamos quase em nada com o jeito
engessado e restritivo dos movimentos sociais tradicionais.
Muitos de ns militam em diversos outros grupos ligados
liberdade a abertura cultura livre, recursos educacionais
abertos, software livre, por exemplo, o que faz absoluto
sentido, uma ligao orgnica e natural. 24
A ativista, durante a entrevista, tambm destacou o fato de que
as redes articulam processos bottom up25, em que a capacidade de
21 Idem.22 Disponvel em: .23 Disponvel em: .24 Ibidem.25 De baixo para cima.
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criar e inventar novos caminhos importa mais do que a reproduo
de procedimentos consagrados.
Ningum sozinho teria sido criativo suficiente para criar aslan houses. Nenhum governo, movimento social ou ONG
teria feito um projeto de empreendedorismo baseado em
pouqussimos recursos prprios, sevirismo, experincia e
marketologia local. A emergncia dessa ideia garante que
a gente continue vislumbrando os potenciais de transfor-
mao da rede e ainda por cima implementada de forma
autnoma, por pessoas que esto na periferia da poltica e da
sociedade, colocando seus pares pra dentro dos processos
de comunicao. um processo revolucionrio no apenas
no contedo, mas no formato e na vocao.
4. ENRAIZADOSO Movimento Enraizados teve incio em 2000, em Nova Iguau, Rio
de Janeiro, por iniciativa do rapper Dudu de Morro Agudo (DMA), que
tambm programador de computador. poca, como ele relata emseu livro Enraizados os hbridos glocais26, uma narrativa em primeira
pessoa do processo de construo da rede, DMA queria entrar em
contato com outros jovens das periferias que tivessem interesse em
dialogar sobre a cultura hip hop. Valendo-se de um velho computa-
dor, conhecimentos bsicos de linguagem web, e disposio acima
da mdia, ele colocou no ar um site de rede social ainda que sem
todos os recursos que viriam a consagrar esse tipo de mdia. Com essetrabalho, conseguiu contatar pessoas do Brasil e do exterior e forjar o
embrio de uma ampla rede de mobilizao de jovens das periferias.
No artigo Hbrido glocal, ciberativismo e tecnologias da infor-