a espuma divina

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    A ESPUMA DIVINA

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABAreitor

    RMULO SOARES POLARIvice-reitora

    MARIA YARA CAMPOS MATOS

    EDITORA UNIVERSITRIAdiretorJOS LUIZ DA SILVA

    vice-diretorJOS AUGUSTO DOS SANTOS FILHO

    supervisor de editoraoALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS JUNIOR

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    Joo Azevedo Fernandes

    A ESPUMA DIVINA

    SOBRIEDADE E EMBRIAGUEZ NA

    EUROPA ANTIGA E MEDIEVAL

    Editora Universitria

    Joo Pessoa

    2010

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    CAPA E EDITORAO: CLEMENTE RICARDO SILVA

    F363e Fernandes, Joo Azevedo.A espuma divina: sobriedade e embriaguez na europa antiga

    e medieval / Joo Azevedo Fernandes. - Joo Pessoa: EditoraUniversitria, 2010.

    128p.ISBN:1. Alcoolismo. 2. Alcoolismo - europeus - ndios brasileiros.

    3. Relaes etlicas - europeus - ndios brasileiros.4. Alcoolismo - problema social.

    UFPB/BC CDU: 178.1

    Direitos desta edio reservados :EDITORA UNIVERSITRIA/UFPBCaixa Postal 5081 - Cidade Universitria - Joo Pessoa - Paraba -BrasilCEP: 58.051-970www.editora-UFPB.com.br

    Impresso no BrasilPrinted in Brazil

    Foi feito depsito legal

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    Para Serioja e Paulo

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    SUMRIO

    Apresentao ......................................................................................09

    Do problema do lcool ao lcool como problema ............................. 11

    Bebida e choque de culturas no nascimento da Europa ..................... 21

    A cannabis e o complexo da bebida ................................................... 27

    Os gregos e o presente de Dioniso ..................................................... 41

    Roma e a democratizao do vinho ................................................... 59

    Vinho e trocas culturais no m do mundo antigo .............................. 75

    A Idade Mdia e a luta pela moderao ............................................. 97

    Bibliograa ......................................................................................119

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    APRESENTAO

    Este livro uma parte da pesquisa que z para minha tese dedoutoramento, na qual estudei as relaes etlicas entre os europeus eos ndios no Brasil, o papel das bebidas fermentadas nas sociedades na-tivas, e a forma como os regimes etlicos indgenas foram usados paraa construo de uma dicotomia civilizado / selvagem, na qual o com-portamento civilizado era identicado com a moderao no beber,enquanto o apreo dos nativos por suas festas, as cauinagens, era vistocomo a prpria representao de um comportamento selvagem, quandono pecaminoso.

    Era necessrio demonstrar que esta dicotomia to bem expres-sa nas cartas dos missionrios jesutas - estava fundamentada em umadistino profunda, que comeou a ser desenvolvida na antiguidade eu-ropia, e que sofreu enorme incremento com o surgimento do Cristia-nismo. Ao criticar as bebedeiras dos nativos, os jesutas repetiam o queos gregos armaram sobre os celtas, ou o que os romanos lamentaramnos germnicos. Contudo, o que era antes uma crtica comportamental

    tornou-se, com o Cristianismo, uma condenao moral: a embriaguezconstante e deliberada era vista como um pecado a ser combatido.Ao mesmo tempo em que esta crtica se construa tambm se de-

    senvolvia a tradio que trata a embriaguez como uma possibilidadede expanso da conscincia, e que conferia s bebidas alcolicas umaimportante dimenso religiosa, importncia que continua a existir, deforma esmaecida, no papel do vinho nas cerimnias crists. Em seus

    prprios termos, os nativos no Brasil repetiam, ao se empanturrarem

    com o cauim, aquilo que as mnades gregas ou os berserks nrdicostambm zeram: fugir, ao menos por algumas horas, simples con-dio humana, e alcanar o enthsiasms, trazendo a experincia domundo espiritual para dentro de si.

    Desta forma, este trabalho no se pretende exaustivo, mas um inciode percurso, na direo de uma compreenso maior da experincia humanacom a alterao da conscincia, e com a forma pela qual esta experincia seexpressa nas relaes sociais e no pensamento religioso. Sendo parte de mi-

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    nha tese, no poderia deixar de agradecer s crticas e sugestes feitas pelosmembros de minha banca de argio: meu orientador, Ronaldo Vainfas,e os professores John M. Monteiro, Eduardo Viveiros de Castro, RonaldRaminelli e Regina Celestino.

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    DO PROBLEMA DO LCOOLAO LCOOL COMO PROBLEMA

    As bebidas alcolicas ocupam uma posio bastante peculiar nassociedades ocidentais contemporneas. Por um lado, seu consumo geralmente considerado como um grave problema social, e uma das

    principais fontes de patologias individuais, ao lado do tabaco, outropsicoativo legal. Ao mesmo tempo, temos toda uma indstria, legal ebilionria, de produo e comrcio de bebidas alcolicas, e uma sriede incentivos para consumi-las.

    Este problemtico lugar cultural do lcool etlico em nosso mun-do marcou profundamente os estudos acadmicos a respeito de seu usosocial. Os movimentos de temperana que se desenvolveram nos Es-tados Unidos, e outros pases, a partir de princpios do sculo XIX,inuenciaram bastante a academia, tornando o estudo das bebidas alco-licas uma rea preferencialmente ocupada por mdicos, especialistasem sade pblica, e psiclogos sociais.

    Com isto, se criou esta categoria coletiva, o lcool, que englobaqualquer preparado que contenha o etanol, o que profundamente enga-noso1. As cervejas de mandioca dos nativos brasileiros so muito diferen-tes, em composio qumica e formas de utilizao, do vinho de uvas doVelho Mundo, e isto para no falar nas poderosas bebidas destiladas, quesomente se tornaram de uso corrente a partir da era moderna.

    De posse desta categoria duvidosa, os estudiosos passaram a es-tudar o lcool como uma substncia perigosa, que leva as pessoas adesenvolverem uma doena aditiva, o alcoolismo. Inmeras crticas

    podem ser feitas ao uso destas categorias supostamente universais eatemporais, e elas foram feitas de forma bastante incisiva2. O mais pro-

    1 Michael Dietler, Alcohol: Anthropological/Archaeological Perspectives, AnnualReview of Anthropology 35 (2006):231.2 Mikal J. Aasved, Alcohol, drinking and intoxication in preindustrial society: Theore-tical, nutritional, and religious considerations (Tese de Doutoramento, University of Ca-lifornia, Santa Barbara, 1988), 63-4; Stanton Peele, Addiction as a Cultural Concept,

    Annals of the New York Academy of Sciences 602 (1990): 205-20.

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    blemtico, do ponto de vista do historiador, que esta viso extrema-mente limitada das prticas e prazeres etlicos foi usada para estudarsociedades e culturas muito diferentes no espao e no tempo.

    Para ns, beber uma atividade recreativa, e as bebidas so com-pradas em supermercados, acondicionadas em garrafas e latas. Cerve-

    jas ltradas e aditivadas, vinhos microoxigenados e bebidas tri-destila-das representam para ns uma experincia etlica inteiramente diversadaquela de sociedades tradicionais, para as quais as bebidas (somentefermentadas) so uma parte crucial da dieta, e o ato de ingerir lcool,e mesmo de se embriagar, um componente central de todas as ativi-dades rituais, econmicas e polticas. Tratar tudo isso como lcoolesconde, por exemplo, a extraordinria revoluo tcnica e cultural querepresentou a inveno das bebidas destiladas, nas quais o poder psi-

    coativo do etanol se desenvolveu ao mximo, o que transformou parasempre, talvez para pior, a nossa relao com as bebidas3.

    Dentro desta perspectiva atemporal, Donald Horton props, hmeio sculo, que as sociedades pr-industriais viviam em um perma-nente estado de ansiedade, privao e medo, o que os teria levado inveno de mecanismos de reduo de ansiedade, como as bebidas al-colicas e outras substncias psicoativas4. Este discurso patologizante,e extremamente inuente, contribuiu para obliterar um dos fatos mais

    estabelecidos da pesquisa antropolgica sobre as bebidas: o reconheci-mento dos determinantes culturais, e no biolgicos ou mdicos, de suautilizao. Como armou Dwight B. Heath a este respeito:

    A associao do ato de beber com qualquer tipo especco de proble-ma fsicos, econmicos, psicolgicos, de relacionamento social ououtros rara entre culturas atravs da histria e no mundo contempo-rneo. () enquanto a maioria dos antroplogos que estudam o lcooltende a se concentrar nas crenas e no comportamento, concedendo

    ateno tanto aos padres normais quanto aos desviantes, muitos

    3 Terence McKeenna, O Po dos Deuses: Em busca da rvore do conhecimento origi-nal(Porto: Via Optima, 2000), 117-27.4 Para uma crtica denitiva teoria da ansiedade ver Aasved, Alcohol, drinkingand intoxication in preindustrial society, 247-64; cf. Stephen H. Buhner, Sacred and

    Herbal Healing Beers: The Secrets of Ancient Fermentation (Boulder: Brewers Pu-blications, 1998), 10-14.

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    outros tendem a focalizar o alcoolismo (denido de vrias formas), oque implica que o hbito de beber est invariavelmente associado comalgum tipo ou tipos de problemas5.

    Esta identicao automtica entre as bebidas alcolicas e pro-blemas sociais e de sade padece de vrias decincias. Ao lado daperspectiva moralizadora implcita, apresenta-se tambm um vis et-nocntrico e anacrnico, no qual os povos do passado, ou os primitivoscontemporneos, justamente por fazer das bebidas alcolicas um traoconstante (e nada patolgico) de seu cotidiano, aparecem como gurasfrgeis, imersos em uma ansiedade permanente, somente supervel poruma embriaguez disfuncional. A antropologia contempornea, cada vezmais, vem expondo as insucincias desta viso patologizante, perce-

    bendo nas bebidas (assim como fazem os povos nativos) uma forma de

    alimento, de cultura material corporicada, especialmente valorizadapor suas propriedades psicoativas6.

    Cada vez mais o interesse se dirige ao uso normal das bebidas,enquanto atividade do cotidiano, como base econmica e pr-requisito parao poder poltico, e como veculo para a expresso ritual e religiosa. Busca-se determinar, para cada sociedade ou perodo especco, a constituiode seus regimes etlicos, isto , de um conjunto de prticas, materiais ementais, que organizam e conferem sentidos sociais a um ato que, se olha-

    do de forma meramente neurolgica, representa apenas a ingesto de umasubstncia alteradora da conscincia. Tal ato, contudo, jamais deixa de estarinscrito em determinadas conguraes culturais, que podem, inclusive,modicar os efeitos neurolgicos da ingesto do lcool7. De fato, sabemoshoje que as sociedades humanas so extremamente variadas no que concer-ne ao lugar ocupado pelas bebidas alcolicas em seus contextos culturais,revelando o carter eminentemente histrico de suas experincias etlicas.

    5 Dwight B. Heath, Cultural studies on drinking: denitional problems, in Cultural Stu-dies on Drinking and Drinking Problems. Report on a Conference, eds. Pirjo Paakkanen ePekka Sulkunen (Social Research Institute of Alcohol Studies, Helsinki, 1987), 15.6 Dietler, Alcohol: Anthropological/Archaeological Perspectives, 230-2.7 David G. Mandelbaum, Alcohol and Culture, Current Anthropology 6, n 3 (1965): 281-293; Dwight B. Heath, Anthropology and Alcohol Studies: Current Issues,Annual Reviewof Anthropology 16 (1987): 99-120; Stanton Peele e Archie Brodsky, Alcohol and Society:how culture inuences the way people drink, The Stanton Peele Addiction Website (Julho,1996), http://www.peele.net/lib/sociocul.html (Acessado em 04/02/2009).

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    nesta perspectiva que este livro se insere. Quero compreender oato de beber, nas sociedades europias antigas e medievais, como algosocialmente construdo, e acima da simples satisfao de necessidadesde subsistncia. Como qualquer alimento e as bebidas eram alimentosantes da inveno dos destilados a produo de bebidas alcolicas

    representa um ato essencialmente antropognico, no qual um alimentobruto, como o gro do trigo, por exemplo, pode ser transformado emuma massa, em uma papa, em um po ou em uma cerveja8.

    Ao contrrio de outros alimentos, porm, as bebidas alcolicaspossuem uma caracterstica peculiar: elas alteram a conscincia, e esta(sempre socialmente construda) alterao pode ser usada para a ex-

    presso religiosa, para a produo econmica ou para o jogo poltico.Por outro lado, esta caracterstica tambm faz das bebidas um objeto

    privilegiado do controle social. Interdies as mais variadas j foramdirigidas ao lcool, seja a proibio pura e simples seja a construo de

    parmetros de utilizao que diferenciam o beber correto do uso sel-vagem ou desviado da alterao etlica. Estes usos e interdies com-

    pem uma parcela importante do processo de construo de identidadessociais e tnicas, como veremos no decorrer deste trabalho.

    Desde a antiguidade mais remota as sociedades buscam controlar aliberdade comportamental possibilitada pelos inebriantes etlicos. Na Me-

    sopotmia, por exemplo, era exigido que as sacerdotisas se abstivessem doconsumo do lcool, sob pena de serem queimadas9 e era esperado, mesmoem relao s pessoas comuns, que os excessos no beber fossem evitados10.Alguns textos egpcios tambm mostram que, apesar da grande popularida-de das bebidas alcolicas, no se via com bons olhos o pendor exagerado

    pela embriaguez. A Sabedoria de Ani, conjunto de mximas e preceitos decunho moralizante, elaborado durante o perodo da XVIII dinastia (1580-1314 a.C.), criticava o consumo desbragado da cerveja:

    8 Dietler, Alcohol: Anthropological/Archaeological Perspectives, 231.9 Se uma (sacerdotisa) nadtum ou ugbabtum, que no mora em um convento, abriuuma taberna ou entrou na taberna para (beber) cerveja, queimaro essa mulher, Cdi-go de Hammurabi, 110, in Emanuel Bouzon, O Cdigo de Hammurabi (Petrpolis:Vozes, 1986), 126.10 Francis Joanns, A funo social do banquete nas primeiras civilizaes, in His-tria da Alimentao, dir. Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari (So Paulo: Es-tao Liberdade, 1998), 67.

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    No te permitas beber cervejaPois quando falares, ento

    O contrrio do que pensas sai de tua boca.Ignoras mesmo o que acabas de dizer.

    Cais, pois tuas pernas fraquejam diante de ti!Ningum, pois, toma tua mo

    E os que bebiam contigoLevantam-se e dizem:

    Que se afaste esse bbado!Se algum vem te procurar

    Para pedir um conselho,E se te encontrarem cado por terra,

    s como uma miservel criana.11

    A Bblia apresenta vrios exemplos de crtica embriaguez, comono primeiro livro de Samuel. Quando Ana pede ao Senhor que lhe con-ceda um lho, o faz sem pronunciar palavras, o que leva crtica equi-vocada, mas bastante sintomtica para ns do sacerdote Eli:

    Demorando-se ela no orar perante o Senhor, passou Eli a observar-lhe omovimento dos lbios, porquanto Ana s no corao falava; seus lbiosse moviam, porm no se lhe ouvia voz nenhuma; por isso Eli a teve porembriagada, e lhe disse:At quando estars tu embriagada? Aparta de

    ti este vinho. Porm Ana respondeu: No, senhor meu, eu sou mulheratribulada de esprito; no bebi nem vinho nem bebida forte; pormvenho derramando a minha alma perante o Senhor12.

    Tambm os gregos esperavam que os cidados moderassem seuconsumo do vinho. No se tratava, claro, de uma crtica bebida em si:o vinho, juntamente com os cereais, representava para a cultura helni-ca a marca distintiva do ser humano, enquanto presentes das divindadescivilizadoras Dioniso e Demter. O vinho, que entre os gregos era poucousado nas refeies, possua uma aura sacra, sendo a embriaguez con-siderada como um meio de contato com o mundo espiritual e com os

    11ApudChristiane D. Noblecourt, A Mulher no Tempo dos Faras (Campinas: Pa-pirus, 1994), 328; ver tambm Reay Tannahill,Food in History (London: PenguinBooks, 1988), 49.12 Samuel (I), 12-15.

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    deuses. Contudo pelo menos no que diz respeito aos hbitos etlicos daelite - a euphrosyne (alegria) motivada pelo vinho deveria ser limitada pe-las necessidades da moderao, a qual permitiria a discusso construtivadentro dosymposion, o banquete reservado ao consumo da bebida.

    Entre estas regras estava a obrigao de se misturar o vinho ea gua: apenas excepcionalmente bebiam os gregos o vinho puro, atoque, para eles, era um apangio dos povos brbaros. Para os gregos, oato de inventar a bebida no era o suciente para determinar o grau decivilizao de uma sociedade: anal, os brbaros tambm tinham suas

    prprias bebidas alcolicas. Era tambm necessrio que os homens pra-ticassem o autocontrole, e que soubessem a hora de parar de beber, deforma que fosse o homem o senhor do vinho, e no o contrrio13.

    Alceu de Mitilene, poeta lrico do sculo VII a.C., embora apai-xonado pelo vinho e a embriaguez14, no se esquecia da obrigao dediluir, e assim controlar, o vinho e suas conseqncias:

    Bebamos! Porque aguardamos as lanternas?J s nos resta um palmo de diaTraz as grandes taas. O vinho

    que dissipa as aies doou-o aos homenso divino lho de Smele. Enche as taas

    Uma parte para duas de gua at transbordarem

    E que uma taa empurre a outra15

    Por volta de 375 a.C., Eubulo resumiu bem o pensamento grego arespeito da forma como deveria se portar o bebedor civilizado:

    Trs taas preparo para os comedidos: uma para a sade, que esvaziamprimeiro; a segunda para o amor e o prazer, a terceira para o sono. De-

    13 James Davidson, Courtesans and Fishcakes: The Consuming Passions of Classi-cal Athens (New York, St. Martins Press, 1998), 40; Massimo Montanari, Sistemasalimentares e modelos de civilizao, in Flandrin e Montanari,Histria da Alimen-tao, 110.14 Bebe comigo at carmos brios, Melanipo. Pensars, por acaso, que uma veztransposto o caudaloso Aqueronte tornars a ver a luz do sol?. Alceu de Mitilene,fragmento 9, in O Vinho e as Rosas: antologia de poemas sobre a embriaguez, org.Jorge S. Braga (Lisboa: Assrio & Alvim, 1995), 47.15 Ibid. (fragmento 3), 44.

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    pois de tomar esta ltima taa, os convidados prudentes vo para casa.A quarta taa j no nossa, mas pertence violncia; a quinta, aotumulto; a sexta, folia; a stima, aos olhos roxos; a oitava, ao policial;a nona, blis; e a dcima, loucura16.

    claro que muitos gregos bebiam bastante, ao ponto de seremridicularizados como bbados contumazes (caso de Alcibades), e tam-bm verdade que o mdico mais famoso da Atenas do sculo IV a.C.,Mnesiteus, dizia que beber em excesso fazia bem sade17. No obstan-te, a embriaguez contumaz era considerada por quase todos como umafraqueza, que tornava o homem menos capaz de cumprir seus deverescomo cidado, como participar da vida poltica, fazer lhos legtimos

    para a cidade e lutar nas guerras. Sphrosyn(temperana, moderao,

    autocontrole) era a virtude cardinal do homem grego clssico.As infraes, reais ou mticas, ao princpio da moderao no

    apenas lanavam os homens ao nvel dos povos selvagens como tam-bm eram, muitas vezes, punidas pelos deuses ou causadoras do caossocial, como no caso da guerra entre os centauros e os lpitas, motivada

    por um episdio de embriaguez18. A nobreza macednica, que acaboupor dominar a Grcia a partir do sculo IV a.C., era um freqente alvoda averso helnica embriaguez compulsiva e desbragada. E os ma-

    cednicos davam todos os motivos para isso, j que a busca da embria-guez era uma verdadeira instituio entre suas elites, a comear peloconsumo do akratos, o vinho no diludo19.

    Teopompo chamava Filipe da Macednia dephilopotes, ou be-berro, e quando os panegiristas squino e Filcrates elogiavam aque-le rei como timo orador, belssimo homem e formidvel bebedor, olsofo Demstenes - no contexto de seus acerbos discursos contra orei brbaro, asFilpicas troava destes elogios, denindo o primei-

    16ApudHugh Johnson,A Histria do Vinho (So Paulo: Cia. das Letras, 1999), 52.17 Davidson, Courtesans and Fishcakes, 39.18 Massimo Vetta, A cultura dosymposion in Flandrin e Montanari (dir.),Histriada Alimentao, 173-5.19 J. A. Liappas et al., Alexander the Greats relationship with alcohol,Addiction 98(2003): 564-5.

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    ro como destinado a um sosta, o segundo a uma mulher, e o terceiro auma esponja; nenhum a um rei.20

    J para os romanos - que esmaeceram o carter sacro do vinho eque o consideravam como parte integrante das refeies e da vida quo-tidiana - a embriaguez era vista quase que como uma instituio cvica.As reunies nas tabernas ou nos collegia associaes privadas quereuniam indivduos de vrios estratos sociais, e que podiam comparti-lhar uma mesma atividade prossional ou adorar a um deus especco

    muitas vezes se transformavam em bebedeiras que, com muita facili-dade, levavam a discusses e motins polticos. A grande popularidadedos collegia dedicados ao culto do deus Baco, cujo objetivo principalera beber farta, demonstra a importncia social do ato de se embriagar,

    para o qual tambm contribua o evergetismo dos muito ricos, sempredispostos a fornecer aos plebeus as oportunidades para a prtica dos

    prazeres etlicos21.Isto no signica que no existissem, em Roma, interdies em-

    briaguez. Assim como entre os gregos, o vinho dos romanos deveria,idealmente, ser misturado gua: para eles, o vinho no diludo erasemelhante a um ser vivo e perigoso, contra o qual o homem civilizadodeveria se bater.22 Havia restries ao consumo por parte de mulheres

    e crianas, e quando da grande represso aos cultos bquicos, ocorridaem 186 a.C. (quando cerca de sete mil pessoas foram executadas), ocnsul Spurius Postumus armou, a respeito das cerimnias dos adora-dores de Baco, que (...) quando o vinho inama suas mentes, e a noitee a promiscuidade... fazem desaparecer qualquer sentimento de mods-tia, toda forma de corrupo comea a ser praticada.23

    No obstante, pode-se armar que as crticas embriaguez entreos romanos caram limitadas s peroraes dos Cates mais empeder-

    20 Massimo Montanari, A Fome e a Abundncia:Histria da Alimentao na Europa(Bauru: Edusc, 2003), 36.21 Paul Veyne, O Imprio Romano, inHistria da Vida Privada (v. I: Do Imprio

    Romano ao ano mil), org. Paul Veyne (So Paulo: Cia. das Letras, 1995), 184-189.22 Florence Dupont, Gramtica da alimentao e das refeies romanas, in Flandrine Montanari,Histria da Alimentao, 209.23ApudEscohotado,A Brief History of Drugs, 21.

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    nidos e dos lsofos esticos mais otimistas. Durante os sculos em quea civilizao romana oresceu, a embriaguez foi sempre considerada,especialmente entre os plebeus, como um direito, como uma ammoe-nitas que a cidade deveria garantir aos cidados e at mesmo aos es-cravos: dizia o escritor Horcio, no sculo I a.C., a um seu escravo quelamentava ter que viver no campo, cuidando de sua villa, que eu e tuno apreciamos as mesmas coisas (...) agora aspiras Cidade, e aos jo-gos, e aos banhos, agora que s rendeiro (...) que no tens ao teu alcanceuma taberna para te fornecer de vinho, nem uma jovem complacenteque toque auta at cares redondo no cho.24

    Deve-se aguardar o surgimento do cristianismo para se assistir construo de um verdadeiro discurso antietlico. Durante a Antiguida-de Tardia e a Idade Mdia se ver uma tenso permanente entre o lugarcentral ocupado na cultura e na vida quotidiana por bebidas como ovinho, a cerveja e o hidromel, e a tendncia dos Padres da Igreja e dosfundadores do monasticismo a abominar o uso profano do lcool. O as-cetismo do cristianismo dos primeiros sculos equiparou, muitas vezes,a embriaguez a um pecado: Paulo de Tarso, no sculo I d.C., colocavaas bebedices e glutonarias como obras da carne, que afastavam ohomem do Esprito e cuja concupiscncia jamais deveria ser satisfei-

    ta.25

    Dirigindo-se aos romanos, o apstolo advertia-os de que deveriamandar dignamente, como em pleno dia, no em orgias e bebedices.26Por seu turno, Agostinho de Hipona considerava, em princpios

    do sculo V d.C., que os alimentos e bebidas deveriam ser considera-dos como remdios (em uma comparao que marcar profundamenteo pensamento cristo acerca do lcool), e consumidos unicamente namedida das necessidades mais bsicas: lamentava o telogo africanono poder, tal como havia feito com o vcio da carne, abandonar por

    completo o vinho, pois assim morreria de sede.27

    24 Pierre Grimal,A Civilizao Romana (Lisboa: Ed. 70, 1988), 231.25 Glatas, 5: 16-21.26 Romanos, 13: 13.27ApudSonia C. de Mancera,El fraile, el ndio y el pulque: evangelizacin y embria-

    guez en la Nueva Espaa - 1523-1548 (Mxico [D. F.], Fondo de Cultura Econmica,1991), 60.

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    O monasticismo medieval, preocupado com a criao de novasformas de disciplina pessoal, entre elas a renncia sexualidade, tam-

    bm construiu um paradigma de averso embriaguez. Os principaisformuladores desta forma de religiosidade, homens como Bento de

    Nrcia (480-547), Gregrio Magno (540-604) e Bernardo de Clairvaux(1109-1153), viam no comer e beber sem medida uma rendio ao cor-

    po, e parte sensual e animal da pessoa, o que levava ao desprezodos cuidados da alma. A morticao do corpo, e a renncia a prazerescomo a embriaguez, representavam o nico acesso possvel unio daalma com Deus, esta sim a embriaguez espiritual total e perfeita: estaexperincia, buscada por todos os monges e lograda por poucos, s po-deria se dar negando a outra embriaguez, a da bebedeira, pois neste casoa perda do autocontrole provocava o triunfo da sensualidade.28

    Entre um plo e outro, entre a busca da embriaguez nossymposiagregos ou trinkfestceltas, e a condenao crist aos excessos etlicos, as

    bebidas assumiram inmeros papis durante o desenvolvimento histricoda Europa ocidental. O que me interessar mais de perto neste livro o

    papel das bebidas como marcadores diacrticos, como signos de identida-de e diferena. Seja como meio de diferenciao das elites, ou como sm-

    bolos de diferena entre civilizados e brbaros, as bebidas jamais eram

    objetos neutros ou corriqueiros. Neste trajeto, analisarei o signicado dasbebidas nas tradies indo-europias; o papel econmico e simblico dovinho nas civilizaes clssicas; e o grande choque de culturas etlicasque se desenrolou a partir dos escombros do Imprio Romano.

    28 Ibid., 66.

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    BEBIDA E CHOQUE DE CULTURASNO NASCIMENTO DA EUROPA

    De onde vem, realmente, a bebida que embriaga?

    Quem far para mim a cerveja de cevada,

    quem tornar o hidromel abundantepara o povo da Terra do Norte

    que vir para as bodas de minha lha,

    que vir beber em suas npcias?

    No compreendo a fermentao do cereal,

    nem a origem da cerveja.

    Nunca aprendi o seu segredo.29

    Ao contrrio do que acontece em outros contextos histricos e

    culturais, como o do Brasil Colonial30, possumos uma grande quanti-dade de informaes a respeito dos antigos regimes etlicos do VelhoMundo, em especial dos europeus. possvel, dentro de certos limites,escrever uma verdadeira histria destes regimes, de sua constituioe de suas transformaes tcnicas, e dos diferentes papis culturais esociais ocupados pelas bebidas alcolicas nas sociedades que se for-maram no continente europeu. Isto permite que possamos compreendero modo como aquelas pessoas inseriam os inebriantes etlicos em seu

    mundo material e espiritual, e como os diferentes grupos que constitu-am aquelas sociedades construram paradigmas tambm distintos deapreenso das bebidas alcolicas.

    As bebidas ocupavam posies sociais e culturais muito variadasdentro das sociedades europias, variaes que marcaram profunda-mente seus atos e discursos com relao ao ato de beber. Tais diferen-as, contudo, no se constituram naturalmente, mas foram plasma-das a partir das distintas circunstncias ecolgicas, tnicas e histricas

    que marcaram a formao das sociedades europias modernas. Estudar,

    29 Mito de origem da fermentao, no Kalevala, pico nlands (c. 1000 d.C.), inBuhner, Sacred and Herbal Healing Beers, 148.30 Tema de minha tese de doutoramento: Joo A. Fernandes, Selvagens Bebedeiras:lcool, Embriaguez e Contatos Culturais no Brasil Colonial (Sculos XVI-XVII),(Tese de Doutoramento, Universidade Federal Fluminense, 2004).

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    em profundidade, este desenvolvimento desde a pr-histria seria umatarefa cujo escopo estaria muito alm dos objetivos deste livro.

    No obstante, impossvel deixar de perceber que as razes desteprocesso de contato cultural complexo e contraditrio, em que os sis-temas culturais do vinho e da cerveja (e tambm do hidromel) se de-frontaram - com conseqncias notveis para a constituio cultural damodernidade ocidental - se inscrevem em uma longue dure que deveser explorada em alguma medida.

    A oposio cultural entre o vinho mediterrnico e a cerveja nrdi-ca, o civilizado e o brbaro, entre o beber moderadamente e a embria-guez desmedida, serviu como base fundamental para a elaborao demodelos de comportamento e para a construo de diferenciaes cul-turais entre os principais conjuntos tnicos da Europa ocidental. Comoarmou Massimo Montanari, a respeito da oposio alimentar (e etli-ca, vale dizer) entre o Mediterrneo e a Europa central e nrdica:

    Dentre todos os aspectos que denem a cultura alimentar do que deno-minamos mundo clssico, um dos mais signicativos a vontade de oapresentar como o domnio da civilizao, como uma zona privilegiadae protegida, em oposio ao universo desconhecido da barbrie. O re-gime alimentar tem um papel essencial nesse processo de denio de

    um modelo de vida civilizado (modelo j por si profundamente ligado noo de cidade); e pode-se dizer que ele funda a prpria diferena noque diz respeito ao no-civilizado e ao no-citadino (...).31

    importante assinalar que estas diferenas se inscrevem profunda-mente na histria, e mesmo na pr-histria, do continente europeu. Du-rante milhares de anos os dois mundos etlicos se desenvolvero de forma

    paralela, seguiro caminhos relativamente distintos, fundados especial-mente nas diferenas ecolgicas que impediro a expanso da vinha - edas civilizaes que a cultivavam - em direo s frias regies do centroe do norte da Europa, cujos povos construram seus regimes etlicos comos materiais que lhes eram disponveis, os mis e cereais fermentados.

    Seria um engano, contudo, ver estas diferenas entre mediterr-nicos (basicamente, gregos e latinos) e nrdicos (os brbaros celtas

    31 Montanari, Sistemas Alimentares, 108.

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    e germnicos) como se constitussem compartimentos estanques e in-comunicveis. Os gregos e romanos que nos legaram suas descriesacerca do comportamento etlico dos povos do norte viram estes modosde beber, aparentemente to diferentes dos seus prprios, como umaconrmao de seus pressupostos acerca do que seria um comporta-

    mento civilizado. Como diz Massimo Montanari, para os antigos osregimes etlicos fundavam a prpria diferena no que diz respeito aono-civilizado e ao no-citadino (...).

    Ao observador contemporneo, contudo, tais diferenas parecemser menos radicais. preciso lembrar que todos estes conjuntos tnicos,que construram a Europa que conhecemos hoje, faziam parte comalgumas raras excees - de um mesmo tronco lingstico, o indo-euro-

    peu, compartilhando, para alm das prprias origens lingsticas, uma

    gramtica cultural profunda, mesmo que os escritores da antiguidadeno tivessem conscincia disso.Esta histria comum se reete tambm na maneira como medi-

    terrnicos e nrdicos exercitavam o ato de beber e de se embriagar.Apesar de todas as diferenas, podemos discernir um elemento, a noode bebida sagrada, que se expressou de distintas formas ao sabor dascircunstncias ecolgicas e culturais que afetaram aquelas sociedadesdurante milhares de anos.

    claro que falar em uma herana cultural indo-europia semprealgo extremamente problemtico. A semelhana entre lnguas de regiesto distantes quanto a Irlanda e a ndia revela claramente a existncia deuma lngua ancestral comum, o Proto-Indo-Europeu (PIE). Para alm destaconstatao, tudo ca bem mais nebuloso: o paradigma mais tradicional, eainda predominante, relaciona a emergncia do PIE com invases de povosde cavaleiros e pastores belicosos, vindos, no quarto milnio a.C., das es-tepes da Ucrnia, onde se desenvolveu a chamada cultura Kurgan. A partirde uma primeira onda, que se estabeleceu no sudeste europeu, os proto-

    indo-europeus se expandiram pelo interior da Europa, formando a chamadacultura do Machado de Batalha, no terceiro milnio a.C.32

    Outra hiptese relaciona esta emergncia a um evento mais an-tigo. Para Colin Renfrew, no existe evidncia de mudanas abruptas,

    32 James P. Mallory, The homelands of the Indo-Europeans, in Archaeology andLanguage: Artifacts, Language and Texts, ed. Roger Blench e Matthew Spriggs

    (Londres: Routledge, 1999), 93-121.

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    que comprovem a teoria da invaso de nmades das estepes. Os an-cestrais dos indo-europeus seriam, na verdade, os introdutores das in-venes neolticas na Europa, e teriam vindo da Anatlia a partir dostimo milnio a.C.33 Mais recentemente, Luca Cavalli-Sforza propsuma variante que combina as duas teorias principais: a partir de origensanatlicas no stimo milnio, os proto-indo-europeus teriam migrado,atravs do Cucaso, at as estepes da Eursia. A partir dali, vrias ondasmigratrias levaram os falantes de PIE para o oeste, na Europa e para oleste, na sia Central, Ir e ndia.34

    No possvel discutir este tema com a profundidade necessria.Ambos os paradigmas possuem pontos favorveis e desfavorveis, ao

    ponto de J. P. Mallory, que apia a hiptese dos kurgans, armar queesta apenas a hiptese menos ruim.35 Alguns autores rejeitam asinvases ou migraes como explicaes exclusivas, preferindo falarem uma continuidade entre as populaes europias atuais e aquelas doPaleoltico36, enquanto outros propem uma kurganizao cumulati-va de populaes nativas.37

    Como se v, ao falarmos de conjuntos culturais e tnicos deorigem indo-europia estamos, tambm, tratando de vrios processoscomplexos de mudana que envolvem migraes, conquistas e difuso

    cultural. Contudo, do ponto de vista da histria das substncias essen-ciais, parece claro que existe uma diferena profunda entre as socieda-des que apresentam aqueles traos - o papel social e ritual do cavalo edo carro de guerra, elites guerreiras, banquetes e proezas etlicas comosmbolos de prestgio, e a tripartio funcional entre sacerdotes, guer-reiros e camponeses - que associamos aos indo-europeus, e as socieda-

    33 Colin Renfrew, At the Edge of Knowability: Towards a Prehistory of Languages,Cambridge Archaeological Journal10, n 1 (2000): 734.34 Luigi L Cavalli-Sforza, Genes, Povos e Lnguas (So Paulo: Cia. das Letras, 2003):177-225.35 Mallory, The homelands of the Indo-Europeans, 111.36 Martin Richards, The neolithic invasion of Europe,Annual Review of Anthropo-logy 32 (2003): 135-62.37 Mallory, The homelands of the Indo-Europeans, 119.

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    des europias anteriores, representadas, talvez, por povos antigos comoos etruscos, sculos e pictos, ou mesmo um povo atual, os bascos, cujalngua no se aproxima com qualquer lngua indo-europia.38

    No que concerne histria dos alteradores de conscincia, os da-dos arqueolgicos apontam para a ausncia de bebidas alcolicas naEuropa anterior ao terceiro milnio a.C. Seu aparecimento coincide emgrande medida com o que seria a chegada dos indo-europeus da teo-ria dos kurgans, o que refora, acredito, a idia de que houve sim algumtipo de invaso, migrao ou choque cultural entre sociedades bastantediferentes.

    Partindo deste princpio, podemos observar que as bebidas alco-licas ocuparo, desde o princpio de sua histria na Europa, o papelde mediao cultural e sinal diacrtico. A histria das relaes entre as

    primeiras sociedades agrcolas do centro-norte da Europa e os invasoresindo-europeus oferece-nos alguns dos primeiros exemplos bem docu-mentados do papel do lcool no choque de culturas, e de um fenmenoque encontraremos repetidas vezes durante a histria: a vitria dos ine-

    briantes etlicos sobre outras formas de expanso da conscincia.

    38 Cavalli-Sforza, Genes, Povos e Lnguas, 190-200.

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    A CANNABIS E O COMPLEXO DA BEBIDA

    Ymbeode a ides Helminga

    dugue ond geogoe dl ghwylcne,

    sincfato sealde, o t sl alamp

    t hio Beowulfe, beaghroden cwenmode geungen medoful tbr

    Ento, atravs do hall, veio a Senhora de Helming,

    que aos mais jovens e aos mais velhos, em todos os lugares,

    trazia a taa, at chegar o momento

    em que a rainha do anel, a do corao real,

    a Beowulf concedeu a copa de hidromel.39

    Os primeiros agricultores do centro-norte europeu - chamadospor Marija Gimbutas de Civilizao da Velha Europa, e conhecidospela arqueologia como cultura danubiana ou cultura da cermicalinear40 desenvolveram-se entre os VII e o III milnios a.C., e ca-racterizavam-se, entre outros aspectos, pela presena de uma agricultu-ra baseada no cultivo de cereais, lentilhas e linho. Ocupavam regies deorestas fechadas, praticando a tcnica da queimada, e desenvolveramum tipo de ocupao itinerante, com grandes casas e tmulos comu-

    nais, o que geralmente est associado a estruturas sociais relativamenteigualitrias.41

    Apesar da expresso Velha Europa, estes povos da Europa cen-tral se diferenciavam bastante dos primeiros cultivadores dos Blcs, da

    pennsula grega e do Egeu (de onde emergiu a civilizao cretense), cujasculturas esto relacionadas a inuncias demogrcas e culturais oriundasdo Oriente Prximo, atravs da Anatlia. Estes possuam uma agriculturamais eciente e permaneciam durante muito tempo nos mesmos stios,

    39Beowulf(linhas 620-4), pico anglo-saxo, composto por volta do sculo VI, e es-crito pela primeira vez no sculo X.40 Marija Gimbutas, The Civilization of the Goddess (San Francisco: Harper, 1991);Stuart Piggott, A Europa Antiga: Do Incio da Agricultura Antiguidade Clssica(Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1981), 62.41 Ibid., 63.

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    produzindo (assim como as culturas neolticas do Oriente Prximo) gran-des montes formados por restos de ocupao humana, os tells.42 Sero os

    primeiros europeus a cultivar a vinha, como veremos na prxima seo.Quanto Velha Europa, aparentemente no conhecia as bebi-

    das alcolicas. Para Richard Rudgley, os tipos de acares disponveisaos homens primitivos para a elaborao de bebidas mel, frutas, grosgerminados e leite eram pouco abundantes na Europa temperada ps-glacial. Alm disso, a ausncia, no registro arqueolgico, de recipientesapropriados ao longo processo de fermentao, o leva concluso deque os inebriantes etlicos no foram inventados independentementena Europa, tendo sido uma inovao importada do Oriente Prximo. uma concluso bastante discutvel, especialmente no que diz respeitoao mel, matria-prima usada na fabricao de bebidas por caadores-coletores em vrias partes do mundo, mas o fato concreto que noexiste uma comprovao arqueolgica do uso de inebriantes etlicosnesta primeira fase do Neoltico europeu.43

    claro que isto no signica que aqueles povos no usassem ou-tras substncias modicadoras da conscincia. Para alm do uso, rituale teraputico, de ervas e plantas como aArtemisia absinthium (absintoou losna),Hyoscyamus niger(meimendro), e aAtropa mandragora (a

    mandrgora, do latim mensdragora, drago da mente), cujos primr-dios so inalcanveis pelo historiador44, podemos discernir pelo menosduas tradies de uso de substncias essenciais anteriores ao apareci-mento das bebidas alcolicas na Europa.

    A arqueologia e a paleobotnica estabeleceram, com elevado graude certeza, que aPapaver somniferum a papoula de onde se extrai opio foi domesticada no Mediterrneo ocidental em algum momentoentre 6000 e 5000 a.C., e o fato de que sinais inequvocos de seu cultivo

    tenham sido encontrados em locais to distantes quanto a Itlia, a Ingla-terra e a Polnia, mostra uma estvel e contnua tradio de cultivo.45

    42 Ibid., 53-5.43 Rudgley,EssencialSubstances, 31-2.44 Buhner, Sacred and Herbal Healing Beers, 210-5; Jean-Louis Flandrin, A humaniza-o das condutas alimentares, in Flandrin e Montanari,Histria da Alimentao, 34.45

    Escohotado,A Brief History of Drugs, 6; Rudgley,Essencial Substances, 24.

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    Como arma Richard Rudgley, isto no signica, necessariamen-te, que o pio tenha sido usado enquanto narctico, j que as sementesda papoula podem servir de alimento e como fonte de extrao de leocomestvel. Contudo, sepultamentos descobertos na Espanha, datadosde 4200 a.C., mostram que as cpsulas no-comestveis da papoula,de onde se extrai o pio, ocupavam um importante lugar cerimonial,revelando que a grande capacidade daP.somniferum como indutora dotranse hipntico poderia ser conhecida e utilizada pelos europeus pr-histricos.

    Tambm foram encontrados, em tmulos megalticos no norte daFrana e no sul da Inglaterra (de princpios do terceiro milnio a.C.),

    braseiros associados a restos de papoula, que podem ter sido usadospara queimar as cpsulas. Alm disso, sabemos que os egpcios do se-gundo milnio a.C. importavam pio de Chipre, com objetivos medi-cinais e, possivelmente, tambm como narctico, inspirados, talvez,

    pela civilizao minoana de Creta, cujos laos comerciais com o Egitoeram profundos.46 Em Creta foram encontradas estatuetas votivas emque uma deusa aparece coroada por cpsulas de papoula, nas quais asincises, feitas para se extrair o pio, foram ressaltadas pelo arteso,comprovando seu uso como modicador de conscincia, e no como

    alimento.47

    A segunda grande tradio girava em torno do cnhamo, a Can-nabissativa. O cnhamo uma planta originria das estepes da siacentral, onde era usada para a fabricao de cordas e roupas ainda antesde sua domesticao. A facilidade com que os traos culturais, e os pr-

    prios povos, se movimentam nas estepes levou o uso do cnhamo aosdois extremos da Eursia, a Europa e a China, e da China que provmos primeiros indcios claros de domesticao, por volta de 4000 a.C.48

    A pesquisa lingstica mostra que os chineses conheciam muitobem o carter de modicador da conscincia exercido pela Cannabis. A

    46 Ibid., 24-8.47 Carl Kernyi, Dioniso: imagem arquetpica da vida indestrutvel(So Paulo: Odys-seus, 2002): 22.48 Escohotado,A Brief History of Drugs, 6.

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    palavra chinesa para cnhamo ta-ma (grande bra), identican-do seu uso quotidiano mais comum. Porm, como mostra RichardRudgley (baseado em lingistas chineses), o ideograma ma tinha, nochins arcaico, dois signicados. O primeiro catico ou numero-so, em referncia forma e quantidade das bras. O segundo entor-

    pecer ou adormecer, revelando que os chineses usavam o cnhamocom propsitos teraputicos e rituais, o que atestado por fontes chi-nesas histricas. Para Rudgley, este uso foi tomado de emprstimo aos

    primeiros usurios do cnhamo, os nmades das estepes.49Ora, esta uma concluso que concorda perfeitamente com o que

    sabemos acerca das prticas xamansticas dos povos das estepes. Comoarma Mircea Eliade, o xamanismo e a embriaguez exttica produzida

    pela fumaa do cnhamo algo profundamente inscrito nas tradiesreligiosas da sia central e meridional, sendo, inclusive, bem conhe-cido pelos antigos persas e por seus parentes lingsticos, os citas. A

    prpria palavra iraniana que designa o cnhamo, bangha, espalhou-sepelos povos no-iranianos das estepes, por vezes designando o cogume-lo alucingeno Amanita muscaria (como na palavra panga, dos mor-dovinos), ou designando a prpria embriaguez, como no vogulpnkh.Eliade tambm lembra, muito apropriadamente, o papel do haxixe entre

    os iranianos islamizados, alertando, desta forma, para a profundidadetemporal e cultural dos usos ritualsticos da Cannabis.50

    A partir de 3000 a.C., uma indstria cermica voltada ao uso ritualdo cnhamo espalha-se pela Europa, oriunda das plancies da Rssia eUcrnia atuais. So tigelas polpodes que eram usadas como braseiros,e nas quais foram encontrados restos calcinados de cnhamo. Muito

    provavelmente, o cnhamo queimado nestes braseiros era inalado, oca-sionando transes xamansticos, tal como ocorria, em tempos histricos,entre os trcios e os citas da Europa oriental, conforme descrito porHerdotos: os citas tiram as sementes deste cnhamo (...) e lanam as

    49 Richard Rudgley, The Lost Civilizations of the Stone Age (New York: The FreePress, 1999): 137-40.50 Mircea Eliade, O Xamanismo e as tcnicas arcaicas do xtase (So Paulo: Martins

    Fontes, 1998 [1 edio: 1951]): 429-38.

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    sementes sobre as pedras rubras de to quentes; lanadas assim, elassoltam uma fumaa perfumada (...). Esse banho de vapor leva os citas aurrar de prazer.51 Deve-se apontar que estes citas histricos possuam

    braseiros, bem conhecidos pela arqueologia, virtualmente idnticos aos

    vasos polpodes europeus pr-histricos.52

    Por volta de 2500 a.C., um novo conjunto de culturas, provenientedas estepes ao norte do Mar Negro, penetra na Europa central. Emboraalguns tenham visto no orescimento desta cultura um desenvolvimentoautctone, a viso mais comum a de que ela representa a chegada demigrantes belicosos, que acabaram por suplantar - no necessariamentede forma violenta - as populaes mais antigas. A identicao destesmigrantes , como vimos, uma questo extremamente complexa, pois

    envolve uma discusso acerca das origens das lnguas, e povos, indo-europeus. O que importa, para ns, que ocorreu nesta poca um cor-te cultural, arqueologicamente comprovado, e que se caracteriza, entreoutras coisas, por uma mudana no relacionamento dos homens com assubstncias modicadoras da conscincia.

    Chamada, alternativamente, de cultura das nforas Globula-res, cultura dos Machados de Guerra, ou cultura dos Enterramentos

    Individuais, esta tradio adventcia caracteriza-se pela presena degrandes machados de guerra e de uma profuso de vasos claramente as-sociados ao consumo de bebidas, meticulosamente trabalhados e colo-cados em tumbas individuais como signos destatus dos guerreiros queali eram enterrados. Estas inovaes representam uma clara mudanaeconmica e social, em direo a sociedades mais estraticadas, comelites que baseavam seu poder no valor guerreiro, na posse de grandesrebanhos (que eram mais importantes, simblica e economicamente, do

    que os produtos agrcolas), e no uso ritual e social das bebidas alco-licas.53 Estas novas culturas chegaram em vrias ondas, que deram

    51 Herdotos,Histria (Braslia: Edunb, 1988): IV (75), 220-1.52 Rudgley,Essencial Substances, 29-31.53 Piggott,A Europa Antiga, 105-13.

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    origem, sucessivamente, aos ramos grego, itlico, celta e germnico daslnguas indo-europias.54

    Para Andrew Sherratt, arquelogo que estudou o uso de narcti-cos e outras substncias essenciais na Europa pr-histrica, esta mudanacultural e tnica marca o incio de um Complexo da Bebida (drinkingcomplex) que, embora tenha sido inuenciado pela cultura mais antiga deusurios do cnhamo e pio, acabou por substitu-la completamente. Porvolta de 2000 a.C. os grandes tmulos individuais eram encontrados nasilhas britnicas e na costa do Atlntico, recheados de vasos para a bebida,machados de guerra e das primeiras armas feitas de cobre. Como armouSherratt:

    A expanso do complexo da bebida () teve lugar durante um perodode mudana social, cultural e econmica inusitadamente rpida. Du-rante esta poca, a Europa se abriu: literalmente, em termos de deso-restamento de suas paisagens, e metaforicamente, em termos de novoscontatos e oportunidades. Fundamental para este processo foi a cres-cente importncia dos rebanhos, e a emergncia de elites de guerreiroscuja subcultura era representada por uma caracterstica combinao dearmas e vasos de bebida em seus tmulos.55

    Com base em vestgios qumicos encontrados nos vasos de madeira

    ou cermica, a arqueologia contempornea capaz de apontar os tipos debebidas que eram armazenados, e consumidos, nestes recipientes.56 Noforam realizados testes deste tipo (pelo menos at agora) nos vasos do pe-rodo das nforas globulares. Vasos mais recentes, contudo - encontradosna Esccia (c. 1750 a.C.) e na Dinamarca (c. 1370 a.C.) mostraram queestes europeus das regies frias consumiam uma mistura de hidromel e cer-vejas de cereais, temperados, e fortalecidos, com seivas (de btula, por

    54 Cavalli-Sforza, Genes, Povos e Lnguas, 208-16; Gimbutas, The Civilization of theGoddess, 395-6.55 Citado por Rudgley,Essencial Substances, 34.56 Patrick E. McGovern, Ancient Wine: The Search for the Origins of Viniculture(Princeton: Princeton University Press, 2003), 40-63.

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    exemplo), sucos fermentados de frutas, como a ma, a amora e o mirtilo(blueberry).57

    Para Richard Rudgley, os guerreiros dos grandes machados con-sumiam o mesmo tipo de bebida, em associao com o cnhamo e o

    pio.58

    , naturalmente, uma especulao, falta de pesquisas diretas,mas podemos supor que ele esteja correto, tendo em vista a longa tra-dio de celtas e germnicos no uso dos hidromis e cervejas tempe-rados. No se sabe se os primeiros migrantes das estepes conheciamos processos de fabricao da cerveja, que exigem a prtica do cultivode cereais, mas certo que produziam o hidromel, como mostram osdados lingsticos.

    A raiz indo-europia *medhu, associada ao produto das abe-

    lhas, ocorre em quase todas as lnguas da famlia, com o signicadode mel59, como doce60, como embriaguez61, ou como o prpriohidromel.62 Nos Rig-Veda, textos sagrados dos hindus, e escritos emsnscrito, os deuses Vishnu e Indra so chamados deMadhava, os nas-cidos do mel, e seu smbolo era a abelha. Entre os gregos, o hidromelestava relacionado ao culto de Zeus: o Senhor dos deuses era, comu-mente, apresentado como um deus do mel (Meilikhios: doce como

    o mel).63 Uma antiga tradio religiosa armava que o jovem Zeus(tambm chamado deMelissaios) havia matado seu pai, o deus Cronos,que devorava os prprios lhos, aps embriag-lo com mel fermentadode abelhas selvagens, bebida que o prprio Cronos teria inventado.64

    57 Ibid., 274-5.58 Rudgley,Essencial Substances, 35.59 Snscrito mdhu, grego mli, latim e portugus mel, francs e espanhol miel, italia-no miele.60 Snscrito medo.61 Grego methein, galico meldb, snscrito mdhav.62 Grego mth, galico metheglin, ingls mead, alemo mete germnico antigo mjd.63 Giulia Sissa e Marcel Detienne, Os Deuses Gregos (So Paulo: Cia. das Letras,1990), 200.64

    Kernyi,Dioniso, 33; Buhner, Sacred Herbal Healing Beers, 24.

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    Esta amplitude geogrca e semntica mostra que o conheci-mento do mel, e de sua bebida fermentada, foi trazido pelos migrantesindo-europeus a partir de suas terras natais nas estepes, sendo, por-tanto, bastante lgico ver o hidromel como a bebida preferencialmen-

    te consumida e armazenada nos vasos armazenados nos tmulos dosguerreiros,65 muito embora isso no signique que estes no tenhamtambm se aproveitado dos cereais, frutas e seivas (bem como dos nar-cticos), encontrados na Europa, para elaborar novos tipos de bebidas,como quer Rudgley.

    tambm possvel, embora isto no tenha sido constatado arque-olgica e historicamente na Europa, que os nmades indo-europeus os primeiros a domesticar o cavalo, no quarto milnio a.C., e a utiliz-lo

    em carros de guerra66 - consumissem o leite fermentado alcolico dasguas (o kumiss), assim como faziam, e ainda fazem, cavaleiros siberia-nos, como os mongis.67

    Em que contexto estas bebidas eram consumidas? A lingstica ea histria cultural comparadas encontraram semelhanas e paralelos en-tre as estruturas sociais e mentais dos povos de lnguas indo-europiasque permitem, de forma limitada, reconstruir alguns aspectos socio-

    lgicos e culturais dos primitivos falantes daquelas lnguas. claro queos povos de lnguas indo-europias atuais e mesmo os da antiguidade no so descendentes diretos daqueles nmades das estepes, comopensaram os tericos da superioridade ariana. Como armou, a esterespeito, Bernard Sergent:

    patente que cada um dos povos indo-europeus, na sua localizaohistrica, resulta de uma sntese tnica entre, pelo menos, populaespr-histricas locais, isto , cujas razes remontam no local at aos tem-pos paleolticos, e, por outro lado, imigrantes portadores de uma lnguaindo-europia cuja imposio regio e evoluo local desembocam nas

    65 Ibid., 19-59.66 Shanti Menon, Chariot Racers of the Steppes,Discover16, n 4 (1995): 30-1.67 Tannahill, Food in History, 123.

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    lnguas historicamente atestadas: os Irlandeses so um povo formado naIrlanda a partir da unio entre os portadores de uma lngua cltica e as po-pulaes anteriores (...); os Celtas vm da regio do alto Danbio, masos Irlandeses no vm do alto Danbio. De igual modo, os Gregos,ainda que os portadores da primeira forma da sua lngua tenham ocupadoo norte dos Blcs numa poca pr-histrica, no so originrios dobaixo Danbio tal como os Franceses no so originrios de Roma:eles so um produto da sua (proto)-histria. Neste sentido, todos os povosindo-europeus conhecidos so indo-europeizados.68

    Feita esta ressalva, possvel abordar o contexto etlico dos po-vos que introduziram o Complexo da Bebida no continente europeu,

    pelo menos em sua parcela no-mediterrnica, j que os cretenses etalvez outras populaes do Mediterrneo e Blcs, como os trcios

    certamente consumiam o vinho larga, mas em bases sociolgicas eculturais diferentes. De sada, constata-se a importncia da aristocraciaguerreira que est sepultada naqueles tmulos individuais. Ao contrriodas civilizaes orientais, com seus reis-deuses que controlavam eli-tes de funcionrios palacianos, os *regindo-europeus69 exerciam muitomais um papel de primus inter pares, com uma marcada funo reli-giosa, e tambm econmica, j que eram sempre os indivduos mais

    poderosos economicamente, possuidores dos maiores rebanhos.70

    O verdadeiro poder poltico, contudo, estava concentrado nas as-semblias de guerreiros, to presentes nas descries de celtas e germanose tambm nos poemas homricos. Ora, estes guerreiros caracterizavam-se, entre outras coisas, por aquilo que os germnicos antigos chamavammutantrinken, embriaguez de honra.71 Beber muito, desmesuradamen-te, era uma das obrigaes do ethos guerreiro indo-europeu, como se

    68 Bernard Sergent, Os Indo-Europeus. Gnese e Expanso de uma Cultura, in AsPrimeiras Civilizaes (v. III Os Indo-Europeus e os Semitas), dir. Pierre Lvque(Lisboa: Ed. 70, 1990), 15-6. 9-144.69 Latim rex, gauls rix, galico r, snscrito rjn, alemo reich (para reino).70 Os termos para designar o homem abastado (rico, rich, riche) provm justamenteda raiz para rei.71 Oswaldo G. de Lima,Pulque, Balch y Pajauaru. En la etnobiologa de las bebidas y delos alimentos fermentados (Mxico, D. F.: Fondo de Cultura Econmica, 1990): 213.

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    constata quando observamos que os deuses guerreiros destes povos (comoo grego Ares, o germnico Thrr, o hindu Indra, o persa Varuna), assimcomo seus heris belicosos (como o grego Heracles, o nrdico Starcathe-rus, o celta Cchulainn) eram rematadssimos beberres. A embriaguez

    produzida pelas bebidas era equiparada loucura advinda do furor mi-litar, da sede pelo sangue dos inimigos, que transformava os guerreirosem seres perigosos e incontrolveis. Os escandinavos, alis, usavam omesmo termo (dr) para designar a embriaguez provocada pela bebida ea fria que acometia os guerreiros vitoriosos.72

    Como bvio, estas bebedeiras nada tinham de patolgico, masrepresentavam, antes de tudo, um ato cerimonial. A assemblia dos guer-reiros reunia-se em torno de banquetes73 com farta distribuio de comi-da e bebida, cujo carter de dissipao se assemelhava aos potlatch dosndios norte-americanos, em que os bens (no caso indo-europeu, bensalimentares e etlicos) eram literalmente destrudos, demonstrando, destaforma, o poderio econmico do indivduo que patrocinava o banquete. ,alis, bem atestada pela arqueologia a presena, nas habitaes dos povosindo-europeus, de grandes sales - como o megaron grego e o hallger-mnico - especicamente destinados a tais banquetes e bebedeiras.

    Nestes festins, a aristocracia guerreira se engajava em disputas

    discursivas em torno de suas faanhas, e se buscava alcanar o melhorquinho do banquete, sempre reservado ao mais corajoso, ao mais forte,ao maior entre todos. Era aquilo que os gregos dos poemas homricoschamavam de parte da honra (gras): a melhor parte dos despojosconseguidos em combate, disputa que terminava, constantemente, emconitos provocados pela embriaguez e por discusses de precedncia.A noo de despojo, de conquista guerreira, ocupa, alis, um lugar

    central na mentalidade indo-europia, dado que as palavras que o de-signam, em diversas lnguas, provm de uma mesma raiz.74

    72 Sergent, Os Indo-Europeus, 56-70.73 Ibid., 65.74 Como no grego lis, latim lucrum, germnico antigo laun, eslavo antigo lavu: Ser-gent, Os Indo-Europeus, 58.

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    A Senhora do Hidromel, dos banquetes germnicos.75

    Este tipo de disputa est muito bem exemplicado naIlada, quese inicia exatamente quando Agamenon, aproveitando-se da condiode chefe da expedio a Tria, toma a parte que cabia a Aquiles nosdespojos de um saque feito a Tebas. Tomado de um embriagante furorguerreiro, Aquiles vocifera contra o rei de Micenas: bbedo, que tensa vista do co e a coragem do veado, nunca a armadura envergaste para

    ir combater como os outros. (...) Mais lucrativo, de fato, correr todoo exrcito aquivo, para esbulhar de seus prmios a quem se atrever aobjetar-te. Devorador do teu povo!.76

    Mais tarde, dirigindo-se a sua me, Ttis, que lhe pergunta o por-qu de sua clera, Aquiles reclama de Zeus, por ter permitido que suagras lhe fosse tomada: pois (Zeus) consentiu que o potente senhor,de Atreu lho, Agamenon, me desonrasse; meu prmio tomou, de que,ufano, se goza.77 No decorrer do poema, quando Agamenon decide

    reparar a ofensa feita a Aquiles, desculpa-se dizendo que seu ato foiprovocado por uma loucura,78 at, palavra usada para designar um

    75 Disponvel em http://www.vikinganswerlady.com/index.html.76Ilada, I, 225-31.77Ilada, I, 354-5.78

    Ilada, IX, 119.

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    estado de esprito alterado, um obscurecimento temporrio do compor-tamento normal, que tanto poderia ser provocado pela ao de um deus,quanto pela embriaguez provocada pelo vinho.79

    Veremos, mais tarde, que os gregos do perodo clssico (ao me-nos os aristocratas) possuam uma concepo completamente diferentedo que deveria ser um comportamento etlico adequado, enquanto quepovos brbaros, como celtas e germnicos, mantiveram muitas dastradies indo-europias em torno das bebedeiras e da embriaguezherica. Uma das caractersticas mais notveis dos festins etlicos dospovos europeus da antiguidade - representados pelo symposion grego, odaps romano, o trinkfestcelta e o sumbel nrdico sua capacidade detransformarem-se no devir histrico, assumindo novas formas de acor-do com as variaes culturais dos descendentes daqueles migrantes.

    O que mais importante para ns, neste momento, perceber queas bebidas, e os modos de beber, dos indo-europeus surgiram, naque-les momentos de transformao tnica e cultural da Europa, enquan-to signos e, quem sabe, instrumentos de dominao cultural de umapopulao recm-chegada sobre outra, j estabelecida. , certamente,impossvel saber se as bebidas foram impostas aos consumidores decnhamo e pio pelos guerreiros beberres. O mais provvel que estes

    tenham se enamorado da inebriao adventcia. Mas notvel perceberque, por toda a histria, no se conhece qualquer caso, quando se tratade choque de culturas, de substituio do lcool por outras substnciasessenciais: sempre o contrrio que ocorre.

    Arrisco-me a dizer que isto se deva ao duplo carter do lcool, deinebriante e de alimento, no apresentado por outras substncias, almdo fato de que encontrar uma boa gua para beber era sempre uma tare-fa complexa e arriscada. A predominncia, no mundo contemporneo,

    das bebidas destiladas e de fermentados industriais, nos leva a esquecer,freqentemente, que os povos do passado tinham nas bebidas uma im-portante fonte de nutrientes.

    79 Sobre a relao entre a at e o vinho, cf. E. R. Dodds, Os Gregos e o Irracional(Lisboa: Gradiva, 1988): 12.

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    Ao lanarmos, a partir de agora, nosso olhar sobre os lugares assu-midos pelas bebidas, nas distintas formaes sociais oriundas das trans-formaes tnicas ocorridas no terceiro milnio a.C., ser importanteperceber como cada sociedade viu, em seus inebriantes especcos ena maneira de consumi-los, uma chave para a expresso das diferencia-es sociais, culturais e tnicas. Nenhuma bebida, contudo, expressouesta capacidade de signicao social de forma to clara quanto aqueleinebriante que os indo-europeus vieram a conhecer quando se esta-beleceram s margens do Mediterrneo. Com o vinho, os povos medi-terrnicos, notadamente gregos e romanos, descobriram um smboloda vida civilizada, um sinal que os diferenciava enquanto indivduos,e enquanto civilizaes, daqueles povos (considerados brbaros) queconsumiam bebidas feitas de produtos da coleta (como o hidromel) oubebidas grosseiras como as cervejas primitivas.

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    OS GREGOS E O PRESENTE DE DIONISO

    (Hefesto) representou uma vinha, tambm, carregada e belssima;

    de ouro brilhante era a cepa e de viva cor negra os racimos,

    que sustentados se achavam por muitas estacas de prata.

    De ao era o fosso gravado em redor; mas a cerca de cima

    de puro estanho. Um caminho, somente ia dar at a vinha,

    que os vinhateiros percorrem no tempo da bela vindima.

    Moos e moas, no vio da idade, de esprito alegre,

    o doce fruto carregam em cestas de vinho tranado.

    Com uma lira sonora, no meio do grupo, um mancebo

    hino de Lino entoava com voz delicada, cadncia

    suave da msica, e todos, batendo com os ps, compassados,

    em coro, alegres, o canto acompanham, danando com ritmo.80

    Enquanto que, na Europa central, ocorriam os dramticos eventosque puseram m aos complexos culturais da Papavere da Cannabis,e que levaram ao surgimento das culturas da cerveja e do hidromel,desenvolviam-se no Mediterrneo as civilizaes que se construramem torno da trade formada pelo vinho, o trigo e o azeite. Mais cedo, oumais tarde, quase todas as sociedades estabelecidas s margens do Me-

    diterrneo acabaram por se dedicar ao plantio da uva e fermentao doseu suco. Assim como a Amrica do Sul a ptria dos cauins e chichas,o Mediterrneo e reas prximas, como as margens do Mar Negro e oCucaso, so a terra do vinho.

    Falar em terra do vinho, contudo, no signica dizer que todasas sociedades que produziam e consumiam o fermentado de uvas conce-diam a ele a mesma posio social ou cultural. Assim como ocorria comas bebidas na Amrica, onde a chicha do Imprio Inca e o cauim dos

    Tupinamb poderiam ser elaborados, tecnicamente, da mesma forma,mas possuir sentidos sociais completamente distintos, existiam tambmenormes diferenas quanto ao lugar, sociolgico e cultural, ocupadopelo vinho na Grcia ou em Roma. Seria tambm um erro imaginar, aose falar em terra do vinho, que gregos e romanos dispusessem uni-

    80 Ilada, XVIII, 561-72.

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    camente do vinho como bebida embriagante, e que, no interior de suasestraticaes sociais, todos os indivduos tivessem um franco acessoa esta bebida. A explorao de algumas das diferenas, e semelhanas,nos lugares ocupados pelo vinho naquelas sociedades, pode representarum bom ponto de partida para a compreenso das representaes so-ciais que se construram em torno do vinho nas sociedades europias.

    Antes de tratar do vinho, contudo, deve-se notar que, tambm noMediterrneo, o vinho foi precedido pela bebida fermentada de mel,o hidromel. Existia uma forte tradio, entre os gregos, que reserva-va ao hidromel o papel de primeira bebida inebriante conhecida peloshomens, o que no deixou de se traduzir em sua religio e mitologia,como j vimos para o caso do ZeusMeilikhios. Este exemplo, alis, nosalerta para o fato de que os gregos muito deviam a uma civilizao maisantiga, e que no era de origem indo-europia: a civilizao cretense,ou minica. Anal, a tradio que ligava o pai dos deuses ao mel erade origem cretense, e parece ter se originado em religiosidades muitoanteriores chegada dos proto-gregos.

    De acordo com a verso cretense do mito de Zeus, sua me, Ria,o pariu em uma caverna, fugindo da sanha licida de Cronos. Esta ca-verna (situada no monte Ida, local considerado como casa de Zeus) era

    habitada por abelhas sagradas, as quais nutriram a criana divina comseu mel, o qual preenchia toda a caverna. De fato, bem comprovado,a partir dos dados arqueolgicos, que as cavernas eram locais de cultoentre os antigos cretenses,81 e dizia-se, a propsito da caverna do monteIda, que, em determinada poca do ano, o sangue que havia restado doparto de Zeus fermentava (zein) e transbordava pela boca da caverna.Segundo Carl Kernyi, este transbordamento est claramente relacio-nado ao hidrmel (mel misturado gua), que tambm transborda

    dos vasos quando fermenta, e que era preparado, em vrios locais daregio do Egeu, no interior das cavernas.82

    81 Moses Finley, Grcia Primitiva: Idade do Bronze e Idade Arcaica (So Paulo: Mar-tins Fontes, 1990): 45-6.82 Kernyi,Dioniso, 28-44.

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    Novamente defrontamo-nos com uma cultura que relaciona a fer-mentao fertilidade, ao nascimento e doao de vida. Outro mitogrego (mas tambm de origem cretense), o do nascimento do caadorOron, esclarece ainda mais esta ntima relao simblica entre a fer-mentao do mel e a doao de vida. O heri Hirieu no tinha lhos,e os deuses, bem recebidos em sua casa, prometeram-lhe que um lholhe nasceria de um odre de couro, no qual deixaram uir (em gregoourin, que um trocadilho com Oron) seu smen. Ora, a substnciaque preenchia o odre, e que recebeu o smen do heri, era o mel: hronera o termo cretense para enxame e colmia, e hria signicavalugar de apicultura.83

    A relao feita entre o mel e Oron um caador e, portanto, umprimitivo mostra tambm que os gregos consideravam o hidromelcomo uma bebida mais primitiva, mais prxima a um estado naturalda humanidade, visto ser oriunda de um produto da coleta, e no de umaplanta cultivada, como era a videira. importante apontar este fato, jque um dos apangios da selvageria de brbaros, como os celtas, era

    justamente o consumo de bebidas feitas a partir da fermentao do mele de frutas silvestres.

    Esta viso evolutiva das bebidas, por parte dos gregos, transpare-

    ce ao observarmos que as diferentes geraes dos deuses se relaciona-vam de formas tambm diferentes com os inebriantes etlicos. Assim, ovelho deus Cronos, um deus da idade do ouro, e anterior existnciados prprios gregos, s dispunha do hidromel, e feito a partir do melobtido de abelhas selvagens, o qual teria causado sua prpria runa. Seulho, Zeus, aparece como um deus de transio: nasceu do mel e deviasua prpria vida ao mel, por ter assassinado um Cronos embriagado poraquela bebida. Os sacrifcios feitos a Zeus sempre se iniciavam com

    uma libao de melkratos (mel misturado, isto , misturado gua),

    83 Ibid., 39.

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    e no com vinho.84 A um deus mais recente, Dioniso, que estarreservada uma ligao privilegiada com o vinho, como logo veremos.

    Os registros burocrticos dos palcios micnicos mostram que omel (chamado de me-ri: note-se a raiz indo-europia), e seus derivados,eram importantes itens de comrcio85 e de culto: em um tablete deargila, encontrado em Cnossos, l-se a inscrio pa-si-te-o-i / me-ri,da-pu-ri-to-jo / me-ri (para todos os deuses, mel... para a senhora dolabirinto, mel)86 , e outras plaquetas mostram que o mel era bastanteusado tambm nos sacrifcios aos deuses.87 De igual modo, as plaque-tas micnicas apresentam os primeiros testemunhos escritos a respeitodo vinho entre os gregos: so registros de grandes jarros, chamados dewanaktero (de wa-na-ka, rei) que continham vinho ou azeite para oservio real, e referncias a um festival religioso, chamado de me-tu-wone-wo (festa do vinho novo) em honra a uma divindade feminina.

    Tambm aparecem nos tabletes menes a um grupo especial demulheres sagradas, chamadas de wo-no-wa-ti-si (mulheres do vi-nho), bem como registros de bois chamados de wo-no-ko-so (cor devinho), os quais apontam para uma relao ritual entre este animal eo vinho: tanto entre os minicos, quanto entre os gregos micnicos,usava-se, para beber o vinho, grandes cornos (naturais e articiais), os

    rhta, alm de enormes clices em forma de crnio de boi. Dioniso, odeus do vinho, costumava ser chamado de bougens, lho da vaca.88

    O estudo da cultura material tambm mostra que o vinho exerciaum papel central na vida destes primeiros gregos revelados pela hist-ria. A arqueologia aponta, inclusive, a existncia de adegas, muitobem supridas, localizadas no interior dos palcios-fortaleza. No palcio

    84 Sissa e Detienne, Os Deuses Gregos, 200. Sacrifcios feitos aos mortos tambm en-volviam o hidromel, em vista de seu componente subterrneo, j que estava ligados cavernas. Quando Ulisses vai viajar ao reino dos mortos, a feiticeira Circe diz-lhe que deve fazer libaes para todos os mortos: primeiramente de mel misturado(melkratos); depois, de bom vinho (...), Odissia, X, 518-9.85 Massimiliano Marazzi,La Sociedad Micenica (Madrid: Akal, 1982), 45.86 Kernyi,Dioniso, 79.87 Marazzi,La Sociedad Micenica, 214.88 Kernyi,Dioniso, 48-9.

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    de Pilos (ptria do mtico heri homrico Nestor), aqueles que partici-pavam dos banquetes e festins etlicos, realizados em um grande recintoconstrudo para este m, o megaron, passavam antes por uma sala ondehavia dois enormes vasos (pithoi), cheios de vinho, o qual era consumi-do em um sem nmero de taas (kylikes), encontradas perto dospithoi.89Muitas destas taas eram de bronze, o que mostra uma aguda diferen-ciao hierrquica, j que taas de metal jamais foram encontradas nascasas modestas dos stios micnicos. Estas somente contm taas decermica, que imitam, nas formas e motivos decorativos, as taas debronze usadas pelos poderosos.90

    Os tabletes de argila nos trazem a primeira meno escrita a umadivindade que acompanhar o vinho durante boa parte de sua histria, eque marcar esta bebida com um carter duplo, de fonte de inspiraodivina, elitizada e superior, e de fonte de desorganizao e desordemsocial: di-wo-nu-so-jo, Dionysoio.91 A histria mtica deste deus, e,portanto, da bebida da qual era patrono, mostra que o vinho chegou aosgregos atravs de mltiplas origens. Devemos lembrar que os proto-gre-gos, descendentes daqueles indo-europeus oriundos das estepes eurasi-ticas, certamente no bebiam vinho, inebriante que s vieram a conhecerquando se instalaram no Mediterrneo.

    Para algumas tradies, Dioniso seria um deus de origemcretense,92 enquanto que, para outras, teria vindo da Trcia,93 cujopovo era considerado, pelos gregos do perodo clssico, como brbarosque jamais aprenderam a usar a bebida corretamente, e que se embria-gavam at mesmo para ir guerra,94 o que representava, para os in-ventores das disciplinadas falanges, um sinal inequvoco de selvageria.Como arma Carl Kernyi, esta confuso mtica um reexo da origemdiversicada da viticultura egia, inuenciada tanto pelas civilizaes

    89 William Taylour, Os Micnios (Lisboa: Verbo, 1970), 92; Johnson, Uma Histriado Vinho, 41.90 Taylour, Os Micnios, 124.91 Kernyi,Dioniso, 61.92 Ibid., 47-109.93 Junito Brando, Dicionrio Mtico-Etimolgico da Mitologia Grega (Petrpolis:Vozes, 1991, v. I): 286.94

    Kernyi,Dioniso, 121.

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    egpcia e mesopotmica, quanto pelas civilizaes anatlicas, como oshititas e frgios.95

    Nativo do Mediterrneo o vinho no era. Embora existam varie-dades nativas de Vitis vinfera sylvestris da Pennsula Ibrica ao Cuca-so, estas uvas no domesticadas no possuem uma quantidade de acarsuciente para a produo de uma bebida fermentada.96 Escavaes ematal Hyk (Turquia), Biblos (Lbano), e em outros pontos do OrientePrximo revelam que a uva, provavelmente ainda silvestre, era consu-mida por volta de 8000 a.C., e sinais inequvocos de cultivo modica-es nos caroos promovidas pela domesticao - foram encontrados naGergia (pas ex-sovitico do Cucaso), e datadas de c. 6000 a.C.97

    Atravs de anlises qumicas de depsitos residuais, foi desco-berto que a bebida foi armazenada em um jarro (datado de c. 5500 a.C.)encontrado98 em Haji Firuz, no Ir, sendo este, at o momento, o exem-plar mais antigo j encontrado. Ser do Oriente, portanto, que o conhe-cimento do vinho chegar aos gregos, os quais transformaro esta be-bida em um smbolo de sua civilizao. Mas chegar atravs de Creta,como demonstram os aspectos minicos do culto dionisaco e a prpriaarqueologia, que revelou, inclusive, a existncia de vilas especializadasna produo do vinho no segundo milnio a.C.99

    Independentemente do problema das origens, o fato que os gre-gos tinham conscincia de que o vinho (oinos) lhes havia sido dadacomo um presente de um deus especco. Seria impossvel tratar detodas as verses mticas acerca da inveno do vinho por Dioniso,100

    mas o que parece muito claro o seu carter estrangeiro, com relaos elites guerreiras proto-gregas e gregas, estando seu culto evidente-

    95 Ibid., 51.96 Andrew Sherratt, citado por Rudgley,Essencial Substances, 32.97 McGovern,Ancient Wine, 21; Tannahill,Food in History, 63; Johnson, Uma His-tria do Vinho, 20.98 McGovern,Ancient Wine, 40-61.99 Kernyi,Dioniso, 50.100 Tambm conhecido, entre outros nomes, por Baco (Bkkhos), palavra de etimolo-gia desconhecida. Alis o prprio nomeDioniso no foi ainda resolvido em seu sig-nicado, mas parece se originar dos termos trcios para cu (Dio) e lho (Nysa),

    portanto, lho do cu: Brando,Dicionrio Mtico-Etimolgico, 286.

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    mente relacionado aos cultos de fertilidade tpicos das religies antigasda Velha Europa e do Oriente Prximo. , tambm, um deus de ca-rter marcadamente popular: os poemas homricos, criados para seremexecutados nos festins das elites, praticamente o ignoram.101 As vriasverses de seu mito so, contudo, concordes em apontar que o vinho

    exercia nos ritos dionisacos um papel religioso profundo, provocan-do em seus participantes uma embriaguez divina que poderia alcan-ar nveis considerados extremamente perigosos para as elites gregas.Como armou, a este respeito, E. R. Dodds:

    Dioniso oferecia liberdade (...). E suas alegrias eram acessveis a todos,incluindo at os escravos, bem como queles homens livres a quem eraimpedida a entrada no velhos cultos gentios. Apolo moveu-se apenasna melhor sociedade, desde o tempo em que era patrono de Heitor at

    quando canonizava atletas aristocrticos; mas Dioniso foi, em todas aspocas, dmotikos, um deus do povo. As alegrias de Dioniso tinhamum campo extremamente vasto, desde os prazeres singelo do homemsimples, danando uma giga sobre odres gordurosos, at ao mophagoscharis da bacanal exttica. Em ambos os nveis e nos nveis intermedi-rios, ele Lsio, o Libertador o deus que, atravs de meios muitosimples, ou por outros meios menos simples, habilita uma pessoa a dei-

    xar de ser ela prpria durante algum tempo, e por isso a liberta.102

    Em Dioniso, o vinho no apenas um modicador de conscinciaou um alimento inebriante, mas um verdadeiro entegeno, isto , umasubstncia que traz para o interior daquele que participa do rito umareal experincia de contato com a divindade, sendo, portanto, algo quegera aquilo que os gregos chamavam de enthsiasms, ou trazer odeus para dentro de si.103 Esta caracterstica poderosamente mstica dovinho j surge de sua prpria inveno.

    101 Ibid., 286.102 Dodds, Os Gregos e o Irracional, 88-9.103Entegeno um termo composto, e que signica, ao mesmo tempo, algo que con-tm a divindade e que traz a divindade para dentro. Sobre a denio de ente-genos ver Peter T. Furst, Introduction: An Overview of Shamanism, in AncientTraditions: Shamanism in Central Asia and the Americas, ed. Gary Seaman e JaneS. Day (Niwot: University Press of Colorado, 1994): 1-28; sobre o enthsiasms, ver

    Brando,Dicionrio Mtico-Etimolgico, 80.

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    Filho de Zeus com uma mulher mortal, Dioniso foi perseguido,desde seu nascimento, pela esposa do pai dos deuses, Hera, deusa quevelava pelos casamentos corretos e que estava sempre pronta paravigiar as aventuras de seu divino esposo e punir os frutos destas unies.A criana foi escondida pelo pai no Monte Nisa, aos cuidados de seresrelacionados natureza, as ninfas, e seres semi-bestiais, os stiros. Ali,exilado entre animais selvagens e plantas no-cultivadas, o jovem Bacodescobriu a videira, luxuriante e selvagem, e cheia, a ponto de re-bentar, de sua carga de sumo fresco.

    Dioniso cavou um orifcio na rocha, em forma de lagar, e chamouos Stiros para que colhessem os frutos da videira. Depois de colhidos,e limpos de seus ramos, os cachos foram colocados no lagar pelo pr-prio deus. Escrevendo nos estertores da antiguidade pag (sc. V d.C.),o egpcio Nonnos (que depois se tornaria cristo) descreveu o que ocor-reu a partir de ento:

    Depois que depositou a inteira colheita no oco espao, ps-se a pisar asuvas com passos de danador. E os stiros tambm, sacudindo ao ventoos cabelos, em desvario, de Dioniso o aprenderam. Peles de coro mos-queadas eles nos ombros atavam, e o canto de Baco, altssonos, descan-tavam, esmagando os bagos com repetidas pisadas, a gritar Evo! E ovinho esguichava no covo cheio de parras e empurpureciam-se os tan-ches. Premidas pelo alternado repisar, borbulhavam as uvas manandoo vermelho sumo junto com uma espuma branca. Eles o apanhavamcom chifres de touro em vez de copas coisa que ainda no se tinhavisto -, de modo que o prprio vinho misturado depois tirou o seu nomedo cantil feito de cornos.104

    Recolhido o vinho, beberam todos: Dioniso, os stiros e as nin-fas, os quais, embriagados pelo delrio provocado pela bebida, caram

    desfalecidos. De posse do vinho, e de seu enorme poder exttico e en-teognico, Dioniso retornou, triunfante, ao convvio dos homens e deu-ses, acompanhado dos stiros, furiosos de sexualidade, das feras, agora

    104 Nonnos,Dionysiaca, citado por Kernyi,Dioniso, 52-4. Nonnos fez, neste trecho,um trocadilho entre o vinho misturado (kerannmenos) e o chifre do touro (kras).

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    mansas, e das ninfas, convertidas em acompanhantes do deus, e chama-das de mnades ou bacantes.105

    Todos os anos, poca da vindima, celebravam-se festas em hon-ra de Dioniso, nas quais se representavam os eventos mticos que deramorigem ao vinho. Impossvel descrever aqui todos os passos destas fes-tas, que, alis, assumiam aspectos diferenciados de acordo com as di-ferentes tradies regionais.106 Em vrias cidades, mas principalmenteem Delfos, as sacerdotisas de Dioniso, e muitas mulheres que a elas se

    juntavam, assim como homens de todas as classes sociais, iam para osmontes beber e danar em honra do deus.

    Como diz Junito Brando, nestas cerimnias buscava-se ativa-mente alcanar o kstasis atravs da embriaguez e do fascnio exercidosobre as multides pela msica e a dana. A partir do kstasis, as mu-lheres tornavam-se mnades, isto , possudas pela mana, ou loucu-ra sagrada, e atingiam um estado de agitao incontrolvel, ou rguia(da a nossa orgia), at carem desfalecidos:

    nesse estado, que algo de srio e grave acontecia, porque a embria-guez e a euforia, pondo-os em comunho com o deus, antecipavam,uma vida do alm muito diversa daquela que, desde Homero at osgrandes e patriarcais deuses olmpicos, lhes era oferecida. (...) Esse sair

    de si signicava uma superao da condio humana, uma ultrapas-sagem do mtron, a descoberta de uma liberao total, a conquista deuma liberdade e de uma espontaneidade que os demais seres huma-nos no podiam experimentar. (...) A mania e a orgia provocavam umacomo que exploso de liberdade e, seguramente, uma transformao,uma liberao, uma distenso, uma identicao, uma ktharsis, umapuricao.107

    105 Brando,Dicionrio Mtico-Etimolgico, 290.106 Ibid., 78-81; Carl A. Ruck, Bacchus Amongst Us, in The Apples of Apollo: Paganand Christian Mysteries of the Eucharist, ed. Carl A. Ruck, Blaise D. Staples e ClarkHeinrich (Durham: Carolina Academic Press, 2001): 6-14; Johnson, Uma Histria doVinho, 53-65;; Kernyi,Dioniso, 250-333.107 Brando,Dicionrio, 79-80.

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    A festa dos pobres: as rguias bquicas.108

    Muitos viram nestas cerimnias sintomas de uma histeriacoletiva,109 mas , certamente, desnecessrio apelar para qualquerinterpretao patologizante deste tipo. Como j vimos em outros mo-mentos deste trabalho, a cultura , em ltima instncia, a principal res-ponsvel pelos efeitos que uma substncia ou outra possa ter sobre aconscincia humana. Mas lgico pensar, e os textos dos escritoresda antiguidade apiam esta pretenso, que os vinhos consumidos nos

    cultos bquicos pudessem ser fortalecidos pelo acrscimo de outrassubstncias essenciais, como a resina fermentada do pinheiro (poderosoexcitante), o pio (as mnades so, por vezes, representadas com coroasde papoulas), cogumelos como oAmanita muscaria (que se desenvolve,na Grcia, precisamente na poca das orgias bquicas), fungos parasitasda cevada (o mesmo do qual extrado o LSD) e o olbano da Sria, quetambm possui propriedades narcticas.110

    Nos centros urbanos tambm eram realizadas festas dionisacas,como as que eram promovidas em Atenas, as Antestrias (festa das o-

    108 Bacanal: detalhe de um mural romano (Vila Panflia, sc. I d.C.), in Arnold Toynbee,Um Estudo da Histria (Braslia / So Paulo: Edunb / Martins Fontes, 1987): 228.109 Sobre esta viso cf. Ruck, Bacchus Amongst Us, 8; Brando,Dicionrio Mtico-

    Etimolgico, 80; Johnson, Uma Histria do Vinho, 56.110 Ibid., 56; Ruck, Bacchus Amongst Us, 6-8.

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    res). Embora menos entusiasmadas do que as rguias, festas comoas Antestrias que duravam vrios dias, cada um com uma motivaoreligiosa especca - carregavam inmeros signicados msticos para ovinho, e motivavam grandes exploses de consumo e embriaguez po-pulares.

    Um exemplo desta riqueza simblica nos dado pelas cerimniasrealizadas no primeiro dia, chamado de Pithoiga, ou dia da aberturadospithoi, os grandes vasos de barro onde o vinho era armazenado.As tampas dospithoi eram retiradas e os vasos eram deixados abertos,para que as almas dos mortos, as kres, sentissem seu aroma e viessem terra. Para os atenienses, a cidade cava cheia de fantasmas neste dia,e a ningum, incluindo os escravos, era proibido se embebedar.

    Esta relao entre os mortos e o vinho parece ser muito antiga nopensamento grego, j que as prprias plaquetas micnicas chamam asalmas dos mortos de di-pi-si-jo-i (as sedentas),111 e considerava-seque os mortos e tudo que era enterrado, como as sementes eramos produtores e distribuidores das riquezas: dizia um tratado atribudoa Hipcrates que dos mortos que nos vm os alimentos, os cresci-mentos e os germes.112 Os mortos vinham terra para serem recom-pensados, atravs do vinho, pelas ddivas que concediam aos vivos.

    Ao encerrarem-se as Antestrias, costumava-se dizer fora, Kres, jno mais Antestria!, e os mortos eram tangidos de volta ao mundosubterrneo, com as cabeas pesadas de vinho.113

    Bebia-se muito nestas festas. Havia, inclusive, um concurso emque o vencedor era aquele que bebesse mais rapidamente uma grandeklix(taa) de vinho.114 Durante as peas de teatro (eventos intimamen-te relacionados a Dioniso) os prprios espectadores assistiam s repre-sentaes dos eventos da vida do deus consumindo a trimma, um vinho

    temperado com uma mistura desconhecida de ervas,115

    e era bastante

    111 Kernyi,Dioniso, 260.112 Citado por Brando,Dicionrio Mtico-Etimolgico, 79.113 Kernyi,Dioniso, 261.114 Kernyi,Dioniso, 268-9; Johnson, Uma Histria do Vinho, 57.115

    Ibid., 53-4.

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    comum que, noite, se encontrassem velhos cambaleantes e embriaga-dos, que representavam as peas de um autor arcaico semi-mitolgico,Tspis, um precursor do teatro ateniense do perodo clssico.116

    Aos khrsto, aos aristo - a nobreza aristocrtica que domina-va as pleis helnicas, e que nos legou sua viso de mundo atravs

    dos textos que chegaram at ns todas estas manifestaes populares,bastante relacionadas ao substrato pr-indo-europeu da cultura grega,pareciam decididamente primitivas e selvagens, especialmente no quetange ao trato com o lcool. Anal, desde o perodo dos poemas hom-ricos, esta nobreza de sangue vinha desenvolvendo um tipo de relaocerimonial com a bebida que se caracterizava justamente pelo comedi-mento e pelo controle da embriaguez.

    Esta relao se dava, privilegiadamente, no seio de uma cerimnia

    denominada symposium, reunio dedicada exclusivamente ao consumodo vinho, e separada da refeio propriamente dita.117 Embora repre-sentassem uma clara reminiscncia dos velhos banquetes dos guerrei-ros indo-europeus, os symposia se diferenciavam bastante daqueles,especialmente no que se refere s prticas de moderao e renamentodo comportamento etlico. Nos banquetes antigos, comia-se e bebia-se farta, como demonstrado pelos mitos e pela presena, nos grandessales (megara) dos palcios micnicos, da eschara, braseiro circular

    que ocupava o lugar central.118No perodo homrico, um outro objeto, a cratera - grande vaso em

    que se dilua o vinho em gua, e em que este era, por vezes, misturadoao mel, farinha, e a frutas como a cereja silvestre119 - passa a ocuparo lugar central, embora ainda se tratasse de um ato de carter alimentar,conforme descrito na Odissia, quando Ulisses dirige-se a Alcnoo, reidos Fecios:

    Sim, digo mesmo que a nada se pode aspirar de mais altoque ver a paz entre o povo e a alegria no rosto de todos,

    116 Kernyi,Dioniso, 281-2.117 Pauline S. Pantel, As refeies gregas, um ritual cvico, in Flandrin e Montanari,

    Histria da Alimentao, 155-69; Vetta, A cultura dosymposion, 170.118 Ibid., 170.119 Jean-Jacques Maffre, A Vida na Grcia Clssica (Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

    1989): 86; Johnson, Uma Histria do Vinho, 49; Kernyi,Dioniso, 281.

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    e, no interior do palcio, os convivas sentados em ordem,todos o aedo a escutar, tendo mesas na frente, repletas

    de po e carne, no tempo em que o vinho nas grandes craterasdeita o escano, para os copos de todos encher at s bordas:

    eis o que a mim se agura a mais bela e inefvel ventura.120

    somente na obra do poeta lrico Alceu (630-580 a.C.) que apalavra symposion (beber junto) surge pela primeira vez, aparente-mente como uma forma de marcar a identidade de uma aristocraciaem um perodo de grande instabilidade social. Nos symposia nada secomia - quando bebem no comem poderamos dizer, parafraseandoos relatos sobre os ndios do Brasil colonial e ningum que no fossehomem e nobre poderia participar: somente as companheiras (heta-

    ras), mulheres consideradas dissolutas, eram admitidas, e mesmo assimem um papel francamente secundrio.121Nos symposia celebravam-se acontecimentos especiais, no se

    tratando, portanto, de even