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Eduardo Lopes Piris A CONSTRUÇÃO DO ETHOS NUMA POLÊMICA PARLAMENTAR

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Eduardo Lopes Piris

A CONSTRUÇÃO DO ETHOS NUMA

POLÊMICA PARLAMENTAR

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Eduardo Lopes Piris

A CONSTRUÇÃO DO ETHOS NUMA

POLÊMICA PARLAMENTAR

Análise dos pronunciamentos dos parlamentares

que protagonizaram a sessão deliberativa

de 12 de dezembro de 1968

São Paulo 2005

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Crédito da imagem da capa: Imagem: sessão no plenário Ulysses Guimarães da Câmara Federal em Brasília. Fonte: http://www2.camara.gov.br/internet/bancoimagem. Fotógrafo: Gustavo Bezerra.

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BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

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As coisas. Que tristes são as coisas,

consideradas sem ênfase.

Carlos Drummond de Andrade

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Dedico este trabalho a todos que não só

acreditam como também lutam para que a

democracia sobreviva à tirania e à demagogia.

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E, particularmente,

aos meus pais, meus primeiros professores,

ao Mateus, que já cria o mundo por meio da escrita,

ao Guilherme, que começa a descobrir a fala.

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Agradeço a todos que contribuíram para a realização deste trabalho:

Emílio Carlos Lopez Rodriguez, amigo e historiador, pelas primeiras dicas;

André Nogueira Xavier, amigo lingüista, pelo apoio na reta final;

Cristina de Matos Martins, amiga e colega de orientação, pelo diálogo;

Maria Adélia Ferreira Mauro, Helena Hatsue Nagamine Brandão,

Norma Discini de Campos, Sheila Vieira de Carvalho Grilo,

Lineide do Lago Salvador Mosca e José Luiz Fiorin, amigos e professores,

pelas lições ministradas nos cursos da pós-graduação;

Cecília Pérez de Souza-e-Silva e José Luiz Fiorin, pelas contribuições no

exame de qualificação;

Maria Adélia Ferreira Mauro, pela confiança em mim depositada desde o

início, pelo respeito, pela amizade e, enfim, pela inestimável orientação.

Agradeço também ao Departamento de Lingüística da USP pelo apoio;

e ao CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico,

pela bolsa concedida.

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Agradeço a Deus pelos momentos de paciência, perseverança e sabedoria que,

se não foram suficientes para um trabalho genial, o foram para que eu me

enveredasse por esse sertão, que “é onde o pensamento da gente se forma mais

forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso...”

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RESUMO

A sessão da Câmara dos Deputados Federais de 12 de dezembro de 1968 marcou a

política brasileira, pois entrou para a história como o pretexto que faltava para o regime

ditatorial promulgar o Ato Institucional nº 5.

Esta pesquisa visa à análise dos procedimentos discursivos e dos mecanismos

lingüísticos da construção do ethos dos pronunciamentos feitos pelos deputados Geraldo

Freire (ARENA), Márcio Moreira Alves e Mário Covas Júnior (MDB), protagonistas dessa

histórica sessão parlamentar que se constitui como um episódio exemplar de uma já

estabelecida polêmica entre situação e oposição.

Em consonância com Dominique Maingueneau, compreendemos a noção de ethos

como a manifestação de uma subjetividade discursiva que se deixa perceber como uma “voz”

e um “corpo enunciante” historicamente situado que, ao mesmo tempo em que valida o que é

dito, legitima sua maneira de dizer em sua enunciação, extrapolando a noção retórica de ethos

que abrange somente a questão da adesão do auditório.

A análise do ethos que propomos neste trabalho não se embasa, porém, somente no

modelo proposto por Maingueneau, pois, além de levar em conta as categorias discursivas

como a cenografia, o gênero do discurso, a memória discursiva, etc., considera fortemente as

categorias lingüísticas, tais como a dêixis lingüística, as modalidades epistêmicas e as formas

do discurso citado. Por fim, nos preocupamos em relacionar a qualidade dos ethé que

emergem desses pronunciamentos com a respectiva formação discursiva em que esses

discursos se inscrevem.

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ABSTRACT

The House of Representatives session which was held on December 12th, 1968 has left

a mark upon the Brazilian politics for this session has entered history as a lacking excuse for

the dictatorial regimen to promulgate the Institutional Act # 5.

Our research aims at the analysis of the discoursive procedures and the linguistic

mechanisms of the ethos construction on the pronouncements made by the representatives

Geraldo Freire (ARENA), Márcio Moreira Alves and Mário Covas Júnior (MDB),

protagonists of this historical parliamentary session which represents an exemplary episode of

the established controversial issue between situation and opposition.

The ethos may be understood, according to Dominique Maingueneau, as the

manifestation of a discourse subjectivity realized as a "voice" and a historically established

"enunciating body" which, at the same time, validates what is said, and legitimates the manner

of speaking in the enunciation, surpassing the rhetorical notion of ethos which encloses only

the question of the adherence of the listener.

However, the ethos analysis proposed in this work is not based only on

Maingueneau’s paradigm for this analysis also considers discourse categories such as

scenography, discourse genre, discourse memory, etc., along with linguistic characteristics

such as linguistic deixis, epistemological modalities and reported speech. Finally, we are also

concerned with the relation between the quality of the ethé that emerge from these

pronouncements and the discourse formation in which they are inserted.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................15

CAPÍTULO I SOBRE A NOÇÃO DE ETHOS ..............................................................................................26

1. O ethos retórico ................................................................................................................................. 26

2. O ethos discursivo ............................................................................................................................. 30

2.1. A apropriação do ethos pela Análise do Discurso ............................................................... 30

2.1.1. Ethos: tom, caráter e corporalidade ........................................................................ 30

2.1.2. A noção de incorporação ........................................................................................ 32

2.1.3. O anti-ethos ............................................................................................................ 34

2.2. Outras questões associadas ao ethos .................................................................................... 34

2.2.1. A imagem pré-discursiva do enunciador ................................................................ 36

2.2.2. Efeitos visados e efeitos produzidos: a eficácia do ethos ....................................... 38

2.2.3. Além da figura antropomórfica: o ethos institucional ............................................ 40

3. Elementos lingüísticos e discursivos para a análise do ethos............................................................ 42

3.1. As projeções da enunciação no enunciado........................................................................... 43

3.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem............................ 43

3.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização ..................................... 48

3.2. A heterogeneidade enunciativa ............................................................................................ 52

3.2.1. O discurso citado .................................................................................................... 53

3.3. A argumentação ................................................................................................................... 54

3.3.1. Os objetos de acordo com o auditório .................................................................... 55

3.4. A noção de cenografia ......................................................................................................... 58

3.4.1. A cenografia como uma das três cenas de enunciação ........................................... 58

3.4.2. A cenografia como recurso de captação ou de subversão de papéis sociais........... 59

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CAPÍTULO II OS PRONUNCIAMENTOS DE 12 DE DEZEMBRO DE 1968 E O SEU CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO .........................................................................62

4. Sobre o gênero pronunciamento parlamentar.................................................................................... 62

4.1. A noção de gênero do discurso ............................................................................................ 62

4.2. Origem e estabilização do gênero pronunciamento parlamentar ......................................... 66

4.3. Caracterização do gênero pronunciamento parlamentar ...................................................... 68

4.3.1. A construção composicional do pronunciamento parlamentar ............................... 72

4.3.2. Estilo de linguagem do gênero pronunciamento parlamentar................................. 78

5. O cenário político que antecedeu a sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968........................ 79

5.1. A conjuntura política internacional e nacional pré-64 ......................................................... 79

5.2. A conjuntura política nacional pós-64 ................................................................................. 83

5.3. Acerca do pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves.................................... 84

6. A sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968............................................................................ 88

6.1. Transcrição do pronunciamento de Márcio Moreira Alves (MDB/GB) .............................. 89

6.1.1. Primeira parte: o exórdio ........................................................................................ 89

6.1.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio ............................................. 89

6.1.3. Última parte: o epílogo ........................................................................................... 94

6.2. Transcrição do pronunciamento de Mário Covas (MDB/SP) .............................................. 95

6.2.1. Primeira parte, o exórdio ........................................................................................ 95

6.2.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio ............................................. 96

6.2.3. Última parte: o epílogo ......................................................................................... 100

6.3. Transcrição do pronunciamento de Geraldo Freire (ARENA/MG)................................... 102

6.3.1. Primeira parte, o exórdio ...................................................................................... 102

6.3.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio ........................................... 102

6.3.3. Última parte: o epílogo ......................................................................................... 106

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CAPÍTULO III ANÁLISE DOS PRONUNCIAMENTOS .............................................................................108

7. Análise do ethos construído no pronunciamento de Márcio Moreira Alves (MDB/GB)................ 111

7.1. As projeções da enunciação no enunciado......................................................................... 111

7.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem.......................... 111

7.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização ................................... 116

7.2. A heterogeneidade enunciativa .......................................................................................... 128

7.2.1. O discurso citado .................................................................................................. 128

7.3. A cenografia....................................................................................................................... 135

7.4. Caracterização do ethos de Márcio Moreira Alves .......................................................... 140

8. Análise do ethos construído no pronunciamento de Mário Covas Júnior (MDB/SP)..................... 144

8.1. As projeções da enunciação no enunciado......................................................................... 144

8.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem.......................... 144

8.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização ................................... 147

8.2. A heterogeneidade enunciativa .......................................................................................... 149

8.2.1. O discurso citado .................................................................................................. 149

8.3. A cenografia....................................................................................................................... 160

8.4. Caracterização do ethos de Mário Covas ........................................................................... 162

9. Análise do ethos construído no pronunciamento de Geraldo Freire (ARENA/MG) ...................... 165

9.1. As projeções da enunciação no enunciado......................................................................... 165

9.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem.......................... 165

9.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização ................................... 167

9.2. A heterogeneidade enunciativa .......................................................................................... 169

9.2.1. O discurso citado .................................................................................................. 169

9.3. A cenografia....................................................................................................................... 172

9.4. Caracterização do ethos de Geraldo Freire ........................................................................ 174

CONCLUSÕES FINAIS ........................................................................................................176

BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................179

ANEXOS................................................................................................................................185

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INTRODUÇÃO

Eles se jogam numa cadeira, fixando

enfadonhamente os sapatos e anunciam

bruscamente, a si mesmos ou aos outros, nunca

se sabe: “Fulano e beltrano mostraram... que a

fêmea do rato branco responde negativamente

ao choque elétrico...”. Muito bem, meu senhor,

digo-lhes, e daí? Diga-me primeiro por que devo

incomodar-me com isso, então ouvirei.

K.F. Bruner

apud Perelman & Olbrechts-Tyteca

Se fosse possível registrar a data de nascimento de uma pesquisa, diríamos que esta

teve início no primeiro semestre de 2002 durante o curso de pós-graduação ministrado pela

Profª Drª Maria Adélia Ferreira Mauro na Faculdade de Filosofia da USP.

Nesse mesmo semestre, a TV Cultura exibiu o documentário AI-5 – o dia que não

acabou, produzido pelo jornalista Paulo Markun. Esse documentário apresenta uma

reconstituição da sessão da Câmara dos Deputados Federais, realizada em 12 de dezembro de

1968, e uma série de depoimentos de ex-parlamentares que vivenciaram esse episódio

histórico que serviu de pretexto para a promulgação do AI-5.

As questões enunciativas relacionadas ao discurso e à argumentação que foram

tratadas no curso nos despertaram a atenção quando vislumbramos que elas poderiam nos

fornecer fortes subsídios para a análise dos discursos políticos editados nesse documentário.

Para nós, a principal questão era compreender a dimensão subjetiva do discurso e a

problemática do ethos. Tal interesse resultou na monografia de conclusão desse primeiro

curso na pós-graduação, o qual deu origem a esta pesquisa intitulada A construção do ethos

numa polêmica parlamentar: análise dos pronunciamentos dos parlamentares que

protagonizaram a sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968.

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Entretanto, é importante destacar que o documentário produzido por Paulo Markun,

embora tenha nos inspirado num primeiro momento, não serviu como fonte para nossa

pesquisa. O documentário enquanto gênero discursivo edita os pronunciamentos, ou seja,

seleciona alguns discursos para compor o documentário, suprime partes desses discursos,

colhe e insere depoimentos dos ex-parlamentares cujos discursos integram o documentário. A

edição revela o ponto de vista do documentarista, que conduz o seu espectador às conclusões

favoráveis ao seu posicionamento ideológico, por mais imparcial que ele pretenda parecer.

Não foi isso o que nos chamou a atenção desde o início, mas sim o debate político entre

governo e oposição que se desenrolou nessa sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968.

Sendo assim, nos pareceu mais ajustado recorrer a uma fonte como o Diário Oficial da

Câmara dos Deputados, pois os pronunciamentos aí publicados e chancelados, embora não

apresentem elementos como a gesticulação, o vestuário e as expressões faciais dos oradores,

primam pela integridade e fidelidade aos textos dos pronunciamentos proferidos e

taquigrafados.

Dessa maneira, os pronunciamentos proferidos na sessão deliberativa de 12 de

dezembro de 1968 e publicados no Diário Oficial da Câmara dos Deputados, suplemento do

número 098, de 1º de junho de 20001, representam o primeiro momento da constituição do

corpus desta pesquisa. A manipulação dessa primeira amostra nos permitiu anotar, como dado

de partida, que trinta e dois deputados subiram à tribuna para proferir seu pronunciamento.

Passamos, então, à delimitação desse corpus, adotando, em um segundo momento, o

critério do tema, em seu sentido mais largo, ou seja, do que falam os deputados. Assim, com

base no tema “pedido de licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves”,

doravante “pedido de licença”, começamos a delimitar o corpus separando os

pronunciamentos entre os que não trataram e os que trataram do referido tema, conforme o

quadro esboçado a seguir:

1 Esses pronunciamentos foram publicados bem tardiamente, porque as notas taquigráficas referentes àquela sessão de 12 de dezembro de 1968 ficaram perdidas por mais de trinta anos e somente retornaram ao poder da Câmara Federal em 2000, quando foi determinada a sua publicação no Diário Oficial, que está disponível em http://www2.camara.gov.br/internet/publicacoes/index.html#.

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Deputados que usaram a tribuna na sessão de 12 de dezembro de 1968

não trataram do tema “pedido de licença” trataram do tema “pedido de licença”

ARENA ARENA

Cid Rocha, ARENA/PR Garcia Neto, ARENA/MT Antonio Ueno, ARENA/PR Feu Rosa, ARENA/ES

Joaquim Cordeiro, ARENA/GO Pedro Gondim, ARENA/PB Cunha Bueno, ARENA/SP Teófilo Pires, ARENA/MG

Edwaldo Flores, ARENA/BA Geraldo Freire, ARENA/MG Romano Massignan, ARENA/SC

MDB MDB

Antonio Bresolin, MDB/RS Sadi Bogado, MDB/RJ Antonio Magalhães, MDB/GO Nísia Carone, MDB/MG

Celestino Filho, MDB/GO Afonso Celso, MDB/RJ Amaury Kruel, MDB/GB Joel Ferreira, MDB/AM

Adolfo de Oliveira, MDB/RJ Mário Gurgel, MDB/ES Mário Maia, MDB/AC Dias Menezes, MDB/SP Unírio Machado, MDB/RS Otávio Caruso da Rocha, MDB/RS Doin Vieira, MDB/SC

Milton Reis, MDB/MG observação: as identidades de dois Jamil Amiden, MDB/GB

deputados que não trataram do pedido de Márcio Moreira Alves, MDB/GB Licença não são fornecidas pela fonte. Mário Covas Júnior, MDB/SP

Assim, obtém-se daí o seguinte dado: trinta e dois parlamentares usaram a tribuna

naquela sessão de 12 de dezembro de 1968, sendo que doze deputados versaram sobre temas

alheios ao pedido de licença, ao passo que os outros vinte trataram do pedido de licença para

processar o deputado Márcio Moreira Alves.

Então, com base no critério do tema (no sentido amplo da palavra), pré-selecionamos

os pronunciamentos desses vinte deputados e passamos a um terceiro momento da

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delimitação do corpus da pesquisa, observando que, desses vinte pronunciamentos, apenas

um manifestou posição favorável ao pedido de licença para processar o referido deputado: o

discurso do líder da bancada governista Geraldo Freire.

De fato, nesses casos em que um deputado é submetido ao julgamento de seus pares,

já está previsto pela praxe ou pelo rito de uma sessão parlamentar que, além do

pronunciamento de autodefesa proferido pelo próprio deputado acusado, os deputados que

ocupam a liderança das bancadas da maioria e da minoria representem-nas, expressando seu

posicionamento por meio de um pronunciamento de defesa ou de acusação, de forma

antagônica e não necessariamente nessa ordem.

O que chama a atenção é o fato de os outros dezenove deputados se manifestarem

contrários ao pedido de licença, independentemente de sua filiação partidária (ARENA ou

MDB). Poderíamos até dizer que isso não chega a revelar um consenso entre essas duas

agremiações essencialmente antagônicas, pois são apenas quatro arenistas ao lado dos quinze

emedebistas que se mostraram contrários ao pedido de licença, ou seja, poder-se-ia apelar

para a falta de representatividade, no entanto isso já serve para apontar, pelo menos, a

existência de um grupo dissidente no interior da agremiação que representa o governo.

Todavia, nosso centro de interesse não converge para a dissidência arenista, pois nossa

preocupação aqui é com a polêmica entre governo e oposição. Assim, tivemos de selecionar

os pronunciamentos que pudessem revelar o dissenso não entre os membros de uma mesma

agremiação partidária, mas sim entre as formações discursivas ARENA e MDB, para

investigar como a disputa entre governo e oposição foi discursivizada nessa sessão

deliberativa de 12 de dezembro de 1968.

Dessa forma, estabelecemos o pronunciamento de Geraldo Freire como o primeiro

discurso selecionado para compor o corpus desta pesquisa, já que esse foi o único parlamentar

a acolher, na tribuna, o pedido de licença encaminhado pelo Executivo ao Legislativo.

Finalmente, em um quarto momento, adotamos o critério da protagonização para

selecionar os pronunciamentos realizados pelos deputados Márcio Moreira Alves

(considerado o pivô da crise) e Mário Covas Júnior (líder da oposição) e, assim, concluir a

composição de nosso corpus. É preciso ainda ressalvar que, se houvesse mais

pronunciamentos favoráveis ao pedido de licença proferidos nessa mesma sessão de 12 de

dezembro, mais discursos poderiam ter constituído o corpus desta pesquisa.

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É com esse corpus que esta pesquisa pretende demonstrar como certos mecanismos

lingüísticos e discursivos servem à construção do ethos do enunciador, que é o objeto central

deste trabalho, pois importa pouco saber se determinado político é um bom homem ou não;

interessa sim investigar como ele se mostra para os seus por meio de seu discurso. Esse será o

foco das análises dos discursos proferidos nessa sessão parlamentar.

Com relação ao ethos, sua noção tem origem na Retórica de Aristóteles e vem sendo

trabalhada por lingüistas de diversas tendências teóricas. Segundo Maingueneau (2002a,

p.60), “o que era uma disciplina única, a retórica, está hoje estilhaçada em diversas disciplinas

teóricas e práticas que têm interesses distintos e captam o ethos sob facetas diferentes”2.

Maingueneau (2002a, p.60) diz que a multiplicidade do atual emprego do termo ethos

torna difícil uma estabilização dessa noção, mas que, sem prejulgar a maneira como essa

noção será explorada, ainda é possível manter acordo sobre três pontos, a saber:

• o ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma “imagem” do locutor exterior à fala;

• o ethos está funcionalmente ligado a um processo interativo de influência sobre o outro;

• é uma noção híbrida (sócio/discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma em uma conjuntura sócio-histórica determinada (2002a, p.60).3

Amossy (2005, p.9-28) apresenta de forma sucinta algumas correntes da Análise do

Discurso, da Pragmática, da Teoria da Argumentação, da Narratologia, entre outras, e a

maneira como cada qual compreende a questão do ethos. No entanto, pedimos licença para

nos eximirmos da tarefa de reconstruir tal percurso, já que pretendemos nos dedicar à noção

de ethos tal como ela é proposta por Maingueneau e aí incorporar, como faz o próprio autor,

2 “ce qui était une discipline unique, la rhétorique, est aujourd’hui éclaté en diverses disciplines théoriques et pratiques qui ont des intérêts distincts et captent l’ethos sous des facettes diverses” (2002a, p.60). 3 - l’ethos est une notion discursive, il se construit à travers le discours, ce n’est pas une « image » du locuteur extérieure à la parole ; - l’ethos est funcièrement lié à un processus interactif d’influence d’autrui ;

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algumas contribuições oferecidas por lingüistas, iniciadores e seguidores, interessados pelos

problemas da enunciação tais como Bakhtin, Benveniste, Ducrot, Kerbrat-Orecchioni, entre

outros.

Antes, é preciso meditar um pouco sobre esses três pontos de acordo sobre a noção de

ethos apontados por Maingueneau. Em primeiro lugar, a preocupação com uma noção como a

de ethos vem ao encontro da necessidade de perceber e apreender o sujeito responsável pela

enunciação de seu discurso, não o sujeito empírico, do qual se procuram a data do

nascimento, do casamento e do óbito, suas idas e vindas pelo mundo, etc., mas sim o

simulacro que ele oferece de si a outrem, pois, segundo Fiorin (2004, p.120), “a análise do

ethos do enunciador nada tem do psicologismo que, muitas vezes, pretende infiltrar-se nos

estudos discursivos. Trata-se de apreender um sujeito construído pelo discurso e não uma

subjetividade que seria a fonte de onde emanaria o enunciado, de um psiquismo responsável

pelo discurso”.

E, para fechar essa questão em torno do sujeito construído pelo discurso, vale lembrar

que Brandão (1998, p.43) mostra que “segundo Authier-Revuz, existe uma negociação entre a

heterogeneidade mostrada na linguagem e a heterogeneidade constitutiva da linguagem em

que o sujeito, movido pela ilusão do centro, pela ilusão de ser a fonte do discurso, por um

processo de denegação, localiza o outro e delimita o seu lugar para circunscrever seu próprio

território”. Em outras palavras, pode-se dizer que o sujeito é um efeito de sentido gerado por

meio de mecanismos discursivos que visam a construir uma unidade discursiva que se assume

como “eu” e que tende a harmonizar as diversas vozes que atravessam seu discurso. Parece

que é dessa maneira que se deve entender o ethos como noção discursiva, ou seja,

depreendendo a imagem desse “eu”, sujeito enunciador, construída no discurso.

No entanto, a inquietação com respeito ao ethos vai mais além. A interação que se dá

entre esse “eu” e o seu outro por meio da linguagem não se estabelece sob a ordem da razão

nem se presta à mera troca de informações, pois a essa interação subjazem os efeitos que se

quer criar sobre o outro, a persuasão, por meio da argumentação. Em outras palavras, a

interação entre os sujeitos pressupõe mais a dimensão pragmática do discurso, o fazer crer e o

fazer fazer, do que sua dimensão cognitiva, o fazer saber. Daí pode-se falar da linguagem

- c’est une notion hybride (socio / discursive), un comportement socialement évalué, qui ne peut être appréhendé hors d’une situation de communication précise, intégrée elle-même dans une conjoncture socio-historique déterminée.

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como atividade, como ação sobre o outro. Conforme Mosca (1997, p.27), isso se deve ao fato

de que “a linguagem é assim instrumento não só de informação, mas basicamente de

argumentação e esta, por sua vez, se dá na comunicação e pela comunicação, razão pela

qual a argumentação é sempre situada, dando-se basicamente num processo de diálogo, isto é,

num contacto entre sujeitos”.

Já, em uma perspectiva lingüística, Ducrot exemplifica que a argumentação não

repousa sobre o caráter racional, dizendo que:

X e Y devem ir juntos a um certo lugar E. Eles sabem exatamente a que distância estão de E. X propõe a Y de ir a pé até E. Se Y estiver de acordo, pode responder “sim, é perto”. Se, ao contrário, ele quiser recusar, há a possibilidade de dizer “não, é longe”. O que muda entre a qualificação “perto” e a qualificação “longe”? Não é a distância, que X e Y bem conhecem. É somente a exploração argumentativa dessa distância4 (p.6-7).

Deve-se entender aí que não é o componente racional que justificará a recusa ou o

aceite de Y ir ao lugar E em companhia de X, mas sim o componente argumentativo. Dessa

maneira, também tem razão Koch (2001, p.29) ao afirmar que “o uso da linguagem é

essencialmente argumentativo”. Assim, quando Maingueneau (2002a, p.60) diz que “o ethos

está funcionalmente ligado a um processo interativo de influência sobre o outro”, ele quer

dizer que a noção de ethos, já em sua origem, aparece associada ao processo de persuasão, ou

seja, o ethos é construído discursivamente para dar sustentação àquilo que é dito e, assim,

levar o ouvinte a crer em algo e a fazer algo em uma determinada direção.

Além desses dois pontos de acordo sobre o ethos, esboçados de maneira introdutória,

encaminhar um estudo preocupado com a construção do ethos (sobretudo do ethos de sujeitos

que se constroem como políticos) se justifica, também, pelo compromisso de desvelar os

mecanismos de construção e de manutenção de imagens ou de máscaras públicas, que são

reconhecidas pela sociedade que com elas interagem.

4 X et Y doivent se rendre ensemble à un certain endroit E. Ils savent exactement l’un et l’autre à quelle distance ils sont de E. X propose à Y d’aller à pied à E. Y, s’il est d’accord, peut répondre « oui, c’est près ». Si au contraire il veut refuser, il a la possibilité de dire « non, c’est loin ». Qu’est-ce qui change entre la qualification « près » e la qualification « loin » ? Ce n’est pas la distance, que X et Y connaissent l’un comme l’autre. C’est seulement l’exploitation argumentative de cette distance.

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Assim é preciso ponderar e entender o que Maingueneau diz sobre o hibridismo da

noção de ethos. O ethos remete não só a fatores de ordem discursiva, como também de ordem

sócio-histórica, pois, ao mesmo tempo em que o ethos é engendrado no e pelo discurso, sua

construção se apóia em comportamentos socialmente axiologizados, ou seja, modos de dizer,

de ser, enfim, de se comportar, que têm o reconhecimento ou a reprovação de um determinado

grupo social. Em outras palavras, a construção do ethos no discurso reflete e refrata o que o

sociólogo Norbert Elias chama de habitus, o que, em linhas gerais, pode ser entendido como

modo de ser de um indivíduo em sua relação intrínseca com o grupo social ao qual ele

pertence. Para Elias (1994, p.150), o habitus equivale à “composição social dos indivíduos”,

ou seja, “cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas as demais, tem uma

composição específica que compartilha com outros membros de sua sociedade”.

Em relação à noção de habitus, é preciso lembrar que o também sociólogo Pierre

Bourdieu atribui a essa noção uma dimensão lingüística a qual ele chama de habitus

lingüístico; trata-se aí de uma interessante distinção no interior de sua teoria que, no entanto,

fica um pouco distante dos encaminhamentos deste trabalho, pois, se, para Bourdieu (1983,

p.104), “a noção de habitus engloba a noção de ethos”, entender-se-á aqui, juntamente com

Eggs (2005), que a noção de ethos possui uma dimensão moral (epieíkeia) e uma dimensão

social (héxis = habitus)5, que são solidárias.

Agora, uma vez discutidas essas três características gerais da noção de ethos, interessa

fixar a forte relação entre ethos e enunciação, já que se trata de uma noção relacionada ao

sujeito responsável pela enunciação de seu discurso, como atesta Amossy (2005, p.10) ao

lembrar que “a construção de uma imagem de si, peça principal da máquina retórica, está

fortemente ligada à enunciação, colocada no centro da análise lingüística pelos trabalhos de

Émile Benveniste”. Passemos a um breve sobrevôo sobre a noção de enunciação.

Em seu artigo intitulado O aparelho formal da enunciação, Benveniste define a

enunciação como “este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de

utilização” (1989, p.82), alertando que “é preciso ter cuidado com a condição específica da

enunciação: [pois] é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que

é nosso objeto” (Ibidem).

5 Isso será mais explorado neste trabalho na subseção 1.1- O ethos retórico.

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No que toca à enunciação, o que importa sublinhar desde já é o entendimento que se

tem sobre o papel dos sujeitos da enunciação. Benveniste mostra que esse “ato individual pelo

qual se utiliza a língua introduz em primeiro lugar o locutor como parâmetro nas condições

necessárias da enunciação” (Ibidem, p.83), ao passo que esse locutor “enuncia sua posição de

locutor”, “ele implanta o outro diante de si” (Ibidem, p.84), ou seja, a enunciação é um

processo no qual é possível reconhecer as suas instâncias tanto de produção quanto de

interpretação da enunciação. Mais adiante, Benveniste confirma que “a enunciação coloca

duas figuras igualmente necessárias, uma, origem, a outra, fim da enunciação. É a estrutura do

diálogo” (Ibidem, p.87). É o que Benveniste denomina de “quadro figurativo da enunciação”

(Ibidem).

Já Anscombre & Ducrot (1988, p.36) definem a enunciação como “a atividade

linguageira exercida por aquele que fala no momento em que ele fala. Logo, ela é por

essência histórica, eventual, e, como tal, não se reproduz nunca duas vezes idêntica a si

mesma”6. Os autores acentuam em sua definição o aspecto da historicidade, do acontecimento

da enunciação, porém deixam de frisar, como bem mostra Kerbrat-Orecchioni (1980, p.28),

que a enunciação é também a atividade exercida “por aquele que escuta no momento em que

ele escuta”7. De todo modo, a enunciação, entendida como ato singular, não pode ser descrita

em si mesma, já que ela escapa incessantemente a todo o momento que se enuncia. Por isso é

que Kerbrat-Orecchioni (1980, p.30) diz que “na impossibilidade de estudar diretamente o ato

de produção, buscaremos identificar e descrever os traços do ato no produto, ou seja, os

lugares de inscrição, na trama enunciva, de diferentes constituintes do quadro enunciativo”.

Em outras palavras, o trabalho do lingüista consiste aí em buscar no enunciado as marcas de

sua enunciação. Marcas lingüísticas que são expressas pela dêixis, pela modalização, pelo

conjunto de termos avaliativos, etc., e que foram bem examinadas por Kerbrat-Orecchioni

(1980), como lembra Amossy (2005, p.11).

É preciso também levar em conta o aspecto dialógico da enunciação, ou seja, deve-se

considerar que a enunciação não é um processo gerado espontaneamente a partir do nada, pois

a atividade de enunciar um discurso pressupõe, no mínimo, uma resposta a outras enunciações

6 “l’activité langagière exercée par celui qui parle au moment où il parle. Elle est donc par essence historique, événementielle, et, comme telle, ne se reproduit jamais deux fois identique à elle même” (1988, p.36). 7 “[mais aussi, par celui qui écoute au momento où il écoute]” (1980, p.28).

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de outros discursos. Bakhtin (2002, p.98) entende que “toda enunciação, mesmo na forma

imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de

um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava

uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as”.

Dentro do quadro da Semiótica, Greimas & Courtés (1983, p.145-6) propõem tratar da

enunciação como “uma instância lingüística, logicamente pressuposta pela própria existência

do enunciado (que dela contém traços e marcas)” e “sendo o enunciado considerado como o

resultado alcançado pela enunciação, esta aparece como a instância de mediação, que

assegura a colocação em enunciado-discurso das virtualidades da língua”.

De um modo geral, pode-se ver que todas essas explicações abarcam o mesmo

fenômeno lingüístico, todavia cada explicação enfatiza uma preocupação diferente, o que é

salutar para que se desenhe um quadro teórico mais completo do fenômeno da enunciação.

Sendo assim, podemos resumir que a enunciação é este ato de colocar a língua em

funcionamento, de converter as virtualidades do sistema lingüístico e de qualquer outro

sistema semiótico em discurso, no qual as instâncias enunciativas “eu” e “tu” interagem entre

si, representando os acordos e desacordos do “mundo real”, e dialogam com os discursos

antecessores, materializando tal acontecimento, que é único e histórico, na forma de um

enunciado, produto pelo qual se apreende os rastros da enunciação e as grades culturais de um

dado contexto sócio-histórico a que ela remete.

Após essa breve passagem pela noção de enunciação, é oportuno voltar a dizer que

para depreender o ethos é necessário levar em conta as noções lingüísticas e discursivas

relativas à enunciação, correlacionando os fenômenos enunciativos aos efeitos de sentido que

eles podem criar, a fim de apreender um modo de dizer, um tom e, daí, conferir um ethos ao

enunciador.

E, feitas essas considerações iniciais, passemos à exposição do plano de texto deste

trabalho. O primeiro capítulo se destina à discussão sobre a noção de ethos. Nele, trataremos,

em primeiro lugar, de situar o ethos retórico como uma das três provas de persuasão,

especificando sua natureza discursiva. Depois, nos estenderemos sobre a apropriação do ethos

pela Análise do Discurso, abrangendo noções associadas ao ethos como a incorporação e o

anti-ethos e firmando posições sobre algumas questões que geram polêmica como, por

exemplo, o emprego de termos como ethos discursivo e ethos pré-discursivo, ethos visado e

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ethos produzido, ethos institucional. E, ao final do primeiro capítulo, abordaremos as noções

lingüísticas e discursivas que servirão às análises.

Depois de situar a noção de ethos com qual iremos trabalhar, apresentaremos no

segundo capítulo o contexto sócio-histórico que envolve os pronunciamentos sob análise.

Trata-se de um capítulo de preparação para a análise, um momento em que a preocupação

com a fundamentação teórica cede algum espaço para oferecer uma contextualização histórica

dos discursos que serão analisados no terceiro capítulo.

Desse modo, o segundo capítulo abriga três seções. Na primeira, trataremos do gênero

parlamentar, expondo a noção de gênero com a qual nos afinamos, abarcando as origens desse

gênero, bem como a estabilização de suas principais características. Na segunda seção,

tentaremos traçar o cenário político que antecedeu a sessão deliberativa de 12 de dezembro de

1968, especialmente a conjuntura política internacional e nacional pré-68 e a sessão ordinária

de 4 de setembro de 1968, que abrigou o início de um debate sobre o episódio da invasão da

Universidade de Brasília pela polícia militar. Por fim, na terceira seção, apresentaremos a

transcrição que fizemos dos três pronunciamentos sob análise, já que a legibilidade dos fac-

símiles8 fica prejudicada em muitas passagens.

Finalmente, no terceiro capítulo, nos dedicaremos ao estudo dos pronunciamentos dos

parlamentares que protagonizam essa sessão deliberativa que antecedeu o AI-5, seguindo a

ordem em que foram proferidos e focalizando a construção dos ethé, que serão depreendidos

com base em uma série de categorias de análise como a dêixis lingüística, as modalidades

epistêmicas, o discurso citado e a cenografia, em que o resultado geral é sempre discutido no

final das análises à guisa de conclusão.

8 Juntados nos anexos IV, V e VI.

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CAPÍTULO I

SOBRE A NOÇÃO DE ETHOS

As elegias de Tirteu estão impregnadas de um

ethos educacional de estilo grandioso. O alto

nível das exigências propostas ao sentido

comunitário e à abnegação dos cidadãos era,

sem dúvida, justificado pelas circunstâncias em

que o poeta as formulou: o grande perigo que

Esparta corria nas guerras messênicas.

Werner Jaeger

1. O ETHOS RETÓRICO

Aristóteles entende a retórica como “a capacidade de descobrir o que é adequado a

cada caso com o fim persuadir” (1998, p.48), ou seja, “a retórica tem, por assim dizer, a

faculdade de descobrir os meios de persuasão sobre qualquer questão dada” (Ibidem, p.49).

Nesse sentido, Armando Plebe (1978, p.39) explica que a retórica deve levar a uma

demonstração construída por meio de silogismos convincentes – o que Aristóteles chama de

silogismos retóricos ou entimemas – e não a uma demonstração irrefutável que se efetua por

meio dos silogismos próprios da lógica. No entanto, é na retórica que, segundo Armando

Plebe e Pietro Emanuele (1992, p.31-32), uma determinada tese se contrapõe às outras para

vencê-las e afirmar a sua superioridade.

Dessa forma, Aristóteles diz que “a demonstração retórica é o entimema e que este é,

geralmente falando, a mais decisiva de todas as provas por persuasão” (1998, p.46) e ressalta,

ainda, que a função da retórica “não é persuadir mas discernir os meios de persuasão mais

pertinentes a cada caso” (Ibidem, p.47).

Isso posto, Aristóteles (Ibidem, p.49) distingue dois tipos de provas de persuasão,

sendo que um deles não é próprio da retórica, enquanto o outro sim. O primeiro tipo consiste

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nas provas não técnicas ou inartísticas, isto é, naquelas obtidas por meio de testemunhos,

confissões sob tortura ou quaisquer outros métodos coercitivos, etc. Já o segundo corresponde

às provas técnicas ou artísticas, ou seja, em todas aquelas produzidas pelo orador por meio do

método retórico. Em suma, a diferença é que as provas do primeiro tipo são utilizadas e as do

segundo, inventadas.

Aristóteles define, então, três espécies de provas artísticas de persuasão fornecidas

pelo discurso, dizendo que “umas residem no carácter moral do orador; outras, no modo como

se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece

demonstrar” (Ibidem).

Aristóteles expõe claramente essa primeira prova ao afirmar que “persuade-se pelo

carácter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser

digno de fé” e que “é, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não

de uma opinião prévia sobre o carácter do orador” (Ibidem). A segunda prova consiste na

disposição dos ouvintes, ou seja, nas emoções que o discurso os leva a experimentar. Já a

terceira deriva do que é construído por meio do próprio raciocínio. A essas três espécies de

provas técnicas ou artísticas de persuasão correspondem, mais especificamente, os termos

ethos, pathos e logos, respectivamente.

Armando Plebe (1978, p.42) observa que ethos e pathos podem ser traduzidos por

“caráter” e “paixão” apenas de forma aproximada. Segundo o autor, a razão disso diz respeito

ao fato de que o termo ethos pode expressar também a idéia de atitude, costume e moralidade,

enquanto o termo pathos “não é ‘paixão’ no puro sentido de uma inflamada emoção, mas é o

mundo todo da irracionalidade emocional”.

Nesse sentido, Ekkehard Eggs (2005, p.30) mostra que há “dois campos semânticos

opostos ligados ao termo ethos: um, de sentido moral [...], engloba atitudes e virtudes como

honestidade, benevolência ou eqüidade; outro, de sentido neutro ou ‘objetivo’ da héxis, reúne

termos como hábitos, modos e costumes ou caráter”. O que Eggs quer dizer aí é que o ethos

não compreende apenas uma dimensão moral, mas também social. Assim, o autor ilustra sua

observação com a seguinte passagem do terceiro livro da Retórica de Aristóteles: “um homem

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rude não poderia dizer as mesmas coisas nem dizê-las da mesma maneira que um homem

culto”9 (2005, p.29).

Outro ponto a ser discutido corresponde à natureza do ethos. Ruth Amossy (2005,

p.17) suscita a polêmica, questionando se “o ethos é [...] a imagem de si construída no

discurso ou [...] um dado preexistente que se apóia na autoridade individual e institucional do

orador”. A autora conduz sua exposição à seguinte resposta: “Le Guern conclui de seu

percurso pelos manuais clássicos que a eficácia do discurso deriva claramente dos caracteres

oratórios e não dos caracteres reais” (2005, p.19).

Roland Barthes (1975, p.203) corrobora a noção aristotélica de ethos, dizendo que os

ethé “são os traços de caráter que o tribuno deve mostrar ao auditório (pouco importa sua

sinceridade) para causar boa impressão: são suas aparências”.

Gilles Declercq (1992, p.47), também em sintonia com Aristóteles, diz que “o ethos

deve ser compreendido como uma condição técnica e intrínseca do processo de persuasão, e

não como uma qualidade moral e extrínseca que resulta da natureza do orador”10. E mais, “é o

discurso que produz a confiança: correlativamente a uma representação do mundo, o orador

constrói por meio de sua enunciação uma representação oratória de sua pessoa que modela a

situação e argumentação”11. Em outras palavras, não é necessariamente a própria honestidade

do orador que lhe garantirá o sucesso persuasivo, mas sim a impressão que o seu discurso

causar.

Os lingüistas e os analistas do discurso também partilham desse princípio e, antes de

adaptar a noção de ethos aos seus quadros teóricos, alinham suas considerações às desses dois

comentadores da Retórica. Falemos, pois, de Ducrot (1987), Fiorin (2004) e Maingueneau

(2005).

Ducrot (1987, p.187-188), ao distinguir o sujeito falante (elemento da experiência, ser

empírico) do locutor (ficção discursiva, ser do discurso), propõe outra distinção no interior da

9 Manuel Alexandre Júnior et al. traduzem a passagem como “Na verdade, o rústico e o instruído não falam do mesmo modo” (1998, p.190) 10 “L´ethos doit donc se comprendre comme une condition technique et intrinsèque du processus de persuasion, et non comme une qualité morale et extrinsèque issue de la nature de l´orateur.” (Declercq, 1992, p.47). 11 “C´est le discours qui produit la confiance: corrélativement à une représentation du monde, l´orateur construit par son énonciation une représentation oratoire de sa personne qui façonne la situation d´argumentation.” (Ibidem).

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noção de locutor, a saber: locutor L (responsável pela enunciação) e locutor λ (a origem do

enunciado).

A argumentação de Ducrot em favor dessa distinção se sustenta no fato de que, para

ele, enunciados como “Ai de mim!” ou “Ah!” diferenciam-se de enunciados como “eu estou

muito triste” ou “eu estou muito alegre”, justamente porque enquanto aqueles revelam

tristeza ou alegria por meio da enunciação, estes descrevem esses estados no próprio

enunciado. Mais especificamente, nos primeiros enunciados, é ao locutor L que os

sentimentos são atribuídos, ao contrário dos últimos, nos quais a tristeza e a alegria são

estados referentes ao locutor λ, ou seja, àquele que diz “eu”.

No bojo de sua teoria, Ducrot (1987, p.189) diz que ethos está ligado ao locutor L e

que “é enquanto fonte da enunciação que ele se vê dotado de certos caracteres que, por

contraponto, torna esta enunciação aceitável ou desagradável” e o que “o orador poderia dizer

de si [...] diz a respeito de λ”.

Fiorin (2004, p.120) ressalta que “o éthos não se explicita no enunciado, mas na

enunciação [...], ou seja, nas marcas da enunciação deixadas no enunciado”, concordando com

a idéia aristotélica de que o ethos é uma construção do discurso, um efeito de sentido, e não

algo dado a priori.

Por sua vez, Maingueneau (2005, p.70) afirma que “a questão essencial é que o ethos

[...] está ligado à enunciação, não a um saber extradiscursivo sobre o enunciador”. Além

disso, também critica a tradução do termo ethos por caráter.

Em consonância com esses autores, podemos concluir que a primeira prova técnica ou

artística de persuasão – o ethos – está associada à construção da imagem do orador no e pelo

discurso e não corresponde a qualquer opinião prévia que se tenha sobre sua pessoa, ou seja,

“o ethos se mostra, ele não é dito” (Maingueneau, 2005, p.71). É preciso sublinhar que estar

associado não significa ser equivalente, pois, a rigor, a noção de ethos não se restringe a

recobrir somente a imagem do enunciador. O ethos extrapola isso, pois remete à idéia do

fiador do discurso, aquele que garante o que é dito, que legitima seu discurso pelo seu modo

de dizer.

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2. O ETHOS DISCURSIVO

2.1. A apropriação do ethos pela Análise do Discurso

2.1.1. Ethos: tom, caráter e corporalidade

Conforme vimos na seção anterior, a noção de ethos vem sendo trabalhada por

lingüistas de diversas tendências teóricas. Porém, é com os trabalhos de Maingueneau que

uma teorização sobre o ethos discursivo parece ganhar consistência. É o que percebe

Ekkehard Eggs ao comentar que “o ethos está – com exceção dos trabalhos de Dominique

Maingueneau – praticamente ausente da pesquisa atual em lingüística, em pragmática e em

teoria da argumentação” (2005, p.30). Além disso, como atesta Maingueneau, ethos não é

uma noção que goza de estabilidade no “vocabulário crítico” (2001, p.138).

Parece possível inferir que uma noção surgida na Antigüidade não seria adaptada a

uma disciplina contemporânea senão com os devidos ajustes. Dessa maneira, Maingueneau

(1997, p.45), integra o ethos retórico à disciplina em que se situa, a Análise do Discurso (AD),

propondo dois deslocamentos. O primeiro diz respeito aos efeitos que o enunciador pretende

causar sobre seu auditório por meio de sua imagem são impostos pela formação discursiva e

não pelo sujeito em si. O segundo é que “a AD deve recorrer a uma concepção do ethos que

seja transversal à oposição entre o oral e o escrito”, pois “embora o texto seja escrito, ele é

sustentado por uma voz específica” (1997, p.46) e “qualquer gênero de discurso escrito deve

gerir sua relação com uma vocalidade fundamental” (2001, p.139). Em suma, pode-se dizer

que mesmo os textos escritos são dotados de uma voz, ou melhor, de um tom.

No entanto, só o tom ainda é muito pouco para recobrir a noção de ethos, por isso

Maingueneau afirma que “o tom está necessariamente associado a um caráter e a uma

corporalidade” (1997, p.46-47). Dessa maneira, o autor (2001, p.139; 2005, p.72) sustenta

que o caráter12 corresponde a um feixe de traços psicológicos, enquanto a corporalidade se

associa a uma compleição corporal, isto é, a um modo de se movimentar num espaço social.

É interessante notar como essa proposta de Maingueneau – de pensar o tom, o caráter

e a corporalidade como integrantes do ethos – vai ao encontro das observações feitas por

Armando Plebe (1978) e Ekkehard Eggs (2005) sobre a tradução do termo ethos, uma vez que

ambos percebem que operar com o ethos não é só tratar da dimensão moral apresentada por

12 Nesse caso, caráter não deve ser tomado como aquela tradução mais usual de ethos.

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aquele que enuncia um discurso, mas também de sua dimensão social. Dessa forma, é preciso

detalhar um pouco mais essas dimensões do ethos.

Aristóteles já dizia que “acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas”

(1998, p.49). Em termos atuais, isso quer dizer que a persuasão não se realiza somente por

meio do raciocínio demonstrado no discurso por meio do dito, pois muito dela depende do

modo de dizer e, portanto, do modo de ser e de se movimentar do enunciador. É aí que o tom

aparece como a vocalidade que implica o corpo do enunciador, não o corpo do ser empírico,

ontológico, mas aquele que emerge do discurso como “uma instância subjetiva encarnada que

exerce o papel de fiador” do que é dito, como mostra Maingueneau (2005, p.72).

Dessa maneira, a autoridade do que é dito pelo enunciador é garantida por meio desse

fiador, pois é ele quem leva o co-enunciador a se identificar com o seu corpo, mais

especificamente com o seu jeito de dizer, de ser, de se movimentar, enfim, de se comportar.

Eis que a autoridade do enunciador não está necessariamente ligada à sua ascendência social,

mas sim à legitimidade da enunciação de seu discurso.

Quando se diz que ao tom se associam um caráter e uma corporalidade, quer se dizer

que esse fiador do discurso aparece investido dessas outras duas dimensões do ethos, as quais

se apóiam sobre representações sociais, estereótipos culturais axiologizados, isto é,

valorizados positiva ou negativamente. E, como mostra Maingueneau (2005, p.72), “esses

estereótipos culturais circulam nos registros mais diversos da produção semiótica de uma

coletividade: livros de moral, teatro, pintura, escultura, cinema, publicidade...”, o que não

trata de outra coisa senão da discursividade, aliás da interdiscursividade.

Bem entendidas as dimensões vocal, psíquica e física do ethos, é preciso fazer duas

observações. A produção de uma qualidade de ethos deve ainda ser compatível com o mundo

que é construído no discurso por meio da cenografia, pois quando se fala em “um modo de

ser e de se movimentar no mundo”, está se tratando de um mundo que é produzido no e pelo

discurso por meio de uma topografia e de uma cronografia, nos termos de Maingueneau.

É nesse sentido que Maingueneau (2005, p.75) afirma que o ethos “é parte constitutiva

da cena de enunciação”, noção que será retomada mais adiante, no final deste primeiro

capítulo. E, por fim, tudo isso que compreende a noção de ethos integra a identidade de uma

dada formação discursiva na qual um discurso se inscreve.

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2.1.2. A noção de incorporação

Maingueneau propõe a noção de incorporação para dar conta da relação entre ethos e

co-enunciador (2005, p.72) ou, ainda, “para designar a ação do ethos sobre o co-enunciador”

(2002, p.99), porque o entendimento do processo de persuasão pelo ethos não se exaure na

sua descrição em si. É preciso compreender também que a enunciação, ao dar corpo ao fiador,

possibilita que o co-enunciador incorpore, assimile o modo de se comportar desse corpo

enunciante, tendo a ilusão de que ele faz parte de um corpo, um grupo social e ideológico.

Assim, para Maingueneau, o processo de incorporação está concluído quando o co-enunciador

se vê como membro de “uma comunidade imaginária dos que aderem a um mesmo discurso”

(2005, p.73).

A relação intersubjetiva entre o enunciador e o seu co-enunciador implica persuasão e

adesão, ou seja, um leva o outro a crer e a fazer; no entanto, quando se fala em incorporação,

está-se determinando o papel que a imagem do corpo do enunciador cumpre nesse processo

persuasivo, mas não o corpo restrito a uma compleição física, e sim um corpo dotado de

caráter e de reconhecimento sócio-cultural.

No processo de persuasão, a incorporação cumpre a função específica de levar o co-

enunciador a aderir a um discurso, fazendo-o assimilar uma maneira de ser e um modo de

fazer. Aliás, esse processo de assimilação pode ser encarado, como propõe Landowski (2002)

ao tratar do Outro e sua presença, dentro de um contínuo que compreende a assimilação, a

admissão, a segregação e a exclusão, que é disposto no quadrado semiótico da seguinte forma:

CONJUNÇÃO DISJUNÇÃO “Assimilação” “Exclusão” “Admissão” “Segregação” NÃO-DISJUNÇÃO NÃO-CONJUNÇÃO

(Landowski, 2002, p.15).

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Dessa maneira, Landowski explica que a assimilação opera “uma perfeita conjunção

das identidades”, enquanto a exclusão, “sua completa disjunção” (Ibidem, p.16),

diferentemente da segregação e da admissão que não marcam posições absolutas e se nutrem

de reminiscências.

A segregação, ao mesmo tempo que depende da não-conjunção, supõe a reminiscência

de uma relação conjuntiva; assim, um discurso de segregação faz pressupor que “os dois

elementos da relação se encontravam conjuntos” e manifesta que “é precisamente esta

conjunção que está se desfazendo” (Ibidem, p.18) de modo a evitar a exclusão. A admissão,

por sua vez, “dependerá da não-disjunção e só poderá ser viável como regime de relações

intersubjetivas entre indivíduos ou entre comunidades com base na reminiscência contrária”

(Ibidem, p.20). Além disso, a admissão favorece a aproximação entre identidades distintas e

oferece resistência ao seu próprio efeito final, que é o da eliminação das diferenças, a

assimilação.

Essa passagem pelo texto de Landowski tem a intenção de mostrar que a incorporação

do ethos está longe de ser um processo absoluto, o que conduz à idéia de assimilação do corpo

do enunciador, pois a incorporação pode ocorrer também como admissão. Assim, recuperando

o que diz Maingueneau (2005, p.73), o processo de incorporação se conclui quando o co-

enunciador se sente, ou melhor, quando é construído para se sentir assimilado ou admitido

(aceito) em “uma comunidade imaginária dos que aderem a um mesmo discurso”.

Por exemplo, nos discursos que antecederam o AI-5, os membros do MDB assimilam,

ou seja, incorporam amplamente o ethos construído nos discursos do líder da bancada,

deputado Mário Covas; alguns deputados da ARENA admitem, ou seja, aceitam incorporar

parcialmente esse ethos; o regime militar segrega, ou seja, não incorpora o ethos produzido

pelos discursos oposicionistas, mas convive com a produção discursiva de um partido de

oposição oficialmente legalizado, tratando-o como minoria; e, finalmente, o mesmo regime,

por meio do AI-5, exclui o Outro do que ele entende como seu ambiente, logo não há aí a

mínima chance de incorporação e isso já remete à questão do anti-ethos, ou seja, à imagem do

anti-sujeito.

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2.1.3. O anti-ethos

Como se vê, é possível relacionar os discursos de segregação e de exclusão ao anti-

ethos. O enunciador por meio de seu modo de dizer mostra um determinado comportamento

em vez de outro e, assim, tal oposição pode ser localizada conforme as grades culturais que se

impõem à produção de seu discurso. Por exemplo, o discurso que reivindica o

restabelecimento da ordem sobre o caos é reconhecido na grade cultural pós-64 como o

discurso do regime que se instalou no governo após o golpe militar de 1964.

A exemplo do ethos, o anti-ethos deve ser entendido como uma figura discursiva

mostrada na enunciação, o que não deve ser confundido com as descrições que se fazem do

anti-sujeito no enunciado, porque isso equivale ao equívoco de se acreditar que o ethos é dado

a priori no enunciado, em que o enunciador diz “sou honesto” e se aceita que o seja. Enfim,

não basta ao enunciador de um discurso político, por exemplo, dizer que seu adversário é

desonesto ou corrupto, é preciso, antes, que seu discurso construa o ethos de um político

honesto para, simultaneamente, ir construindo o anti-ethos do político desonesto.

2.2. Outras questões associadas ao ethos

Neste momento, pretendemos avançar sobre outras questões que envolvem o ethos,

bem como justificar as posições que assumiremos neste trabalho no que toca ao emprego de

certos termos que dizem respeito ao ethos.

Antes, é preciso estabelecer que, embora adotemos aqui uma noção de ethos apoiada

no quadro teórico formulado por Maingueneau, procuramos manter fidelidade a uma das

características que marcam a concepção aristotélica de ethos: a de relacionar o ethos à

imagem que o orador constrói de si no e pelo seu próprio discurso.

De fato, isso traz conseqüências. Fundamentalmente, a mais importante delas é

sustentar que o ethos não corresponde à imagem de outra instância subjetiva que não a do

enunciador. Ora, um estudo que se proponha a analisar a construção da imagem de um certo

político em uma determinada revista não estará tratando do ethos desse tal político, porque

sua imagem foi construída por um terceiro e não por ele mesmo.

As revistas e os políticos podem se constituir como atores discursivos, no entanto a

questão é reconhecer quem é o responsável pela enunciação. Nas eleições de 2002, Revistas

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como Veja, Primeira Leitura e Caros Amigos publicaram matérias sobre os candidatos Lula,

Serra, Garotinho e Ciro Gomes. Certamente, há aí ocorrências de discurso citado, o que revela

que os políticos enunciam, mas enunciam na condição de enunciadores do discurso citado,

pois o enunciador é, em última instância, a revista. É em torno do nome da revista e não do

nome dos políticos que se busca criar a ilusão do centro, a ilusão de ser a fonte do discurso. A

imagem do político é aí então recoberta por outro fenômeno discursivo diferente do ethos.

Outro exemplo. Se, ao tomar uma obra literária como corpus, o analista quiser dar

conta da construção da imagem de uma instância subjetiva que não seja a do enunciador, mas

sim a do narrador13 ou a do interlocutor14, ele também não estará tratando do ethos, porque as

imagens do narrador e do interlocutor são construções discursivas que não coincidem com a

figura do enunciador. Nessa perspectiva, não seria adequado dizer que se está estudando o

ethos de Macunaíma (interlocutor, personagem que diz “eu”), o que não impede que se estude

a construção da imagem de Macunaíma. Para nós, o interesse pelo estudo do ethos construído

nessa obra literária recairia, então, sobre o autor, enquanto princípio semiótico e não ser

ontológico. Importaria para tal análise questionar essa obra enquanto discurso literário para

saber como a obra se inscreve discursivamente, que tipo de ethos garante a inscrição da obra,

com qual formação discursiva o ethos aí construído cria identidade, com o ethos de qual

formação discursiva o ethos do autor Mário de Andrade polemiza, de que modo e quais as

razões para a polêmica.

Enfim, é importante frisar que o ethos está associado à imagem do enunciador e que

isso nos levará a discutir algumas noções que, normalmente, recebem o rótulo de ethos. Essa é

a preocupação que norteará as considerações que teceremos a seguir.

13 Instância subjetiva instalada no enunciado e delegada pelo enunciador. 14 Instância subjetiva também instalada no enunciado, mas delegada pelo narrador por meio do discurso direto, por exemplo.

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2.2.1. A imagem pré-discursiva do enunciador

Maingueneau (2002a, p.58; 2005, p.71) justifica a distinção entre ethos discursivo e

ethos pré-discursivo, considerando que “se o ethos está crucialmente ligado ao ato de

enunciação, não se pode ignorar, entretanto, que o público constrói representações do ethos do

enunciador antes mesmo que ele fale”.

Com efeito, uma discussão sobre essa distinção não é suscitada assim tão

gratuitamente. Amossy (2005, p.18) lembra que Quintiliano e Cícero consideravam que o

caráter do orador, seu exemplo de vida, suas ações cotidianas, etc., tinham sua devida

relevância no momento em que proferiam seus discursos.

Haddad (2005) trata da relação entre o que ele chama de ethos prévio e ethos

discursivo, analisando um artigo de cunho pacifista, publicado na França em 1914, no início

da I Guerra Mundial, por um escritor, Romain Rolland, acusado de ser simpatizante da

Alemanha. O objetivo de sua análise é verificar como o autor constrói uma imagem favorável

de si, apagando os traços desfavoráveis que lhe são previamente atribuídos. Antes de

endereçarmos nossa crítica, vejamos o que Haddad entende por ethos prévio.

Para Haddad (2005, p.147-8), o ethos prévio consiste na representação estereotipada

construída pela opinião pública, em que “o ethos prévio ou pré-discursivo condiciona a

construção do ethos discursivo e demanda a reelaboração dos estereótipos desfavoráveis que

podem diminuir a eficácia do argumento” (Ibidem, p.148).

De certa forma, Haddad junge duas visões distintas sobre o ethos: uma, postulada pela

retórica aristotélica, em que o ethos é efeito de construção do discurso; outra, oriunda da

retórica latina, em que a moral do orador em si pesa mais do que seus argumentos. O autor

estabelece entre as duas visões de ethos uma relação em que a imagem antecipadamente

construída do autor pelo seu público afeta e condiciona a imagem que o próprio enunciador

constrói de si em seu discurso. Essa é a maneira com que Haddad procura trabalhar com as

duas noções de ethos: uma estritamente discursiva e a outra sociológica. Seu objetivo não é o

de sustentar uma dicotomia, mas uma integração, por isso Haddad (Ibidem, p.163) afirma que

“longe de constituir um elemento exterior ao discurso, [...] o ethos prévio está estreitamente

ligado ao ethos discursivo”.

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Embora o autor defina a noção de ethos prévio de maneira difusa, talvez devido aos

limites impostos pelo livro, certamente, ele toca em um problema do ethos que deve ser aqui

discutido para possamos integrá-lo a este trabalho sem prejuízos.

Em primeiro lugar, não é bastante repetir que, conforme Maingueneau, os

“estereótipos culturais circulam nos registros mais diversos da produção semiótica de uma

coletividade” (2005, p.72); assim, o que se chama de ethos prévio ou pré-discursivo é o

resultado de um conjunto de produções discursivas situadas em um antes e que constroem

uma representação estereotipada de um determinado ator discursivo, seja ele individual ou

coletivo, o que significa que a constituição de um ethos prévio não se configura senão por

meio da construção discursiva, por meio da linguagem.

Em segundo lugar, embora se considerem as noções de estereótipo e de imagem prévia

como pertencentes à ordem do pré-discursivo, este parece ser o momento de distingui-las. A

priori, parece justo dizer que o estereótipo está ligado às representações coletivas, enquanto o

ethos prévio, à representação individual de um certo enunciador. Por exemplo, pode-se falar

do estereótipo do político, do professor, do engenheiro, desse ou daquele lugar social; pode-se

até especificá-lo, suscitando o estereótipo do político de direita, de esquerda, etc.; no entanto,

se se quer analisar os discursos de um ou de outro ator discursivo como, por exemplo, os do

atual presidente do Brasil ou do atual governador de São Paulo, parece mais apropriado falar

não em estereótipo do Lula ou do Alckmin, mas sim do ethos prévio de cada ator discursivo.

Em terceiro lugar, alimentamos até aqui o emprego do termo ethos prévio, mas isso

também precisa ser reconsiderado. Como vimos, a noção de ethos prévio ou pré-discursivo

está associada à imagem que o público constrói de um ator discursivo ou do enunciador

mesmo antes que ele enuncie seu discurso, assim como a noção de ethos está associada à

imagem que o enunciador constrói de si por meio da enunciação de seu próprio discurso. A

rigor, parece pouco adequado empregar aí o termo ethos, mesmo que com o qualificador

“prévio”, porque o que se pretende recobrir por meio desse termo é uma imagem construída

(i) antes da enunciação do discurso (ii) por outro ator que não o próprio enunciador. Portanto,

preferimos denominar esse fenômeno como imagem prévia ou imagem pré-discursiva e,

assim, resguardar o termo ethos para nos referirmos, exclusivamente, ao fenômeno que

estamos cercando neste trabalho.

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2.2.2. Efeitos visados e efeitos produzidos: a eficácia do ethos

Maingueneau diz que “a noção de ethos remete a coisas muito diferentes se se

considera o ponto de vista do locutor ou o do destinatário: o ethos visado não é

necessariamente o ethos produzido”15 (2002a, p.59). Tome-se um político que quer dar de si

uma imagem de intelectual, mas acaba se passando por pedante ou, ainda, que quer se mostrar

democrático, mas se revela demagogo. Esses e mais outros inúmeros exemplos mostram que

Maingueneau tem razão, quando afirma que “os fracassos em matéria de ethos são muito

freqüentes”16 (Ibidem, p.59).

Esse problema parece facilmente levar à questão da eficácia do discurso, no sentido de

se inquirir, efetivamente, se um determinado ator convenceu ou não o seu público por meio de

seu discurso. Vale reiterar que nossa preocupação não é a de apontar qual discurso foi mais ou

menos eficiente nem de especular suas prováveis razões. Ora, o resultado de uma votação

numa casa legislativa, por exemplo, pode ser determinado por um acordo entre grupos

partidários. Os discursos proferidos pelos seus representantes na tribuna não teriam outro

papel senão o da manifestação dos vários pontos de vista que conflitam na casa, da mise en

scène ou, ainda, de uma última tentativa de conquistar corações e mentes.

Então, se a questão da eficiência em si remete à recepção do discurso, que só poderia

ser avaliada por meio de uma teoria da recepção do discurso, o que demandaria outro

trabalho, como devemos acolher a idéia de fracasso do ethos à qual Maingueneau se refere?

Em primeiro lugar, entendemos que o fracasso e o sucesso só existem no discurso

enquanto efeitos de sentido. Além disso, a questão não é assim tão simples, pois o que pode

ser entendido como fracasso em um tipo de discurso, como o político, o religioso e o

pedagógico, por exemplo, pode ser recebido como ironia em outro tipo de discurso, como o

humorístico, o publicitário e o literário, por exemplo.

De qualquer maneira, esses efeitos – sucesso e fracasso – permeiam a relação entre

enunciador e co-enunciador. Mais especificamente, Maingueneau (2002a, p.59) aponta que o

fracasso em matéria de ethos tem a ver com “o ponto de vista do locutor ou o do destinatário”.

15 “la notion d’ethos renvoie à des choses très différentes selon qu’on considère le point de vue du locuteur ou celui du destinataire: l’ethos visé n’est pas nécessairement l’ethos produit.” (Maingueneau, 2002a, p.59). 16 “Les échecs en matière d’ethos sont monnaie courante.” (Ibidem).

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Sem nos afastarmos muito dessa perspectiva, compreendemos que o fracasso do ethos,

enquanto efeito de sentido, pode derivar da construção de um ethos que não representa a justa

medida entre os pontos de vista, as crenças do enunciador e do co-enunciador. Sobre esse

assunto, é importante recuperar e comentar o que diz Aristóteles sobre o sucesso do orador na

construção do ethos:

Três são as causas que tornam persuasivos os oradores e a sua importância é tal que por elas nos persuadimos, sem necessidade de demonstrações. São elas a prudência, a virtude e a benevolência17 (1998, p.106).

Considerando que a prudência (phrónesis), a virtude (areté) e a benevolência (eúnoia)

são qualidades que estão, respectivamente, mais associadas ao discurso, ao próprio

enunciador e à solidariedade do enunciador com o co-enunciador, podemos dizer que haverá

fracasso do ethos se o enunciador negligenciar qualquer uma dessas qualidades.

Se o enunciador não exibir argumentos arrazoados, não construirá um discurso

sustentável, logo fracassará na primeira qualidade. Agora, se ele não considerar o ponto de

vista do outro e o seu próprio ponto de vista na justa medida, poderá construir um discurso

tendencioso ou bajulador. Quando a virtude (areté) é privilegiada, a benevolência (eúnoia) é

preterida e vice-versa. Assim, se meu discurso se vale apenas de minhas crenças, não

considero as do outro, logo pareço tendencioso; por outro lado, se meu discurso apenas

considera as crenças do outro, não faz ponderar as minhas, então pareço, no mínimo,

bajulador.

Dessa forma, Eggs (2005, p.42) tem razão, quando afirma que “só o orador que

consegue mostrar em seu discurso os mais elevados graus dessas três dimensões do ethos –

phrónesis, areté, eúnoia – convencerá realmente”.

17 Os termos prudência, virtude e benevolência são a tradução dos termos gregos phrónesis, areté e eúnoia, respectivamente.

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2.2.3. Além da figura antropomórfica: o ethos institucional

Ethos institucional já é um termo existente na literatura específica. Entretanto,

pretendemos nesta subseção dirigir uma crítica ao emprego desse termo e propor seu

deslocamento, considerando a concepção aristotélica de ethos.

Ruth Amossy (2005, p.136) propõe uma noção de ethos que seja articulada entre o que

a autora chama de ethos discursivo e ethos institucional. Para a autora (Ibidem, p.122), o ethos

discursivo é construído na interação verbal e é puramente interno ao discurso, enquanto o

ethos institucional é regrado “por mecanismos sociais e por posições institucionais

exteriores”, correspondendo a uma “posição institucional do locutor” (Ibidem, p.136).

Sua proposta é operar com uma noção de ethos, articulando uma perspectiva

lingüística de ethos apoiada em Oswald Ducrot a uma perspectiva sociológica de ethos

fundada em Pierre Bourdieu. Todavia, a noção de ethos apresenta uma ambivalência já na

obra aristotélica. Maingueneau (2002a, p.57) adverte que Aristóteles emprega o termo ethos,

na Política e na Ética a Nicômacos, como características estáveis de um indivíduo ou de um

grupo, ao passo que, na Retórica, passa a compreendê-lo também como construção do

discurso.

No entanto, a proposta de Amossy nos traz algum desconforto, pois, embora tenhamos

dito aqui que o “ethos remete não só a fatores de ordem discursiva, como também de ordem

sócio-histórica” (p.20) e que “o ethos não compreende apenas uma dimensão moral, mas

também social” (p.25), não propusemos dissociar um ethos discursivo de um ethos

sociológico ou institucional para, depois, articulá-los em uma só noção, mas sim conceber o

ethos como uma noção discursiva na qual se reconheçam também suas dimensões ética, social

e histórica, que são veiculadas somente por meio do discurso. Por isso que é desconfortável

aceitar, de um lado, um ethos puramente discursivo e, de outro, um ethos exterior ao

discurso. Parece-nos que entender o ethos como uma noção discursiva, interativa e sócio-

discursiva já recobre essas ramificações do ethos, além de circunscrevê-lo aos domínios do

discurso.

Se essa crítica for aceita sem muitos problemas, gostaríamos de propor agora que o

termo ethos institucional servisse para recobrir o ethos construído em discursos cujos

enunciadores não assumem uma figura antropomórfica. Para apresentar tal formulação nos

apoiamos no que diz Aristóteles em sua Retórica:

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O maior e mais eficaz de todos os meios para se poder persuadir e aconselhar bem é compreender as distintas formas de governo, e distinguir os seus caracteres, instituições e interesses particulares (1998, p.73).

Ora como as provas por persuasão não só procedem do discurso epidíctico

mas também do ético (pois depositamos confiança no orador na medida em que ele exibe certas qualidades, isto é, nos parece que é bom, bem disposto ou ambas as coisas), será necessário que dominemos os caracteres de cada forma de governo; pois o carácter de cada uma dessas formas é necessariamente o elemento mais persuasivo em cada uma delas (1998, p.74).

Lembrando que os termos “caráter” e “caracteres” são as traduções encontradas para

os termos ethos e ethé, podemos entender melhor a relação entre ethos e instituição sugerida

aí por Aristóteles. Nesse trecho, Aristóteles trata do ethos não no sentido da imagem que o

orador constrói de si em seu discurso, mas no sentido das características próprias de uma

instituição.

Longe de qualquer contradição, entendemos tais características como o produto do

conjunto de discursos proferidos em nome da instituição, que cumpre o papel de enunciador.

Da mesma maneira que o orador em seu discurso deve construir de si um ethos que inspire

confiança em seu auditório, as instituições constroem incessantemente seu próprio ethos, o

qual somente é perceptível aos seus co-enunciadores como algo dado a priori.

E é nessa perspectiva que entendemos o ethos do enunciador não antropomorfizado,

do ethos de um enunciador que se inscreve discursivamente não com um nome de pessoa, mas

com nomes como Governo Federal, Banco do Brasil, Volkswagen, Dolly, São Paulo Futebol

Clube, Correio Braziliense, Extra Hipermercados, AACD, PT, SBT, USP, etc.

Esse rol de nomes refere-se ao que Maingueneau (2002, p.207) chama de nomes de

marca. Para o autor (Ibidem), “com essas marcas, nosso mundo se povoa de entidades que

não são nem seres humanos, nem animais, nem objetos [...] e que possuem ainda a

particularidade de ser apresentados como responsáveis pelos enunciados publicitários”.

Se a responsabilidade pela enunciação de um discurso pode ser assumida por uma

instituição, parece justo falar de ethos institucional, nesse sentido.

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3. ELEMENTOS LINGÜÍSTICOS E DISCURSIVOS PARA A ANÁLISE

DO ETHOS

Não é demais lembrar que falar de ethos é falar de um tom, uma vocalidade que

remete a uma corporalidade e a um caráter que conferem à imagem do enunciador o estatuto

de fiador daquilo que é dito por ele em seu discurso.

Maingueneau atrela a noção de ethos à cena enunciativa, mais especificamente à

cenografia, no entanto também é possível depreender o ethos com base em noções lingüísticas

e discursivas que remetem a três grandes fenômenos enunciativos, a saber:

• A projeção da enunciação no enunciado;

• A heterogeneidade enunciativa;

• A argumentação.

Desse modo, acolhemos neste trabalho contribuições de teorias desenvolvidas não só

pela Análise do Discurso, o que nos propicia examinar o ethos como constitutivo da cena

enunciativa e da cenografia, como também estudá-lo orientando-nos por esses três grandes

fenômenos enunciativos, os quais abrigam outros fenômenos, hierarquicamente articulados

em dois níveis, sendo um local e o outro global, como mostra Maingueneau (Charaudeau &

Maingueneau, 2004, p.195):

Mais precisamente, as problemáticas ligadas à enunciação são mobilizadas em dois níveis que interagem constantemente:

O nível local das marcações de discurso citado, de reformulações, de modalidades, etc., que permite confrontar diversos posicionamentos ou caracterizar gêneros de discurso.

O nível global, em que se define o contexto no interior do qual se desenvolve o discurso. Nesse nível, pensa-se em termos de cena de enunciação, de situação de comunicação, de gênero de discurso...

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3.1. As projeções da enunciação no enunciado

A projeção da enunciação no enunciado pode ser vista por meio da explicitação ou da

implicitação das marcas da enunciação no enunciado, ou seja, pelo emprego das formas

dêiticas. Além disso, também é possível observar que a enunciação se projeta no enunciado

por meio das marcas das modalidades, revelando a atitude que o enunciador tem perante seu

enunciado e seu co-enunciador. Assim como as modalidades podem ser explicitadas

lingüisticamente no enunciado por meio da categoria dos operadores modais, elas também

podem ser implicitadas.

A participação desse grande fenômeno na construção do ethos deve ser considerada na

análise discursiva que passa, então, a contar com o suporte das teorias lingüísticas da

enunciação.

3.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem

Cervoni (1989 p.23) explica que “os dêiticos, cuja série mais representativa é eu, tu,

aqui, agora, são as palavras que designam, dentro do enunciado, os elementos constitutivos

de toda enunciação, que são o locutor, o alocutário, o lugar e o tempo da enunciação”. Os

dêiticos, esses elementos lingüísticos que manifestam a dêixis, podem ser expressos pelos

pronomes pessoais, possessivos e demonstrativos, pelas desinências número-pessoais das

formas verbais e pelos advérbios ou pelas locuções adverbiais de tempo e de lugar. A

característica essencial dos dêiticos, aponta Cervoni (Ibidem), é que “é impossível atribuir um

referente preciso a essas palavras se não conhecermos [...] os actantes e o quadro espácio-

temporal da enunciação”.

Em suma, os dêiticos são signos cuja referência está ancorada na situação de

enunciação. Isso fica bastante evidente quando se toma um enunciado como “Amanhã te vejo

lá!”, o qual não se deixa interpretar sem que se conheça a sua situação de enunciação.

Convém detalhar os componentes da dêixis lingüística, tratando, primeiramente, da

categoria de pessoa e, depois, das categorias de tempo e de espaço. Para tanto, buscar-se-á

apoio nos trabalhos do pioneiro Benveniste (1976) e do contemporâneo Fiorin (2002).

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Benveniste (1976, p.250) diz que “uma teoria lingüística da pessoa verbal só pode

constituir-se sobre a base das oposições que diferenciam as pessoas” e apresenta, então, um

sistema de oposições seguindo o exemplo dos gramáticos árabes, para os quais “a primeira

pessoa é “aquela que fala”, a segunda pessoa é “aquela a quem nos dirigimos”; mas a terceira

pessoa é “aquela que está ausente””.

A partir disso, o autor estabelece outras oposições. Primeiramente, ele faz uma

distinção entre pessoa e não-pessoa (“eu-tu” versus “ele”), argumentando que “a forma dita

de terceira pessoa comporta realmente uma indicação de enunciado sobre alguém ou alguma

coisa, mas não se refere a uma “pessoa” específica” - o que lembra “o “ausente” dos

gramáticos árabes” (Ibidem, p.250). Nesse sentido, formula que “a “terceira pessoa” não é

uma “pessoa”, e toma como evidência disso o fato de que essa é a forma que os verbos

assumem para expressar a impessoalidade (Ibidem, p.251).

Benveniste (Ibidem, p.254) extrapola as formulações teóricas e fornece de antemão

subsídios para a compreensão dos efeitos de sentido que podem ser gerados a partir das

projeções da enunciação no enunciado. Assim, o autor mostra que o emprego da terceira

pessoa pode servir, no mínimo, a dois propósitos: (a) “à maneira de reverência”, “que eleva o

interlocutor acima da condição de pessoa e da relação de homem a homem”; (b) “em

testemunho de menosprezo, para rebaixar aquele que não merece nem mesmo que alguém se

dirija “pessoalmente” a ele”. Estabelece-se aí uma correlação entre as pessoas, a qual

Benveniste denomina “correlação de personalidade” (Ibidem, p.254) ou de pessoa.

Uma outra oposição estabelecida por Benveniste contrapôs “eu” a “tu”, ou seja, a

“pessoa-eu” à “pessoa não-eu”. De acordo com o autor, à primeira também se opõem as

formas de “não-pessoa”. Com isso, tem-se agora uma correlação entre “eu” e “tu”, a qual

Benveniste (Ibidem, p.255) denomina de correlação de subjetividade.

Ainda na categoria da pessoa, o autor estabeleceu uma terceira oposição: singular

versus plural. Para Benveniste (Ibidem, p.256), “a unicidade e a subjetividade inerentes a

“eu” contradizem a possibilidade de uma pluralização. Se não pode haver vários “eu”

concebidos pelo próprio “eu” que fala, é porque “nós” não é uma multiplicação de objetos

idênticos mas uma junção entre o “eu” e o “não-eu””, logo “a presença do “eu” é constitutiva

de “nós”” (Ibidem, p.256). E, com base nas duas correlações supracitadas, Benveniste

(Ibidem, p.257) distingue duas formas de “nós”:

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O plural exclusivo (“eu + eles”) consiste em uma junção das duas formas que se opõem como pessoal e não pessoal em virtude da “correlação de pessoa”.

Ao contrário, a forma inclusiva (“eu + vós”) efetua a junção das pessoas

entre as quais existe a “correlação de subjetividade”.

Há línguas que lexicalizam uma forma lingüística para cada tipo de “nós”,

diferentemente do português e de outras línguas neo-românicas que dispõem de apenas uma

expressão para compreender essas duas idéias distintas. Entretanto, isso não passa

despercebido a Benveniste, uma vez que ele ressalva que “o “nós” indiferenciado [...] deve ser

encarado numa perspectiva diferente” (Ibidem, p.257), mostrando que esse ““nós” não é um

“eu” quantificado ou multiplicado, é “um “eu” dilatado além da pessoa estrita, ao mesmo

tempo acrescido e de contornos vagos” (Ibidem, p.258).

E, novamente, Benveniste (Ibidem, p.258) antecipa os efeitos de sentido derivados do

emprego desse “nós” indiferenciado:

De um lado, o “eu” se amplifica por meio de “nós” numa pessoa mais maciça, mais solene e menos definida; é o “nós” de majestade. De outro lado, o emprego de “nós” atenua a afirmação muito marcada de “eu” numa expressão mais ampla e difusa: é o “nós” de autor ou de orador.

Enfim, ao que parece, trata-se aí de um estudo fundador e proveitoso para novos

trabalhos que se voltam para a categoria da pessoa sob a perspectiva da enunciação. Agora,

quanto à categoria do tempo, as contribuições de Benveniste, embora profícuas, já foram

bem reformuladas e contam aí com outros aportes. Mesmo assim, é justo suscitar sua clássica

distinção entre enunciação histórica e enunciação de discurso, em que, para o autor, “os

tempos de um verbo francês não se empregam como os membros de um sistema único;

distribuem-se em dois sistemas distintos e complementares” (Ibidem, p.261). Benveniste diz

que “esses dois sistemas manifestam dois planos de enunciação diferentes” e os denomina

como “o da história e o do discurso” (Ibidem, p.262).

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Assim, Benveniste (Ibidem, p.262) define a enunciação histórica como “o modo de

enunciação que exclui toda forma lingüística “autobiográfica””, pois aí não se diz “jamais eu

nem tu nem aqui nem agora”; nesse plano, “os acontecimentos parecem narrar-se a si

mesmos”. Já a enunciação de discurso “emprega livremente todas as formas pessoais do

verbo, tanto eu/tu como ele” (Ibidem, p.268). No entanto, vale destacar duas ressalvas feitas

pelo autor: (a) “explícita ou não, a relação de pessoa está presente em toda parte”; (b)

“conseqüentemente, a “terceira pessoa” não tem o mesmo valor que na narrativa histórica”

(Ibidem, p.268).

Essa distinção entre plano de enunciação da história e plano da enunciação do discurso

apresentada por Benveniste foi, depois, reformulada por Maingueneau (2002, p.113-123)

como plano de enunciação embreado e plano de enunciação não embreado, e também por

Greimas & Courtés (1983, p.147-148) e por Fiorin (2002, p.35-40) como enunciação

enunciada e enunciado enunciado, em que o primeiro simula o fazer enunciativo por meio de

elementos que remetem à instância da enunciação, ao passo que o segundo permite construir

textos enuncivos por meio da ocultação das marcas da enunciação.

Por fim, Benveniste (1976, p.279) relaciona à categoria da pessoa as categorias de

tempo e espaço, dizendo que “aqui e agora delimitam a instância espacial e temporal

coextensiva e contemporânea da presente instância de discurso que contém eu”, mas adverte

que “não adianta definir esses termos e os demonstrativos em geral pela dêixis, como se

costuma fazer, se não se acrescenta que a dêixis é contemporânea da instância de discurso que

contém o indicador de pessoa”, pois “essencial é a relação entre o indicador (de pessoa, de

tempo, de lugar, de objeto mostrado, etc.) e a presente instância de discurso” (Ibidem, p.280).

Benveniste (Ibidem, p.281) considera que “a linguagem previne esse perigo

instituindo um signo único, mas móvel, eu, que pode ser assumido por todo locutor, com a

condição de que ele, cada vez, só remeta à instância do seu próprio discurso. Esse signo está,

pois, ligado ao exercício da linguagem e declara o locutor como tal”, pois “quando o

indivíduo se apropria dela, a linguagem se torna em instâncias de discurso, caracterizadas por

esse sistema de referências internas cuja chave é eu”.

Embora tenhamos destacado aqui a relevância dos escritos de Benveniste, as

reformulações pelas quais já passaram seus postulados ocorrem também no sentido de que as

atuais teorias do discurso se afastam de uma concepção de sujeito que possa se apropriar da

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língua e colocá-la em funcionamento, fundando, assim, o ato enunciativo, pois entendem o

sujeito como um efeito de sentido produzido pelo próprio discurso.

Assim, na esteira de Benveniste e com base na Semiótica, Fiorin (2002) realiza um

estudo completo sobre as categorias da pessoa, do tempo e do espaço da enunciação,

detalhando dois procedimentos de projeção da enunciação no enunciado, a saber: a debreagem

e a embreagem.

Fiorin (2002, p.41-58) mostra que a debreagem enunciativa projeta no enunciado a

instância da enunciação pressuposta, ou seja, o eu, o aqui e o agora da enunciação,

estabelecendo aí um contrato subjetivante. Ao contrário, a debreagem enunciva estabelece um

contrato objetivante ao projetar a instância do enunciado no enunciado, ou seja, um não eu

(ele), um não aqui (alhures) e um não agora (então). Por exemplo, dizer “Eu penso que todos

os homens são iguais perante a Justiça” estabelece a opinião subjetiva do “eu”,

diferentemente de dizer “Todos os homens são iguais perante a Justiça”, que dá a impressão

de se enunciar uma verdade compartilhada por todos.

Quanto ao segundo procedimento, Fiorin (2002, p.48) explica que “ao contrário da

debreagem, que expulsa da instância de enunciação a pessoa, o espaço e o tempo do

enunciado, a embreagem é “o efeito de retorno à enunciação”, produzido pela neutralização

das categorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, assim como pela denegação da instância do

enunciado”. Em outras palavras, a embreagem consiste no retorno à instância da enunciação,

caracterizando-se pela troca de uma pessoa pela outra, de um espaço por outro e/ou de um

tempo por outro.

Fiorin (2002, p.51) distingue, ainda, dois tipos de embreagem: a enunciativa e a

enunciva. Para o autor (Ibidem), “a embreagem é enunciativa porque é um elemento o sistema

enunciativo que resta no enunciado”, ao passo que a embreagem enunciva é observada

“quando [...] temos um ele (termo enuncivo) a ocupar o lugar do tu”.

Podemos dizer, assim, que ocorre embreagem enunciativa quando a primeira pessoa

toma o lugar da terceira, como no seguinte exemplo oferecido por Fiorin (2002, p.91):

– Se eu [= alguém] preciso do serviço público de saúde, quero ser bem atendido, pois para isso eu pago.

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A forma indeterminada de terceira pessoa é substituída pela forma determinada da

primeira pessoa do singular, “colocando o sujeito indeterminado na situação de enunciação”,

conclui Fiorin (Ibidem, p.91).

Por outro lado, quando a terceira pessoa tomar o lugar da primeira, a embreagem será

enunciva como no enunciado “O Romário não sabe quando vai parar de jogar”, proferido pelo

próprio jogador Romário.

Enfim, são esses procedimentos e seus efeitos, gerados pelo emprego das formas

dêiticas, que buscaremos observar dentro da construção do ethos.

3.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização

Em primeiro lugar, é preciso estabelecer que “as modalidades são facetas de um

processo mais geral de modalização, de atribuição de modalidades ao enunciado, pelo qual o

enunciador, em sua própria fala, exprime uma atitude em relação ao destinatário e ao

conteúdo de seu enunciado” (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p.334).

A preocupação com a noção de modalidade é antiga e os atuais estudos sobre esse

assunto – tanto na Lógica quanto na Lingüística – inserem-se numa longa trajetória de

trabalhos. Segundo Catherine Fuchs (1995, p.144-145), incluem-se nessa tradição:

• os estóicos e os aristotélicos, que assinalaram dois tipos de funcionamento (o

cognitivo e o apelativo);

• Varrão, que distinguiu as palavras em três tipos de ações (pensar, dizer e fazer);

• Aristóteles, que estabeleceu regras de equivalência por dupla negação

contraditória;

• os gramáticos da Idade Média, que propuseram a decomposição da proposição

em modus e dictum e a distinção entre as modalidades de re e as modalidades

de dicto.

Fuchs (1995, p.124) aponta como “herdeiros dessa longa tradição os lingüistas

contemporâneos que se esforçam por apresentar uma análise enunciativa das modalidades”,

tais como Bally, Halliday, Culioli, Pottier, entre outros.

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Julgamos importante a lembrança que Vasques (2000, p.54) faz a Benveniste ao

reconhecer que a ele devemos “a reabilitação do estatuto lingüístico do estudo das

modalidades”. Dessa maneira, vale recordar que Benveniste (1976, p.291) retoma a idéia de

modus e dictum para formular uma distinção entre a proposição enunciada e a perspectiva

subjetiva que pode aí ser introduzida. Por exemplo, para indicar que, em um enunciado como

“Eu acredito que vai chover”, a proposição (vai chover) é envolvida por um contexto

subjetivo (Eu acredito) cuja função é “caracterizar a atitude do locutor em face do enunciado

que profere”.

No entanto, é preciso ressaltar que, conforme Vasques (2000, p.82), “o termo

modalidade é empregado ora numa acepção restrita, ora numa acepção ampla nos estudos

lingüístico-gramaticais”. Vasques (2000, p.82-83) ilustra essas duas acepções, expressando-se

da seguinte maneira:

Atendo-nos a dois dos autores examinados, B. Pottier e A. Culioli, percebemos, neste, um emprego mais restrito e, naquele, um emprego mais amplo do termo em questão. Para A. Culioli, modalizar significa tão-somente atribuir uma modalidade a um pré-enunciado [...]. Esse emprego do termo está bem próximo da acepção que os lógicos atribuem a ele. [...]. Já para B. Pottier, o termo modalização tem um sentido mais amplo, uma vez que, para ele, estudá-la significa analisar a asserção, as modalidades, os modos, as relações modais, as relações lógicas, a topicalização e a focalização [...]”.

Embora salientemos essa distinção entre uma acepção restrita e uma acepção ampla da

noção de modalidade, nossas análises não irão se limitar a uma ou a outra acepção, pois

buscaremos em nosso corpus dois tipos de manifestações das modalidades: um tipo que é

explicitado no enunciado por meio de lexicalizações das modalidades (a acepção restrita) e

outro tipo que fica implícito no enunciado (a acepção ampla). Estas serão depreendidas por

meio dos tempos e modos verbais manifestados nos enunciados que não apresentarem formas

lexicalizadas das modalidades, ao passo que, para dar conta das primeiras, recorreremos a

Koch (2000, p.87), que apresenta vários tipos de lexicalização possíveis tais como:

• os auxiliares modais (poder, dever e etc.);

• as formas verbais perifrásticas (poder, dever e etc. + infinitivo);

• os verbos de atitude proposicional (eu sei, eu acho, eu creio e etc);

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• as orações modalizadoras (eu tenho certeza de que);

• os predicados cristalizados (é necessário, é possível);

• os advérbios modalizadores (evidentemente, possivelmente).

Bem entendidas essa distinção no interior do termo modalidade e a maneira como

iremos depreendê-la, cabe agora tratar da modalidade com que iremos operar neste trabalho.

Como anunciado no título desta subseção, iremos nos ater a apenas uma categoria tradicional

da lógica modal, a modalidade epistêmica, que é definida por Brandão (1994, p.136) da

seguinte maneira:

• a modalidade epistêmica [...] abrange toda expressão que implica uma referência à crença, ao conhecimento que temos de um estado de coisas, isto é, que abrange toda expressão pertencente ao registro do saber.

Para procedermos à análise das modalidades epistêmicas, iremos nos apoiar,

fundamentalmente, em um trabalho de Alexandrescu (1976) que aborda com bastante

pertinência a questão dessas modalidades na enunciação.

Segundo Alexandrescu (1976), todo enunciado é modalizado por um operador

epistêmico crer ou saber, ainda que esse enunciado já esteja modalizado por uma outra

modalidade, recebendo, assim, uma dimensão epistêmica suplementar. Alexandrescu (1976,

p.24) explica que “as modalidades crer e saber estão ligadas necessariamente ao mecanismo

de produção de um enunciado ou de um texto, enquanto que as outras modalidades [...]

denotam atitudes facultativas quanto ao enunciado ou ao texto em questão”18.

Assim, podemos dizer que, em um enunciado como “Eu devo chegar cedo”, o

operador modal “devo” revela uma atitude deôntica de seu enunciador. Todavia, a essa atitude

está pressuposta uma modalidade epistêmica, ou seja, esse enunciador sabe ou acredita que

deve chegar cedo.

18 “les modalités croire et savoir sont liées nécessairement au mécanisme de production d’un énoncé ou d’un texte, tandis que d’autres modalités [...] dénotent des attitudes facultatives quant à l’énoncé ou le texte en question” (1976, p.24).

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Alexandrescu (1976, p.25) justifica, assim, a produção de enunciados que não

possuem marcas explícitas de modalidade, complementando que “há textos que lexicalizam a

modalidade crer ou saber e outros que não o fazem”19.

Desse modo, retomando o exemplo anteriormente oferecido por Benveniste, em um

enunciado como “Vai chover” estaria implícita uma atitude epistêmica do enunciador que

poderia ser lida como “Eu creio que vai chover” ou como “Eu sei que vai chover”, o que só

poderá ser distinguido com base no contexto em que o enunciado é manifestado.

Sobre isso, Brandão (1994, p.136) entende que “a todo enunciado aplica-se uma

dimensão epistêmica suplementar que deve necessariamente ser ou a da opinião ou a do

saber, jamais as duas ao mesmo tempo. Sua enunciação se inscreve obrigatoriamente entre a

incerteza e a certeza do locutor”.

Em termos de estratégia argumentativa, é interessante ouvir o que diz Alexandrescu

(Ibidem, p.25) a esse respeito:

A ocultação da modalidade epistêmica não pode se fazer sem que haja um traço; a enunciação está lá, o locutor só faz que parece esquecê-la para dar a impressão que seu ato é neutro, que ele não manifesta nenhuma atitude diante dele, que o valor de verdade de seus enunciados é objetivo. [...] a ocultação modal é acompanhada de uma retórica do neutro, em que o locutor esconde sua enunciação para melhor convencer por seu enunciado.20

Em suma, é importante estabelecer que, enquanto toda enunciação é pressupostamente

modalizada por um operador epistêmico saber ou crer, revelando uma atitude de certeza ou

de incerteza do enunciador perante seu enunciado, a implicitação da modalidade epistêmica

revela antes uma retórica do neutro. Em outras palavras, o enunciador é, nesse sentido, um

sujeito que sabe o que diz ou que crê no que diz, no entanto ele não mostra e, sobretudo, não

quer mostrar explicitamente ao seu co-enunciador seu estatuto epistêmico. Trata-se aí de uma

19 “il y a des textes qui lexicalisent la modalité croire ou savoir et d’autres qui ne le font pas” (1976, p.25). 20 L’occultation de la modalité épistémique ne peut pás se faire sans qu’il y ait une trace; l’énonciation est là, le locuteur ne fait que semblant de l’oublier pour donner l’impression que son acte est neutre, qu’il ne manifeste aucune attitude envers lui, que la valeur de vérité de ses énoncés est objective. [...] l’occultation modale s’accompagne d’une rhétorique du neutre, que le locuteur cache son énonciation pour mieux convaincre par son énoncé (Alexandrescu, 1976, p.25).

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escolha enunciativa que tem seus desdobramentos nas estratégias argumentativas que vão

sendo desenvolvidas pelo enunciador.

Isso posto, passemos a considerar outro ponto que merece destaque. Até agora falamos

de modalidades sem, ao menos, mencionarmos o quadrado lógico. Isso se deve ao fato de que

iremos considerar as modalidades, neste caso as epistêmicas, em um continuum, isto é, em

uma continuidade que vai do grau máximo da certeza até o grau máximo da incerteza,

passando por todos os pontos intermediários entre esses dois pólos visto que o quadrado,

embora muito profícuo, não dê conta dessas posições intermediárias.

Greimas (1976, p.28) explica que “as oposições dos termos epistêmicos são apenas

polarizações de um continuum, que permitem a manifestação do grande número de posições

intermediárias”, ilustrando que “o lexema ‘crer’, por exemplo, pode, sozinho, representar, de

acordo com os contextos, todas as posições entre /certeza/ e /incerteza/”. Logo, conclui-se que a

associação da explicitação ou da implicitação de um ou de outro operador modal epistêmico a

uma certa atitude do enunciador não é tão imediata quanto parece ser, já que somente é possível

depreender uma tal atitude observando o operador modal em relação com o seu contexto.

Dessa forma, nosso intuito, ao estudar as modalidades epistêmicas, é observar em

nosso corpus como essas modalidades expressam uma atitude de certeza ou de incerteza

(dentro de um contínuo) e como isso, de uma forma geral, influencia a construção dos ethé

dos enunciadores Márcio Moreira Alves, Mário Covas e Geraldo Freire.

Nossa perspectiva de análise coincide e, sobretudo, se inspira na de Brandão (1994,

p.136) que nos lembra que “o estudo das modalidades é uma das questões mais delicadas da

reflexão sobre a linguagem” e, assim, abarca a noção de modalidade “não em relação ao seu

comportamento lógico, mas integrada no processo de comunicação, de interação verbal”.

3.2. A heterogeneidade enunciativa

O segundo grande fenômeno considerado aqui corresponde ao da heterogeneidade

enunciativa, termo cunhado por Authier-Revuz (1990). Partindo do conceito de dialogismo

postulado por Bakhtin e da noção de sujeito e sua relação com a linguagem veiculada pela

releitura de Freud por Lacan, a autora propõe a noção de heterogeneidade constitutiva do

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sujeito e de seu discurso para recobrir a idéia de que o Outro está constitutivamente no sujeito

e no seu discurso (1990, p.29).

Authier-Revuz, nesse artigo, se restringe a descrever as formas marcadas do que a

autora denomina heterogeneidade mostrada, aliás esse recorte será acompanhado aqui

também, pois nos interessam essas formas que “inscrevem o outro na seqüência do discurso”

(Ibidem, 24) e que representam a negociação do sujeito enunciador com a heterogeneidade

constitutiva de seu discurso (Ibidem, p.25).

O estudo desse fenômeno é de grande utilidade para a análise do ethos, pois permite,

basicamente, pesquisar a constituição da identidade discursiva com base nos modos de

negociação com a sua alteridade, ou seja, a maneira como o Mesmo se relaciona com o Outro

revela modos de dizer e de ser, enfim, revela o ethos.

Assim, analisaremos a questão do ethos neste trabalho, tomando como guia os

postulados de Bakhtin (2002) e recorrendo às atuais formulações propostas por Maingueneau

(1997).

3.2.1. O discurso citado

A noção de discurso citado corresponde às formas lingüísticas de representação do

discurso alheio – o discurso de um enunciador distinto daquele que é responsável pela

enunciação do discurso. Trata-se da manifestação lingüística mais evidente do princípio

dialógico, pois, conforme Bakhtin (2002, p.144-6), “o discurso citado é o discurso no

discurso, um discurso sobre o discurso”, o que pressupõe a “interação de pelo menos duas

enunciações, isto é, o diálogo”.

É preciso, ainda, ressaltar que o discurso citado não corresponde ao discurso do outro

em funcionamento, mas sim ao seu simulacro, que pode ser valorizado positivamente ou

negativamente pelo discurso citante.

Outro ponto relevante concerne ao contorno do discurso citado. Conforme Bakhtin

(2002, p.148), para se compreender as formas do discurso citado é preciso levar em conta a

relação entre o discurso citado e seu contexto narrativo, ou seja, considerar a “inter-relação

entre o discurso narrativo e o discurso citado”, assim como integrá-la na construção do

enunciado. Em sintonia com o autor russo, Fiorin (2002, p.74) afirma que “o discurso citante

não tem apenas a função de criar a situação de enunciação, mas também a de comentar os

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elementos concernentes a outra semiótica presentes no discurso verbal ou ainda os elementos

relativos à oralidade”.

Esses são os pressupostos teóricos que nortearão nosso trabalho. Agora, no que diz

respeito às formas do discurso citado, nos preocuparemos em explicá-las apenas no capítulo

de análise, nos limitando a tratar somente das formas que aparecerem nos pronunciamentos

em questão.

E, como última observação, vale destacar que as coerções do gênero e as condições de

produção do discurso influenciam o funcionamento do discurso citado; por exemplo, uma

fábula e uma reportagem de jornal apresentam formas distintas de representar o discurso

alheio, bem como, num debate político, a maneira de o mediador citar será diferente daquela

dos debatedores.

3.3. A argumentação

O terceiro, e último, grande fenômeno a ser destacado aqui consiste na argumentação,

termo muito delicado e até impreciso de empregar sem uma delimitação mais adequada.

Essencialmente, a argumentação pode ser entendida como o conjunto de estratégias

lingüísticas e discursivas que visam a levar o co-enunciador à persuasão, a crer no que é dito e

a tomar alguma atitude. Assim, o modo como a argumentação é conduzida no discurso

também revela a maneira de dizer e de ser do enunciador, o que lhe confere um ethos.

Neste estudo, acolhemos perspectiva teórica encaminhada pela Teoria da

Argumentação, fundada na lógica não-formal de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca

(Mosca, 1997, p.20), da qual iremos explorar somente os objetos de acordo do auditório.

Vale mencionar a relevância da Teoria da Argumentação na Língua, localizada no

campo da pragmática lingüística e formulada, inicialmente, por Jean-Claude Anscombre &

Oswald Ducrot (1988).

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3.3.1. Os objetos de acordo com o auditório

Em primeiro lugar, vale lembrar que a idéia de que a argumentação é constitutiva da

linguagem remonta à Retórica. Mauro (1997, p.183-184) comenta que essa obra de

Aristóteles contribui para a valorização da lógica do verossímil, que, diferentemente da lógica

da verdade, organiza-se não no campo do raciocínio demonstrativo, mas sim no do raciocínio

argumentativo, cujo ponto de partida se assenta sobre premissas verossímeis em vez de

verdadeiras, ou seja, a argumentação versa sobre aquilo que é provável, que é do âmbito da

opinião. Tanto é que as demonstrações construídas pelos lógicos são representadas por uma

linguagem artificial, ao contrário da argumentação, que se dá por meio da linguagem natural.

Quanto a isso, Osakabe (1999, p.180) argumenta que “se o discurso do orador não pode

privar-se da língua, que comporta domínios nocionais de estatutos tão diferentes, é à

argumentação que ele recorre e não à demonstração”.

É interessante perceber como Osakabe recebe a obra de Perelman, que para o autor

deve ser “interpretada como um questionamento do próprio cartesianismo”, pois se trata de

uma obra “cujo objetivo é relativizar a tendência unilateral da lógica e da teoria do

conhecimento de Descartes” (Osakabe, 1999, p.177-178). Ademais, importa destacar que O

tratado da Argumentação de Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996) revitalizou a abordagem de

uma argumentação sobre o verossímil, ou seja, uma argumentação que busca convencer seu

auditório no âmbito da negociação e que vê emergir uma dimensão intersubjetiva do discurso.

Isso posto, interessa agora entender como Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996)

definem e organizam os tipos de premissas que podem ser tomadas como ponto de partida da

argumentação, não exatamente discutindo, mas apenas arrolando os seus principais pontos.

Em primeiro lugar, esses autores (1996, p.73) ressalvam que “tanto o desenvolvimento

como o ponto de partida da argumentação pressupõem acordo do auditório”, isso quer dizer

que a argumentação versa sobre o que é admitido pelo auditório, que pode aceitar ou recusar

as premissas dependendo de como o orador as escolhe e as apresenta.

Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996, p.74) agrupam os objetos de acordo que podem

servir de premissas em duas categorias: uma relativa ao real e outra ao preferível. A primeira

compreende os fatos, as verdades e as presunções. A segunda, os valores, as hierarquias e os

lugares do preferível. Uma sugere acordo com um auditório universal; a outra, com um

auditório particular.

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Os referidos autores (1996, p.76) associam a noção de fato ao acontecimento, que, no

entanto, só tem estatuto de fato se não forem levantadas dúvidas sobre ele, pois “o fato como

premissa é um fato não-controverso” (Ibidem); assim, a dúvida e o questionamento já bastam

para invalidar tal estatuto que se atribui a um acontecimento. Já as ligações entre os fatos

criam sistemas mais complexos denominados pelos autores (1996, p.77) como verdades.

Ao lado dos fatos e das verdades, também são aceitas pelo auditório universal as

presunções, que, no entanto, necessitam de reforço, visto que a adesão a uma presunção não é

máxima (Ibidem, p.79), ou seja, aquilo que é apresentado com o estatuto de algo presumido,

que é assentado em conjecturas antecipadas e não em fatos, precisa ser justificado.

Passando, agora, à categoria dos objetos de acordo relativos ao preferível, Perelman

& Olbrechts-Tyteca (1996, p.84) entendem que “estar de acordo acerca de um valor é admitir

que um objeto, um ser ou um ideal deve exercer sobre a ação e as disposições à ação uma

influência determinada”. Os valores são aí pontos de vista que não se impõem a todos, por

isso são dirigidos a um auditório particular e não ao universal, embora alguns valores possam

ser tratados como fatos ou verdades (Ibidem, p.85). Interessante é a distinção que os autores

propõem entre valores abstratos – a justiça ou a veracidade, por exemplo – e valores concretos

– a França ou a Igreja, por exemplo – (Ibidem, p.87), em que os “valores concretos são

utilizados, o mais das vezes, para fundar os valores abstratos, e inversamente” (Ibidem, p.89).

Nessa categoria do preferível, a hierarquia importa à argumentação até mais que os

valores. Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996, p.90) afirmam que “a argumentação se esteia

não só nos valores, abstratos e concretos, mas também nas hierarquias” e que “as hierarquias

de valores são, decerto, mais importantes do ponto de vista da estrutura de uma argumentação

do que os próprios valores”, pois “o que caracteriza cada auditório é menos os valores que

admite do que o modo como os hierarquiza” (Ibidem, p.92). Trata-se aí da preferência que

certos auditórios têm sobre um ou outro valor, bem como da preferência que o orador pode

dar a certos valores em seu discurso.

Os autores mostram que a adesão pode ser reforçada pela associação de um valor a

outro valor, de uma hierarquia a outra hierarquia, mas que o orador pode “também recorrer a

premissas de ordem muito geral”, as quais recebem o nome de lugares e são definidas como

depósitos de argumentos, remetendo à noção de topoi dos antigos (Ibidem, p.94). Assim, os

autores arrolam alguns lugares bem gerais tais como: os lugares da quantidade, da qualidade,

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da ordem, do existente, da essência, da pessoa (Ibidem, p.96). Interessante notar como os

autores fornecem subsídios para uma análise do discurso e da argumentação voltada para o

problema da construção da identidade e da alteridade, ao considerar a possibilidade de

caracterizar as sociedades não só pelos valores, mas também pelos lugares (Ibidem).

Em suma, a argumentação pode se basear no objeto (construído a partir de fatos,

verdades e presunções) ou no preferível (valores, hierarquias e lugares), isso significa que as

possibilidades de escolha das premissas e de montagem de um raciocínio podem configurar

um leque diversificado de acordos entre orador e auditório, ou seja, de maneiras de

argumentar, o que remete aos modos de presença, à imagem do orador (enunciador) e do

auditório (co-enunciador). Assim, é possível dizer que para a análise de um discurso não basta

arrolar os tipos de premissas que são empregadas como ponto de partida de um raciocínio

argumentativo, pois parece que um dos cuidados que a análise deve ter é o de questionar o

porquê das escolhas de determinadas premissas em um discurso e não em outro.

De toda a obra de Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996), optamos aqui por destacar

apenas o que os autores chamam de ponto de partida da argumentação, pois a abrangência de

seu trabalho vai além dos propósitos desta pesquisa e, ademais, o enfoque sobre as premissas

parece ser central para a análise da relação argumentativa entre enunciador e co-enunciador.

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3.4. A noção de cenografia

3.4.1. A cenografia como uma das três cenas de enunciação

O caráter interativo da atividade linguageira estabelece durante a enunciação um

conjunto de elementos que compõem sua própria situação de comunicação como uma cena,

mais especificamente uma cena de enunciação composta, assim, pelo lugar social assumido

pelo destinador do discurso, pelo lugar social atribuído ao destinatário do discurso, pelo

espaço e pelo momento que são próprios a esses lugares reconhecidos socialmente. A cena é o

quadro da enunciação, mas não um quadro que é dado a priori, independentemente da

enunciação de seu discurso, mas constitutivo dele.

Para Maingueneau (2002, p.85), a cena de enunciação é composta por outras três

cenas, a saber: a cena englobante, que corresponde ao tipo de discurso (político, jurídico,

literário, familiar, científico, religioso, etc.); a cena genérica, que se instala por meio do

gênero discursivo; e a cenografia, que é a cena com que o co-enunciador toma contato mais

explicitamente.

Dentre as três cenas, a cenografia aparece como a cena de enunciação mais propícia

aos investimentos de criação do discurso. Trata-se de uma dimensão criativa21 do discurso, na

qual engendra-se o simulacro de um momento, de um espaço e dos papéis sociais conhecidos

e compartilhados culturalmente. E, além da simulação, a cenografia se constitui como o

dispositivo de fala que é imposto pela sua enunciação, o qual, para legitimar-se, legitima

progressiva e reciprocamente sua cenografia. É oportuno observar como Maingueneau (2001,

p.123) formula sua noção de cenografia:

Chamaremos de cenografia essa situação de enunciação da obra, tomando o cuidado de relacionar o elemento -grafia não a uma oposição empírica entre suporte oral e suporte gráfico, mas a um processo fundador, à inscrição legitimante de um texto estabilizado. Ela define as condições de enunciador e de co-enunciador, mas também o espaço (topografia) e o tempo (cronografia) a partir dos quais se desenvolve a enunciação.

21 Derivado do verbo criar, ‘dar existência a’, ‘gerar’, ‘formar’.

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Desse modo, a cenografia é, para Maingueneau (2002, p.87), a cena com que o co-

enunciador se depara em primeiro plano, já que as cenas englobante e genérica são deslocadas

para o segundo plano.

3.4.2. A cenografia como recurso de captação ou de subversão de papéis sociais

Tomando a Carta a todos os franceses22 como exemplo, Maingueneau (2002, p.92)

mostra que o eleitor recebe a propaganda política (gênero) de François Mitterrand como uma

carta pessoal (cenografia). O autor explora, ainda, com esse exemplo, a noção de cenas

validadas, isto é, cenas de fala “já instaladas na memória coletiva”, mostrando que “o eleitor

não é convidado apenas a ler uma carta: ele deve participar imaginariamente de uma reflexão

em família” e é essa “reunião de família” que consiste na cena validada que projeta o

enunciador “Mitterrand” como o pai e o co-enunciador “eleitor” como um dos filhos que

participam de uma reflexão em torno da mesa.

Vale ressaltar que essa noção de cenas validadas não está fundamentada em outros

pressupostos teóricos que não o do primado do interdiscurso sobre o discurso, visto que a

memória também é construção do discurso. Como bem lembra Brandão (1998, p.128), “para a

Análise do Discurso, a noção de memória discursiva nada tem a ver com a noção de memória

tal como concebida pela Psicologia ou pela Psicolingüística”, pois “a noção de memória

discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas

reguladas por aparelhos ideológicos”.

Avançando um pouco mais nessa questão que envolve cenografia e cenas validadas,

podemos notar que o mecanismo discursivo que produz essas cenas de enunciação (a “carta”

como cenografia e a “reunião de família” como cena validada) tem a ver com o

reinvestimento de um gênero discursivo em outros gêneros. Maingueneau (1991, p.155) fala

de reinvestimento “para sublinhar que no domínio da Análise do Discurso a prática

hipertextual visa menos a modificar que a explorar, num sentido destrutivo ou legitimante, o

capital de autoridade associado a certos textos”23. E, conforme formulação do próprio autor,

esse reinvestimento ocorre por meio de duas estratégias opostas, em que:

22 Veiculada em nome de François Mitterrand durante a eleição para presidente da França em 1988. 23 (...) pour souligner que dans le domaine de l’AD la pratique hypertextuelle vise moins à modifier qu’á exploiter dans un sens destructif ou légitimant le capital d’autorité attaché à certains textes.

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(1) A captação consiste em transferir para o discurso reinvestidor a autoridade relacionada ao texto ou ao gênero fonte, [...]. (2) Contrariamente, na subversão, a imitação permite desqualificar a autoridade do texto ou do gênero fonte (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p.94).

Dessa maneira, é o reinvestimento dos gêneros “carta pessoal” e, sobretudo, “reunião

de família” no gênero “propaganda eleitoral” que transfere a autoridade do pai de família ao

enunciador François Mitterrand. Isso implica que as cenas de enunciação produzidas por meio

dessa captação carregam consigo os papéis enunciativos previstos no gênero captado e os

inscrevem em seu discurso. A título de ilustração, esse mesmo procedimento pode ser

observado não só na Carta aos brasileiros, de Luís Inácio Lula da Silva, durante a campanha

que o elegeu presidente do Brasil em 2002, mas também em seus discursos presidenciais, que

freqüentemente constroem uma comparação entre a administração de um país e a

administração de uma casa.

É nesse sentido que Maingueneau (2002, p.92) diz que a cenografia pode apoiar-se em

cenas validadas, isto é, “já instaladas na memória coletiva, seja a título de modelos que se

rejeitam ou de modelos que se valorizam”, caracterizada como “estereótipo autonomizado,

descontextualizado, disponível para reinvestimentos em outros textos”.

Todavia, é preciso sublinhar que esses efeitos de captação ou de subversão gerados

pelo reinvestimento de um gênero em outro são praticamente nulos naqueles gêneros mais

estereotipados que não propiciam a criação de cenografias variadas, pois, como aponta

Maingueneau (2005, p.75), “há gêneros de discurso cujas cenas de enunciação se reduzem à

cena englobante e à cena genérica” ao contrário de outros gêneros de discurso que “têm maior

possibilidade de suscitar cenografias que se afastam de um modelo preestabelecido”.

No primeiro grupo, têm-se a lista telefônica e a receita médica como exemplos de

gêneros que não variam suas cenografias, restringindo-as às suas cenas genéricas. Já, no

segundo grupo, encontram-se os gêneros pertencentes aos discursos publicitários, literários,

filosóficos, políticos, etc. Neste último, como ilustra Maingueneau (2005, p.76), “um

candidato poderá falar a seus eleitores como um jovem executivo, como tecnocrata, como

operário, como homem experiente etc., e conferir os ‘lugares’ correspondentes a seu público”.

Feita a ressalva, importa dizer que essa ilustração exemplifica como o modo de falar e

o seu lugar social correspondente, ambos já instalados numa memória coletiva, também são

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captados pelo discurso, pois esse candidato, ao projetar em seu discurso a fala de um

trabalhador, capta o universo do trabalho e valida a enunciação de seu discurso político para

uma massa trabalhadora.

Enfim, podemos sintetizar os principais pontos vistos até aqui, da seguinte maneira:

• A cenografia legitima, progressiva e reciprocamente, sua enunciação, ou seja,

ela se apresenta como a cena de enunciação necessária para aquilo que enuncia;

• A cenografia define as coordenadas da pessoa (os lugares sociais do

enunciador e do co-enunciador), do tempo (cronografia) e do espaço

(topografia), construídas no discurso como simulacro;

• A cenografia corresponde à cena de enunciação oferecida imediatamente ao

co-enunciador, pois passa a cena englobante e a cena genérica para o segundo

plano, o que, entretanto, nem sempre ocorre, pois a cenografia pode estar mais

conformada à cena genérica.

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CAPÍTULO II

OS PRONUNCIAMENTOS DE 12 DE DEZEMBRO DE 1968

E O SEU CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO

Sete anos após aquela terrível sexta-feira 13 de

dezembro de 1963, pode-se afirmar, sem risco de

exagero, que Antares esqueceu o seu macabro

incidente. Ou então sabe fingir muito bem.

Erico Veríssimo

A democracia não é outorgada. Direitos

democráticos são duramente conquistados.

Homens que não lutam pela liberdade não estão

maduros para viver livremente.

Donaldo Schüler

O enunciado é um elo na cadeia da comunicação

discursiva e não pode ser separado dos elos

precedentes que o determinam tanto de fora

quanto de dentro, gerando nele atitudes

responsivas diretas e ressonâncias dialógicas.

Mikhail Bakhtin

4. SOBRE O GÊNERO PRONUNCIAMENTO PARLAMENTAR

4.1. A noção de gênero do discurso

Nosso intuito ao falar de gênero do discurso se restringe a uma apresentação dessa

noção tal como ela é desenvolvida por Bakhtin e abordada por Maingueneau para apenas

situarmos com que concepção de gênero nós estamos operando e o que daí é relevante para a

análise dos discursos em nosso trabalho.

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A noção de gênero remonta à Antigüidade e sua classificação já foi perseguida por

Platão e Aristóteles que nos legaram uma grande tradição no campo dos estudos literários e

retóricos. Assim, na literatura, destacam-se as distinções entre prosa e poesia; entre lírico,

épico e dramático; entre tragédia e comédia. Já na Retórica, distinguem-se três gêneros: o

deliberativo, o judicial e o epidítico. Haja visto que, naquele momento, a preocupação estava

voltada para a techné.

Conforme Brandão (2000, p.22-23), há, atualmente, uma série de tipologias como as

funcionais, enunciativas, cognitivas e a sócio-interacionista. Nossas reflexões sobre o gênero

são orientadas por essa última tipologia devido à sua afinidade com o quadro teórico

articulado em nossa pesquisa. Referimos-nos, pois, à tipologia fundada nos postulados do

círculo de Bakhtin, que, como nos mostra Grilo (2004, p.40), fincou “as bases para o estudo

dos gêneros do discurso”.

Bakhtin (2002, p.43), ao anunciar o problema do que ele chamou de “gêneros

lingüísticos”, observa que “cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de

discurso na comunicação sócio-ideológica”. É importante notar que o autor ressalta aí o

caráter sócio-ideológico da comunicação, caracterizando-a como discurso, cuja materialização

se dá por meio de formas repertoriadas e situadas pelas sociedades através dos tempos, ou

seja, por meio dos gêneros do discurso. Nessa perspectiva, podemos dizer, que o gênero é um

dispositivo de linguagem instituído sócio-historicamente.

Bakhtin (2003, p.267), quando se refere à “ausência de uma classificação bem pensada

dos gêneros do discurso por campos de atividade”, nos autoriza a associar os gêneros do

discurso aos diversos campos da atividade humana, tais como o jurídico, o político, o familiar,

o literário, o científico, etc. É bem o que Marcuschi (2002, p.23) chama de domínio

discursivo. O autor usa tal expressão “para designar uma esfera ou instância de produção

discursiva ou de atividade humana. Esses domínios não são textos nem discursos, mas

propiciam o surgimento de discursos bastante específicos. Do ponto de vista dos domínios,

falamos em discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso, etc., já que as

atividades jurídica, jornalística ou religiosa não abrangem um gênero em particular, mas dão

origem a vários deles”.

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Assim, para Bakhtin (2003, p.261), cada campo da atividade humana demanda

finalidades e condições específicas que determinam a geração do enunciado, o qual, por sua

vez, as reflete por meio de três componentes, a saber:

• o tema;

• o estilo da linguagem;

• a construção composicional.

Quanto a isso, julgamos importante fazer ouvir o próprio Bakhtin (2003, p.261):

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional.

Nunca é bastante retomar como Bakhtin concebe esses três componentes do

enunciado. Como se vê, o estilo da linguagem passa pela “pela seleção dos recursos lexicais,

fraseológicos e gramaticais da língua” (2003, p.261). Já a construção composicional é

composta “de tipos de construção de conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos de

relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – com os ouvintes, os

leitores, os parceiros, o discurso do outro” (2003, p.266). O tema, por sua vez, está associado

a conteúdo (2003, p.261), ou seja, o tema é “o sentido da enunciação completa” (Bakhtin,

2002, p.128).

Para compreender melhor a noção bakhtiniana de tema, recorreremos a Cereja (2005,

p.202), que elucida a questão nos seguintes termos:

Já o tema é indissociável da enunciação, pois, assim como esta, é a expressão de uma situação histórica concreta. Como decorrência, é único e irrepetível. Participam da construção do tema não apenas os elementos estáveis da significação mas também os elementos extraverbais, que integram a situação de produção, de recepção e de circulação. Dessa forma, o instável e o inusitado de cada enunciação se somam à significação, dando origem ao tema, resultado final e global do processo da construção de sentido.

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De acordo com Bakhtin, podemos ver que o enunciado não é caracterizado apenas

pela sua forma composicional, seu estilo e seu tema, mas também pelos fatores que remetem

mais especificamente à interação verbal de modo que as condições de produção de um

discurso estão refletidas e refratadas em sua própria materialização lingüística. É nesse

processo dinâmico e interativo que a recorrência e a estabilização de um enunciado elaborado

num campo da atividade humana instituem o gênero do discurso. Assim, Bakhtin (2003,

p.262) define os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados,

elaborados pelos campos de utilização da língua.

Não obstante aos postulados de Bakhtin, Maingueneau (1995, p.7) entende que “a

Análise do Discurso [...] não tem por objeto nem a organização textual considerada em si

mesma, nem a situação de comunicação, mas a imbricação de um modo de enunciação e de

um lugar social determinados”24. Maingueneau (Ibidem, p.7-8) explica que “o discurso é aí

apreendido como atividade relacionada a um gênero, como instituição discursiva: seu

interesse é não pensar os lugares independentemente de enunciações que eles tornam

possíveis e que os tornam possíveis”25.

Tributário a Bakhtin, Maingueneau concebe o gênero na articulação entre sua forma

de construção e a situação social de sua enunciação, afirmando que “é preciso articular o

“como dizer” ao conjunto de fatores do ritual enunciativo” (Maingueneau, 1997, p.36), de

modo que “a explicitação das condições genéricas [...] não representa uma finalidade para a

AD” (Ibidem, p.37).

É importante destacar que, nessa perspectiva, cada gênero do discurso institui seu

ritual enunciativo e os seus lugares enunciativos correspondentes ao enunciador e ao seu co-

enunciador. O ritual e os lugares se afiguram como coerções impostas pelo próprio gênero do

discurso. Aliás, Bakhtin (2003, p.283) já menciona o caráter normativo e coercitivo do gênero

sobre o falante quando compara as formas do gênero e as formas da língua. E esse é um

aspecto que nos chama muito a atenção no que toca ao estudo do ethos.

24 “l’analyse [...] n’a pour objet ni l’organisation textuelle considérée en elle-même, ni la situation de communication, mais l’intrication d’un mode d’énonciation et d’un lieu social déterminés” (1995, p.7). 25 “le discours y est appréhendé comme activité rapportée à un genre, comme institution discursive : son intérêt est de ne pas penser les lieux indépendamment des énonciations qu’ils rendent possibles et qui les rendent possibles” (1995, p.7-8).

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4.2. Origem e estabilização do gênero pronunciamento parlamentar

A origem do gênero pronunciamento parlamentar se confunde com a própria invenção

da política, que surgiu na Grécia e em Roma como forma de mediação dos conflitos entre as

classes sociais envolvidas na disputa pelo poder, já que a soberania das grandes famílias

começava a ser contestada pela emergente classe dos artesãos e comerciantes. De acordo com

Chauí (2002, p.374), “a luta de classes pedia uma solução. Essa solução foi a política”.

Schüler (2002, p.13), com muita concisão, nos mostra muito bem que “o homem grego

não foge da divergência, convive com ela, educa-se nela. Na divergência aprende a falar. Não

há democracia na vigência do discurso único. Na refrega verbal o diverso se anuncia, se

enuncia”.

Conforme Chauí (2002, p.376), gregos e romanos criaram, assim, o espaço público

para que os cidadãos pudessem defender seus interesses e tomar suas decisões

consensualmente, concebendo, então, o que a sociedade moderna conhece como parlamento.

Instaurava-se, portanto, o regime político, em que o debate e a expressão pública da vontade

da maioria estabeleciam o consenso, condicionando o sucesso da política à argúcia da palavra.

Assim, ao longo do tempo, estabeleceu-se no interior da atividade política uma série

de convenções sociais que instituíram a própria atividade e seus dispositivos de linguagem.

Entre algumas dessas invenções, podemos destacar a criação do espaço público (a assembléia

e o senado) como o espaço de deliberação, da figura dos políticos (tribunos e senadores) como

interlocutores imediatos, da argumentação retórica como elemento organizador do discurso,

da linguagem rebuscada como marca privilegiada do estilo de linguagem, etc.

Tais convenções sociais consistiam nas condições de produção dos discursos políticos

que se refletiam nas formas de seus próprios enunciados. E foi a estabilização desses

enunciados que instituiu o gênero do discurso que a sociedade moderna convencionou

denominar pronunciamento parlamentar.

Nosso objetivo, porém, não é o de avaliar o impacto que a diversificação das várias

atividades humanas causou sobre esse gênero através dos tempos. Entretanto, um olhar mais

voltado para as representações das atuais casas parlamentares nos mostra a instituição de

novas figuras para os participantes da comunicação como a do presidente da mesa, do

primeiro-secretário, do segundo-secretário, do orador, do plenário e dos líderes de bancada.

Isso nos permite deduzir que o próprio espaço físico dessas casas legislativas foi

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redimensionado, adaptando-se à necessidade de representar essa hierarquia no interior da

casa, do espaço físico em si. Com efeito, essas transformações na atividade política foram

sentidas no próprio gênero parlamentar, pois, se a natureza argumentativa e o uso de uma

linguagem formal permanecem orientando sua construção composicional e seu estilo de

linguagem, por outro lado, a constituição e o desdobramento da hierarquia na casa legislativa

tornaram a fala parlamentar mais ritualizada.

Tratemos dessa questão, agora, de modo mais particular, observando como apenas um

componente do gênero (a finalidade) cria uma distinção no interior do gênero pronunciamento

parlamentar, tendo em vista o exemplo da Câmara dos Deputados Federais do Brasil.

A Câmara Federal brasileira disponibiliza em seu sítio eletrônico26 um glossário de

termos parlamentares. Nesse glossário, podemos verificar que o termo pronunciamento

parlamentar é concebido de forma generalizada, sendo definido como uma “manifestação de

opinião do parlamentar, seja em discurso ou em intervenção nos trabalhos legislativos”.

No entanto, a finalidade do pronunciamento parlamentar distingue, no mínimo, outros

dois gêneros do discurso, como nos atesta o referido glossário:

• Comunicação parlamentar: “Realiza-se após o encerramento da fase chamada

Ordem do Dia. Destina-se ao uso da palavra pelos oradores indicados pelas

lideranças partidárias para pequenos pronunciamentos”;

• Encaminhamento de votação: “Pronunciamento a favor ou contra determinada

proposição, feito por oradores inscritos e pelos líderes, pelo prazo de cinco

minutos, tão logo é anunciada a votação”.

Nessa distinção vemos que a comunicação parlamentar se caracteriza como um

pequeno pronunciamento que pode ocorrer somente após a Ordem do Dia, o estabelecimento

da pauta. Já o encaminhamento de votação implica a votação de alguma matéria em pauta (a

finalidade) e ocorre após as comunicações parlamentares.

No caso da sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968, os deputados Márcio

Moreira Alves, Mário Covas e Geraldo Freire fizeram seus pronunciamentos por meio do

gênero do discurso encaminhamento de votação e foram antecedidos por vários deputados

26 Disponível em http://www.camara.gov.br. Essa publicação não apresenta numeração de páginas.

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que se manifestaram por meio da comunicação parlamentar. Isso posto, iremos nos referir

aos discursos desses três parlamentares de uma maneira bem geral, denominando-os

pronunciamento parlamentar.

4.3. Caracterização do gênero pronunciamento parlamentar

Antes de apontar algumas das características do gênero pronunciamento parlamentar

que nos parecem mais relevantes, é importante discutir, primeiramente, se estamos tratando de

um gênero oral ou escrito.

Marcuschi (2003, p.39) propõe uma interessante distinção entre fala e escrita,

apoiando-se em duas noções, a saber, meio e concepção. Para o autor, “a fala é de concepção

oral e meio sonoro, ao passo que a escrita é de concepção escrita e meio gráfico”. Entretanto,

os gêneros nem sempre veiculam os discursos de forma tão absoluta assim. Nessa perspectiva,

os gêneros do discurso se distribuem de acordo com o seu modo de concepção (oral/escrita) e

o seu meio de produção (sonoro/gráfico).

No gráfico a seguir, elaborado por Marcuschi (2003, p.39), podemos ver que a área em

a compreende o “domínio do tipicamente falado (oralidade), seja quanto ao meio e quanto à

concepção”, ao passo que a área em d corresponde ao domínio do “tipicamente escrito”. Já as

áreas abrangidas por c e d “constituem os domínios mistos em que se dariam as mesclagens

de modalidades”.

(Marcuschi, 2003, p.39)

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Embasado nessas noções, podemos afirmar que o pronunciamento parlamentar é um

gênero do discurso que se realiza pelo meio sonoro, pois se materializa oralmente no orador

da tribuna. Entretanto, no que diz respeito ao seu modo concepção, é preciso ressalvar que ele

não é tão preciso quanto seu meio de produção, dado que os discursos podem ser previamente

preparados de forma integral (o orador lê o discurso na íntegra) ou parcial (o orador

desenvolve tópicos previamente definidos), bem como podem ser improvisados. Em suma,

embora em alguns casos o modo de concepção de pronunciamentos parlamentares se

aproxime do escrito, nem sempre esse é o caso. Entretanto, ao mesmo tempo, isso não quer

dizer que sua concepção pertença ao domínio da fala, pois, no limite, a concepção de um

pronunciamento passa, no mínimo, por uma elaboração mental antes que o orador o pronuncie

publicamente: o pronunciamento não possui a espontaneidade característica da oralidade.

Dessa maneira, não basta dizer se o pronunciamento parlamentar é um gênero oral ou

escrito, pois é preciso considerar que há nele uma mesclagem de modalidades que nos faz

perceber que estamos diante de um gênero de domínio misto c: concepção discursiva escrita,

meio de produção sonoro.

Isso posto, tratemos de uma segunda questão. Seria lícito pensar que o

pronunciamento realizado na tribuna e sua publicação na imprensa oficial (Diário Oficial da

Câmara dos Deputados) são dois gêneros distintos que enunciam um mesmo discurso ou a

publicação consiste em uma transcrição do pronunciamento?

Recordando o que dissemos em nossa introdução, os pronunciamentos proferidos

pelos deputados na tribuna são taquigrafados e depois publicados e chancelados pelo Diário

Oficial da Câmara dos Deputados. O problema agora incide sobre a forma de publicação do

pronunciamento no Diário Oficial, que é, aliás, a fonte de nosso corpus. Então, para resolver

esse problema, recorreremos à distinção que Marcuschi (2003, p.49) faz entre processos de

retextualização e de transcrição. Vejamos o que diz o autor:

Transcrever a fala é passar um texto de sua realização sonora para a forma gráfica com base numa série de procedimentos convencionalizados. Seguramente, neste caminho, há uma série de operações e decisões que conduzem a mudanças relevantes que não podem ser ignoradas. Contudo, as mudanças operadas na transcrição devem ser de ordem a não interferir na natureza do discurso produzido do ponto de vista da linguagem e do conteúdo. Já no caso da retextualização, a interferência é maior e há mudanças mais sensíveis, em especial no caso da linguagem.

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Parece-nos que a diferença entre transcrição e retextualização reside no grau de

interferência que cada processo inflige a um determinado texto-base. Ao fim da transcrição, o

texto-alvo não apresenta mudanças na linguagem nem no conteúdo do discurso produzido e aí

tomado como texto-base.

E essa “série de procedimentos convencionalizados” a que se refere Marcuschi

corresponde a operações textuais que, no caso da transcrição, não chegam a produzir a

transformação do texto-base, isto é, não culmina em sua retextualização. Marcuschi (2003,

p.75) elabora um modelo dessas operações empregadas na passagem do texto oral para o texto

escrito, do qual destacamos as seguintes:

• “Eliminação de marcas estritamente interacionais, hesitações e partes de

palavras”;

• “Introdução da pontuação embasada na intuição fornecida pela entoação das

falas”;

• “Retirada de repetições, reduplicações, redundâncias, paráfrases e pronomes

egóticos”;

• “Introdução de paragrafação e pontuação detalhada sem modificação da ordem

dos tópicos discursivos”.

Podemos pressupor que tais mudanças operadas na transcrição, realmente, não

interferem na linguagem nem no conteúdo do discurso produzido. Nessa perspectiva, o texto

publicado no Diário Oficial da Câmara dos Deputados não manifesta esse nível de

interferência, logo nosso objeto de análise sofreu sim uma operação de transcrição, o que,

mesmo assim, ainda traz implicações que não podemos ignorar, sobretudo quando estudamos

o ethos, pois a entoação, os gestos, as expressões faciais não podem ser recuperadas e servir

como elementos de análise. Tal fato demanda do analista um esforço cooperativo maior para

com o texto analisado.

Outro ponto a ser considerado é que, embora a publicação do pronunciamento

parlamentar circule em outros meios que não só o da Câmara Federal, o produtor e o receptor

desse gênero já estão presumidos pelo próprio gênero, bem como estão circunscritos ao

contexto sócio-histórico específico da sua enunciação.

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71

Podemos concluir que o processo de transcrição não altera os fatores essenciais do

texto-base, logo parece lícito afirmar que não será isso que irá trazer alterações em matéria de

ethos. Por isso, mais uma vez, reiteramos que, conforme dissemos em nossa introdução,

optamos pelo texto publicado no Diário Oficial da Câmara dos Deputados a fim de considerar

uma fonte que respeita a integridade dos discursos proferidos, sendo fiel à sua linguagem e ao

seu conteúdo, mesmo abdicando de elementos como os gestos, a entoação, o vestuário, enfim,

toda a situação física.

Não deixemos de ilustrar o processo de retextualização. Se retomarmos um exemplo

dado em nossa introdução quando falávamos sobre o documentário AI-5 – o dia que não

acabou produzido pelo jornalista Paulo Markun, lembraremos que o documentário, enquanto

gênero do discurso, editou os pronunciamentos. Isso significa que o editor selecionou alguns

discursos para compor o documentário, suprimiu partes desses discursos, colheu e inseriu

depoimentos dos ex-parlamentares cujos discursos integram o documentário. Além disso,

dissemos que esse processo de edição revela o ponto de vista do documentarista. Portanto, de

acordo com Marcuschi, esse documentário nos serve como exemplo de retextualização devido

às interferências e mudanças operadas, sobretudo, no conteúdo. Podemos dizer que esse

documentário cria a impressão de que o discurso de Mário Covas (MDB) é muito mais

articulado e elaborado do que o de Geraldo Freire (ARENA). Isso porque, primeiramente, o

discurso arenista sofre mais cortes do que o discurso emedebista, o que já basta para mutilar

seu discurso no que tange aos argumentos, logo ao conteúdo.

Quanto à linguagem e à expressão, não nos parece haver interferências aí. Aliás, esse

tipo de interferência é mais corrente em gêneros da mídia como notícias, entrevistas, etc. Por

exemplo, um jornal, ao noticiar um tiroteio em uma favela, publica um enunciado como

“pode-se ver que meu barraco foi atingido por projéteis de diversos calibres” e o atribui a um

morador por meio da forma do discurso direto. Parece-nos pouco provável que essa seja a

expressão mais factível a um enunciado proferido por esse sujeito presumido. Sabemos que os

manuais de redação dos grandes jornais determinam que se operem mudanças de linguagem,

de expressão, padronizando a linguagem do jornal em detrimento daquelas linguagens que

não gozam de prestígio social como os vários jargões da periferia que são influenciados pelo

jargão dos prisioneiros.

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Se um dia os gregos sentiram necessidade de cultivar suas divergências por meio da

luta verbal, hoje, nos tempos da imprensa, a sociedade moderna sentiu a necessidade de

registrá-las e publicá-las a fim de reiterar o espírito democrático e manter viva sua memória.

Isso posto, passemos a uma descrição sincrônica do gênero pronunciamento

parlamentar, considerando dois dos três elementos do gênero apontados por Bakhtin: a

construção composicional e o estilo da linguagem próprio do gênero.

Nossa ressalva é quanto ao terceiro elemento, o tema, que não será levado em conta

nessa caracterização, pois sua natureza nos levaria a uma descrição infinita. Isso porque “o

tema da enunciação é na verdade, assim, como a própria enunciação, individual e não

reiterável”, como nos mostra Bakhtin (2002, p.128). Logo, tantas enunciações, tantos temas.

4.3.1. A construção composicional do pronunciamento parlamentar

Destacaremos aqui três componentes que observamos na construção composicional do

gênero pronunciamento parlamentar:

• o modo argumentativo de organização do discurso;

• o plano textual;

• a ritualização da fala parlamentar.

Para Charaudeau (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p.338), “o modo argumentativo

permite organizar as relações de causalidade que se instauram entre essas ações [as ações e os

eventos nos quais os seres estão implicados], com auxílio de vários procedimentos que incidem

sobre o encadeamento e o valor dos argumentos” [grifo nosso].

Charaudeau (1992) trata do modo de organização argumentativo, visando sempre os

componentes e os procedimentos tanto da organização do raciocínio argumentativo como da

“colocação em argumentação”27. Seu objetivo é “apresentar noções de base que são destinadas

a fazer compreender como funciona a mecânica do discurso argumentativo, isto é, não um

27 Certamente, o termo soa estranho, mas não encontramos tradução mais adequada para o que Charaudeau chama de “la mise en argumentation”.

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tipo de texto mas os componentes e procedimentos de um modo de organização discursivo”28

(Ibidem, p.781).

Assim, Charaudeau (Ibidem, p.787-802) mostra que os componentes da organização

da lógica argumentativa são os elementos de base da relação argumentativa (asserção de

partida, asserção de chegada e asserção ou asserções de passagem), os modos de

encadeamento, as relações de sentido, etc. Já os seus procedimentos são a dedução, a

explicação, a associação, etc.

Depois disso, Charaudeau (Ibidem, p.803-833) mostra também que a “colocação em

argumentação” tem como componentes o dispositivo argumentativo, os tipos de configuração

e as posições do sujeito, bem como dispõe de procedimentos semânticos, discursivos e de

composição (as etapas da argumentação: início, transição, fim).

Queremos ressaltar que estamos fazendo uma brevíssima apresentação do esquema

elaborado por Charaudeau (1992) e que vamos nos eximir de pormenorizá-lo, pois o que nos

interessa daí é, em primeiro lugar, perceber que o autor distingue o modo argumentativo em

dois planos – o da organização lógica e o da realização lingüística – e, em segundo lugar,

pinçar e relacionar estes dois pontos, a saber:

• a relação argumentativa (plano da organização lógica), cujos elementos básicos

consistem nas asserções de partida, chegada e passagem;

• o procedimento de composição (plano da realização lingüística), cujas etapas

da argumentação consistem em início, transição e fim.

Tratemos do primeiro ponto. Para Charaudeau (Ibidem, p.787), a asserção de partida

(A1) “representa um dado de partida destinado a fazer admitir uma outra asserção em relação

à qual ela se justifica”29, isto é, não se trata somente de uma introdução, mas de uma

preparação para a argumentação.

28 “présenter des notions de base qui sont destinées à faire comprendre comment fonctionne la mécanique du discours argumentatif ; c’est-à-dire non pas un type de texte mais les composantes et procédés d’un mode d’organisation discursif ” (1992, p.781). 29 “représente une donnée de départ destinée à faire admettre une autre assertion par rapport à laquelle, en retour, elle se justifie” (1992, p.787).

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Já a asserção de chegada (A2) “pode ser chamada de conclusão da relação

argumentativa, ela representa a legitimidade da proposta”30 (Ibidem, p.788).

Por fim, a asserção de passagem “representa um universo de crenças a propósito da

maneira como os fatos se entre-determinam na experiência ou no conhecimento de mundo.

Esse universo de crenças deve ser compartilhado pelos interlocutores implicados pela

argumentação, de modo que seja estabelecida a prova da validade do laço que une A1 à A2.

Essa asserção (ou série de asserções), freqüentemente não dita, implícita, poderá ser chamada

de prova, inferência ou argumento ,conforme o quadro de questionamento no qual ela se

inscreve”31 (Ibidem, p.788).

Tomando o pronunciamento do deputado Mário Covas Júnior como exemplo, teremos

o seguinte:

• Asserção de partida (A1): “[...] eis que, hoje, esta Casa está sendo submetida a

julgamento. Recolhida ao banco dos réus, aguarda o veredicto que será exarado

pelos próprios ocupantes” (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000,

p.99);

• Asserção de chegada (A2): “[...] quero declarar minha firme crença de que,

hoje, o Poder Legislativo será absolvido” (Ibidem, p.110).

As asserções que permitem a passagem de A1 à A2 se apresentam de várias maneiras e

todas visam a validar essa absolvição (A2) que se propõe legítima em relação à proposta

inicial (A1): que a Casa está sob julgamento.

Agora o segundo ponto. No que toca ao procedimento de composição, Charaudeau

(Ibidem, p.829) avisa que “não se confundirá esse procedimento com a tradicional

composição escolar em: introdução, tese (articulação), antítese, conclusão. Trata-se aqui da

30 “peut être appelée conclusion de la relation argumentative, elle représente la légitimité du propos” (1992, p.788). 31 “représente un univers de croyance à propos de la manière dont les faits s’entre-déterminent dans l’expérience ou la connaissance du monde. Cet univers de croyance doit donc être partagé par les interlocuteurs impliqués par l’argumentation, de sorte que soit établie la preuve de la validité du lien qui unit A1 à A2. Cette assertion (ou série d’assertions), souvent non dite, implicite, pourra être appelée preuve, inférence ou argument selon le cadre de questionnement dans lequel elle s’inscrit” (1992, p.788).

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organização interna de uma argumentação que pode coincidir com todo um texto (o texto é

exclusivamente argumentativo) ou representar somente uma parte deste texto”32.

Assim, Charaudeau (Ibidem, p.829-830) prefere tratar essa questão como uma

sucessão em três etapas, da seguinte forma:

• início: trata-se de localizar os elementos da Proposta e da Proposição, seja diretamente – ou seja, expondo o essencial desses elementos –, seja com a ajuda de marcas como:

• “Começaremos por...” • “Observamos inicialmente...”

• transição: trata-se de passar de um momento da argumentação a um outro.

Isso se faz, na maior parte, com a ajuda de algumas marcas como: • “Após essa breve análise, ...” • “A segunda questão à qual me propus responder...”

• fim: trata-se de apresentar ou de anunciar o último momento da

argumentação: • “Terminamos por...” • “Podemos então concluir que...”33.

Charaudeau concebe assim o modo argumentativo de organização do discurso,

distinguindo o plano lógico do plano lingüístico, dos quais destacamos (i) os elementos

32 “On ne confondra pas ce procédé avec la traditionnelle composition scolaire en : introduction, thèse (articulation), antithèse, conclusion. Il s’agit ici de l’organisation interne d’une argumentation qui peut coïncider avec tout un texte (le texte est exclusivement argumentatif), ou ne représente qu’une partie de ce texte” (1992, p.829). 33 • début: Il s’agit de mettre em place les éléments du Propos et de la Proposition, soit directement – c’est-à-dire en exposant de plain-pied ces éléments -, soit à l’aide de marques tels que: •“On commencera par...” •“Observons tout d’abord...” • charnière: Il s’agit de passer d’un moment de l’argumentation à un autre. Cela se fait la plupart du temps à l’aide de certaines marques tels que: • “Après cette brève analyse, ...” • “La seconde question à laquelle je me suis proposé de répondre...” • fin: Il s’agit de présenter ou d’annoncer le dernier moment de l’argumentation: •“Terminons par...” •“Nous pouvons donc en concluire que...”

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básicos da relação argumentativa (as asserções de partida, de transição e de chegada), bem

como o que o autor chama de (ii) etapas da argumentação (início, transição e fim).

Essa é uma distinção que deve ser considerada, porque nem todo gênero do discurso

apresenta coincidência entre asserção de partida e etapa inicial, asserção ou asserções de

transição e etapa de transição, asserção de chegada e etapa final. Aliás, há gêneros que

dispensam ou tornam implícita a transição, tanto a lógica quanto a lingüística. No entanto,

vale ressaltar que o pronunciamento parlamentar não se encaixa em nenhum desses dois

casos, pois é um gênero que guarda muito do antigo modelo retórico.

*

Uma vez compreendido o modo argumentativo, passemos, agora, a um segundo

componente composicional do gênero pronunciamento parlamentar: o plano textual.

Como acabamos de dizer, é possível reconhecer nesse gênero um plano textual

calcado no modelo retórico, que é assim sintetizado por Mosca (1997, p.28):

Dispositio – É a maneira de dispor as diferentes partes do discurso, o qual deve ter os seguintes componentes: exórdio, proposição, partição, narração/descrição, argumentação (confirmação/refutação) e peroração. Trata-se da organização interna do discurso, de seu plano.

O gênero pronunciamento parlamentar visa não apenas à adesão e à persuasão pelo

sentimento (como os gêneros publicitários), mas também ao convencimento pela razão, pela

produção de provas que pareçam objetivas. Barthes (1975, p.206), adotando o modelo retórico

de Aristóteles, aponta na dispositio34 uma dicotomia entre passional (o apelo aos sentimentos,

que cobre o exórdio35 e o epílogo36) e demonstrativo (o apelo ao fato e à razão, que cobre a

narratio e a confirmatio37). Parece justo dizer que cada parte do discurso impõe coerções

34 Parte da Retórica dedicada à organização interna do discurso, ao plano textual. 35 Barthes (1975, p.208) mostra que o exórdio compreende a captação da benevolência e o anúncio das partes do discurso. 36 Trata-se, conforme Barthes (1975, p.208-9), da parte final do discurso, a qual consiste em retomar e resumir os pontos do discurso (nível das “coisas”) e em explorar a emotividade do auditório (nível dos “sentimentos”). 37 Barthes (1975, p.210) diz que “à narratio, ou exposição dos fatos, sucede a confirmatio, ou exposição dos argumentos: é aí que se enunciam as ‘provas’ elaboradas, no decorrer da inventio”.

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sobre o modo de dizer, o que, por conseguinte, vai refletir nas escolhas enunciativas do

enunciador.

Essa organização interna do texto corresponde ao que Bakhtin chama de “tipos de

construção de conjunto” (2003, p.266), o que está associado à construção composicional.

Assim, durante nossas análises, nomearemos as partes dos textos conforme o esquema

apresentado por Barthes devido à sua concisão, à sua adequação e à sua aplicabilidade nos

pronunciamentos sob análise: exórdio, narratio, confirmatio e epílogo.

*

O terceiro componente a ser tratado corresponde àquilo que envolve o rito enunciativo

instituído pelo gênero parlamentar. O ritual parlamentar, além de exercer influência sobre o

estilo da linguagem, regula a concessão da palavra, bem como determina o tipo de relação que

se estabelece entre os participantes da comunicação discursiva, ou seja, determina os lugares

enunciativos que devem ser assumidos para a legitimação do discurso.

No gênero parlamentar, mais especificamente no encaminhamento de votação, o

sujeito assume, antes, o lugar de deputado federal, conferindo ao destinatário de seu discurso

o estatuto de plenário. Em sessões plenárias que têm em sua pauta a votação de pedidos de

licença ou mesmo de cassação do mandato de um membro da Casa, obedece-se a uma ordem

predeterminada em que, primeiramente, o acusado faz seu pronunciamento de autodefesa e,

na seqüência, os líderes da oposição e da situação fazem seus pronunciamentos de defesa e de

acusação, ou vice-versa.

O deputado é, então, convidado pelo presidente da Câmara a ocupar o espaço físico da

tribuna para proferir seu discurso. Assim, ele assume o lugar enunciativo do orador e dirige

sua palavra, inicialmente, ao próprio presidente da mesa e, depois, aos seus colegas

deputados, inscrevendo-os todos como o plenário. Ressalte-se que tudo isso já está

acontecendo no momento da enunciação.

Quanto ao estilo de linguagem, já é possível adiantar que essa ritualização aparece

manifestada no texto nos momentos de interpelação e deixa no enunciado uma série de

fórmulas de polidez cristalizadas pelo emprego do vocativo e das formas de tratamento como

“Senhor Presidente, Senhores Deputados...”, “Senhor Presidente...”, “Senhores

Deputados...”, “o nobre Relator...”, “o nobre Líder do Governo...”, “o nobre Deputado”, “Sua

Excelência...”, etc. Esse tipo de tratamento requer o emprego de uma linguagem mais formal.

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4.3.2. Estilo de linguagem do gênero pronunciamento parlamentar

Tratemos agora do estilo da linguagem no gênero parlamentar. Baseado nos

postulados de Bakhtin, entendemos que a relação entre o enunciado e as suas condições de

produção tem o seu papel na construção do estilo da linguagem de um gênero do discurso. No

caso do pronunciamento parlamentar, podemos dizer que o modo argumentativo, a finalidade

do gênero, o tipo de relação estabelecida entre os participantes da comunicação e a

ritualização da fala parlamentar juntam-se a um estilo polido e ritualizado de linguagem

formal e, assim, caracterizam a construção composicional do pronunciamento parlamentar.

Gostaríamos de ressaltar que o estilo formal e polido do gênero parlamentar não se

constitui como o resultado de um ou de outro elemento isoladamente, mas graças à

combinação desses elementos. Tomemos, por exemplo, um gênero da atividade publicitária.

O modo argumentativo só não está aí presente como é dominante, mas não é possível afirmar

que o estilo formal lhe é constitutivo; uma assembléia de condomínio também visa ao

consenso como finalidade, contudo o tipo de relação entre os seus interlocutores não está

ligado a falas tão ritualizadas como a parlamentar.

Parece-nos que o gênero do discurso não determina um estilo, mas apenas delimita sua

construção. Contudo, parece-nos que podemos refinar um pouco mais essas idéias. Baseado

em Discini (2003, p.57-63), podemos dizer que estilo é o efeito de sentido que constrói a

identidade do sujeito autor numa totalidade de discursos e que é possível depreendê-lo por

meio da recorrência das marcas lingüísticas expressas no dito. É essa ponderação que nos

permite concluir que cada deputado constrói seu próprio estilo discursivo dentro do estilo de

linguagem formal e polido do gênero parlamentar. Enfim, a construção do estilo na

composição do pronunciamento parlamentar é duplamente orientada pelo que pode ser

chamado de individual e de coletivo.

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5. O CENÁRIO POLÍTICO QUE ANTECEDEU A SESSÃO

DELIBERATIVA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1968

5.1. A conjuntura política internacional e nacional pré-64

O cenário político internacional, entre 1945 e 1989, foi marcado pela guerra fria, em

que os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

(URSS), temendo perder o domínio político e econômico que haviam conquistado após a II

Guerra Mundial, se envolveram numa corrida armamentista, financiaram guerras civis e

interferiram em governos de diversos países. Como nos lembra Chacon (1998, p.145), “a

primeira grande batalha da guerra fria no Brasil travou-se em torno do fechamento do PCB”,

em 1947. No entanto, é importante ressaltar que tais datas delimitam o início e o fim da guerra

fria somente se considerarmos as questões armamentista e geopolítica, pois, do ponto de vista

cultural e ideológico, ela extrapola os limites da queda do muro de Berlim em 1989.

A propaganda ideológica criou e manteve imagens bem distintas de cada lado. Os

norte-americanos criaram a imagem do self-made man e a idéia de que a felicidade estava no

bem-estar individual, o que fazia valorizar o mercado de consumo e o modelo capitalista. Já

os soviéticos formularam seus valores sobre a imagem de uma sociedade igualitária, na qual a

felicidade advinha de uma concepção coletiva de vida, o que sustentava a crença no controle

estatal dos meios de produção.

Em se tratando de América Latina, Bandeira (1997, p.84) nos mostra que “os EUA,

sem dúvida alguma, tiveram responsabilidade pelo estabelecimento e sustentação de muitas

ditaduras em vários países da América Latina, ao apoiarem as facções políticas mais dóceis

aos seus interesses econômicos e políticos”. Basta lembrar a reação do governo norte-

americano à ascensão de Fidel Castro ao governo de Cuba em 1959. Como se sabe, os

Estados Unidos lançaram uma ofensiva anticomunista em todo o continente americano, com o

objetivo de coibir medidas que, semelhantemente às adotadas por Fidel Castro

(nacionalização de empresas norte-americanas, aproximação com URSS, entre outras),

contrariavam seus interesses.

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Para nós, porém, interessa observar em que circunstâncias esses dois pólos ideológicos

que marcaram a guerra fria foram recebidos no Brasil, matizando as divergências políticas já

existentes.

Antes de falar em direita, centro e esquerda, é preciso dizer que havia no Brasil uma

luta de classes em que os grupos sociais mais proeminentes – a oligarquia reacionária, a

burguesia industrial e a classe trabalhadora – se organizaram, basicamente, em torno da UDN

(União Democrática Nacional), do PSD (Partido Social Democrático) e do PTB (Partido

Trabalhista Brasileiro). Vale acompanhar o que diz Dreifuss (1981, p.27) sobre a gênese

desses três partidos:

Eleições nacionais foram marcadas para dezembro de 1945, para as quais Getúlio Vargas estimulou a criação de dois partidos, o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, baseado na máquina sindical de Marcondes Filho, e o Partido Social Democrático – PSD, que não possuía coisa alguma em comum com seus homônimos europeus e se baseava em seus interventores estaduais, nos industriais de São Paulo e nos chefes políticos oligárquicos, os conhecidos coronéis. A posição de centro-direita criou a União Democrática Nacional – UDN, um conjunto amplo de posições anticomunistas, antinacionalistas e anti-Vargas (mais tarde antipopulistas), cuja base eleitoral encontrava-se principalmente nas classes médias e que era liderada por profissionais liberais, empresários e políticos.

Assim, nessas eleições de 1945, o Marechal Eurico Gaspar Dutra foi eleito presidente

pelo PSD e com apoio do PTB de Vargas, no entanto compôs seu ministério com quadros da

UDN, sinalizando o rumo que seu governo tomaria. Dreifuss (1981, p.28-29) recorda que as

diretrizes econômicas adotadas por Dutra favoreciam a empresa privada em detrimento das

estatais idealizadas no governo Vargas, além de estabelecer um “relacionamento especial com

os Estados Unidos”, em que a “economia foi reaberta ao capital estrangeiro em condições

muito favoráveis”. Foi ainda no governo Dutra que o PCB (Partido Comunista Brasileiro) “foi

declarado ilegal por decisão judicial”, justamente no momento em que o PCB reiterava, nas

eleições estaduais de 1947, sua condição de quarta força política em termos de voto popular.

Nas eleições de 1950, Getúlio Vargas foi reconduzido ao governo pelo PTB, mas

entregou a maior parte dos ministérios ao PSD, indicando qual era o partido do poder. A

UDN, por sua vez, elegeu Café Filho vice-presidente, já que as eleições para presidente e

vice-presidente eram separadas. Esse governo de Vargas foi muito conturbado, passando por

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duas reformas ministeriais e sucumbindo a um golpe militar que levou Getúlio Vargas ao

suicídio e Café Filho à presidência da República. Como analisa Sodré (1997, p.104), “o golpe

de 1954 também foi para deter qualquer avanço no processo político das reformas

econômicas. Desde que Getúlio Vargas esposou a tese do monopólio estatal do petróleo [...] e

tomou providências no sentido de prover o Estado brasileiro de órgãos capazes de intervir na

estrutura econômica de forma progressista, foi condenado pelas estruturas reacionárias,

deposto e levado ao suicídio em agosto de 1954”.

Dessa forma, o breve governo de Café Filho trabalhou para conter as classes

trabalhadoras e estimular “a penetração de interesses multinacionais através de um

entendimento com os setores cafeeiros e financeiros” (Dreifuss, 1981, p.33). Entretanto, esse

projeto fora novamente interrompido, pois a UDN saiu derrotada nas eleições nacionais de

1956 pela aliança PSD/PTB, encabeçada por Juscelino Kubitschek e João Goulart, eleitos

presidente e vice-presidente, respectivamente. Essa aliança “incorporava a burguesia

industrial, um setor da burguesia comercial especializado no comércio de produtos industriais

locais, e as classes médias progressistas (profissionais liberais, administradores), assim como

políticos urbanos e sindicalistas” (Dreifuss, 1981, p.33-34).

Até aqui pudemos ver que os vários setores da sociedade brasileira se agrupavam

basicamente em torno de duas forças políticas: uma reacionária associada ao imperialismo e

outra progressista de teor nacionalista.

Parecia que, enfim, nas eleições de 1960, os interesses multinacionais e associados

encontrariam respaldo no governo quando as forças reacionárias levaram seu candidato à

presidência da República. A UDN havia apoiado um partido de menor expressão – o PDC

(Partido Democrata Cristão) – que elegeu Jânio Quadros presidente, no entanto o PTB ainda

demonstrava prestígio ao reeleger João Goulart vice-presidente. Jânio Quadros, entretanto,

não conseguiu resolver os problemas que herdara do governo de seu antecessor e, após sete

meses de mandato, renunciou à presidência em 25 de agosto de 1961, criando uma grave crise

política e tornando ainda mais tensa a disputa entre as forças reacionárias e progressistas da

sociedade brasileira.

No momento da renúncia de Quadros, João Goulart estava na China e somente

assumiu a presidência após uma forte negociação que implicou na instalação do regime

parlamentarista. As funções de chefe de Estado foram, então, atribuídas a um primeiro-

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ministro, cargo ocupado pelo pessedista Tancredo Neves. Foi o que se chamou de golpe

branco, pois Goulart assumiu a presidência, mas não pôde exercer os poderes do Executivo.

No entanto, em 1963, Goulart obteve êxito em restaurar o presidencialismo e, assim, adquirir

de fato e de direito os poderes de chefe de Estado. Esse episódio se afigurou como um revés

muito desfavorável ao chamado bloco multinacional e associado, o qual passou, então, a

encampar, numa atitude golpista, uma estratégia de desestabilização do governo que culminou

na deposição de João Goulart em 1964.

Sodré (1997, p.104) nos mostra que os golpes apresentam uma forma análoga, a saber:

“a ação preparatória da mídia, uma pregação intensiva, visando isolar as forças políticas

progressistas e o coroamento por meio de uma intervenção militar do tipo que vai e vem”.

Assim, as Forças Armadas cumpriam o papel de depor o governante e assegurar sua

substituição. Feito isso, retiravam-se, diferentemente do que ocorreu após o Golpe de 64.

Quanto a isso, Paes (2002, p.42) lembra que “a propaganda envolvendo jornais (a

única exceção foi a Última Hora), rádio e televisão” exibiam diariamente “denúncias de

corrupção, de incompetência na condução da economia e – o grande filão – de ‘infiltração

comunista no governo’, de esquerdização e de uma ‘guerra revolucionária’ [...] que já estaria

em curso para instalar no País uma ‘república sindicalista”. Como ressalta a autora, o discurso

anticomunista foi o grande filão da propaganda ideológica nesse processo de desestabilização

do governo, intensificada, sobretudo, durante o período de Goulart.

Dreifuss (1981, p.233) ilustra essa prática com o seguinte episódio:

Eram também “feitas” em O Globo notícias sem atribuição de fonte ou indicação de pagamento e reproduzidas como informação fatual. Dessas notícias, uma que provocou um grande impacto na opinião pública foi que a União Soviética imporia a instalação de um Gabinete Comunista no Brasil, exercendo todas as formas de pressões internas e externas para aquele fim.

Fiorin (1988, p.34) mostra que esse grupo golpista consegue produzir um discurso em

que o sujeito Goulart engana o destinador povo e passa a obedecer a outro destinador, o

movimento comunista internacional, gerando aí insatisfação e decepção, duas faltas que

devem ser liquidadas pelo povo, que passa a instituir as Forças Armadas como o sujeito do

fazer de seu novo contrato de confiança.

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Fiorin (1988, p.52-54) mostra ainda que esse discurso “revolucionário” promete tirar o

Brasil do “caos” (desordem, desgoverno, inflação, subversão, anarquia, etc.) e estabelecer a

“ordem” (disciplina, desenvolvimento, não-inflação, respeito à hierarquia, etc.). No entanto, o

mesmo autor argumenta (Ibidem, p.63) que “restauração da ordem não é reforma, é a negação

do reformismo, que é apresentado como “subversão””. Em outras palavras, as bandeiras

levantadas por esses grupos reacionários associados aos interesses multinacionais

apresentavam as forças progressistas como comunistas e subversivas.

Assim, a grade cultural que baliza a produção discursiva do bloco reacionário valoriza

positivamente aquela ideologia propagada pelos EUA e valoriza negativamente aquela

construída pela URSS.

5.2. A conjuntura política nacional pós-64

O primeiro gesto político do novo regime foi editar um Ato Institucional – o AI-1 –

que delegava amplos poderes ao presidente, permitindo-lhe, entre muitas outras coisas, cassar

mandatos políticos e, mesmo, fechar o Congresso. A partir daí, iniciou-se um período de

perseguições e censura, que, justificadas em nome da garantia da ordem e da paz social,

transformaram o Brasil em um Estado de terror. No entanto, como o regime militar pretendia

mostrar o Brasil como um Estado democrático, ele teve de manter o Congresso e outras

instituições democráticas, mas que, obviamente, ficaram sob seu total controle.

Todavia, o regime ia tomando medidas mais rígidas no sentido de centralizar cada vez

mais o poder no interior das Forças Armadas. Em outubro de 1965, o presidente Castelo

Branco, por meio do AI-2, dissolveu todos os partidos políticos existentes e os encerrou em

duas siglas: a ARENA e o MDB. A ARENA (Aliança Renovadora Nacional) agrupou os

apoiadores do Golpe de 64, em sua maioria membros da UDN e do PSD, enquanto que seus

discordantes, principalmente políticos do PTB, uniram-se em torno do MDB (Movimento

Democrático Brasileiro). O PCB, por sua vez, seguia na clandestinidade.

Não demorou muito para que a oposição e os protestos contra a ditadura militar

começassem a se organizar de forma decisiva para a derrubada desse regime. “As oposições à

esquerda constituíram-se por segmentos sociais em geral pertencentes às classes médias

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intelectualizadas (artistas, intelectuais, jornalistas, estudantes), pelos partidos de esquerda,

setores do movimento estudantil e operário e setores da Igreja” (Paes, 2002, p.63).

Viam-se em várias partes do mundo manifestações estudantis em nome de uma

sociedade mais justa. O exemplo de recusa do american way of life dado pela juventude norte-

americana por meio do movimento da contracultura e os protestos contra a Guerra do Vietnã

uniram a juventude contra a política externa dos EUA. Na França, estudantes manifestaram-se

contra a reforma universitária, todavia o maio de 68 não só representou uma ameaça ao

governo do general de Gaulle, como também representou a recusa de um modelo cultural e a

proposição de um novo sistema de valores.

No Brasil, a onda de protestos e a repressão ao movimento estudantil explodiram

também em 1968, que ficou marcado por uma sucessão de episódios violentos. Em março de

1968, a ação truculenta da polícia militar para conter uma manifestação de estudantes no Rio

de Janeiro culminou no assassinato do secundarista Edson Luís de Lima Souto. Em junho de

1968, estudantes da UFRJ foram espancados ao saírem de uma assembléia. Na semana

seguinte, organizou-se a chamada “Passeata dos 100 mil” da qual participaram estudantes,

operários, políticos, religiosos, artistas, intelectuais. Em agosto, a polícia militar invadiu o

campus da Universidade de Brasília e reprimiu violentamente uma manifestação de estudantes

e professores.

5.3. Acerca do pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves

A oposição ao regime militar também encontrava guarida no Congresso e em alguns

flancos da imprensa. Márcio Moreira Alves em seu trabalho como repórter do “Correio da

Manhã” atacava incessantemente o regime ditatorial. Sua atuação profissional o credenciou

para se eleger deputado federal pelo MDB da Guanabara. Na Câmara Federal, Márcio

Moreira Alves destacou-se como um dos melhores deputados, pois fazia uso constante da

tribuna para criticar e exigir informações dos órgãos oficiais, marcando fortemente sua

posição contrária ao estado antidemocrático instalado desde o Golpe de 64.

Na sessão ordinária de 2 de setembro de 1968, em uma segunda-feira, Márcio Moreira

Alves fez um pronunciamento condenando a invasão do campus da UnB pela polícia militar ,

a qual foi seguida de violenta repressão à manifestação de estudantes e professores.

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Nesse pronunciamento, Márcio Moreira Alves apenas cobra providências concretas

das autoridades:

Mas a nação reclama, para sua tranqüilidade, a adoção de providências concretas e urgente (sic). Ninguém mais está disposto a aceitar as meras declarações oficiosas de que, sôbre o massacre de Brasília, será aberto rigoroso inquérito [...].

Todos conhecemos a espécie de rigoroso inquérito que êste Govêrno abre sôbre os criminosos que em suas fileiras se abrigam [...] (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 1968a, p.5754)

Ainda aí o deputado rememorou outra ação criminosa da polícia militar, à qual já nos

referimos aqui:

No Rio de Janeiro, como disse o deputado Hermano Alves, apurou-se que Edson Luís de Lima Souto fôra fuzilado pela Polícia Militar, apuraram-se os nomes dos fuzilantes, mas não se tomou nenhuma providências para puni-los. (sic) (Ibidem).

No entanto, foi no dia seguinte, na sessão de 3 de setembro de 1968, que Márcio

Moreira Alves fez seu pronunciamento mais incisivo, pois, além de exortar os pais a não

levarem seus filhos ao desfile de 7 de setembro, aconselhou às moças que não silenciassem

perante seus namorados militares:

As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem juntos com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe se compenetrasse de que a presença de seus filhos nesse desfile é um auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas [...]. Este boicote pode passar também [...] às moças, àquelas que dançam com os cadetes e namoram os jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje no Brasil, com que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam a Nação [...] (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 1968b, p.9).

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Esse pequeno trecho já ilustra como o discurso de Márcio Moreira Alves despertou a

ira no meio militar. O deputado extrapolou os pedidos de inquérito, pois percebeu a ineficácia

desse tipo de ação, então partiu para outra estratégia. Seu discurso sempre era dirigido ao

presidente da República, cobrava-lhe providências e insinuava sua conivência com as ações

de opressão. Todavia, nesse pronunciamento, Márcio Moreira Alves dirigiu sua palavra ao

povo, mais especificamente aos pais e mães dos estudantes e às moças que namoram

militares, convocando-os a se manifestarem contra o regime militar. Em termos narrativos, o

destinador deputado desistiu de manipular o destinatário presidente e passou a manipular o

destinatário povo, transformando aquele em anti-sujeito e este em sujeito do fazer. E isso era

justamente o que o regime menos desejava naquele momento. Dessa forma, seu

pronunciamento foi recebido pelas Forças Armadas como injúria e ato de insurreição.

Ainda vale lembrar que a questão da invasão da Universidade de Brasília foi tratada

pelos deputados Celestino Filho (MDB/GO) e Doin Vieira (MDB/SC) no pequeno

expediente38 e, depois, pelo deputado Mário Piva (MDB/BA) no grande expediente39.

O deputado Celestino Filho (MDB/GO) foi contundente ao exigir que o presidente

afastasse as autoridades responsáveis pela Segurança Pública de Brasília para que a apuração

dos atos de violência e tortura a estudantes fosse conduzida com lisura. Caso contrário, poder-

se-ia acreditar na conivência do próprio presidente Costa e Silva. O deputado Celestino Filho

conclui assim seu pronunciamento:

Ou o Presidente da República toma essas providências, ou então seremos obrigados a acreditar que S.Exa. é conivente com o massacre de Brasília, é responsável por tudo o que está acontecendo com os estudantes e o povo na Capital da República (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 1968b, p.10).

Já o deputado Doin Vieira (MDB/SC) quis mostrar que esse episódio era a

oportunidade de o presidente Costa e Silva acenar favoravelmente à abertura democrática:

38 Segundo o glossário eletrônico da Câmara, o pequeno expediente corresponde à fase das sessões ordinárias do plenário destinada à matéria do expediente e aos oradores inscritos que tenham comunicação a fazer, com duração de sessenta minutos improrrogáveis. 39 Segundo o glossário eletrônico da Câmara, o grande expediente é a fase da sessão plenária que sucede à do Pequeno Expediente, com duração improrrogável de cinqüenta minutos. Destina-se aos

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Propicia-se, assim, Sr. Presidente, uma oportunidade esplêndida de ação à Presidência da República e aos seus componentes principais (Ibidem, p.10).

E, assertivamente, conclui seu pronunciamento, dizendo:

E, se S.Exa, na responsabilidade do cargo que ocupa, se recusa a ser sensível a essa manifestação e êsse apêlo nacionais, então, terá de arcar, Sr. Presidente, com a responsabilidade da sua posição e do seu gesto, que lhe será cobrado històricamente por êste País cuja vocação democrática é de todo incontenível e incoercível (sic) (Ibidem, p.11).

Em 11 de outubro de 1968, o Supremo Tribunal Federal encaminhou à Comissão de

Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados um pedido de licença para processar o

deputado Marcio Moreira Alves, alegando que o deputado em seus discursos de 2 e 3 de

setembro havia ofendido e desmoralizado as Forças Armadas, além de “atentar contra a

ordem democrática e as instituições nacionais” (Arquivo do CPDOC – FGV). Começava aí a

batalha em torno da cassação do mandato do deputado Márcio Moreira Alves e da própria

sobrevivência do Congresso que se arrastou até 12 de dezembro de 1968.

A sucessão de fatos históricos, as tensões entre os blocos internacionais, entre os

setores da sociedade brasileira, entre os partidos políticos que bem ou mal as representam, o

golpe militar, a contestação ao golpe e a influência ideológica vinda do exterior, a tensão na

Câmara Federal, etc., constituem um percurso histórico que serve aqui não só para

contextualizar os discursos que analisaremos em nosso terceiro capítulo, mas também para

realçar a magnitude do episódio Márcio Moreira Alves, da sessão deliberativa de 12 de

dezembro de 1968, dos pronunciamentos sob análise e do Ato Institucional nº 5.

Os pronunciamentos sob análise não são simples discursos irrompidos em um certo

momento e em um certo lugar, mas sim resultado de uma sucessão de outros discursos que o

antecederam. O contexto sócio-histórico não pode ser compreendido como apenas um

envelope que guarda os discursos, pois ele também é criação de discursos.

pronunciamentos parlamentares de até vinte e cinco minutos para cada orador, incluídos aí os eventuais apartes concedidos.

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6. A SESSÃO DELIBERATIVA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1968

Conforme o glossário da Câmara dos Deputados Federais, a sessão deliberativa

caracteriza-se como uma “sessão ordinária ou extraordinária em que há pauta ou Ordem do

Dia designada pela Presidência da Casa legislativa”, diferentemente da sessão de debates à

qual não é “designada pauta ou Ordem do Dia”. Assim, como atesta o fac-símile da

publicação original, estamos diante de uma sessão deliberativa:

Isso posto, a Ordem do Dia estava voltada para a votação do pedido de concessão de

licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves, sendo que a votação favorável

suspenderia seu direito à inviolabilidade e culminaria na cassação de seu mandato.

Recapitulando, esse pedido chegou à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara

Federal por encaminhamento do Superior Tribunal Federal, em decorrência de o Presidente da

República – Mal. Arthur da Costa e Silva – ter recebido uma representação dos três Ministros

das Forças Armadas que solicitavam “providências sobre o problema criado”, pois entendiam

que os pronunciamentos feitos pelo deputado Márcio Moreira Alves em 2 e 3 de setembro de

1968 ofendia e desmoralizava as Forças Armadas.

Assim, o desfecho dessa crise política e institucional dependia de uma decisão da

Câmara Federal, que, na sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968, negou o pedido de

concessão de licença solicitado pelo governo militar. Numa resposta imediata, o regime

concluiu a chamada “Revolução de 31 de março de 1964”, editando o Ato Institucional nº 5

na noite de 13 de dezembro.

Passemos à transcrição dos pronunciamentos realizados pelos deputados Márcio

Moreira Alves (considerado o pivô da crise), Mário Covas Júnior (líder da oposição) e

Geraldo Freire (líder da situação), já que os fac-símiles, juntados em anexo, apresentam pouca

legibilidade. Lembramos ainda que os critérios para composição do corpus estão expostos na

introdução deste trabalho.

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6.1. Transcrição do pronunciamento de Márcio Moreira Alves (MDB/GB)

6.1.1. Primeira parte: o exórdio

Sr. Presidente, Srs. Deputados, marcou-me o acaso para que me transformasse em

símbolo da mais essencial das prerrogativas do Poder Legislativo. Independente do meu

desejo, transmudaram-me no símbolo da liberdade de pensamento, expressa na tribuna desta

Casa. Sei bem que a prova a que me submeteram está muito acima de minhas forças e de

minha capacidade. Mas transcendeu, a causa que a Câmara julgará, à minha pessoa, ao meu

mandato, aos partidos. É incômoda e angustiante a posição que me tocou. Suporto-a sem

temor, embora não merecesse a honra de simbolizar a liberdade de toda a Casa do Povo. As

grandes causas exemplares, que na vida das nações firmam as garantias da democracia,

sempre ultrapassam os que as tenham motivado.

6.1.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio40

A impessoalidade das conquistas do direito é uma das mais belas realidades da luta

dos povos pela liberdade. O nome dos barões que, nas pradarias do Windsor, fizeram o Rei

João Sem Terra assinar a Magna Carta, perdeu-se nas brumas do tempo. Mas o julgamento

por jurados, o direito de os cidadãos de um país livremente atravessarem as suas fronteiras, a

necessidade de lei penal anterior e de testemunhas idôneas para determinar uma prisão,

continuar a ser imorredouro monumento àqueles homens e a todos os homens. Esqueceram as

gerações modernas as violências de Henrique VII de Inglaterra, porém todas as nações do

Ocidente incorporaram às suas tradições jurídicas a medida legal que durante seu reinado e

contra ele firmou-se o habeas corpus. Até mesmo as decisões iníquas podem ser fonte de

liberdade. Ninguém sabe ao certo onde jazem os restos do escravo Dred Scott; contudo, a

decisão que a Côrte Suprema Norte-Americana tomou, mantendo-o escravo, foi o estopim da

libertação de todos os negros da América do Norte.

40 No plano clássico, essas duas partes se distinguem, entretanto isso não ocorre tão claramente nesses três pronunciamentos parlamentares, em que a narratio e a confirmatio vão se alternando até que chegue o epílogo.

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Assim poderá ser, também, neste caso. Apagado o meu nome, apagados os nomes de

quase todos nós da memória dos brasileiros, nela ficará, intacta, a decisão que breve a Câmara

tomará. Não se lembrarão os pósteros do Deputado cuja liberdade de exprimir da tribuna seu

pensamento é hoje contestada. Saberão, todavia, dizer se o Parlamento a que pertenceu

manteve sua prerrogativa de inviolabilidade ou se dela abriu mão. A verdade histórica é que

os homens passam, mas os direitos que uma geração estabelece, através de suas lutas, às

outras gerações são legados, pouco a pouco criando o patrimônio comum das leis, garantias e

liberdades de uma nação.

Não se julga aqui um deputado; julga-se uma prerrogativa essencial do Poder

Legislativo. Livre como o ar, livre como o pensamento a que dá guarida deve ser a tribuna da

Casa do Povo. A Constituição proíbe que se tente abolir a Federação e a República. No

entanto, os parlamentares podem defender da tribuna a monarquia e o estado unitário. A

liberdade de expressão no Congresso terá de ser total para que o Congresso sobreviva. Muitas

vezes, em períodos conturbados de nossa história, e ainda recentemente, Deputados

discursaram em defesa de um regime de exceção. Os deputados argelinos, malgaches e

africanos reiteradamente reclamaram da tribuna da Assembléia Francesa e a independência de

seus países. Fizeram o mesmo os irlandeses na Câmara dos Comuns, sem que houvessem

sofrido sanções. Os parlamentares sulistas defendem no Congresso Norte-Americano a

segregação racial que a Côrte Suprema colocou fora da lei. E nos Estados Unidos, que têm, no

Vietnã, 600 mil de seus melhores soldados, incontáveis são as manifestações de

representantes do povo contra a guerra. Pode um Deputado pronunciar um discurso que não

conte com o apoio de um só de seus colegas. O fato de poder proferi-lo livremente não quer,

entretanto, dizer que a Câmara a que pertence é solidária com os conceitos que emitiu.

Simplesmente significa que a Câmara existe, que é um poder independente e que garante a

seus membros a liberdade de palavra e opiniões.

A lição dos mestres sobre a inviolabilidade da tribuna parlamentar é inexaurível.

Nenhum dos comentaristas das Constituições que o Brasil já teve sequer admite discuti-la. Os

autores citados pelo Sr. Ministro da Justiça, ou do assunto não tratam, ou dele tratam, como é

o caso de Raul Machado Horta, para afirmar o que também afirmamos: a inviolabilidade é

irrenunciável, pois que ao Deputado não pertence e, sim, a todo o Congresso.

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Procura-se criar, em torno da concessão ou não de uma licença para que se prossiga

um processo a respeito do que muito bem chamou o nosso professor de deveres, Deputado

Djalma Marinho, “delito impossível”, uma crise institucional. Pudesse eu evitar esta crise

abrindo mão de meus direitos, certamente o faria. Não creio que as crises que cada vez mais

freqüentemente sacodem a imperfeita e injusta estrutura constitucional brasileira possam ser

removidas pelo sacrifício de um, de dois, de dez ou de todos os Deputados. Transcendem elas

ao Congresso, aos mandatos e aos representantes do povo. São, antes, originárias de abusos de

poder que do exercício de direitos. Estão fundamente fincadas na própria Constituição de

1967, no gigantismo das atribuições do Executivo, no afastamento do povo dos governantes,

que não escolhe, na desigualdade de participação nas riquezas nacionais, nas ameaças à

soberania nacional que a todo momento sentimos. Entretanto, isto não me é dado fazer. Não

se discute, na espécie, o que pertence ao Deputado, ou seja, a sua imunidade processual.

Discute-se o que pertence à Câmara, ou seja, a inviolabilidade da sua tribuna, das suas

comissões, das suas votações.

O Ministro da Justiça, movido por misteriosas pressões e por um pertinaz desejo de

atacar o Congresso Nacional, surge, com a sua representação, perante o povo brasileiro, tal

como Shylock apareceu diante do Doge de Veneza com a confissão de dívida do mercador

Antônio, que lhe permitia tirar bem junto ao coração da vítima uma libra de carne. Não há

apelo que o aplaque, não há violência que o estarreça, não há razão que o emocione, nem

pedido que o abale. Quer, por força e a todo custo, retirar de junto do coração do Poder

Legislativo o preço que acredita ser-lhe devido.

Mas, tal como ao mercador de Veneza era impossível receber o que lhe deviam sem

romper a lei, derramando o sangue de um cristão, é também impossível ao Ministro da Justiça

receber o mandato de um Deputado sem causar a definitiva hemorragia no Poder Legislativo.

Todos nós aqui chegamos pela confiança que recebemos de uma parcela do povo

brasileiro, manifestada pelo voto secreto em eleições diretas. Esta confiança não é gratuita.

Representa o compromisso que assumimos com o pensamento e os interesses daqueles que

nos elegeram para que aqui exprimíssemos os seus anseios. Assim entendo e procuro viver o

meu mandato. Os que em mim votaram não o fizeram iludidos. Sabiam quem eu era e por isso

me escolheram. O que pensava a respeito dos tempos que vivemos no Brasil, a visão que

tenho do futuro ao qual devemos aspirar, tudo isto era conhecido de forma clara e precisa,

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pois que minhas opiniões longamente as expusera, através de livros, de discursos, de

programas de televisão e, sobretudo, de uma longa e diária presença na imprensa.

Que visão é esta? Creio poder encontrar as suas raízes em uma profecia de Isaías:

“Pois eu vou criar novos céus e uma nova terra. O passado não será mais lembrado,

não volverá mais ao espírito, mas será experimentada a alegria e a felicidade eterna daquilo

que vou criar... Serão construídas casas que se habitarão, serão plantadas vinhas das quais se

comerá o fruto. Não mais se construirá para que outro se instale, não mais se plantará para que

outro se alimente. Os filhos de meu povo durarão tanto quanto as árvores, e meus eleitos

gozarão do trabalho de suas mãos. Não trabalharão mais em vão, não darão mais à luz filhos

votados a uma morte repentina.”

É por um mundo assim que batalhamos. É por um Brasil assim que não tememos o

sacrifício. O que prego, desde o princípio de minha vida pública, nesta Casa e fora dela, é o

estabelecimento de uma sociedade justa, onde todos possam viver livremente. Livremente

exprimindo suas opiniões e tendências e recebendo oportunidades iguais de desenvolverem os

seus dotes humanos, sem sofrerem qualquer restrição por motivo de cor, de crença e,

sobretudo, de disparidades de fortuna. Assim entendo deva ser este País internamente, como

entendo ainda que externamente deva ser soberano, sem filiar-se a blocos internacionais

políticos ou militares, sem de nação alguma, por mais poderosa que seja, receber o ditado do

seu comportamento e sem que os agentes de qualquer nação, ainda que poderosa e amiga,

possam em seu desenvolvimento influir determinantemente. Acredito que todos nós tenhamos

uma responsabilidade direta na construção da paz social, como da paz internacional,

responsabilidade esta que é tanto maior quanto maiores forem os instrumentos de cultura, de

fortuna e de poder de que cada um disponha.

É-me lembrado freqüentemente, nesta Casa, por amigos que à minha responsabilidade

apelam, por adversários que me procuram julgar, que sou um dos privilegiados da sociedade

brasileira. É verdade. Tenho disto a mais profunda e pesada noção. Procuro por isso,

transformar o que de mais eficaz os privilégios me deram, ou seja, a possibilidade de acesso

aos bens da cultura, que a noventa por cento dos brasileiros é negada, em um instrumento que

permita aos despojados de hoje serem os participantes do amanhã. Quero crer, tal como Dom

Antônio Fragoso expressou em uma carta recentemente publicada nos jornais, que nos cabe

conscientizar o povo da realidade que o cerca a fim de que, dispondo de todos os elementos

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necessários ao julgamento, possa ele fazer livremente a opção pelo sistema social e

econômico que às suas aspirações mais perfeitamente atenda.

Toda minha vida política foi e é norteada no sentido de poder eu prestar minha

colaboração à tomada de consciência do povo brasileiro quanto à sua própria realidade.

Sr. Presidente, não defendo o mandato que recebi para furtar-me à responsabilidade de

responder por minhas palavras e opiniões. Nunca deixei de ser por elas pessoalmente

responsável, como jamais deixei de exprimi-las. Ataquei governos e poderosos quando a

proteger-me tinha apenas a inviolabilidade de minha consciência. Nas trincheiras da oposição

passei minha vida de jornalista. Não abdiquei do meu dever de opinar quando muitos calavam

e o Presidente da República podia suspender arbitrariamente direitos políticos.

Por que luto, então? Luto por solidariedade a esta Câmara, livre de pressões e

ameaças. Luto por solidariedade a todos e a cada um dos deputados, cujo dever de dizerem o

que pensa – ainda que pensem de modo totalmente contrário às minhas opiniões – querem

cassar. Luto porque cedo aprendi a respeitar a Câmara dos Deputados e, depois de a ela

pertencer, aprendi a amá-la. Luto porque quero a Câmara aberta e digna. Quero que daqui

saiam as leis e as reformas que reconstruirão no Brasil a democracia e estabelecerão a justiça

social. Quero que o Congresso recobre algumas das sua prerrogativas perdidas e conserve as

que preservou.

Sei que a tentativa de cassar o meu mandato é apenas a primeira de muitas que virão.

Sei que o apetite, dos que a esta Casa desejam mal, é insaciável. Os que pensam em aplacá-lo

hoje, com o sacrifício de um parlamentar estarão apenas estimulando a sua voracidade.

Buscam os inimigos do próprio Congresso um pretexto. Acusam-me de injuriar as

Forças Armadas. Nos processos penais de injúria a ação é liminarmente suspensa quando o

acusado nega o seu ânimo de injuriar, e o acusador aceita a explicação. Nego aqui e agora que

haja, em qualquer tempo ou lugar, injuriado as Forças Armadas. As classes militares sempre

mereceram e merecem o meu respeito. O militarismo, que pretende dominá-las e

comprometer-lhes as tradições democráticas, transformando-as em sua maior vítima, esse

militarismo – deformação criminosa que a civis e militares contamina – impõe-se ao nosso

repúdio.

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6.1.3. Última parte: o epílogo

Finalizo, Sr. Presidente, na esperança de que as angústias e sofrimentos que

atravessamos possam servir para o engrandecimento do Congresso e a liberdade da Pátria. Os

últimos dias foram pródigos em exemplos e lições. Um homem modesto, suave e tranqüilo

mostrou ao Brasil que no momento da verdade transforma-se a dignidade no cinzel que

esculpe o herói. Djalma Marinho soube recusar as honras para ficar com a sua consciência.

Juntamente com seus companheiros de partido, que foram expurgados da Comissão de Justiça

em nome de ideais a que se conservam fiéis, personifica a independência da Câmara. Vindo

de outro Rio Grande, onde o sangue dos peleadores firmou as fronteiras da Pátria, Daniel

Krieger mostrou que estão vivas as tradições de bravura dos gaúchos. É o verdadeiro e digno

irmão do cavaleiro andante Brito Velho.

Entrego-me agora ao julgamento dos meus pares. Rogo a Deus que cada um saiba

julgar, em consciência, se íntegra deseja manter a liberdade desta tribuna, que livre recebemos

das gerações que construíram as tradições políticas do Brasil. Rogo a Deus que mereça a

Câmara o respeito dos brasileiros, que possamos, no futuro, andar pelas ruas de cabeça

erguida, olhar nos olhos os nossos filhos, os nossos amigos. Rogo a Deus, finalmente, que o

Poder Legislativo se recuse a entregar a um pequeno grupo de extremistas o cutelo da sua

degola. Volta-se o Brasil para a decisão que tomaremos. Mas só a História nos julgará.

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6.2. Transcrição do pronunciamento de Mário Covas (MDB/SP)

6.2.1. Primeira parte, o exórdio

Sr. Presidente, permita V.Exa. e os meus pares que eu reivindique, inicialmente, um

privilégio singular: o de despir-me da roupagem vistosa da liderança transitória, com que

companheiros de partido me honraram, para falar na condição de membro desta Casa, sem

outra representação senão outorga oferecida por aqueles que para cá me enviaram. Será,

talvez, um desvio regimental concedido, entretanto, plenamente compreensível, já que a causa

que somos obrigados a apreciar sobrepaira, superpõe-se às próprias agremiações partidárias.

Em sua análise, o coletivo domina o individual, o institucional supera o humano, a

impessoalidade há de ser o traço marcante, eis que, hoje, esta Casa está sendo submetida a

julgamento. Recolhida ao banco dos réus, aguarda o veredicto que será exarado pelos próprios

ocupantes.

Discute-se validade de uma das suas mais caras prerrogativas, instrumento essencial

de seu funcionamento como poder, que é a inviolabilidade. Impugna-se seu caráter absoluto,

impondo-se-lhe restrições que a transformariam em princípio abstrato. Intenta-se, pelo dúbio

caminho do transitório que somos nós, alienar algo que, por ser propriedade da instituição, é

permanente. Contesta-se, sob o império da razão política, uma prerrogativa da qual não temos

o direito de abdicar, porque, vinculada à tradição, à vida e ao funcionamento do Parlamento, a

ele pertence, e não aos parlamentares. Para isto, investem contra a Constituição exatamente

aqueles que proclamam a sua excelência que exaltam suas virtudes e que sustentam a sua

imutabilidade.

Há alguns anos, Sr. Presidente, as atenções da nação brasileira eram convocadas com

o envio à Câmara dos Deputados de um pedido de licença para processar um parlamentar, sob

a acusação de tornar público documento considerado secreto. Durante a discussão do pedido,

o acusado, em longo discurso, inseriu estas considerações: “Um deputado converteu-se, por

decisão do Governo da República, no teste decisivo do funcionamento das instituições

democráticas do Brasil”. Hoje, em episódio dotado de igual grau de emotividade, com

semelhante dose de expectativa e com idêntico teor da ressonância, as instituições

democráticas são postas à prova, testadas em sua fortaleza, pesquisadas em sua soberania,

perquiridas em sua independência.

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A acusação é o crime de injúria a uma instituição – as Forças Armadas. A arma, a

palavra. O instante: os dias em que atingiu o clímax, a alta tensão emotiva emergente dos

episódios relacionados com a invasão da Universidade de Brasília.

Creio, Sr. Presidente, ser necessário um exame do problema, ainda que dentro das

limitações do tempo regimental, sob vários aspectos.

6.2.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio

O primeiro deles é o jurídico, evidentemente. Diria, entretanto, sem pretender

escandalizar, ser ocioso o enfoque sob tal prisma, não apenas por faltarem ao orador os

conhecimentos requeridos para tanto, como, sobretudo, porque tão copiosas, lentas e

irrespondíveis foram as torrentosas argumentações contrárias à concessão da licença nesta

Casa exibidas, que se exauriu a doutrina de forma cabal e irretorquível. E, não fora a cultura e

os dotes oratórios e retóricos de que são portadores os que por esta tribuna ou pela Comissão

de Constituição e Justiça desfilaram seus inesgotáveis conhecimentos, não fora o brilho e

teriam corrido o risco de transformar este debate num fastidioso monólogo, (dada?) a ausência

de defensores para sustentar a validade jurídica da concessão da licença. Por mais que recorra

à memória, e mesmo com o risco de involuntariamente cometer omissões, foge-me à

lembrança a presença de defensores da concessão. Não que lhes faltem recursos intelectuais.

Pelo contrário. É a própria debilidade da tese, é o próprio absurdo da pretensão que lhes anula

os argumentos, lhes minimiza a presunção, lhes condiciona a formulação jurídica.

Há uma constante neste problema, e o desenrolar dos acontecimentos o evidencia.

Muitos tentam justificar o voto; outros pleiteiam a validade da tese. Creio, entretanto, que em

todo o elenco de autoridades, em todo o rol de fontes citadas, um nome foi esquecido. As

razões desconheço. Porém, minha condição de engenheiro certamente me absolverá, se,

inspirando-me em sua lição, a tomar para guia e orientação. Trata-se do atual ocupante do

Ministério da Justiça, o Dr. Luiz Antônio da Gama e Silva. Leio-lhe um parecer a respeito

deste problema; e este parecer está exarado num outro processo, em curso nesta Casa, em que

solicita a licença para processar o Deputado Hermano Alves.

Eis S.Exa. em seu ofício ao Procurador da Justiça Militar:

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“Realmente os artigos publicados pelo citado parlamentar configuram,

indubitavelmente, violações dos preceitos expressos nos artigos 14, etc., do Decreto-Lei 314,

porque:

a) por sua falsidade, tendenciosidade e deturpação põe em perigo o bom nome, a

autoridade e o prestígio do Brasil;

b) constituem atos destinados à guerra revolucionária ou subversiva;

c) ofendem a honra e a dignidade do Exmo. Sr. Presidente da República diretamente

ou através de seus Ministros de Estado e auxiliares;

d) incitam, publicamente, a subversão da ordem política e social e animosidade entre

as instituições civis e as Forças Armadas”.

Mais adiante, conclui S.Exa, de forma límpida e cristalina a orientar-nos no atual

problema.

“No tocante, porém, aos discursos proferidos na tribuna da Câmara dos Deputados,

não se afigura, in casu, exista qualquer delito, diante da indenidade assegurada do Art. 34,

caput, da Constituição, e porque o abuso do direito político praticado, sem dúvida, pelo

incontinente Deputado não atenta contra a ordem democrática nem visa à prática de

corrupção, e somente quando o abuso do direito tende a esses objetivos ou a qualquer deles,

se justifica a medida prevista no art. 151 da Lei Maior.”

Creio, Sr. Presidente, creio, Srs. Deputados, que a frente poderá ser contestada. Eu

entretanto me auto-absolvo, porque, sendo engenheiro, acho inteiramente válido consultar a

figura do Ministro da Justiça neste episódio, desta natureza.

Mas, Sr. Presidente, ouço sustentar que não só o argumento jurídico teria razões para

este procedimento. Aqui e ali, ouço que, ao analisar o problema sob o ângulo político,

diferente será o comportamento de cada um de nós.

Ainda aí, sustento eu, o individual não pode prevalecer sobre as prerrogativas da

Instituição.

Um Poder soberano não delega, não transfere, é ele próprio Juiz de seus atos. Há de ter

a independência e a grandeza de manter essa condição inalienável. E o Poder Legislativo,

exatamente para reservar-se essa condição, sabiamente estabeleceu limitações regimentais

para a inviolabilidade, fixando o Poder de Polícia pelo próprio órgão diretor da Casa.

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Ora, sendo o Legislativo, por definição constitucional, um Poder independente, juiz,

portanto, de seus próprios atos, e dispondo de instrumental necessário ao exercício dessa

competência, infere-se uma conclusão iniludível: concedendo a licença, o Poder Legislativo

se estará autocondenando, pelo crime de omissão.

Mas, Sr. Presidente, haveria aqueles que sustentariam que seria possível vislumbrar

razões de natureza moral ou ética a justificarem a concessão.

Aos que assim se resguardam, conveniente seria lembrar que, de 1946 a esta data,

dezenas de pedidos de licença foram encaminhados a esta Casa para processar parlamentares.

Várias acusações formuladas, capituladas nos mais variados artigos do Código Penal.

Entretanto, mesmo em ocasiões em que o Deputado abria mão de suas franquias, solicitando

mesmo a concessão, a Câmara invariavelmente adotou idêntica conduta – a negativa –

sustentada por um mesmo princípio: a imunidade parlamentar.

Agora, acusa-se um Deputado de pretenso crime político. Não vejo como,

moralmente, se possa sustentar a concessão, sem que a Câmara incida numa mesquinha

exibição de intolerância e incoerência, desnudando-se, em vista dos precedentes, num

farisaísmo abominável.

São insuficientes os exemplos da nossa tradição. Ater-me-ei a apenas dois exemplos,

legados por outros povos. É da “Jurisprudência Parlamentar”, de Frederico Mohrhoff –

autorização para instaurar processo contra Deputados, página 346:

“Autorização para instaurar processo contra Deputado Dias Laura pelo crime previsto

no art. 290 do Código Penal, modificado pelo art. 2 da lei 1317, de 11 de novembro de 1947.

(Menosprezo às forças armadas do Estado).”

A Câmara, chamada a decidir, acolheu o parecer da Comissão e não concedeu o

pedido de autorização para processar.

Página 359:

“Autorização para processar o Deputado D’Amico pelo crime de que trata o art. 272

do Código Penal (propaganda e apologia subversiva ou antinacional).”

A Câmara, chamada a decidir, acolheu o parecer da Comissão e não concedeu o

pedido de autorização para processar (sic).

Eis aí dois exemplos legados pelo Parlamento italiano em casos específicos. As

invectivas contra instituições, contra as Forças Armadas do Estado não encontraram, por parte

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daquele Parlamento, a licença para processar o Deputado. Porém, Sr. Presidente, creio que o

enfoque ético nos oferece ainda outro tema para nossa meditação.

Tem o Poder Legislativo o direito de transferir a outro Poder um problema que,

surgindo no seu âmbito, da sua competência, o colocará em confronto com outros poderes e

instituições? É possível que o faça. Mas, neste instante, já não será um Poder. Seus

componentes já não existem mais, exercerão a função pública, mas terão sido transformados

em funcionários públicos.

Resta-nos, Sr. Presidente, o argumento dos simplistas: trata-se de uma exigência. As

Forças Armadas impõem uma reparação, atingidas que foram em seus brios. Se esta

afirmação fosse verdadeira – o que contesto – eu diria que ela apresenta uma deformação

originária: não é possível desagravar uma instituição pelo caminho inviável do desrespeito a

um Poder. Para que tenha significação e validade, a manifestação de apreço desta Casa ou de

qualquer dos seus membros a qualquer instituição, necessário se faz que ela se auto-respeite.

Que conceito se faria de um chefe de família que, para exaltar as virtudes de seu

vizinho, aviltasse o procedimento de seus filhos? O elogio, sob o império da subserviência,

transforma-se em bajulação. Seu valor está na dimensão moral e na autoridade de que de

quem o manifeste.

Mas, Sr. Presidente, – e aí reside o motivo de minha contestação inicial – tenho

convicções muito fortes a negar essa afirmação. Posso invocar em meu favor a prova

documental, o testemunho idôneo ou o retrospecto histórico.

Como prova testemunhal, leio o teor do oficio do Ministério do Exército, solicitando

as providências legais.

Diz S.Exa.:

“O Deputado Federal Márcio Moreira Alves, em sessão de 2 do corrente, falando a

respeito dos lamentáveis e tristes acontecimentos ocorridos na Universidade de Brasília, no

seu legítimo direito de adversário do Governo, formulou, em termos textuais, a seguinte

pergunta.”

Mais adiante:

“O mesmo Deputado, ainda sob o clima emocional pelos fatos gerados, antes mesmo

que fossem apuradas as causas e os responsáveis, assim se pronunciou:”

Prosseguindo:

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“Embora os referidos conceitos, de caráter e de responsabilidade pessoal do Deputado

em apreço, no uso da liberdade que lhe é assegurada pelo regime instituído com a revolução

de março, não exprimam o pensamento da Câmara mais preservativo do povo brasileiro, na

sua dignidade intangível e na respeitabilidade do seu próprio decoro, é de considerar-se a

ressonância com que eles ecoam no seio do Exército”.

E finaliza:

“A despeito da gravidade evidente das ofensas dirigidas pelo Deputado Márcio

Moreira Alves e do sentimento de repulsa com que elas ainda mais uniram os militares, como

integrantes de uma instituição a que tanto já deve a democracia brasileira, o Exército continua

empenhado em contê-las dentro da disciplina e da serenidade das suas atitudes, obediente ao

Poder Civil e confiante nas providências que V.Exa. julgue devam ser adotadas”.

Se preferirem o testemunho idôneo, dir-lhes-ei que ao longo deste episódio em contato

não apenas com civis de todas as categorias, como com militares de variadas patentes, tenho

ouvido insistente e ansiosamente repetida a afirmação de que não sobrarão outras

oportunidades para que o Poder Legislativo manifeste sua independência. É um imperativo

para que sua sobrevivência, ainda que risco houvesse, que preserve suas prerrogativas, que

resguarda sua majestade, que reitere sua soberania.

Porém, se isso ainda não bastasse, invoco o retrospecto histórico. Como acreditar que

as Forças Armadas brasileiras que foram defender em nome do povo brasileiro, em solo

estrangeiro, a liberdade e a democracia no mundo, colocassem como imperativo de sua

sobrevivência o sacrifício da liberdade e da democracia no Brasil?

6.2.3. Última parte: o epílogo

Eu, Sr. Presidente, por formação e por índole, um homem que fundamentalmente crê.

Desejo morrer réu do crime da boa fé, antes que portador do pecado da desconfiança. Creio na

Justiça, cujo sentimento, na excelsa lição de Afonso Arinos, é na noção de limitação de Poder.

Limitação bitolada por dois extremos: sua contenção para que não caia na prepotência, e seu

pleno exercício para que não se despenhe na omissão.

Creio no povo, anônimo e coletivo, com todos os seus contrastes, desde a febre

criadora à mansidão paciente. Creio ser dessa amálgama, dessa fusão de almas e emoções, que

emana não apenas do Poder, mas a própria sabedoria. E nele crendo, não posso desacreditar

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de seus delegados. Creio na palavra ainda quando viril ou injusta, porque acredito na força das

idéias e no diálogo que é seu livre embate. Creio no regime democrático, que não se confunde

com a anarquia, mas que em instante algum possa rotular ou mascarar a tirania. Creio no

Parlamento, ainda que com suas demasias e fraquezas, que só desaparecerão se o

sustentarmos livre, soberano e independente. Creio na liberdade, este vínculo entre o homem

e a eternidade, essa condição indispensável para situar o ser à imagem e semelhança se seu

criador. Creio, Sr. Presidente, e esta minha crença mais se consolidou pelas últimas lições que

recebi, pois nunca é tarde para aprender, na honra, esse atributo indelegável, transferível por

ser propriedade divina.

Porque em tudo isso creio, Sr. Presidente, e protegido pelo resguardo de minhas

palavras iniciais, quero declarar minha firme crença de que, hoje, o Poder Legislativo será

absolvido.

Da altitude dessa tribuna, da majestade desta Mesa, da altivez deste plenário, as vozes

do gênio do Direito e da Deusa da Justiça podem ser ouvidas no seu patético apelo: não

permitais que um “delito impossível” possa transformar-se no funeral da Democracia, no

aniquilamento de um Poder e no cântico lúgubre das liberdades perdidas.

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6.3. Transcrição do pronunciamento de Geraldo Freire (ARENA/MG)

6.3.1. Primeira parte, o exórdio

Sr. Presidente, Srs. Deputados, o meu propósito nesta tribuna é o de desfazer alguns

equívocos.

6.3.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio

O primeiro deles, é quando se diz que estamos procedendo à degola de um Deputado,

a cassação de um de nossos colegas. Não se trata absolutamente disto. O que temos em vista é

um pedido de licença dirigido pelo Supremo Tribunal Federal à Câmara dos Deputados. Então

quem entender que se trata de degola, necessariamente, há de estabelecer que os juízes do

Tribunal Superior Federal são carrascos e não magistrados. Trata-se porém de um foro

privilegiado perante o qual responde o próprio Presidente da República.

Está claro, a não mais poder, e todos os advogados que compulsam o Código de

Processo Penal o sabem, que quando o fato não constitui crime, quando se figura

evidentemente que o fato não constitui crime, a queixa, a representação, ou a denúncia não são

recebidas. Basta, então, que o Supremo Tribunal Federal tenha encaminhado o pedido para que logo

se conclua de que o fato não tem essa evidência de não constituir crime. Chegou até o nobre Relator

a estabelecer que há dúvidas e elas serão oportunamente desfeitas. O que temos em vista é que logo,

de uma vez por todas, fique esclarecido no juízo de cada qual isto: ninguém vai julgar. Esta Câmara

não é composta de juízes, é composta de políticos. O nosso voto é a respeito de sabermos se

vamos conceder ou negar uma licença para processo do Deputado, solicitada pelo Supremo

Tribunal Federal.

Poderia aqui fixar a lição de Manzini. Na justa apreciação de Manzini a autorização da

Câmara não constitui condição de perseguibilidade, mas de processabilidade. A Câmara não

julga, não condena, nem absolve. Seu papel é o de um poder político, nunca de um poder

juridicional.

O ato da Câmara é de sua autonomia política. Os motivos políticos hão de orientar a

decisão da Câmara. Concedida a licença, a imunidade se ausenta, restaura-se a vigência

normal do princípio fazendo desaparecer os privilégios. O representante do povo não é um

homem que possa sustentar privilégios e prerrogativas, porque o que recebemos dos nossos

eleitores são deveres para com este povo. E seria absolutamente incrível que nós votássemos

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leis a que todos os cidadãos brasileiros fossem obrigados a obedecer, enquanto nós próprios

nos considerássemos semi-deuses, sujeitos a moral, ao bem e a verdade, superiores ao bem e

ao mal.

Nesse caso, Sr. Presidente, desfeito o primeiro equívoco, passamos para o segundo.

Afirma-se também que em havendo uma declaração do agente de que não teve a intenção de

injuriar, não há infração penal a punir.

Nada mais inexato, Sr. Presidente. Todos que militam no foro conhecem o Art.143 do

Código Penal que diz:

“O querelado que antes da sentença se retrata cabalmente da calúnia ou da difamação,

fica insanto de pena.”

Aqui não se fala em injúria. Injúria não pode ter retratação, pode comportar pedido de

desculpas, nunca, porém, uma retratação. E o dolo da injúria se mede não pela declaração da

infração do agente, mas sim pela medida das próprias palavras empregadas. Ao juiz, como

julgador, é que cabe medir a responsabilidade e o alcance do dolo e não o próprio agente,

porque senão, pessoa alguma seria processada ou condenada por injúria.

Mas há outro equívoco. É que ninguém até agora falou em injúria.

Aqui está em causa o abuso de direitos políticos, abuso este que atenta contra a ordem

democrática. Não é injúria contra a instituição, contra as Forças Armadas ou contra militares,

o que há é um atentado contra a ordem democrática do Brasil, no qual o agente chega a

aconselhar o nosso povo que boicote a nossa independência. Se não houver abuso nisto, então

pergunto ao brasileiro: Onde está o abuso dos direitos, se nós desde meninos, com a nossa

mãe, depois com a nossa professora e mais tarde nas universidades e na nossa vida política,

todos aprendemos e ensinamos que a Pátria deve ser colocada acima de tudo. E se negamos

ou boicotamos a comemoração de nossa própria independência, mutilamos pelas raízes a

fonte da nossa própria nacionalidade? Então devemos reivindicar isso, quer dizer fazendo esta

ofensa pessoalmente, mas quando se pede processo perante o Supremo Tribunal Federal, o

processo então é contra a Câmara dos Deputados que não poderia ser conivente com esta

infração. É preciso que se restabeleça, Sr. Presidente, com toda tranqüilidade, a verdade dos

acontecimentos e dos comentários.

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Outro equívoco. Falou-se a não mais poder e o fizeram dezenas de ilustres deputados,

a respeito do Art.34 da Constituição do Brasil. Mas não é este Artigo que está em jogo. Trata-

se do Art.151. Então dir-se-á que não atinge.

Então pergunto aos autores da Constituição, aos seus intérpretes autênticos: Por que se

fez o parágrafo único do Art.151? A lei não pode ter palavras inúteis. E isto qualquer

estudante do curso inicial de Direito sabe. Não podemos presumir inutilidade da lei, se o

parágrafo único do Art.151 declara expressamente que em se tratando de titulares de cargo

eletivo federal, o processo deve ser precedido de licença da respectiva Câmara.

Evidentemente.

Evidentemente está-se tratando de uma exceção ao princípio da inviolabilidade. Aliás,

este princípio não pode ser absoluto. Tudo na vida tem uma finalidade, e o principal método

de interpretação da lei é o teleológico: temos de olhar à distância, e ver a finalidade da lei

para, depois, dar-lhe aplicação exata. Digamos, para evocar a mais sábia de todas as leis,

quando no 5º Mandamento, Deus disse a Moisés: “Não matarás”, o legislador bíblico colocou

um ponto final. Então, vamos ver que a regra é absoluta. Ninguém pode matar, ninguém,

absolutamente ninguém. Vire-se a página e, logo adiante, nota-se a pena de Talião, olho por

olho, dente por dente. Aquele que matar será morto. E, possivelmente o homem mais genial

da humanidade até hoje, São Tomás de Aquino, chegou a dizer que matar em defesa própria é

um direito, porém matar em defesa de terceiro é um dever. Onde está o absolutismo da regra

contida no 5º Mandamento da mais sábia e da mais santa de todas as leis? Poderíamos evocar

todas as leis que se fazem no mundo, mas o que é preciso notar é o sentido da interpretação:

“não matarás” – para que a vida se poupe. Toda vez que a vida estiver ameaçada é lícito

matar. Às vezes é até obrigatório matar. Aqui também existe a inviolabilidade para que o

Deputado cumpra seu mandato. No exercício do mandato, o deputado é inviolável. Toda vez,

porém, que ele transborda, que ele foge às regras éticas, cívicas e patrióticas do seu próprio

procedimento, evidentemente que ele não pode chamar para si o direito de ofender a própria

Pátria, em cujo nome a Constituição foi feita. E o deputado não estará exercendo o seu

mandato quando, da tribuna em que deveria fazer pequenas comunicações, ele quebra a

harmonia dos poderes, insulta instituições que pertencem à outra esfera da administração

pública e vai ao ponto de negar a própria autenticidade da própria independência do Brasil.

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Então, Srs. Deputados, citarei apenas – embora pudesse citar ainda outros autores, mas

muitos já se fizeram ouvir ou leram da tribuna – a opinião de um autor estrangeiro, o

Professor Juan Antonio Gonzales Calderon, de Buenos Aires, que diz: “A livre manifestação

de suas idéias” – do Deputado ou do Senador – “não exime o representante de

responsabilidade quando, num parlamento, calunia ou injuria o cidadão ou algum funcionário

público, pois a tribuna parlamentar não deve converter-se em meio da difamação impune para

ferir impunemente a honra daqueles, porque, em tal caso, se transforma em réu de delitos

comuns, e a Câmara poderá suspendê-lo de suas funções e pô-lo à disposição do juiz

competente”. O limite está marcado pela mesma Constituição, quando reconhece o privilégio

pelas opiniões e palavras que tal representante emite desempenhando seu mandato de

legislador. O nobre Deputado Mário Covas evoca o processo que, no passado, já ocupou a

atenção desta Casa. Completarei a citação de S.Exa., lembrando a lição do Relator Martins

Rodrigues, que disse o seguinte: “Mas nem é mister que essa inclusão seja expressa, porque

está implícito que a prerrogativa não deve prevalecer quando, em lugar de tutelar o legítimo

exercício do mandato, sirva para broquelar a sua deturpação, o seu uso irregular e indevido

ou, o que é mais grave, criminoso, porque se haverá de entender, por exemplo, que o

privilégio do mandatário possa permitir-lhes a provocação, o crime, o incitamento à desordem

e à rebelião, a pregação da indisciplina das classes armadas e a revelação de planos militares,

de campanhas, de segredos que interessam à defesa da Nação ou ao jogo, à política dos

Estados e que, uma vez devassados, importariam em ameaça à segurança do País e à paz

internacional”.

A inviolabilidade de parlamentar pelas palavras, opiniões e votos no exercício do

mandato, não significa, aliás, quando se lhe dê a inteligência, que ela requer a sua aplicação, a

irresponsabilidade absoluta do representante do povo. Ela implica nos justos limites em que

deve ser entendida em subtrair o membro da representação popular à censura e ao julgamento

de outro poder.

No final de seu relatório, diz ainda S.Exa.: “Seguimos, assim, a lição de Paulo de

Gusmão, para quem a imunidade parlamentar deve ser entendida como ligada ao exercício

normal do mandato e não ao exercício anormal ou abusivo.” Há outras palavras, que me

dispensarei de ler, porque está claro demais que no regime da Constituição de 1944 assim já

se interpretava. Mas, agora, a situação mudou muito. Vejamos. O Art.34 diz que o Deputado é

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inviolável nas suas opiniões, palavras e votos. O Art.37 diz que o Deputado não é inviolável,

porque, toda vez que ele viola o decoro parlamentar, pode ter seu mandato cassado.

Que inviolabilidade é esta, na qual o indivíduo, exercendo-a, fica sujeito a perder o

próprio mandato? E no caso, o juiz é a própria Câmara.

Mas o Art.151 diz que todo aquele – note-se bem – seja Deputado, trabalhador rural,

operário de fábrica, seja homem formado ou inculto – porque nesta Pátria não há privilégios –

todo aquele que abusar dos direitos políticos, atentando contra a ordem democrática ou

praticando corrupção, fica sujeito à perda desses direitos, à suspensão desses direitos, por dois

a dez anos, mediante declaração do Supremo Tribunal Federal e sob representação do

Procurador-Geral da República.

Vale dizer, nosso privilégio existe no foro do julgamento, mas não podemos elevar as

prerrogativas do Deputado em fonte de crimes e impunidades.

Sr. Presidente, muitas e outras coisas caberia retificar. Por exemplo, o nobre Líder do

Governo, Deputado Mário Covas, disse que nenhuma vez se levantou aqui na defesa do

pedido de licença. É natural que S.Exa., como eu, bem estivesse ocupado nos trabalhos da

Comissão de Justiça. É natural que não se possa acompanhar as dezenas ou – quem sabe? – as

centenas de pronunciamentos desta Casa. Não os acompanhei a todos. Confesso-me, assim,

tão mal informado como S.Exa. Mas, pessoalmente – e quero dizer pessoalmente, porque vou

omitir muitos dos nomes que não tive tempo de ouvir ou de acompanhar nos pronunciamento

que se fizeram – apontarei apenas os que ouvi: Arnaldo Cerdeira, Raimundo de Brito, José

Lindoso, Américo de Sousa, Clóvis Stenzel, Benedito Ferreira, Cantídio Sampaio, Heitor

Dias, Carlos Quintela. Devemos acrescentar, por certo, outros nomes, mas estes se fizeram

ouvir aqui, mestrando, com toda sua manifestação política e jurídica, a validade da tese que

defendemos.

Se não houve mais Deputado da ARENA na tribuna, é porque a nós interessava julgar

o caso e não haveríamos de contribuir com obstrucionismo para chegar ao fim dele.

6.3.3. Última parte: o epílogo

Sr. Presidente, eu louvo não apenas aqueles que me acompanharam, louvo a unidade

monolítica demonstrada pelo MDB. Lembro-me que na Comissão de Justiça o nobre

Deputado Erasmo Martins Pedro, defendendo uma preliminar levantada pelo nobre Relator

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Lauro Leitão, depois de elaborar magníficos conceitos jurídicos, terminou votando a favor

daquela preliminar, mas avisando bem: Se a minha bancada, entretanto, pensar o contrário,

para que não haja quebra de unidade, eu acompanharei a bancada.”

Louvo aqueles que pensam contra mim, louvo esta estreita fidelidade partidária do

MDB. Vou mais, Sr. Presidente, não ouso censurar a ninguém pelo fato de discordar de mim,

esteja em que legenda for. Mas, Sr. Presidente, eu ia dizendo que me enchia de orgulho, se

orgulho fosse permitido a um cristão, mas na unidade da minha condição pessoal, ergo-me

num desvanecimento de gratidão imensa a Deus, porque nestes dias tumultuosos e

passageiros, me fez líder de um grupo de homens desabusados e dignos, coerente e puros,

bravos e patrióticos que aqui vieram arrostando todas as dificuldades para sustentar esta causa

que é patriótica e política, mas perante cuja jurisdicidade, legitimidade e constitucionalidade

nós não temos do que nos corar.

Sr. Presidente, a hora é decisiva. Há pressões, sim. Há pressão de certa imprensa que

procura alardear o voto daqueles que entendem rebeldes e procura diminuir aqueles que se

consideram fiéis à sua própria formação. Há pressão dos partidos políticos, mas existe a

pressão autêntica, que é obedecida por mim e por companheiros que me acompanharam, sem

desdouro daqueles que votam contra mim, ou contra vossa causa, que é, Sr. Presidente, a

pressão da nossa consciência.

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CAPÍTULO III

ANÁLISE DOS PRONUNCIAMENTOS

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

Carlos Drummond de Andrade

É importante anunciar como apresentaremos as análises dos pronunciamentos dos três

deputados que protagonizaram a sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968.

Cada pronunciamento será analisado separadamente conforme a ordem em que foram

proferidos. Assim, examinaremos, na seção 7, o pronunciamento do deputado Márcio Moreira

Alves (MDB/GB); na seção 8, o pronunciamento do deputado e líder da oposição Mário

Covas Júnior (MDB/SP); e na seção 9, o pronunciamento do deputado e líder do governo

Geraldo Freire (ARENA/MG).

Cada uma dessas seções comportará quatro subseções nas quais observaremos:

• as projeções da enunciação no enunciado;

• a heterogeneidade enunciativa;

• a cenografia;

• a caracterização do ethos.

Como o fenômeno da argumentação será considerado no interior de cada subseção ao

lado dos demais fenômenos, não vimos razão para lhe dedicar uma subseção.

Dessa maneira, a primeira subseção de cada análise – as projeções da enunciação no

enunciado – abarcará dois estudos, sendo um dedicado à dêixis lingüística e outro às

modalidades epistêmicas. Mas, antes de continuarmos avançando, é necessário fazer algumas

acomodações.

Recordemos que no primeiro capítulo deste trabalho nos demoramos um pouco para

expor os postulados teóricos de Benveniste acerca da dêixis lingüística, enquanto fomos mais

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ligeiros ao apresentar os seus desdobramentos atuais. Isso porque a contribuição de

Benveniste foi fundadora para os estudos da enunciação e, assim, o atual estado de

refinamento dos modelos teóricos se deve ao gesto inaugural de Benveniste. Feita a ressalva,

devemos advertir que a análise da dêixis lingüística se apóia no modelo teórico formulado por

Fiorin em sua As astúcias da enunciação, porque, embora enuncie a partir de uma outra

perspectiva teórica que não a da Análise do Discurso, o autor tem como ponto de partida a

obra de Benveniste e, além disso, o seu modelo é elaborado de um modo mais sistemático e

aprofundado do que aquele apresentado por Maingueneau (2002, p.113-123), o qual distingue

o plano embreado do plano não embreado da enunciação. Não se trata aqui de fazer uma

crítica ao modelo de Maingueneau, mas sim de, entre dois modelos teóricos que partem do

mesmo discurso fundador (Benveniste), fazer uma opção metodológica por aquele que

abrange com mais amplitude o fenômeno lingüístico em questão.

Isso posto, iremos concentrar nossa atenção, principalmente, sobre os dêiticos da

categoria da pessoa a fim de verificar como os efeitos de sentido de proximidade subjetiva e

de distanciamento objetivo se comportam nos pronunciamentos e quais os tipos de contratos

enunciativos que eles estabelecem entre enunciador e co-enunciador.

Quanto às modalidades epistêmicas, parece-nos que não há ressalvas a fazer, bastando

apenas dizer que buscaremos aí verificar como a manifestação lingüística, implícita ou

explícita no enunciado, das modalidades do crer e do saber pode revelar o comportamento

epistêmico do enunciador situado em um ponto do contínuo que vai da certeza à incerteza.

Já a segunda subseção de cada análise – a heterogeneidade enunciativa – será dedicada

às formas do discurso citado. O objetivo aí é verificar como a recorrência a essas formas

auxilia na construção do ethos, bem como revela a maneira de o enunciador negociar com a

sua alteridade com vistas à construção de sua identidade discursiva.

Na terceira subseção de cada análise – a cenografia – nos preocuparemos,

essencialmente, com que tipo de mundo (momento e lugar) é construído em cada discurso

com vistas a abrigar uma qualidade de ethos, o qual será caracterizado ao término da análise

de cada pronunciamento, em uma quarta subseção que irá recuperar, então, as noções de

incorporação, anti-ethos, imagem pré-discursiva do enunciador, eficácia do ethos.

E, finalmente, em nossas conclusões, teceremos considerações sobre os três discursos

e os ethé dos três enunciadores a fim de compreender a relação que há entre cada tipo de

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fiador e seu discurso, sua identidade discursiva e sua inscrição numa dada formação

discursiva, considerando a polêmica em torno da cassação do mandato de Márcio Moreira

Alves.

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7. ANÁLISE DO ETHOS CONSTRUÍDO NO PRONUNCIAMENTO DE

MÁRCIO MOREIRA ALVES (MDB/GB)

7.1. As projeções da enunciação no enunciado

7.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem

O texto abaixo é uma transcrição da parte inicial do exórdio do pronunciamento de

Márcio Moreira Alves:

Sr. Presidente, Srs. Deputados, marcou-me o acaso para que me transformasse em símbolo da mais essencial das prerrogativas do Poder Legislativo. Independente do meu desejo, transmudaram-me no símbolo da liberdade de pensamento, expressa na tribuna desta Casa (Diário da Câmara dos Deputados, 2000, p.87).

Observemos como as pessoas enunciativas são instaladas nesse trecho. O eu da

enunciação é projetado no enunciado por meio de uma debreagem enunciativa, sendo

expresso pelas formas pronominais “me” e “meu”. Já o tu da enunciação é projetado no

enunciado por meio de uma forma de tratamento consagrada pelo ritual parlamentar: “Sr.

Presidente, Srs. Deputados”.

Essas formas pronominais e de tratamento possuem valor dêitico, porque instalam no

enunciado as marcas lingüísticas que estabelecem uma referência com o contexto situacional

que envolve a enunciação do discurso, ou seja, o referente dessas formas lingüísticas só pode

ser identificado com base no ambiente espaciotemporal da enunciação. Assim, essas formas

aqui apontadas instalam Márcio Moreira Alves como o “eu” da enunciação e também

instalam o presidente da mesa, deputado José Bonifácio, e os deputados presentes no plenário

da Câmara como o “tu” da enunciação.

É interessante notar que, embora a forma de tratamento “Sr. Presidente, Srs.

Deputados” apareça empregada na posição de vocativo e seja considerada pelas gramáticas

como um pronome de segunda pessoa, o que instala a segunda pessoa do discurso – o “tu” da

enunciação – há que se convir que essa forma de tratamento cria um distanciamento entre o

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enunciador e o seu co-enunciador, já que desse “tu” está se ressaltando a sua persona, o seu

papel social.

Essas projeções geram efeitos de sentido diferentes para o “eu” e o “tu” enunciativos.

De um lado, a debreagem enunciativa instala no enunciado a pessoa, ressaltando, assim, a

individualidade desse “eu” enunciativo, Márcio Moreira Alves.

De outro lado, o emprego de uma forma de tratamento no lugar de um pronunciamento

pessoal como tu, vós ou, até mesmo, você nos leva a entender que a instalação do “tu”

enunciativo perde um pouco de seu aspecto subjetivo, tornando-se um pouco objetivo.

Poderíamos falar aí de uma embreagem enunciva que está projetando no enunciado a persona

e sublinhando o papel social desse “tu” enunciativo, os indivíduos que compõem a mesa e o

plenário da Câmara. Como bem mostra Fiorin (2002, p.100), “no caso da embreagem, [...]

usar a terceira pessoa no lugar de qualquer outra é objetivar o enunciado, é esvaziar a pessoa e

ressaltar a persona, é enfatizar o papel social em detrimento da individualidade”.

Nesse jogo enunciativo, podemos perceber que o efeito de sentido de pessoa, que é aí

gerado, sustenta a imagem de um enunciador que se coloca como o indivíduo acusado que

está sentado no banco dos réus, ao passo que o efeito de sentido de persona, que também é aí

gerado, sustenta a imagem de um co-enunciador que é colocado no papel social do júri que irá

condená-lo ou absolvê-lo. Essa descrição corresponde a apenas um primeiro momento das

projeções enunciativas desse pronunciamento.

Em um segundo momento, já podemos observar a passagem de um sistema

enunciativo para um sistema enuncivo ou, se quisermos recuperar os termos de Benveniste, a

passagem do plano do discurso para o plano da história. Isso porque as marcas lingüísticas da

enunciação são apagadas e o co-enunciador é colocado como espectador de uma cena que está

sendo relatada pelo enunciador.

Márcio Moreira Alves lança em seu exórdio a premissa inicial de que ele foi

transformado em símbolo da liberdade, não porque ele quis, mas sim pelo acaso, pelas

circunstâncias dos fatos. Na narratio, essa premissa inicial é desenvolvida por meio da

narração de fatos que, mais precisamente, correspondem a relatos de feitos historicamente

reconhecidos. Acompanhemos o texto transcrito a seguir, que compreende o início da

narratio:

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A impessoalidade das conquistas do direito é uma das mais belas realidades da luta dos povos pela liberdade. O nome dos barões que, nas pradarias do Windsor, fizeram o Rei João Sem Terra assinar a Magna Carta, perdeu-se nas brumas do tempo. Mas o julgamento por jurados, o direito de os cidadãos de um país livremente atravessarem as suas fronteiras, a necessidade de lei penal anterior e de testemunhas idôneas para determinar uma prisão, continuar a ser imorredouro monumento àqueles homens e a todos os homens. Esqueceram as gerações modernas as violências de Henrique VII de Inglaterra, porém todas as nações do Ocidente incorporaram às suas tradições jurídicas a medida legal que durante seu reinado e contra ele firmou-se o habeas corpus. Até mesmo as decisões iníquas podem ser fonte de liberdade. Ninguém sabe ao certo onde jazem os restos do escravo Dred Scott; contudo, a decisão que a Côrte Suprema Norte-Americana tomou, mantendo-o escravo, foi o estopim da libertação de todos os negros da América do Norte (Ibidem, p.87-88).

Podemos notar aí que Márcio Moreira Alves pinça momentos históricos relativos a

lutas de classes que resultaram na conquista e no estabelecimento de direitos que passaram a

constituir as tradições jurídicas e democráticas não só da Inglaterra e dos Estados Unidos, mas

como também de todos os Estados modernos do ocidente, entre os quais se inclui o Brasil.

No fundo, é a liberdade que é assegurada por todos estes direitos arrolados por Márcio

Moreira Alves: “a Magna Carta”, “o julgamento por jurados”, “o direito de os cidadãos de um

país livremente atravessarem as suas fronteiras”, “a necessidade de lei penal anterior e de

testemunhas idôneas para determinar uma prisão”, “o habeas corpus”, “a libertação de todos

os negros da América do Norte”.

O relato dessas conquistas democráticas mostra que nessa luta pela liberdade os

homens passam, seus nomes são esquecidos, mas o direito permanece vivo nas tradições de

um povo. É interessante notar que o discurso de Márcio Moreira Alves atualiza essa memória

por ele suscitada, ou seja, ele também apaga o nome dos heróis, cita o de alguns tiranos e

arrola uma lista de direitos conquistados e preservados.

Observando o jogo entre enunciação e enunciado, podemos ver que os sujeitos da

enunciação (Márcio Moreira Alves e membros da mesa e do plenário, instalados no exórdio

como pessoa e como persona, respectivamente) são projetados por meio de uma debreagem

enunciva de modo que eles pareçam estar distantes da fonte enunciativa. Esse efeito de

distanciamento é que coloca o co-enunciador como espectador dos relatos históricos

oferecidos pelo enunciador.

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Na confirmatio, esse jogo enunciativo experimenta um terceiro momento, no qual as

marcas da enunciação voltam a projetar o enunciador no enunciado. Vejamos um trecho

inicial da confirmatio:

(1) Assim poderá ser, também, neste caso. Apagado o meu nome, apagados os nomes de quase todos nós da memória dos brasileiros, nela ficará, intacta, a decisão que breve a Câmara tomará. (2) Não se lembrarão os pósteros do Deputado cuja liberdade de exprimir da tribuna seu pensamento é hoje contestada. Saberão, todavia, dizer se o Parlamento a que pertenceu manteve sua prerrogativa de inviolabilidade ou se dela abriu mão. (3) A verdade histórica é que os homens passam, mas os direitos que uma geração estabelece, através de suas lutas, às outras gerações são legados, pouco a pouco criando (sic)41 o patrimônio comum das leis, garantias e liberdades de uma nação (Ibidem, p.88-89).

Nesse trecho, o co-enunciador é levado a reconhecer Márcio Moreira Alves e todo o

episódio que se criou em torno dele como a atualização de memória concernente às tradições

das conquistas democráticas. Detalhemos a função dos dêiticos dentro dessa estratégia

discursiva.

No segmento em (1), as formas pronominais “meu” e “nós”, que é um nós inclusivo (=

“eu + vós”) projetam no enunciado o “eu” da enunciação. O “tu” da enunciação é,

rapidamente, projetado por essa forma inclusiva “nós”, uma vez que ele está aí incluso, no

entanto o que prevalece é a sua projeção por meio de expressões referencias tais como “a

Câmara”, em (1), e “o Parlamento”, em (2).

No emprego dessas formas dêiticas e referenciais, o enunciador é novamente projetado

como pessoa por meio da debreagem enunciativa, enquanto o co-enunciador volta a ser

projetado como persona por meio da embreagem enunciva, já que “a Câmara julgará” quer

dizer vocês julgarão. Estabelece-se aí um jogo enunciativo em que o co-enunciador é levado a

reconhecer o enunciador como uma atualização daqueles heróis cujos nomes foram

esquecidos nas “brumas do tempo”.

No segmento em (2), as marcas da enunciação são apagadas e as instâncias

enunciativas passam a ser referenciadas pelos sintagmas “o Deputado” (= “eu” enunciativo) e

41 A forma verbal criam parece mais plausível nesse trecho. Esse tipo de inadequação pode advir do próprio orador ou do taquígrafo, no entanto, conta para a análise a versão fac-similar publicada pelo Diário Oficial.

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“o Parlamento” (= “tu” enunciativo). O que vemos aí é uma embreagem enunciva, pois o

enunciador se refere a si mesmo e ao seu co-enunciador na terceira pessoa. Atenua-se aí a

presença do enunciador no enunciado e se continua a destacar o papel social do co-

enunciador. No segmento em (3), as marcas da enunciação são apagadas para enunciar uma

sentença como uma verdade eterna.

Até esse momento, vimos que o funcionamento dos dêiticos da pessoa está a serviço

de uma estratégia discursiva que consiste em inscrever o enunciador no panteão dos heróis da

tradição democrática. E, com isso estabelecido em seu discurso, Márcio Moreira Alves, na

segunda metade de seu discurso, passa a exibir seus feitos enquanto indivíduo no exercício de

seu direito, ressaltando seu compromisso com o jornalismo e com a política. Essa estratégia

discursiva tem conseqüências nas escolhas enunciativas, pois, para se autodefender, é preciso

falar de si e isso leva a uma maior recorrência às formas dêiticas da primeira pessoa. Daí em

diante o que se pode ver é a predominância de enunciados debreados enunciativamente,

instalando no enunciado a pessoa, a individualidade.

Esse jogo enunciativo, além de corroborar essas estratégias de instalação dos sujeitos

da enunciação no enunciado, deixa entrever também um tom enunciativo. Vejamos. Essa

debreagem enunciativa, predominante em toda a segunda metade do pronunciamento de

Márcio Moreira Alves, estabelece entre enunciador e co-enunciador um contrato subjetivante.

Isso quer dizer que o enunciador mostra e quer mostrar que ele está presente e engajado na

relação comunicacional com seu co-enunciador.

Com base nesses dados, podemos concluir que os efeitos de sentido gerados a partir da

projeção da enunciação no enunciado, mais especificamente da categoria dêitica da pessoa,

constroem nesse pronunciamento um tom de proximidade, ou seja, é o tom que permite ao

enunciador se aproximar de seu co-enunciador para lhe dirigir sua palavra. A relação entre

sujeitos é bem próxima, no entanto só isso não nos autoriza a dizer se, embora próximo, seu

tom parece alto ou baixo e daí se ele cria a imagem de um enunciador que parece bradar para

que sua voz ecoe no Congresso ou se o enunciador parece sussurrar ao pé do ouvido de cada

parlamentar. Assim, em busca do tom do enunciador, passaremos à análise das modalidades

epistêmicas das quais tentaremos extrair resposta para essas questões que ficaram pendentes.

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7.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização

Duas observações iniciais. A primeira é que vamos dispor os textos de uma maneira

que torne mais ágil a leitura das análises, assim, alguns fragmentos textuais já estudados em

subseções anteriores serão eventualmente retomados.

Em segundo lugar, observaremos a lexicalização dos operadores epistêmicos crer e

saber, considerando também o ponto de vista da argumentação. Expliquemos. Vimos no

primeiro capítulo que as premissas podem ser construídas com base em duas categorias de

objetos de acordo, a saber, o real (fatos, verdades e presunções) ou o preferível (valor,

hierarquia e lugares do preferível). Nossa hipótese é que há uma relação pertinente entre a

explicitação desses operadores epistêmicos e essas duas categorias de objetos de acordo, mais

especificamente pretendemos mostrar que a lexicalização de um operador modal saber

sempre incide sobre um fato, ao passo que a lexicalização de um operador modal crer vai

incidir sobre um valor.

Iniciemos a análise observando o trecho que compõe o exórdio do pronunciamento de

Márcio Moreira Alves, transcrito a seguir:

Sr. Presidente, Srs. Deputados, marcou-me o acaso para que me transformasse em símbolo da mais essencial das prerrogativas do Poder Legislativo. Independente do meu desejo, transmudaram-me no símbolo da liberdade de pensamento, expressa na tribuna desta Casa. Sei bem que a prova a que me submeteram está muito acima de minhas forças e de minha capacidade. Mas transcendeu, a causa que a Câmara julgará, à minha pessoa, ao meu mandato, aos partidos. É incômoda e angustiante a posição que me tocou. Suporto-a sem temor, embora não merecesse a honra de simbolizar a liberdade de toda a Casa do Povo. As grandes causas exemplares, que na vida das nações firmam as garantias da democracia, sempre ultrapassam os que as tenham motivado (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.87).

Em primeiro lugar, é interessante notar que a única ocorrência de lexicalização de um

operador modal epistêmico corresponde à oração modalizadora “Sei bem que...”, já que os

demais enunciados, embora também modalizados pelo operador modal saber, manifestam-no

implicitamente.

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O enunciado “Sei bem que a prova a que me submeteram está muito acima de minhas

forças e de minha capacidade” descreve um estado de coisas que envolve o enunciador e o seu

estado de alma. Essa prova a que se refere Márcio Moreira Alves corresponde ao episódio em

torno da tentativa de cassação de seu mandato, o que é construído no discurso como um fato42

que inflige ao enunciador um estado anímico de impotência perante uma força maior. Assim,

importa destacar que a manifestação explícita do operador saber modaliza esse enunciado, de

modo a construir uma atitude de certeza do enunciador perante a enunciação de um fato.

Tratemos agora das manifestações implícitas dos operadores epistêmicos nesse

primeiro fragmento textual. Observando que as formas “É”, “suporto”, “marcou”,

“transmudaram”, “tocou” e “transcendeu” expressam os tempos e os modos verbais do

sistema enunciativo, o pretérito perfeito43 e o presente do indicativo, podemos inferir que tais

formas indiciam uma atitude de certeza do enunciador, logo a presença pressuposta do

operador modal saber. Isso porque o tempo verbal dessas formas deixa entrever que o

enunciador possui um saber sobre o estado de coisas que ele descreve em seu enunciado, pois

dizer “é incômoda e angustiante” é bem diferente de dizer “seria incômoda e angustiante”,

bem como dizer “suporto-a sem temor” imprime outra atitude epistêmica que não a contida

em “suportaria-a sem temor”.

Ainda nesse trecho, o conteúdo do enunciado “As grandes causas exemplares, que na

vida das nações firmam as garantias da democracia, sempre ultrapassam os que as tenham

motivado” tem estatuto de sentença, pois o tempo presente expresso na forma verbal

“ultrapassam” é empregado com valor omnitemporal, ou seja, o momento de referência e o

momento de acontecimento são ilimitados e remetem ao infinito. Como nos mostra Fiorin

(2002, p.151), “é o presente utilizado para enunciar verdades eternas ou que se pretendem

como tais”. Esse aspecto é ainda reforçado pela forma adverbial “sempre”, o que corrobora a

atitude epistêmica de certeza desse enunciador.

Com base nesses dados, podemos concluir que o exórdio desse pronunciamento de

Márcio Moreira Alves é inteiramente modalizado pelo operador modal saber, o que confere

ao enunciador uma atitude de certeza perante seu enunciado que é transmitida ao seu co-

42 Na acepção de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p.76). 43 Conforme Fiorin (2002, p.153), “o pretérito perfeito simples acumula em português duas funções: anterioridade em relação a um momento de referência presente e a concomitância em relação a um

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enunciador, ainda que as modalidades epistêmicas estejam lingüisticamente implícitas na

maioria de seus enunciados.

Passando à análise da narratio e da confirmatio, vemos que nessa parte do

pronunciamento a atitude epistêmica do enunciador é conservada de modo a reiterar a certeza

que ele vem inspirando desde a enunciação das premissas iniciais. Há, porém, uma leve

alteração nas estratégias lingüísticas empregadas, que serão observadas no decorrer da análise.

Comecemos pelo exame do fragmento a seguir:

A verdade histórica é que os homens passam, mas os direitos que uma geração estabelece, através de suas lutas, às outras gerações são legados, pouco a pouco criando o patrimônio comum das leis, garantias e liberdades de uma nação (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.88-89).

Em suma, Márcio Moreira Alves está dizendo que a verdade histórica é que os homens

passam, mas os direitos são legados. Primeiramente, é importante dizer que esse enunciado é

construído como uma verdade eterna, que fica patente graças à manifestação do presente

omnitemporal expresso pela forma verbal “é”. Tal proposição, assim apresentada como

verdade estabelecida, não precisa ser justificada e reforçada pelo enunciador para que seja

aceita pelo auditório. Do ponto de vista da modalização, isso significa que, se em seu

enunciado ele diz “é verdade que...”, em sua enunciação ele está projetando um “eu sei que é

verdade que...”. Esse modo de dizer revela que o enunciador está muito certo sobre aquilo que

ele enuncia.

A partir daí, Márcio Moreira Alves vai argumentar no sentido de provar que aquilo

que pertence ao individual detém o traço da efemeridade, enquanto aquilo que pertence ao

coletivo apresenta o traço da perenidade. Isso porque ele quer convencer os membros do

plenário de que seu julgamento extrapola o âmbito individual e coloca na berlinda aquilo que

pertence ao coletivo (o princípio da inviolabilidade) e, por conseguinte, o próprio Legislativo.

Com base nesse argumento, Márcio Moreira Alves vai dizer, logo depois de narrar e relatar os

fatos, que o que está em questão é a liberdade de expressão do indivíduo que é garantida pelo

momento de referência pretérito”, assim um pertence ao sistema enunciativo e o outro ao sistema enuncivo.

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coletivo, e não o conteúdo daquilo que é manifestado pelo indivíduo, como querem fazer

acreditar os seus adversários políticos. Acompanhemos:

O fato de poder proferi-lo livremente não quer, entretanto, dizer que a Câmara a que pertence é solidária com os conceitos que emitiu. Simplesmente significa que a Câmara existe, que é um poder independente e que garante a seus membros a liberdade de palavra e opiniões (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.90).

Interessante notar que tudo isso é dito com o estatuto de fato e modalizado pelo

operador saber. “Simplesmente significa que...” é uma oração modalizadora que incide sobre

o fato de a Câmara existir e garantir a liberdade de expressão, enquanto a outra oração

modalizadora “não quer [...] dizer que...” incide sobre o fato de a Câmara não ser solidária

com o que dizem seus membros, que têm o direito de liberdade de expressão.

A partir daí, os argumentos de Márcio Moreira Alves começam a desdobrar no sentido

de mostrar que a cassação de seu mandato parlamentar é um equívoco e que isso não resolve

crise:

(1) Pudesse eu evitar esta crise abrindo mão de meus direitos, certamente o faria. (2) Não creio que as crises que cada vez mais freqüentemente sacodem a imperfeita e injusta estrutura constitucional brasileira possam ser removidas pelo sacrifício de um, de dois, de dez ou de todos os Deputados (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.90-91).

Aparentemente se trata de um fragmento discursivo cuja atitude epistêmica do

enunciador é de incerteza devido ao emprego do verbo no modo subjuntivo (“pudesse”). No

entanto, esse enunciado em (1) é sintaticamente construído como uma oração condicional,

sobre a qual incide a forma adverbial “certamente”, que lexicaliza o operador saber,

revelando a atitude de certeza do enunciador. Isso fica mais claro se observarmos a seguinte

paráfrase: eu tenho certeza de que abriria mão de meus direitos se eu tivesse certeza de que

isso resolveria a crise.

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Do enunciado em (2), é preciso destacar a oração modalizadora “Não creio que...”. Eis

um caso em que forma verbal “creio” recai sobre algum ponto intermediário do contínuo entre

os pólos da certeza e da incerteza, evidentemente no ponto mais próximo à certeza.

Márcio Moreira Alves está dizendo que cassar deputado não resolve crise. Quanto a

isso, não levantamos dúvidas, porém o seu modo de dizer não quer revelar esse grau máximo

de certeza que acabamos de inferir.

Márcio Moreira Alves não quer mostrar o grau máximo de certeza, porque ele

argumenta com objetos que pertencem não ao universo dos fatos aceitos universalmente,

mas sim ao universo das crenças compartilhadas pelo seu grupo social e que circulam em

sua formação discursiva. Assim, temos em torno desse “creio” uma estratégia lingüística

voltada para amenizar o tom do enunciador e lhe conferir uma imagem de um sujeito que

não impõe seus valores, o que lhe é altamente favorável em termos de ethos.

Essa estratégia de amenização do tom do enunciador incide sobre o enunciado que

inscreve a voz de seus adversários, em que a polifonia se manifesta por meio do “não”, que é

um não polêmico, pois, quando Márcio Moreira Alves diz “Não creio que [cassar deputado

resolve crise]”, ele deixa pressupor que há uma voz que diz creio que [cassar deputado

resolve crise].

O enunciado que manifesta essa polêmica no nível dos enunciadores é modalizado de

forma a suavizar o tom do enunciador, porque, quando Márcio Moreira Alves diz que cassar

deputado não resolve crise, ele está argumentando sobre o preferível, mais especificamente

sobre um valor, um ponto de vista, um objeto que não se impõe ao co-enunciador, mas sim

lhe é dirigido com vistas a influenciá-lo na direção de determinada ação que, nesse caso, é

votar contra o “pedido de licença”.

No decorrer do pronunciamento, podemos observar que a polêmica em torno da

cassação assume um caráter se cada vez mais desvelado, como neste enunciado:

Mas, tal como ao mercador de Veneza era impossível receber o que lhe deviam sem romper a lei, derramando o sangue de um cristão, é também impossível ao Ministro da Justiça receber o mandato de um Deputado sem causar a definitiva hemorragia no Poder Legislativo (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.92).

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A oração modalizadora “é também impossível...”, apesar de lexicalizar um operador da

modalidade alética (eixo da necessidade e da impossibilidade), deixa entrever uma

modalidade epistêmica que indica o operador saber, que volta a imprimir o grau máximo de

certeza que vinha sendo impresso ao tom do enunciador Márcio Moreira Alves que, nesse

trecho, aponta as conseqüências negativas de sua cassação para o Poder Legislativo.

Avançando. Márcio Moreira Alves argumenta sobre os valores que o motivaram a

fazer seus pronunciamentos de 2 e de 3 de setembro de 1968. Acompanhemos:

(1) Todos nós aqui chegamos pela confiança que recebemos de uma parcela do povo brasileiro, manifestada pelo voto secreto em eleições diretas. (2) Esta confiança não é gratuita. (3) Representa o compromisso que assumimos com o pensamento e os interesses daqueles que nos elegeram para que aqui exprimíssemos os seus anseios. (4) Assim entendo e procuro viver o meu mandato (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.92).

Desse enunciado, vejamos primeiramente seus três primeiros períodos. Com base na

distinção que Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996, p.87-89) fazem entre os dois tipos de

valores, podemos dizer que o enunciador Márcio Moreira Alves alicerça seu argumento sobre

os valores abstratos expressos pelos léxicos “confiança”, “compromisso”, “pensamento”

“interesses” e “anseios” e sobre os valores concretos expressos pelos sintagmas “voto

secreto” e “eleições diretas”. O princípio da representação é construído nesse enunciado como

um valor valorizado positivamente pelo enunciador.

No quarto período do enunciado em questão, “Assim entendo e procuro viver o meu

mandato”, vemos que a forma adverbial “Assim” funciona como um anafórico que retoma o

que foi dito anteriormente para que tudo isso seja modalizado pela forma verbal “entendo”

que inspira uma atitude do enunciador de quase certeza, pois, se não é a verdade de todos, é,

ao menos, a sua própria verdade, por isso ela deve ser relativizada. Isso porque, no contínuo

entre certeza e incerteza, a atitude epistêmica do enunciador é, novamente, aquela situada no

ponto mais próximo da certeza, visto que, novamente, o enunciador argumenta com base em

valores.

Essa estratégia de suavização do tom do enunciador é ainda reiterada no contorno de

uma citação de autoridade:

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Que visão é esta? Creio poder encontrar as suas raízes em uma profecia de Isaías (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.93): [segue discurso citado]

Como esse enunciado introduz uma citação sob a forma do discurso direto, devemos

considerar a relação entre a modalização do discurso citante e a modalização do discurso

citado. Assim, a forma verbal “creio” ameniza o tom do enunciador do discurso citante (de

Márcio Moreira Alves) para, no contraponto de vozes, elevar o tom do enunciador do discurso

citado (de Isaías). A captação do discurso religioso, mais precisamente do discurso cristão,

cria a imagem de um sujeito que compartilha desse universo discursivo, o que lhe é muito

favorável, pois se trata da crença religiosa oficialmente estabelecida no Brasil.

Mais adiante, podemos notar que o conteúdo dessa citação bíblica é desenvolvido pelo

discurso de Márcio Moreira Alves, como no enunciado a seguir:

Assim entendo deva ser este País internamente, como entendo ainda que externamente deva ser soberano, sem filiar-se a blocos internacionais políticos ou militares, sem de nação alguma, por mais poderosa que seja, receber o ditado do seu comportamento e sem que os agentes de qualquer nação, ainda que poderosa e amiga, possam em seu desenvolvimento influir determinantemente. Acredito que todos nós tenhamos uma responsabilidade direta na construção da paz social, como da paz internacional, responsabilidade esta que é tanto maior quanto maiores forem os instrumentos de cultura, de fortuna e de poder de que cada um disponha (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.93-94).

Esse enunciado retoma o conteúdo veiculado pela citação da profecia de Isaías por

meio do anafórico “assim”. Dessa profecia depreendemos os valores como liberdade,

igualdade e justiça que se somam a valores como soberania e paz arrolados nesse enunciado.

Os operadores epistêmicos são lexicalizados duas vezes pela forma verbal “entendo” e

uma vez pela oração modalizadora “Acredito que...”. Vemos aí, novamente, a recorrência

àquela estratégia de suavização do tom do enunciador que vimos descrevendo.

Apenas mais dois exemplos para concluir a análise dessa parte do pronunciamento:

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É-me lembrado freqüentemente, nesta Casa, por amigos que à minha responsabilidade apelam, por adversários que me procuram julgar, que sou um dos privilegiados da sociedade brasileira. É verdade. Tenho disto a mais profunda e pesada noção (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.94).

Sei que a tentativa de cassar o meu mandato é apenas a primeira de muitas que virão. Sei que o apetite, dos que a esta Casa desejam mal, é insaciável (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.96).

Nesses dois fragmentos, as orações modalizadoras “É verdade que”, “Tenho disto [...]

noção” e “Sei que...” explicitam o operador modal saber, o que revela grau máximo de

certeza do enunciador perante os fatos que ele enuncia: “sou um dos privilegiados da

sociedade brasileira”, “a tentativa de cassar o meu mandato é apenas a primeira de muitas que

virão”, “o apetite, dos que a esta Casa desejam mal, é insaciável”.

O primeiro fato tem a ver com a imagem pré-discursiva de “moço rico” que era

conferida a Márcio Moreira Alves, como podemos ver a seguir no fragmento extraído de uma

reportagem publicada pela Veja em 18 de dezembro de 1968:

Em Brasília, instalou-se em uma bela casa junto ao lago, decorada com móveis Luís XV, misturados com o velho colonial mineiro, quadros de Djanira, Pancetti, Heitor dos Prazeres e diversas gravuras de nobres franceses, antepassados de sua mulher. Márcio sempre mostrou-se à vontade em um tipo de vida requintado. [...]. Seus adversários não cansam de lembrar êsses fatos para caracterizarem sua origem de “môço rico”. Origem que o próprio Márcio Moreira Alves admitiu em seu discurso, na Câmara Federal, na quinta-feira passada, antes da votação de seu pedido de cassação (Veja, 1968a, p.25).

Se pensarmos nas grades culturais e nos seus valores, podemos dizer que essa imagem

pré-discursiva atribuída a Márcio Moreira Alves não parece ser a imagem mais apropriada

para um político militante de esquerda. Ciente disso, Márcio Moreira Alves reconstrói

discursivamente esse fato à sua maneira, dizendo que tal fato é visto por seus amigos de forma

diferente de como é visto pelos seus adversários, pois os amigos apelam à sua

responsabilidade, enquanto os adversários tentam julgá-lo. A interação do enunciador com os

primeiros tem carga positiva e com os segundos, negativa; no entanto, o que prevalece é o seu

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próprio veredicto: “É verdade. Tenho disto a mais profunda e pesada noção”. Márcio Moreira

Alves reconhece assertivamente tal fato e imprime o grau máximo de certeza sobre o que diz

para fazer seu mea-culpa e, assim, reverter a imagem pré-discursiva negativa e conflitante de

um “moço rico” militante de esquerda.

Já o segundo fato se refere ao próprio episódio em torno do “pedido de licença”, que o

discurso de Márcio Moreira Alves chama de pedido de cassação. Nesse segundo fragmento, o

enunciado “Sei que a tentativa de cassar o meu mandato é apenas a primeira de muitas que

virão” assume um tom pressagioso, especialmente pelo emprego do futuro do presente na

forma verbal “virão”, construindo uma previsão negativa sobre as conseqüências de sua

cassação para o Poder Legislativo.

E, ainda, nessa parte do discurso, Márcio Moreira Alves aponta seu anti-sujeito:

As classes militares sempre mereceram e merecem o meu respeito. O militarismo, que pretende dominá-las e comprometer-lhes as tradições democráticas, transformando-as em sua maior vítima, esse militarismo – deformação criminosa que a civis e militares contamina – impõe-se ao nosso repúdio (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.96-97).

Importa adiantar aqui que “militarismo” é o nome dado pelo discurso do enunciador

ao seu sujeito antagonista, ao anti-sujeito. E, enquanto o discurso vai construindo o ethos do

enunciador, vai construindo também o seu anti-ethos, seu avesso moral, ético e social. Se ao

final da análise concluirmos que o discurso de Márcio Moreira Alves constrói um ethos X,

concluiremos também que ele terá construído um anti-ethos anti-X (coisa bem diferente de

não-X), que será conferido ao anti-sujeito “militarismo”.

Tratemos agora do epílogo, a última parte do pronunciamento de Márcio Moreira

Alves, que é aqui, novamente, transcrita:

Finalizo, Sr. Presidente, na esperança de que as angústias e sofrimentos que atravessamos possam servir para o engrandecimento do Congresso e a liberdade da Pátria. Os últimos dias foram pródigos em exemplos e lições. Um homem modesto, suave e tranqüilo mostrou ao Brasil que no momento da verdade transforma-se a dignidade no cinzel que esculpe o herói. Djalma Marinho soube recusar as honras para ficar com a sua consciência. Juntamente com seus companheiros de partido, que foram expurgados da Comissão de Justiça em nome

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de ideais a que se conservam fiéis, personifica a independência da Câmara. Vindo de outro Rio Grande, onde o sangue dos peleadores firmou as fronteiras da Pátria, Daniel Krieger mostrou que estão vivas as tradições de bravura dos gaúchos. É o verdadeiro e digno irmão do cavaleiro andante Brito Velho.

Entrego-me agora ao julgamento dos meus pares. Rogo a Deus que cada um saiba julgar, em consciência, se íntegra deseja manter a liberdade desta tribuna, que livre recebemos das gerações que construíram as tradições políticas do Brasil. Rogo a Deus que mereça a Câmara o respeito dos brasileiros, que possamos, no futuro, andar pelas ruas de cabeça erguida, olhar nos olhos os nossos filhos, os nossos amigos. Rogo a Deus, finalmente, que o Poder Legislativo se recuse a entregar a um pequeno grupo de extremistas o cutelo da sua degola. Volta-se o Brasil para a decisão que tomaremos. Mas só a História nos julgará (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.97-98).

“Finalizo” é aí a forma verbal que corresponde à fórmula lingüística que apresenta ou

anuncia o último momento da argumentação, conforme Charaudeau (1992, p.830). Todo o

epílogo desse pronunciamento não apresenta sequer uma lexicalização dos operadores modais

crer e saber. Do ponto de vista da projeção da enunciação, a debreagem enunciativa é o

processo que caracteriza todo o conjunto desse trecho final devido à projeção da instância da

enunciação, o eu, o aqui e o agora da enunciação, nos enunciados do epílogo. Os tempos

verbais aí são, portanto, os do sistema enunciativo, a saber:

Formas verbais empregadas no epílogo do discurso de Márcio Moreira Alves

Presente pretérito perfeito 1 futuro do presente

finalizo entrego atravessamos tomaremos possam rogo foram julgará

transforma deseja mostrou

esculpe rogo recebemos

conservam mereça construíram personifica olhar

estão rogo é volta

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A disposição desses tempos verbais nos enunciados em questão é que nos permite

perceber a manifestação implícita do operador modal saber, o que confere uma atitude de

certeza do enunciador perante todos os seus enunciados que compõem o epílogo, no qual o

enunciador reitera o que ele vem argumentando desde o início de seu pronunciamento, ou

seja, que a cassação de seu mandato significa prejuízo não ao indivíduo Márcio Moreira

Alves, mas sim à coletividade representada pelo Congresso e ao próprio Poder Legislativo.

Márcio Moreira Alves exorta aí o Poder Legislativo a não aceitar a exigência das

Forças Armadas, sob pena de se tornar um poder subjugado, de perder sua soberania,

condição essencial de qualquer um dos três poderes. Nessa metáfora criada por Márcio

Moreira Alves, a idéia da concessão do pedido de licença se associa à imagem do instrumento

de corte empregado para decapitação, o “cutelo”, que serviria para “degolar” o Poder

Legislativo, ou seja, abrir precedente para sucessivas cassações de mandatos parlamentares e,

sobretudo, para subjugar a soberania do Congresso.

Após o exame da modalização em todas as partes do pronunciamento de Márcio

Moreira Alves, parece-nos oportuno esboçarmos, ao menos, uma breve conclusão.

De um modo geral, o enunciador Márcio Moreira Alves inspirou em seu discurso uma

atitude de certeza perante seu enunciado e ao seu co-enunciador, em que nem sempre tal

atitude foi manifestada em seu extremo, deixando-se deslizar no contínuo entre a certeza e a

incerteza, conforme os tipos de objetos de acordo suscitados.

Assim, vimos que no exórdio o operador modal saber foi manifestado de forma

explícita quando o enunciador expunha um fato e de forma implícita quando tratava de um

valor. A atitude de certeza do enunciador ficou visível nos dois casos, porém com graus

diferentes de certeza, se concordarmos que a explicitação do operador saber revela um grau

maior de certeza do que a não explicitação. E isso ajuda a melhorar o ethos do enunciador.

Mais adiante, na narratio e na confirmatio, acompanhamos a manutenção dessa

atitude epistêmica, logo a manutenção do tom do enunciador, embora tenhamos anotado

alterações nas estratégias lingüísticas.

Em seu início, a mesma regra é reiterada. Apresenta-se o grau máximo de certeza na

construção de um fato, mostrando uma atitude altiva do enunciador perante os fatos que ele

expõe. Entretanto, na seqüência do texto, outras operações se desenrolam. Vimos que o

enunciador volta a argumentar sobre valores e a partir daí assistimos a uma estratégia de

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amenização de seu tom, que é desvelada pelo fato de algumas formas verbais como “creio”

e “entendo” nos levarem a conferir ao enunciador não uma atitude epistêmica situada nos

pontos extremos da certeza e da incerteza, mas sim no contínuo entre esses dois pólos, mais

especificamente no ponto mais próximo à certeza.

Também aventamos a hipótese de que essa amenização do tom do enunciador

representa um ganho à qualidade de seu ethos, pois tal estratégia cria a imagem de um sujeito

que não impõe seus valores e aceita discuti-los abertamente. Ademais, vimos que, no sentido

de melhorar seu ethos, o enunciador usa o grau máximo de certeza para reverter uma imagem

pré-discursiva negativa de si, fazendo um mea-culpa em relação à sua condição social.

Por fim, observamos que o operador saber foi manifestado de forma implícita em

todos os enunciados do epílogo, reiterando a atitude de certeza do enunciador que

predominou em todo o seu pronunciamento, bem como o seu tom que se manteve,

predominantemente, altivo para defender a tese de que o Congresso irá ferir sua própria

soberania se autorizar sua cassação.

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7.2. A heterogeneidade enunciativa

7.2.1. O discurso citado

O pronunciamento de Márcio Moreira Alves apresenta formas do discurso citado

apenas na narratio e na confirmatio, não havendo inscrição de vozes alheias no exórdio nem

no epílogo. No total, são cinco ocorrências, as quais serão examinadas a partir de agora:

Os autores citados pelo Sr. Ministro da Justiça, ou do assunto não tratam, ou dele tratam, como é o caso de Raul Machado Horta, para afirmar o que também afirmamos: a inviolabilidade é irrenunciável, pois que ao Deputado não pertence e, sim, a todo o Congresso (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.90).

Nesse primeiro fragmento, podemos notar que Márcio Moreira Alves faz menção ao

próprio pedido de licença encaminhado pelo Ministro da Justiça ao Congresso e daí reproduz

uma citação atribuída a Raul Machado Horta44. Importa dizer que, apesar de o Ministro da

Justiça Gama e Silva45 ser um governista, o discurso do autor citado pelo Ministro da Justiça é

traduzido46 pelo discurso de Márcio Moreira Alves como uma voz concordante, acarretando

uma integração reivindicada47. Em outras palavras, o discurso citado de Raul Machado Horta

é integrado positivamente ao discurso de Márcio Moreira Alves para reforçar o argumento de

que a inviolabilidade é uma prerrogativa pertencente não ao deputado, individualmente, mas

sim, coletivamente, ao Congresso.

44 Raul Machado Horta foi jurista e professor catedrático e emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Era reconhecido como um especialista em Direito Público. 45 Logo após o golpe de 64, Luiz Antônio da Gama e Silva foi nomeado Ministro da Justiça no dia 4 de abril de 1964 e, cumulativamente, em 6 de abril, Ministro da Educação e Cultura do governo do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. No entanto, deixou os dois Ministérios no dia 15 de abril para voltar à Universidade de São Paulo, da qual foi reitor entre 1963 e 1966. Já, no governo do Marechal Arthur da Costa e Silva, Gama e Silva assumiu novamente o Ministério da Justiça. 46 Maingueneau (1997, p.120) refere-se a uma “tradução de um tipo bem particular, pois ela opera, não de uma língua natural para outra, mas de uma formação discursiva à outra [...]. Assim, quando uma formação discursiva faz penetrar seu Outro em seu próprio interior, por exemplo, sob a forma de uma citação, ela está apenas ‘traduzindo’ o enunciado deste Outro, interpretando-o através de suas próprias categorias”.

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Vejamos, agora, a segunda ocorrência de discurso citado que anotamos:

Procura-se criar, em torno da concessão ou não de uma licença para que se

prossiga um processo a respeito do que muito bem chamou o nosso professor de deveres, Deputado Djalma Marinho, “delito impossível”, uma crise institucional (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.90).

Nesse fragmento, Márcio Moreira Alves faz uma referência ao deputado Djalma

Marinho, jurista e deputado eleito pela ARENA, que, durante o caso “Márcio Moreira”,

exerceu a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal,

comissão responsável pelo relatório favorável ou contrário à licença para processar o

deputado Márcio Moreira Alves. Djalma Marinho, porém, não aceitou as manobras do

Ministro da Justiça Gama e Silva e do Presidente da República Costa e Silva que visavam a

pressionar a CCJ a entregar um relatório favorável à licença, o que culminaria na cassação de

Márcio Moreira Alves. Djalma Marinho renunciou, então, à presidência da CCJ e à própria

Comissão após anunciar seu voto contrário e cunhar a célebre frase “ao meu rei tudo, menos a

honra”, citando o escritor espanhol Calderón de la Barca. Vale lembrar que o pedido de

licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves passou pela CCJ e foi à votação na

Câmara, porque teve êxito a manobra governista de substituir nove deputados arenistas

contrários à licença por outros da mesma legenda que se mostravam favoráveis.

Do ponto de vista formal, vemos nesse enunciado uma forma de discurso citado que

Maingueneau (2002, p.151) chama de “ilha textual ou ilha enunciativa”. Vale ponderar que,

embora o autor destaque seu emprego nos textos de imprensa, esse recurso pode ser

encontrado em qualquer outro discurso manifestado por meio do suporte gráfico, como é o

caso dos pronunciamentos parlamentares publicados pelo Diário Oficial da Câmara dos

Deputados.

Para Maingueneau (2002, p.151), a ilha pode ser indicada pelos sinais gráficos aspas

ou itálico de modo que “a ilha está perfeitamente integrado (sic) à sintaxe: só a tipografia

permite verificar que essa parte do texto não é assumida pelo relator”. Trata-se de uma forma

que se assemelha à do discurso indireto, pois comporta apenas uma única situação de

47 O emprego do termo se inspira no que diz Maingueneau (1997, p.122) sobre a oposição entre as categorias semânticas reivindicadas (ou “positivas”) e as recusadas (ou “negativas”), relacionada ao

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enunciação, em que o discurso citante engloba o discurso citado no que toca à referência

dêitica e aos termos apreciativos.

Nesse segundo fragmento sob análise, podemos identificar as seguintes características:

• verbo de elocução (“chamou”) indiciando a subsistência de um discurso alheio;

• sinal gráfico – aspas – marcando a fronteira entre discurso citante e discurso

citado;

• a concretização do enunciador do discurso citado (“Deputado Djalma

Marinho”);

• uma única situação enunciativa em que a situação citante engloba a situação

citada.

O discurso citante de Márcio Moreira Alves traduz48 esse discurso citado, lançando

apreciações do tipo “muito bem”, que incide sobre o verbo de elocução “chamou” atribuído ao

enunciador do discurso citado, e “o nosso professor de deveres”, que constrói a captação de

uma voz do discurso jurídico para integrá-la positivamente em seu discurso. Vemos, portanto,

a integração reivindicada de mais uma voz do discurso jurídico que corrobora a orientação

argumentativa de seu discurso.

Já, na terceira ocorrência de uma forma do discurso citado, podemos ver que, além do

discurso jurídico, Márcio Moreira Alves também dialoga com o discurso religioso.

Acompanhemos o seguinte fragmento textual:

Que visão é esta? Creio poder encontrar as suas raízes em uma profecia de Isaías:

“Pois eu vou criar novos céus e uma nova terra. O passado não será mais lembrado, não volverá mais ao espírito, mas será experimentada a alegria e a felicidade eterna daquilo que vou criar... Serão construídas casas que se habitarão, serão plantadas vinhas das quais se comerá o fruto. Não mais se construirá para que outro se instale, não mais se plantará para que outro se alimente. Os filhos de meu povo durarão tanto quanto as árvores, e meus eleitos gozarão do trabalho de suas mãos. Não trabalharão mais em vão, não darão mais à luz filhos votados a uma morte repentina.” (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.93).

imbricado processo de tradução do discurso do Outro e de construção da identidade discursiva. 48 Reiteramos que “traduz” refere-se aqui à operação de uma formação discursiva para outra, no sentido proposto por Maingueneau (1997, p.120).

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Por meio dessa profecia de Isaías, Márcio Moreira Alves propõe um jogo enunciativo

em que deixa explícita (no dito) uma visão de futuro a que os brasileiros devem aspirar, ao

mesmo tempo em que ele deixa implícita (no dizer) a situação vigente no Brasil. Se, por um

lado, o dito se refere à visão de futuro e aos valores defendidos pelo enunciador, por outro

lado, o dizer alude à situação vivida no Brasil durante a ditadura militar. Nesse jogo

enunciativo, Márcio Moreira Alves reclama a soberania do país, denuncia a usurpação das

riquezas nacionais pelo capital estrangeiro, a baixa expectativa de vida no Brasil, os mortos e

desaparecidos49 no regime militar.

Do ponto de vista formal, esse discurso citado se manifesta por meio de uma citação

sob a forma do discurso direto. Falemos um pouco sobre a citação e o discurso direto. Para

Maingueneau (1997, p.86), a citação implica o distanciamento da voz do discurso citado, em

que “o locutor citado aparece, ao mesmo tempo, como o não-eu, em relação ao qual o locutor

se delimita, e como a “autoridade” que protege a asserção”. A esse respeito, devemos lembrar

que o discurso citado corresponde somente ao simulacro do discurso do outro, assim a voz

desse locutor citado não é outra coisa senão uma simulação construída pelo discurso citante.

No caso do fenômeno da citação, o poder de mimese e o distanciamento entre enunciador

citante e enunciador citado são sustentados pela forma do discurso direto que é, segundo

Fiorin (2002, p.74), “um simulacro da enunciação construído por intermédio do discurso do

narrador”, o que é corroborado por Grilo (2004, p.115) ao dizer que o discurso direto torna o

discurso citado mais mimético.

Tratemos dessa citação que Márcio Moreira Alves faz de Isaías, observando, pela

ordem, o contorno do discurso citado (as apreciações do discurso citante sobre o discurso

citado), a dupla situação de enunciação (a do discurso citante e a do discurso citado) e a

simulação da voz do discurso citado.

Primeiramente, é interessante notar que o contorno desse discurso citado recebe muito

pouco investimento apreciativo (aquilo que se diz sobre o discurso e o enunciador alheio), do

qual podemos destacar o seguinte:

• “raízes” que qualifica o discurso citado como um discurso fundador;

49 Processo que se agravaria mais ainda após a edição do AI-5. Esse ponto é bem abordado no trabalho organizado por Janaína Teles, intitulado Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? 2. ed. São Paulo, Humanitas/FFLCH/USP, 2001.

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• “profecia” que indica o gênero discursivo pelo qual esse discurso citado é

originalmente manifestado, conforme a própria nomeação bíblica, livros

proféticos;

• “Isaías” que apenas tem a função de mencionar o nome do profeta sem

nenhum outro predicativo.

Márcio Moreira Alves, ao se limitar a fazer uma breve apresentação de Isaías, prepara

a citação de um discurso cujo enunciador citado dispensa apresentação, referências elogiosas

e formalidades, diferentemente do que acontece nas citações que ele faz aos juristas.

Um dado que o discurso de Márcio Moreira Alves não faz menção, mas que parece

válido suscitar é que a “participação ativa nos assuntos de seu país faz de Isaías um herói

nacional. [...]. Isaías é o maior dos profetas messiânicos” (Bíblia, 2003, p.1238).

Em segundo lugar, a dupla situação de enunciação, que marca a fronteira entre os dois

discursos (citante e citado) é, graficamente, marcada pelos dois-pontos, pelas aspas e pela

paragrafação. Essas duas situações de enunciação podem ser configuradas da seguinte forma:

Dupla situação de enunciação: Márcio Moreira Alves (discurso citante) e Isaías (discurso citado)

discurso citante discurso citado

“eu” Márcio Moreira Alves “eu” Isaías

“tu” plenário da Câmara “tu” povo de Judá e Jerusalém

“aqui” Câmara Federal “aqui” reinos de Judá e Jerusalém

“agora” 12 de dezembro de 1968 “agora” c.700 a.C.

É importante dizer que Márcio Moreira Alves suprime passagens do texto bíblico,

principalmente aquelas que fazem referência a Iahweh e à Jerusalém para não explicitar a

distância, cronológica e geográfica, que há entre as duas situações de enunciação.

Em terceiro lugar, essa citação sob a forma de discurso direto simula a enunciação do

discurso do profeta bíblico, de modo que a visão profética de Isaías50 sirva tanto para o antigo

50 Isaías, capítulo 65, versículos 17 a 25.

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povo de Jerusalém como para o contemporâneo povo do Brasil. Trata-se aí de um discurso

alheio que é integrado positivamente no discurso citante de Márcio Moreira Alves, o que lhe

confere a imagem de um enunciador que compartilha e que se rende ao universo discursivo da fé

confessada oficialmente no Brasil.

Passemos ao exame da quarta ocorrência de uma forma do discurso citado nesse

pronunciamento de Márcio Moreira Alves:

É-me lembrado freqüentemente, nesta Casa, por amigos que à minha

responsabilidade apelam, por adversários que me procuram julgar, que sou um dos privilegiados da sociedade brasileira (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.94).

Já vimos, anteriormente, que esse fragmento revela grau máximo de certeza do

enunciador perante o fato que ele enuncia e que está relacionado com a imagem pré-

discursiva de “moço rico” que lhe é conferida. Vimos também que Márcio Moreira Alves

reconstrói essa imagem, dizendo que tal fato é recebido diferentemente por amigos e por

adversários, pois essa opinião compartilhada é usada para diferentes propósitos

argumentativos. Assim, no contorno do discurso citado, a cobrança dos amigos recebe valor

positivo, pois é apreciada como apelo à sua responsabilidade, enquanto a cobrança dos

adversários recebe valor negativo, pois é apreciada como julgamento.

Do ponto de vista formal, o discurso alheio é manifestado por meio do discurso

indireto. Isso pode ser observado com mais nitidez por meio da seguinte paráfrase: Amigos

que à minha responsabilidade apelam e adversários que me procuram julgar lembram-me

freqüentemente nesta Casa que sou um dos privilegiados da sociedade brasileira. Desse

enunciado, podemos localizar o verbo de elocução (“lembram”), a fronteira entre discurso

citante e discurso citado (a conjunção “que”), a única situação de enunciação em que o

sistema de referência dêitica do discurso citado é interpretado conforme o do discurso citante.

É também interessante ouvir o que diz Maingueneau (2002, p.149) sobre o discurso indireto:

Com o discurso indireto, o enunciador citante tem uma infinidade de maneiras para traduzir as falas citadas, pois não são as palavras exatas que são relatadas, mas sim o conteúdo do pensamento.

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Em outras palavras, o discurso indireto não visa à simulação da voz do discurso alheio,

não quer presentificá-la e criar efeito de realidade, como se pretende com o recurso do discurso

direto. O discurso citante quer mostrar que se interessa somente por aquilo que é dito,

negligenciando a maneira como é dito. É bem certo que as formas do discurso citado não geram

efeitos de sentido por elas mesmas, pois os efeitos dependem também do conteúdo do que é

citado. Nesse caso, apenas imaginemos Márcio Moreira Alves empregando discurso direto: o

tom seria aí bem próximo ao das intrigas reservadas à vida privada. No entanto, ao englobar

para o seu sistema enunciativo o discurso citado “sou um dos privilegiados da sociedade

brasileira”, Márcio Moreira Alves assume tal fato e a partir daí faz seu mea-culpa, revertendo a

imagem pré-discursiva negativa que faziam dele, conforme vimos na análise das modalidades.

Examinemos agora a última ocorrência de discurso citado:

Quero crer, tal como Dom Antônio Fragoso expressou em uma carta

recentemente publicada nos jornais, que nos cabe conscientizar o povo da realidade que o cerca a fim de que, dispondo de todos os elementos necessários ao julgamento, possa ele fazer livremente a opção pelo sistema social e econômico que às suas aspirações mais perfeitamente atenda (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.94-95).

Nesse fragmento textual, podemos ver que Márcio Moreira Alves faz nova incursão à

esfera religiosa ao citar um discurso de Dom Antônio Fragoso, bispo de Crateús no estado do

Ceará e membro da Comissão Representativa da CNBB, veiculado na mídia impressa. Nessa

citação, o enunciador capta o discurso das tendências progressistas da Igreja Católica, que se

manifestavam contrariamente ao golpe de 64 e seus desdobramentos. Novamente, o discurso

indireto é usado para enfatizar o conteúdo do discurso citado em detrimento da expressão.

À guisa de conclusão, podemos destacar que há no discurso político de Márcio

Moreira Alves uma forte negociação com o discurso jurídico e o discurso religioso. Trata-se

de um discurso que, embora não fuja da polêmica, também não se mostra refutatório, já que

todas as suas citações são integradas positivamente a fim de reforçar e corroborar seu ponto

de vista. Sua identidade discursiva é construída no diálogo com juristas, que mostram o

caminho da justiça dos homens, e com religiosos, que mostram os caminhos da justiça divina

e da conscientização do povo.

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7.3. A cenografia

É preciso, antes, advertir que o nosso percurso para chegar à descrição da cenografia

passa por duas etapas distintas, ou seja, leva em conta as noções discursivas de quadro cênico

e de cenas validadas.

Para Maingueneau (2002, p.87), o quadro cênico do texto é definido, conjuntamente,

pelas cenas englobante e genérica. “É ele que define o espaço estável no interior do qual o

enunciado adquire sentido – o espaço do tipo e do gênero de discurso” (Ibidem). E, para evitar

confusão entre as noções de tipo e de gênero de discurso, lembramos que “os gêneros de

discurso pertencem a diversos tipos de discurso associados a vastos setores de atividade

social [...] – setores que correspondem a grandes tipos de discurso” (Maingueneau, 2002,

p.61-62).

Dessa forma, podemos dizer que o quadro cênico apresentado no pronunciamento de

Márcio Moreira Alves estabelece entre os participantes da enunciação o estatuto pragmático e

institucional da comunicação definido pela cena genérica (pronunciamento parlamentar) e

pela cena englobante (discurso político). Isso quer dizer que, independentemente de qualquer

simulação de papéis que uma cenografia possa propiciar no discurso, os participantes da

enunciação, no caso o deputado Márcio Moreira Alves (enunciador) e o presidente da mesa

mais o plenário da Câmara (co-enunciador), jamais perdem de vista os seus papéis sociais

estabelecidos pelo quadro cênico da enunciação: o de políticos.

Esse discurso cria duas cenas validadas que captam papéis sociais culturalmente

reconhecidos e estereotipados, que, oriundos de outras esferas da atividade humana, se

manifestam em seu texto por meio de itens lexicais pertencentes aos campos do tribunal e da

guerra. A captação dos papéis do tribunal e da guerra constrói uma cenografia que permite ao

discurso instalar o co-enunciador num tribunal e o interpelar como o jurado que irá absolver

ou condenar o herói (posto na condição de réu), bem como oferecer ao co-enunciador a

chance de fazer parte desse corpo de heróis que lutam pelos valores democráticos, captando o

imaginário desse co-enunciador por meio de estereótipos valorizados culturalmente. É

possível dizer que, por meio dessa cenografia, o discurso de Márcio Moreira Alves subverte o

rito de cassação ao transformar o seu julgamento político em um julgamento penal. O

enunciador cria uma cenografia menos esperada dentro do gênero pronunciamento

parlamentar, sugerindo um distanciamento que, mais adiante, pode ser lido como ruptura com

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o establishment. Vamos esmiuçar isso mais um pouco, começando pelo levantamento dos

enunciados que promovem a captação da cena validada do tribunal:

Mas transcendeu, a causa que a Câmara julgará, à minha pessoa, ao meu mandato, aos partidos (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.87).

Não se julga aqui um deputado; julga-se uma prerrogativa essencial do

Poder Legislativo (Ibidem, p.89). Entrego-me agora ao julgamento dos meus pares. Rogo a Deus que cada um

saiba julgar, [...] (Ibidem, p.97). Mas só a História nos julgará (Ibidem, p.98).

É o sentido do item lexical “julgar” e suas três formas flexionadas (“julgará”, “julga”,

“julgará”) e uma derivada (“julgamento”) que permite ao discurso de Márcio Moreira Alves

captar a cena validada do tribunal e instalar uma cena de enunciação que atribui ao enunciador

o lugar do réu, ao co-enunciador o lugar do juiz, à topografia o espaço do tribunal e à

cronografia o momento de julgar.

Ademais, essa cena validada é reforçada por um enunciado que mobiliza a memória de

um outro tribunal, aquele em que se realizou o julgamento de Dred Scott51:

51 O julgamento de Dred Scott se passa no contexto da polêmica acerca do regime escravocrata que vigorava nos estados do sul dos EUA, período que precedeu a Guerra Civil americana. Em 1846, Dred Scott e sua esposa Harriet entram com um processo por sua liberdade na Corte Distrital de Saint Louis. Em 1850, o júri, em segunda instância, decidiu que os Scotts mereciam ser cidadãos livres com base em seus anos de residência nos territórios não escravocratas de Wisconsin e Illinois. Irene Emerson, reivindicando direito de posse sobre os Scotts, apela para a Suprema Corte do Missouri, que, em 1852, revoga tal decisão tornando os Scotts escravos novamente. Em 1853, Dred Scott, com o apoio de advogados contrários à escravidão, abre processo na Corte Federal dos EUA, que também julga contra. Em 1856, Scott e seus advogados apelam para a Suprema Corte americana, que, em 1857, estabelece o veredicto final, considerando os Scotts escravos e, assim, não cidadãos americanos, sem direito a juntar processo em qualquer Corte Federal. Dred Scott morreu em 1858 e, diferentemente do que diz Márcio Moreira Alves, os seus restos mortais jazem em local conhecido: seção 1 do lote 177 do Cemitério do Calvário, no norte de Saint Louis. Mas, somente em 1957 (100 anos após a sentença), a pedra tumular de Dred Scott recebeu uma inscrição. Em sua lápide pode-se ler: “Dred Scott nasceu em 1799, morreu em 17 de setembro de 1858. Dred Scott, alvo da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1857, que negou cidadania para o negro, rasgado o Compromisso de Missouri, tornou-se um dos eventos que resultaram na guerra civil” (DRED SCOTT BORN ABOUT 1799 DIED SEPT. 17, 1858. DRED SCOTT SUBJECT OF THE DECISION OF THE SUPREME COURT OF THE UNITED STATES IN 1857

WHICH DENIED CITIZENSHIP TO THE NEGRO, VOIDED THE MISSOURI COMPROMISE ACT, BECAME ONE

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Ninguém sabe ao certo onde jazem os restos do escravo Dred Scott; contudo, a decisão que a Côrte Suprema Norte-Americana tomou, mantendo-o escravo, foi o estopim da libertação de todos os negros da América do Norte (Ibidem, p.88).

Essa referência ao caso Dred Scott, além de construir a memória das conquistas

democráticas, filiando o enunciador a essa tradição, também reforça a cena validada do

tribunal que é parte constitutiva da cenografia de seu discurso.

Passemos agora ao exame da cena validada da guerra, observando os enunciados a

seguir:

Suporto-a sem temor, embora não merecesse a honra de simbolizar a liberdade de toda a Casa do Povo (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.87).

O Ministro da Justiça, movido por misteriosas pressões e por um pertinaz

desejo de atacar o Congresso Nacional (Ibidem, p.91). É por um mundo assim que batalhamos. É por um Brasil assim que não

tememos o sacrifício (Ibidem, p.93). Ataquei governos e poderosos quando a proteger-me tinha apenas a

inviolabilidade de minha consciência. Nas trincheiras da oposição passei minha vida de jornalista (Ibidem, p.95).

Por que luto, então? (Ibidem, p.95). Sei que o apetite, dos que a esta Casa desejam mal, é insaciável. Os que

pensam em aplacá-lo hoje, com o sacrifício de um parlamentar estarão apenas estimulando a sua voracidade (Ibidem, p.96).

Buscam os inimigos do próprio Congresso um pretexto (Ibidem, p.96).

OF THE EVENTS THAT RESULTED IN THE CIVIL WAR). Fonte: Sítio eletrônico da Universidade de Washington em Saint Louis, Missouri, EUA. Disponível em: <http://library.wustl.edu/vlib/dredscott/chronology.html>.

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Os itens lexicais “atacar”, “batalhamos”, “tememos”, “sacrifício”, “ataquei”,

“proteger”, “trincheiras”, “luto”, “aplacar”, “inimigos” mais o enunciado “suporto-a sem

temor” mobilizam a memória discursiva das angústias e das privações infligidas pela guerra, o

que permite ao discurso de Márcio Moreira Alves captar a cena validada da guerra e instalar

uma outra cena de enunciação que atribui ao enunciador o lugar do herói, ao co-enunciador o

lugar do co-herói (se nos permitem a expressão), à topografia o espaço do campo de batalha e

à cronografia o momento de lutar.

Além disso, a captação dessa cena validada, que leva para dentro do discurso todo o

universo cultural e ideológico que cerca os estereótipos dos heróis, dos tiranos e dos valores

democráticos, também se dá por meio de referências culturais, ou seja, por meio de saberes

prévios compartilhados socialmente que remetem à história e à literatura52, respectivamente:

O nome dos barões que, nas pradarias do Windsor, fizeram o Rei João Sem Terra assinar a Magna Carta, perdeu-se nas brumas do tempo. Mas o julgamento por jurados, (...), a necessidade de lei penal anterior e de testemunhas idôneas para determinar uma prisão, continua a ser imorredouro monumento àqueles homens e a todos os homens (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.87-88).

O Ministro da Justiça, movido por misteriosas pressões e por um pertinaz

desejo de atacar o Congresso Nacional, surge, com a sua representação, perante o povo brasileiro, tal como Shylock apareceu diante do Doge de Veneza com a confissão de dívida do mercador Antônio, que lhe permitia tirar bem junto ao coração da vítima uma libra de carne. Não há apelo que o aplaque, não há violência que o estarreça, não há razão que o emocione, nem pedido que o abale. Quer, por força e a todo custo, retirar de junto do coração do Poder Legislativo o preço que acredita ser-lhe devido (Ibidem, p.91-92).

No início desta seção, havíamos prometido descrever a cenografia, passando, antes,

pelo quadro cênico da enunciação e pelas cenas validadas. Pois bem, juntemos as pontas

desse novelo.

Em uma ponta, temos a cena englobante e a cena genérica interpelando os

participantes da enunciação, o deputado Márcio Moreira Alves (enunciador) e o presidente

da mesa mais o plenário da Câmara (co-enunciador), como parlamentares, sendo que um

52 Refere-se a O mercador de Veneza, de Shakespeare.

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está na condição de orador que vai defender o seu mandato político e os demais estão na

condição de ouvintes de um pronunciamento proferido da tribuna da Câmara Federal que

irão, em votação secreta, deliberar contrária ou favoravelmente sobre o pedido de licença

para processar um deputado.

No entanto, se as relações pragmáticas e institucionais estabelecidas entre o

enunciador e o co-enunciador estão assim fixadas pelo quadro cênico, temos, na outra

ponta, a construção de duas cenas validadas que captam os papéis sociais do tribunal e da

guerra e os atribuem aos sujeitos da enunciação desse discurso. Dizíamos que a cenografia

corresponde à dimensão criativa do discurso, mas isso não quer dizer que a cenografia

compreenda apenas a simulação de um tribunal ou a simulação de uma situação de guerra,

pois a cenografia de um discurso vai além disso, ela se constrói no entrelaçamento entre

essas cenas validadas e as cenas definidas pelo quadro cênico.

Apenas para ilustrar o que estamos dizendo, esses mesmos enunciados que nos

permitem reconhecer as cenas do tribunal e da guerra também revelam a cena política por

meio de itens lexicais como “Câmara”, “deputado”, “prerrogativa”, “Poder Legislativo”,

“Casa do Povo”, “governos e poderosos”, “inviolabilidade”, “Ministro da Justiça” e

“Congresso Nacional”. Isso já implica na leitura de três cenas simultâneas, mas que

possuem estatutos distintos, pois as duas primeiras são cenas validadas, enquanto a terceira

corresponde a uma cena genérica.

Dessa forma, podemos perceber que o discurso vai construindo uma cena de

enunciação bem complexa, pois os lugares suscitados pelas cenas validadas e pela cena

genérica se entrelaçam e criam uma cenografia que simula não só o julgamento do herói,

mas também das conquistas e dos valores democráticos por ele defendidos, o que nos leva a

falar em uma cenografia do julgamento (do paladino) da democracia.

Essa cenografia instala o co-enunciador num tribunal e o interpela como o jurado

que irá absolver ou condenar o herói (o enunciador), juntamente com os valores por ele

defendidos (a democracia, a liberdade de expressão, etc.), assim como também o interpela a

participar da luta de heróis contra tiranos em nome dos valores democráticos, visando captar

o imaginário do co-enunciador para que ele experimente fazer parte desse corpo de heróis e,

assim, se identifique com o enunciador e rechace o seu adversário, aderindo, portanto, ao

seu posicionamento.

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Enfim, é no mundo criado por essa cenografia que o herói encarnado pelo

enunciador deve construir seu ethos de modo a legitimar a enunciação desse discurso

ideologicamente filiado às formações discursivas de tradição democrática, que no contexto

sócio-histórico da enunciação desse discurso é, no Congresso, fortemente reivindicada pelo

MDB.

7.4. Caracterização do ethos de Márcio Moreira Alves

Apesar de o nosso trabalho priorizar o ethos, falamos muito pouco sobre isso até

aqui, pois estávamos preparando o terreno para esboçar uma descrição que não caísse em

um subjetivismo infundado. Não que seja impossível, mas é difícil assegurar uma qualidade

de ethos com base no exame de apenas uma categoria lingüística ou discursiva, por isso

reservamos esse momento para reunir os resultados das análises feitas em separado e,

considerando o que cada uma revelou de pertinente, caracterizamos o ethos construído no

pronunciamento de Márcio Moreira Alves.

A análise da dêixis lingüística, mais especificamente a categoria da pessoa, nos

mostrou, fundamentalmente, um jogo entre proximidade e distanciamento, entre

subjetividade e objetividade. De um modo geral, o emprego da dêixis da pessoa coloca os

co-enunciadores (presidente da mesa e membros do plenário da Câmara) à distância,

instalando-os como persona – no sentido proposto por Fiorin (2002) – e ressaltando o seu

papel social. Por outro lado, o enunciador (Márcio Moreira Alves), uma vez colocado,

assim, na condição de réu, constrói um tom próximo que revela o caráter de um sujeito que

é engajado e quer engajar seus ouvintes na luta da pela democracia contra a ditadura. O

enunciador Márcio Moreira Alves assume sim um papel social, no entanto o faz se despindo

da persona e valendo-se apenas de sua dimensão pessoal, enfrentando o tribunal de forma

destemida, revelando firmeza de espírito como um traço de caráter que constitui seu ethos.

O exame das modalidades epistêmicas no processo de modalização no discurso de

Márcio Moreira Alves nos apontou que o enunciador manteve perante seu enunciado uma

atitude epistêmica de certeza, que flutuou entre o pólo extremo da certeza e as posições

intermediárias no contínuo entre a certeza e a incerteza, conforme os tipos de objetos de

acordo suscitados. Dessa forma, a atitude epistêmica da certeza do enunciador perante seu

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discurso de autodefesa e de defesa da soberania do Poder Legislativo atribui ao tom

enunciativo um traço de altivez.

Quanto ao discurso citado, é preciso fazer algum esforço extra para daí determinar

um traço do tom enunciativo, pois, como já dissemos, não basta verificar se o discurso

apresenta mais incidência do discurso direto ou do discurso indireto, devem-se apurar as

circunstâncias em que tais formas são empregadas. Em sendo assim, o estudo do discurso

citado indicou que o discurso político de Márcio Moreira Alves integra positivamente todas

as ocorrências de discurso citado, o que lhe permite construir um tom discurso não

refutatório, mas que também não abdica de seu ponto de vista, revelando firmeza e destemor

como traços de caráter desse enunciador que se posiciona contra o establishment.

No que diz respeito à cenografia, vimos como o discurso de Márcio Moreira Alves

transforma seu julgamento político em um julgamento penal, construindo a cenografia do

julgamento (do paladino) da democracia, por meio da captação de lugares suscitados pelas

cenas validadas e pela cena genérica que se entrelaçam, de modo que o co-enunciador se

sinta em um tribunal, onde ele é o jurado (do paladino) da democracia, ao mesmo tempo em

que ele se sinta também em uma guerra, na qual ele experimenta fazer parte de um corpo de

heróis que lutam contra tiranos em nome dos valores democráticos.

Dessa forma, vemos que Márcio Moreira Alves fala de acordo com esse “mundo”

criado por ele em sua cenografia, em que o paladino se mostra próximo e engajado a fim de

seduzir seus ouvintes para a luta, ao mesmo tempo em que demonstra como traços de

caráter a firmeza de espírito para enfrentar o tribunal e o destemor para romper com o

establishment, o que implica um corpo ereto, erguido, próprio dos paladinos, indivíduos

destemidos e sempre prontos para defender os oprimidos em nome de causas justas53.

A inscrição desse discurso em uma formação discursiva que se alinha à tradição das

conquistas democráticas é legitimada graças à construção discursiva dessa cenografia do

julgamento (do paladino) da democracia, bem como à de um ethos combativo que garante o

que é dito, a defesa da democracia.

A existência de um mundo em que há guerras em torno de um ideal e tribunais que

condenam seus heróis suscita estereótipos culturalmente reconhecidos e valorizados que se

convertem nos modos de presença do herói, do tirano e do covarde. Assim, ao mesmo

53 Conforme Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.

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tempo em que, desse discurso emerge um ethos combativo, emerge também dois anti-ethé:

um tirânico e um receoso. Isso porque seu discurso não constrói só a defesa da democracia,

mas também investe contra a antidemocracia, a ditadura. Como, a partir dessa cenografia do

julgamento (do paladino) da democracia, esse ethos combativo suscita a memória de um

corpo enunciante historicamente especificado (o dos heróis que lutaram pela liberdade),

suscita também um anti-ethos tirânico, que abrange a imagem do anti-herói, daquele que,

por aversão, investe contra os valores veiculados pelo ethos. E, ainda, desse ethos

combativo, podemos inferir a construção de um anti-ethos receoso, que é atribuído àqueles

que não tem coragem de romper como o establishment por temor às retaliações que por

ventura viriam a sofrer; esse anti-ethos é endereçado, justamente, aos parlamentares que

aceitam a República forjada pelo regime militar, com a anuência do governo dos EUA.

Assim, a legitimação recíproca entre a cenografia e sua enunciação passa pela

legitimação dessa qualidade de ethos que o discurso está construindo, isto é, pressupõe-se

que o enunciador, ao construir de si a imagem do herói em julgamento, ajuste o seu modo

de dizer a essa imagem construída, pois não basta ao enunciador apresentar imagem de

herói, é preciso que ele fale como herói, que ele seja combativo.

Um último fenômeno a ser considerado se refere ao processo de incorporação que aí

ocorre por meio da assimilação desse ethos combativo pelo co-enunciador que se identifica

com seu corpo, que é um corpo já disposto socialmente e um modo de ser no espaço social,

em que as representações sócio-culturais valorizam os heróis, desvalorizam os tiranos e

impõem essa axiologia aos seus sujeitos, que se instauram no discurso como enunciador e

co-enunciador.

Dessa maneira, a estratégia argumentativa, nesse discurso, visa a levar o co-

enunciador a rechaçar a imagem do tirano e a querer assimilar a do herói, a fim de que o

parlamentar experimente o sentimento de formar corpo com outros parlamentares, de se

sentir parte de um grupo unido em torno de um ideal.

É importante dizer também que essa oposição de valores que emana do discurso de

Márcio Moreira Alves reflete e refrata, nos termos de Bakhtin, a grade cultural estabelecida

durante o período histórico compreendido pela Guerra Fria que coloca as seguintes

oposições:

• EUA versus URSS;

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• capitalismo versus socialismo;

• o ideal de sociedade de consumo versus o ideal de sociedade igualitária;

• os setores favoráveis ao Golpe de 64 versus os setores contrários ao golpe;

• governo ditatorial versus oposição democrática;

• ARENA versus MDB.

Desse modo, a construção de um ethos combativo e um anti-ethos tirânico e outro

receoso valoriza positivamente o segundo pólo dessa oposição, ao passo que valoriza

negativamente seu primeiro pólo. Vemos, assim, esse ethos construído no pronunciamento

de Márcio Moreira Alves como a amálgama entre o seu discurso, a sua identidade

discursiva e a sua inscrição na formação discursiva denominada MDB.

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8. ANÁLISE DO ETHOS CONSTRUÍDO NO PRONUNCIAMENTO DE

MÁRIO COVAS JÚNIOR (MDB/SP)

8.1. As projeções da enunciação no enunciado

8.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem

Iniciemos a análise, observando o seguinte fragmento textual que compõe o exórdio

do pronunciamento de Mário Covas:

Sr. Presidente, permita V.Exa. e os meus pares que eu reivindique, inicialmente, um privilégio singular: o de despir-me da roupagem vistosa da liderança transitória, com que companheiros de partido me honraram [...]. Será, talvez, um desvio regimental concedido, entretanto, plenamente compreensível, já que a causa que somos obrigados a apreciar sobrepaira, superpõe-se às próprias agremiações partidárias (Diário da Câmara dos Deputados, 2000, p.99).

Nesse trecho, o enunciador Mário Covas procura captar a benevolência de seu co-

enunciador com vistas a criar uma identificação entre orador e plenário, pois ele se propõe a

falar como um deputado, como um igual, e diz que os partidos estão igualmente submetidos à

mesma causa.

Quanto à instalação das pessoas enunciativas nesse trecho, vemos que o “eu” da

enunciação é projetado no enunciado pelo pronome “me”, enquanto o “tu” da enunciação é

projetado de forma bipartida, isto é, projeta, de um lado, o presidente da mesa por meio do

vocativo e das formas de tratamento “Sr. Presidente” e “V.Exa.” e projeta, de outro lado, os

deputados, membros do plenário, por meio do sintagma “os meus pares”. Essas pessoas

enunciativas são projetadas no enunciado de uma maneira que estabelece, já de início, uma

estratégia de identificação entre o orador e o plenário, mantendo o presidente da mesa à

distancia, resguardando seu papel social de juiz, de mediador.

O enunciador Mário Covas, após criar identificação com o plenário e captar sua

benevolência, cumpre a segunda função do exórdio, que é anunciar a partição do discurso,

vejamos:

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Creio, Sr. Presidente, ser necessário um exame do problema, ainda que dentro das limitações do tempo regimental, sob vários aspectos. O primeiro deles é o jurídico, evidentemente (Ibidem, p.101).

A narratio e a confirmatio combinarão aí a exposição dos relatos e o desenvolvimento

dos argumentos que incidirão sobre os vários aspectos anunciados em seu exórdio. Assim, o

primeiro ponto a ser discutido por Mário Covas é o aspecto jurídico do problema em torno do

pedido de licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves. Entendemos que essa

questão aparece no discurso de Mário Covas com o estatuto de argumento central de seu

pronunciamento.

A construção desse argumento se apóia basicamente em uma citação de um parecer

dado pelo Ministro da Justiça Luiz Antônio da Gama e Silva, um ministro governista. Nesse

caso, é preciso observar as projeções da enunciação sobre o discurso citante e o discurso

citado. Vejamos dois trechos do pronunciamento de Mário Covas que correspondem ao

contorno do discurso citado, sendo que o primeiro fragmento antecede a citação, enquanto o

segundo, a sucede:

Creio, entretanto, que em todo o elenco de autoridades, em todo o rol de fontes citadas, um nome foi esquecido. As razões desconheço. Porém, minha condição de engenheiro certamente me absolverá, se, inspirando-me em sua lição, a tomar para guia e orientação. Trata-se do atual ocupante do Ministério da Justiça, o Dr. Luiz Antônio da Gama e Silva. Leio-lhe um parecer a respeito deste problema; e este parecer está exarado num outro processo, em curso nesta Casa, em que solicita a licença para processar o Deputado Hermano Alves.

Eis S.Exa. em seu ofício ao Procurador da Justiça Militar: (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.102).

Creio, Sr. Presidente, creio, Srs. Deputados, que a frente poderá ser contestada. Eu entretanto me auto-absolvo, porque, sendo engenheiro, acho inteiramente válido consultar a figura do Ministro da Justiça neste episódio, desta natureza (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.103).

As formas verbais “creio”, “desconheço”, “leio”, “auto-absolvo”, “acho” e as

pronominais “meu”, “minha”, “me” projetam no enunciado do discurso citante o “eu” da

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enunciação por meio de uma debreagem enunciativa, gerando o efeito de sentido de

proximidade subjetiva, o que instala nesse discurso citante de Mário Covas a pessoa ao invés

da persona. Já, no discurso citado54, a ausência de vestígios enunciativos revela o efeito de

distanciamento objetivo que permeia a fala do enunciador citado, esvaziando a pessoa e

ressaltando a persona, o papel social do Ministro da Justiça Gama e Silva.

Assim, na medida em que Gama e Silva é colocado à distância, Mário Covas e o

plenário são postos em proximidade, o que reforça a estratégia de identificação entre eles. A

projeção da categoria da pessoa assim descrita atribui ao enunciador (deputado Mário Covas)

e ao seu co-enunciador (os deputados que compõem o plenário da Câmara) o estatuto de

pessoa, ao passo que atribui ao enunciador do discurso citado (o Ministro da Justiça Gama e

Silva) o estatuto de persona.

O pronunciamento de Mário Covas desenvolve, ainda, outros argumentos, discorrendo

sobre outros aspectos como o político, o ético, o histórico. Todos os enunciados que abrangem

esses tópicos estão embebidos pelas formas dêiticas que remetem à primeira pessoa do

singular. Esses dêiticos deixam de aparecer somente em dois momentos em que o enunciador

faz citações em discurso direto, seguindo o mesmo padrão de comportamento descrito

anteriormente na citação ao parecer do Ministro da Justiça.

Essa recorrência à construção de enunciados debreados enunciativamente, em que as

formas da primeira pessoa do singular se espalham por toda a extensão do texto, ressalta

fortemente o efeito de proximidade subjetiva, revelando que o enunciador mostra e quer

mostrar que está presente e engajado na relação comunicacional com seu co-enunciador.

De um modo geral, esses efeitos de sentido gerados a partir da projeção da

enunciação no enunciado constroem nesse pronunciamento de Mário Covas um tom de

proximidade, um tom que permite ao enunciador falar de perto com o seu co-enunciador.

Entretanto, a exemplo do que vimos em Márcio Moreira Alves, ainda não é possível dizer se

o enunciador, por meio desse tom de proximidade, sussurra, fala ou brada. Temos aí apenas

o primeiro traço do tom do enunciador, que se juntará aos demais traços conforme nossa

análise for avançando.

54 Veja transcrição no capítulo II, subseção 6.2.2.

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8.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização

O exórdio do pronunciamento de Mário Covas consiste em dizer que a Câmara

Federal está sendo posta em julgamento e sua soberania está sob ameaça. Remetendo-nos à

leitura da transcrição do texto que contempla o exórdio, podemos notar que o enunciador

Mário Covas revela, não de forma explícita, uma atitude epistêmica de certeza sobre aquilo

que ele diz. Detalhemos isso um pouco mais.

Dos quinze enunciados que compõem o exórdio, apenas o último enunciado apresenta

uma lexicalização de um operador modal epistêmico, que é expresso pela forma verbal

“creio”. Já os quatorze primeiros enunciados ocultam o operador modal epistêmico e relatam

os fatos empregando o tempo presente. O uso do tempo presente no lugar do tempo passado

consiste em uma embreagem temporal que permite ao enunciador Mário Covas presentificar o

episódio em lide e inspirar em seu co-enunciador uma atitude de certeza sobre os fatos que ele

relata. Assim, a predominante ocultação da modalidade epistêmica e sua única manifestação

explícita revelam uma atitude de neutralidade epistêmica, criando aí uma retórica do neutro.

Passando à narratio e à confirmatio, vemos que o argumento central de Mário Covas

corresponde à construção da prova jurídica, que consiste na citação de um parecer do Ministro

da Justiça, Dr. Luiz Antônio da Gama e Silva. E, por se tratar de uma citação sob a forma de

discurso direto, observaremos as modalidades do discurso citante e do discurso citado.

Os modificadores destacados nos enunciados “realmente os artigos publicados pelo

citado parlamentar configuram, indubitavelmente, violações...” e “o abuso de direito político

praticado, sem dúvida, pelo incontinente deputado não atenta contra a ordem...” revelam o

grau máximo de certeza do enunciador do discurso citado – Ministro Gama e Silva – e

modalizam sua voz estabelecendo uma coerência entre o estatuto de autoridade dessa citação

e a firmeza do seu tom.

Já, no discurso citante, a profusão das lexicalizações dos operadores saber e crer não

revela a mesma atitude epistêmica observada no discurso citado, pois uma atitude de certeza é

manifestada em “o primeiro deles é o jurídico, evidentemente”, “conclui V.Exa. de forma

límpida e cristalina...” e “porém, minha condição de engenheiro certamente me

absolverá...”, ao passo que uma atitude de incerteza se manifesta em “creio que...”, “as razões

desconheço...”, “creio, Sr. Presidente, creio, Srs. Deputados...”.

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É possível notar aí um deslizamento entre essas duas atitudes que nos permite atribuir

ao enunciador Mário Covas uma atitude epistêmica localizada numa posição intermediária no

contínuo entre a certeza e a incerteza. Isso não significa que ele queira esconder uma ou outra

atitude, já que ele mostra explicitamente as duas, mas sim revela uma amenização do tom

enunciativo, em que a certeza é relativizada pela incerteza.

No epílogo, podemos ver que o operador modal epistêmico se manifesta de forma

explícita em toda essa parte por meio da forma verbal “creio”. Mais uma vez, não se trata de

mostrar alguma atitude de incerteza do enunciador perante seu enunciado, mas sim uma

atitude epistêmica localizada em um ponto mais próximo da certeza, considerando o contínuo

que vai da certeza à incerteza.

O enunciador Mário Covas repete reiteradamente a fórmula “eu creio em [p]”, pois

aquilo que enuncia é construído como objeto de acordo do preferível, assim o enunciador

pode dar de si a imagem de um sujeito que não impõe seus valores. São empregados aí no

epílogo recursos lingüísticos dessemelhantes aos vistos no exórdio, na narratio e na

confirmatio, mas que, no entanto, servem à mesma estratégia discursiva de amenizar o tom

enunciativo.

Em síntese, podemos concluir que o discurso de Mário Covas apresenta uma atitude

epistêmica que flutua entre a certeza e a incerteza, o que vai construindo um tom enunciativo

relativizador, ou seja, que nega o caráter absoluto do que enuncia para afirmar seu caráter

relativo.

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8.2. A heterogeneidade enunciativa

8.2.1. O discurso citado

O pronunciamento de Mário Covas, diferentemente daquele de Márcio Moreira Alves,

apresenta formas do discurso citado em todas as suas partes, embora as concentre na narratio

e na confirmatio. Totalizamos nove ocorrências que passaremos a examinar a partir de agora:

Há alguns anos, Sr. Presidente, as atenções da nação brasileira eram convocadas com o envio à Câmara dos Deputados de um pedido de licença para processar um parlamentar, sob a acusação de tornar público documento considerado secreto. Durante a discussão do pedido, o acusado, em longo discurso, inseriu estas considerações: “Um deputado converteu-se, por decisão do Governo da República, no teste decisivo do funcionamento das instituições democráticas do Brasil” (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.100).

O fragmento textual supracitado nos mostra que essa primeira ocorrência de discurso

citado nesse pronunciamento faz referência a um outro pedido de licença para processar um

parlamentar, cujo nome não é revelado. Todavia, quando Mário Covas se refere a esse

parlamentar como “o acusado”, também está considerando, implicitamente, Márcio Moreira

Alves como acusado, mostrando logo de início que entende esse episódio como um

julgamento. Veremos que, nesse discurso, o enunciador trabalha com a idéia de um

julgamento judicial e a de um julgamento político, em que este é conduzido pelo próprio

Parlamento e possui os seus próprios trâmites, diferentemente dos procedimentos adotados em

um julgamento judicial.

O discurso citado desse parlamentar inominado é integrado positivamente pelo

discurso de Mário Covas como uma voz concordante, corroborando a orientação

argumentativa proposta por seu colega de partido, Márcio Moreira Alves, que acabara de

discursar, e sinalizando também qual será a sua linha de defesa. Já essa citação, do ponto de

vista formal, se manifesta sob a forma do discurso direto, o que gera um efeito de realidade e

dá respaldo à argumentação de Mário Covas.

Passemos à segunda ocorrência de discurso citado, que consiste em um trecho bem

mais extenso do que esse que acabamos de analisar:

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Há uma constante neste problema, e o desenrolar dos acontecimentos o evidencia. Muitos tentam justificar o voto; outros pleiteiam a validade da tese. Creio, entretanto, que em todo o elenco de autoridades, em todo o rol de fontes citadas, um nome foi esquecido. As razões desconheço. Porém, minha condição de engenheiro certamente me absolverá, se, inspirando-me em sua lição, a tomar para guia e orientação. Trata-se do atual ocupante do Ministério da Justiça, o Dr. Luiz Antônio da Gama e Silva. Leio-lhe um parecer a respeito deste problema; e este parecer está exarado num outro processo, em curso nesta Casa, em que solicita a licença para processar o Deputado Hermano Alves.

Eis S.Exa. em seu ofício ao Procurador da Justiça Militar: “Realmente os artigos publicados pelo citado parlamentar configuram,

indubitavelmente, violações dos preceitos expressos nos artigos 14, etc., do Decreto-Lei 314, porque:

a) por sua falsidade, tendenciosidade e deturpação põe em perigo o bom nome, a autoridade e o prestígio do Brasil;

b) constituem atos destinados à guerra revolucionária ou subversiva; c) ofendem a honra e a dignidade do Exmo. Sr. Presidente da República

diretamente ou através de seus Ministros de Estado e auxiliares; d) incitam, publicamente, a subversão da ordem política e social e

animosidade entre as instituições civis e as Forças Armadas”. Mais adiante, conclui S.Exa, de forma límpida e cristalina, a orientar-nos no

atual problema. “No tocante, porém, aos discursos proferidos na tribuna da Câmara dos

Deputados, não se afigura, in casu, exista qualquer delito, diante da indenidade assegurada do Art. 34, caput, da Constituição, e porque o abuso do direito político praticado, sem dúvida, pelo incontinente Deputado não atenta contra a ordem democrática nem visa à prática de corrupção, e somente quando o abuso do direito tende a esses objetivos ou a qualquer deles, se justifica a medida prevista no art. 151 da Lei Maior.”

Creio, Sr. Presidente, creio, Srs. Deputados, que a frente poderá ser contestada. Eu entretanto me auto-absolvo, porque, sendo engenheiro, acho inteiramente válido consultar a figura do Ministro da Justiça neste episódio, desta natureza (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.102-103).

Nesse extenso fragmento textual, o pronunciamento de Mário Covas produz o que

consideramos ser o seu argumento central. Por meio dessa citação, Mário Covas constrói um

fato, no sentido de Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996, p.76), que associam a noção de fato

ao acontecimento, desde que não sejam levantadas dúvidas sobre ele. Vejamos: por meio do

discurso citado de Gama e Silva, Mário Covas cria o fato de que o deputado Márcio Moreira

Alves, em seus pronunciamentos de 2 e de 3 de setembro de 1968, não atenta contra a ordem

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democrática nem visa à corrupção, o que lhe preserva o direito à inviolabilidade, garantida no

artigo 34 da Constituição Federal de 1967, doravante CF/67, e o afasta da suspensão dos

direitos políticos prevista em seu artigo 151.

Tal fato é construído em torno dessa citação em forma de discurso direto que simula a

enunciação do discurso do ministro governista – Gama e Silva – que encaminhou o pedido de

licença para processar Márcio Moreira Alves. Mário Covas evoca, por meio dessa citação, as

vozes do establishment para amparar sua argumentação, o que consiste numa estratégia muito

astuciosa, pois integra positivamente em seu discurso, justamente, a voz daquele que

encaminhou o pedido de licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves. O Ministro

da Justiça, ao encaminhar seu ofício à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal,

justifica tal pedido e, certamente, não isenta o referido deputado; contudo, Mário Covas cita o

pedido de Gama e Silva de forma ardilosa, já que usa as palavras do Ministro para mostrar

que ele disse o que, efetivamente, não quis dizer.

É importante mostrarmos como Mário Covas constrói a imagem desse enunciador

citado – Gama e Silva. O contorno desse discurso citado – que corresponde ao discurso

citante – se caracteriza pelo grande encadeamento de enunciados cuja finalidade é lançar as

apreciações valorativas do enunciador do discurso citante (Mário Covas) sobre o discurso

citado (o parecer do Ministro da Justiça).

Desse processo de preparação para a citação do discurso alheio, podemos destacar,

inicialmente, um dos momentos em que o discurso constrói a imagem do anti-sujeito. No

enunciado “Muitos tentam justificar o voto; outros pleiteiam a validade da tese”, vemos o

emprego do discurso narrado55, ou seja, a narração de uma ação enunciativa, o que não chega

a construir um simulacro do discurso alheio, mas apenas lhe faz menção. Nesse enunciado, o

enunciador está narrando para o seu co-enunciador um discurso alheio, em que as formas

verbais “tentam” e “pleiteiam” indicam a subsistência de uma voz alheia cuja força

ilocucionária está no patamar da pretensão e não no da realização. Tal mecanismo lingüístico

desqualifica a voz daqueles que se mostram favoráveis ao pedido militar, oferecendo ao co-

enunciador a imagem de um anti-sujeito.

55 Para Grilo (2004, p.115), o discurso narrado “se apresenta como o menos mimético e o mais distante das fontes, reduzindo-as a uma descrição e integrando-as ao discurso citante. Do ponto de vista formal, o discurso citado subsiste com a presença de um verbo de elocução e é mencionado sob a forma de um infinitivo ou de um sintagma nominal, o que o diferencia do discurso indireto”.

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Nos enunciados seguintes, o discurso citante de Mário Covas qualifica o discurso

citado por meio dos itens lexicais “lição”, “guia” e “orientação”, da apreciação valorativa

contida em “de forma límpida e cristalina” e das formas verbais “conclui” e “orientar”.

O discurso de Mário Covas atribui ao Ministro da Justiça a imagem do jurista que

possui autoridade máxima sobre o assunto para dizer em seu lugar que “o abuso do direito

político praticado, sem dúvida, pelo incontinente Deputado não atenta contra a ordem

democrática” (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.103). E, de acordo com

Maingueneau (1997, p.100), temos aí uma citação de autoridade, em que “o ‘locutor’ se apaga

diante de um ‘Locutor’ superlativo que garante a validade da enunciação”.

Mais adiante, o discurso de Mário Covas integrará negativamente as vozes daqueles

que incentivam o pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves, por meio destas

duas ocorrências de discurso citado:

Mas, Sr. Presidente, ouço sustentar que não só o argumento jurídico teria razões para este procedimento. Aqui e ali, ouço que, ao analisar o problema sob o ângulo político, diferente será o comportamento de cada um de nós (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.103-104).

Mas, Sr. Presidente, haveria aqueles que sustentariam que seria possível vislumbrar razões de natureza moral ou ética a justificarem a concessão (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.104).

No primeiro fragmento (terceira ocorrência), o enunciador do discurso citante traduz

essas vozes por meio do discurso narrado56, pois vemos aí a narração de uma ação enunciativa

alheia que se deixa perceber pela forma verbal “ouço” (que funciona aí como verbo de

elocução) e pelo conteúdo discursivo pertencente ao discurso de seus adversários. Embora não

seja tão mimético quanto à forma do discurso direto, o discurso narrado indica a subsistência

do discurso alheio no fio discursivo e isso já nos basta para não negligenciar essa forma de

discurso citado.

No segundo fragmento (quarta ocorrência), tais vozes são traduzidas por meio do

discurso indireto, o que permite ao enunciador do discurso citante demarcar fronteira entre

56 Conforme apresentado por Grilo (2004, p.115).

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seu discurso e o discurso do outro e, sobretudo, fazer prevalecer o seu modo de dizer sobre o

do outro para apresentar à sua moda o conteúdo do discurso alheio. A fórmula do discurso

indireto aparece aí bem nitidamente: “haveria aqueles que sustentariam que...”. Novamente,

Mário Covas se vale de uma estratégia para infirmar a voz daqueles que ele considera seus

adversários.

Passemos ao exame da quinta ocorrência de discurso citado:

São insuficientes os exemplos da nossa tradição. Ater-me-ei a apenas dois exemplos, legados por outros povos. É da “Jurisprudência Parlamentar”, de Frederico Mohrhoff – autorização para instaurar processo contra Deputados, página 346:

“Autorização para instaurar processo contra Deputado Dias Laura pelo crime previsto no art. 290 do Código Penal, modificado pelo art. 2 da lei 1317, de 11 de novembro de 1947. (Menosprezo às forças armadas do Estado).”

A Câmara, chamada a decidir, acolheu o parecer da Comissão e não concedeu o pedido de autorização para processar.

Página 359: “Autorização para processar o Deputado D’Amico pelo crime de que trata o

art. 272 do Código Penal (propaganda e apologia subversiva ou antinacional).” A Câmara, chamada a decidir, acolheu o parecer da Comissão e não

concedeu o pedido de autorização para processar (sic). Eis aí dois exemplos legados pelo Parlamento italiano em casos específicos.

As invectivas contra instituições, contra as Forças Armadas do Estado não encontraram, por parte daquele Parlamento, a licença para processar o Deputado (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.105-106).

Nesse fragmento textual, vemos que Mário Covas volta a dialogar com o discurso

jurídico, integrando positivamente ao seu discurso a Jurisprudência parlamentar de Federico

Mohrhoff57 (e não Frederico como fora publicado pelo Diário Oficial da Câmara dos

Deputados). Trata-se aí de mais uma extensa citação sob a forma do discurso direto, que cria

o efeito de realidade, pois dá a impressão de que o discurso citado é fiel à fonte, já que o

enunciador do discurso citante (Mário Covas) parece estar repetindo o que o enunciador do

discurso citado (Federico Mohrhoff) disse.

57 MOHRHOFF, Federico. Giurisprudenza Parlamentare. Dottrina e massimario. Roma, Bardi, 1950.

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Sabendo-se que a jurisprudência concerne ao “conjunto das decisões e interpretações

das leis feitas pelos tribunais superiores, adaptando as normas às situações de fato”58, bem

como que a obra citada é de origem italiana, podemos dizer que tal citação visa, de imediato,

querendo ou não, a expor nossa face colonialista, pois quer mostrar que um país europeu,

portanto avançado, tem uma democracia madura que sabe respeitar o Parlamento e que,

inclusive, já tem seus direitos resguardados em jurisprudência. Se o Brasil não tem isso, logo

é um país atrasado, sobretudo no que tange à sua democracia. Esse é um aspecto.

O outro aspecto deve ser apanhado dentro da seqüência de citações que analisamos.

Lembremos que o discurso de Mário Covas constrói ardilosamente, por meio da citação de

um parecer do Ministro Gama e Silva, seu argumento irrefutável de que Márcio Moreira

Alves não atentou contra a ordem nem praticou corrupção. No entanto, a defesa não se

encerra aí. Essa citação do discurso de Federico Mohrhoff mostra justamente que as

invectivas contra as Forças Armadas não podem conceder a licença para processar o

deputado. Em outras palavras, o discurso de Mário Covas integra positivamente os discursos

citados do Ministro Gama e Silva e do jurista italiano Federico Mohrhoff para corroborar sua

tese de que Márcio Moreira Alves, no uso de suas atribuições parlamentares, não atentou

contra a ordem nem praticou corrupção, ao investir contra as Forças Armadas, logo o

Parlamento não pode conceder a licença para processá-lo.

Examinemos, agora, a sexta ocorrência:

Resta-nos, Sr. Presidente, o argumento dos simplistas: trata-se de uma exigência (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.106).

Podemos notar que, nesse fragmento textual, Mário Covas volta a desqualificar o

discurso daqueles que se mostram favoráveis ao pedido de licença para processar Márcio

Moreira Alves. O discurso citado manifesta-se aí sob a forma de um discurso direto sem

aspas. Tem-se aí a simulação não da enunciação textual de um discurso alheio, mas sim do

conteúdo desse discurso de outrem. O conteúdo do discurso citado “trata-se de uma

exigência” é apreciado como o último dos argumentos tanto na quantidade (“resta-nos”) como

na qualidade (“simplistas”), pois, quando Mário Covas diz “resta-nos”, ele quer dizer que não

58 Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.

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há mais o que argumentar; e, quando ele diz “simplistas”, desqualifica aqueles que, ao

contrário dele, consideram apenas um aspecto de todo esse problema em torno da cassação,

que são, justamente, aqueles que concluem favoravelmente ao pedido de licença. O emprego

do discurso direto cria aí o efeito de realidade, imputando a esse enunciador citado um

conteúdo discursivo sem fonte de citação, mas que se sustenta, pois manifesta a imagem que

se faz do discurso dos que defendem a cassação do mandato parlamentar.

Já na sétima ocorrência de uma forma de discurso citado nesse pronunciamento,

Mário Covas volta a recorrer a uma citação sob a forma do discurso direto, reproduzindo

partes de um documento oficial: um ofício do Ministério do Exército, que solicita

providências quanto aos pronunciamentos de Márcio Moreira Alves. Acompanhemos:

Como prova testemunhal, leio o teor do ofício do Ministério do Exército, solicitando as providências legais.

Diz S.Exa.: “O Deputado Federal Márcio Moreira Alves, em sessão de 2 do corrente,

falando a respeito dos lamentáveis e tristes acontecimentos ocorridos na Universidade de Brasília, no seu legítimo direito de adversário do Governo, formulou, em termos textuais, a seguinte pergunta.”

Mais adiante: “O mesmo Deputado, ainda sob o clima emocional pelos fatos gerados,

antes mesmo que fossem apuradas as causas e os responsáveis, assim se pronunciou:”

Prosseguindo: “Embora os referidos conceitos, de caráter e de responsabilidade pessoal do

Deputado em apreço, no uso da liberdade que lhe é assegurada pelo regime instituído com a revolução de março, não exprimam o pensamento da Câmara mais preservativo do povo brasileiro, na sua dignidade intangível e na respeitabilidade do seu próprio decoro, é de considerar-se a ressonância com que eles ecoam no seio do Exército”.

E finaliza: “A despeito da gravidade evidente das ofensas dirigidas pelo Deputado

Márcio Moreira Alves e do sentimento de repulsa com que elas ainda mais uniram os militares, como integrantes de uma instituição a que tanto já deve a democracia brasileira, o Exército continua empenhado em contê-las dentro da disciplina e da serenidade das suas atitudes, obediente ao Poder Civil e confiante nas providências que V.Exa. julgue devam ser adotadas” (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.107-108).

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Podemos observar nesse fragmento textual que o discurso de Mário Covas integra

positivamente esse discurso citado, traduzindo apenas os enunciados que oferecem categorias

reivindicadas aleatoriamente, desconsiderando a linha de raciocínio do discurso citado. Em

outros termos, Mário Covas reproduz em seu discurso somente as categorias que a ele

interessa ressaltar.

Os quatro enunciados reproduzidos sob a forma do discurso direto são postos em

seqüência por meio das formas “diz S.Exa.”, “mais adiante”, “prosseguindo”, “e finaliza”.

No primeiro enunciado, “O Deputado Federal Márcio Moreira Alves [...] formulou [...]

a seguinte pergunta”, o catafórico “seguinte” fica sem referente interno graças à interrupção do

prosseguimento do texto citado, que deixa a pergunta sem resposta. Isso porque o que interessa

ao discurso citante de Mário Covas é mostrar que o Ministério do Exército reconhece “os

lamentáveis e tristes acontecimentos ocorridos na Universidade de Brasília”, bem como o

“legítimo direito de adversário do Governo” que goza Márcio Moreira Alves.

É possível observar o mesmo comportamento também no segundo enunciado, “o

mesmo Deputado [...] assim se pronunciou”, que também suprime o que supostamente fora

pronunciado por Márcio Moreira Alves, já que importa mostrar que ele estava sob o clima

emocional dos fatos gerados. Já, nos dois últimos enunciados, não há mais supressões

textuais, entretanto mantém-se a estratégia de mostrar que o Ministério do Exército é uma

instituição que também reconhece os valores democráticos. Nessa sétima ocorrência de

discurso citado, o efeito de realidade gerado pelo emprego do discurso direto colaborou não

para construir um raciocínio do tipo ‘x então y’, como na segunda e na quinta ocorrência, mas

sim para valorizar positivamente a imagem pré-discursiva de Márcio Moreira Alves por meio

da voz do próprio Ministério do Exército.

Trata-se aí de mais um ardil empregado por Mário Covas para distorcer um discurso

produzido pelo establishment e integrá-lo positivamente no seu discurso oposicionista, que, na

verdade, vai se construindo como um discurso de conciliação que visa ao consenso.

Tratemos, agora, da oitava ocorrência:

Se preferirem o testemunho idôneo, dir-lhes-ei que ao longo deste episódio em contato não apenas com civis de todas as categorias, como com militares de variadas patentes, tenho ouvido insistente e ansiosamente repetida a afirmação de que não sobrarão outras oportunidades para que o Poder Legislativo manifeste sua independência (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.109).

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Nesse fragmento, podemos notar que Mário Covas, ao mostrar que dialoga com “civis

de todas as categorias” e “militares de variadas patentes”, mostra que dialoga com um amplo

leque de setores da sociedade brasileira, ou seja, que esse enunciador do discurso citado é um

ente amplificado e representativo que opina contrariamente ao pedido de licença para

processar Márcio Moreira Alves.

Por meio desse discurso citado, Mário Covas quer dizer que amplos setores da

sociedade estão preocupados com o Congresso, pois sabem do risco que ele corre de ser

fechado pelo regime militar, como atesta uma reportagem da revista Veja (1968) publicada

em 4 de dezembro de 1968 sob o título “Afinal, quem ameaça o Congresso?”59.

Examinemos, enfim, a nona e última ocorrência:

Da altitude dessa tribuna, da majestade desta Mesa, da altivez deste plenário, as vozes do gênio do Direito e da Deusa da Justiça podem ser ouvidas no seu patético apelo: não permitais que um “delito impossível” possa transformar-se no funeral da Democracia, no aniquilamento de um Poder e no cântico lúgubre das liberdades perdidas (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.110).

Nesse fragmento, vemos que o enunciador Mário Covas recorre ao discurso direto

para invocar todo o princípio moral do Direito e da Justiça, simulando a voz de dois

enunciadores que não possuem uma referência ontológica. O “gênio do Direito” e a “Deusa da

Justiça” são seres antropomorfizados, pois encarnam aí os espíritos que regem e inspiram o

Direito e a Justiça. Essa voz citada possui também um traço mágico e não humano, dando a

impressão de que se trata de uma voz que paira sobre o que é humano.

Portanto, pode-se dizer que esse discurso citado é traduzido positivamente como a voz

daqueles que estão acima dos homens, mas que nesse momento enunciativo se submetem aos

membros do plenário em nome de algo maior, que é a liberdade.

De um modo geral, podemos perceber que o discurso de Mário Covas se vale de um

grande número de citações, mas negocia somente com vozes de dois universos discursivos: o

59 Vide anexo VII.

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jurídico e o político. Vejamos o quadro a seguir que visa a recuperar os dados levantados

durante a análise:

As nove ocorrências de formas do discurso citado no pronunciamento de Mário Covas

nº integração forma enunciador citado

1 positiva discurso direto parlamentar acusado

em outro processo

2 positiva discurso direto Ministro da Justiça

Gama e Silva

3 negativa discurso narrado os que são favoráveis

ao pedido de licença

4 negativa discurso indireto os que são favoráveis

ao pedido de licença

5 positiva discurso direto Jurisprudência parlamentar

de Federico Mohrhoff

6 negativa discurso direto os que são favoráveis

ao pedido de licença

7 positiva discurso direto Ministério do Exército

8 positiva discurso indireto Civis de todas as categorias

e militares de variadas patentes

9 positiva discurso direto gênio do Direito e

Deusa da Justiça

Na negociação com o discurso alheio oriundo do universo político, Mário Covas

mostra com quais setores da sociedade ele se identifica e não se identifica, operando com

integrações reivindicadas (positivas) e recusadas (negativas). Assim, as ocorrências

numeradas por 1, 7 e 8 são integradas positivamente ao pronunciamento de Mário Covas para

sustentar o seu discurso, ao passo que as ocorrências 3, 4 e 6 são integradas negativamente, a

fim de desqualificar a voz de seus adversários políticos. Nessas seis ocorrências, podemos

observar que o diálogo interdiscursivo se manifesta variavelmente sob as formas do discurso

narrado, do discurso direto e do discurso indireto. Podemos dizer que esse uso das formas do

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discurso citado revela uma maneira articulada e desenvolta de dizer, pois não se deixa prender

a uma forma de inscrever o discurso de outrem.

No que toca ao diálogo com o discurso jurídico, as ocorrências 2 e 5 nos mostraram

que o discurso citado se manifesta por meio da citação sob a forma do discurso direto, de

maneira a amenizar o tom do enunciador Mário Covas para elevar o tom dos enunciadores

alheios Gama e Silva e Federico Mohrhoff. Na ocorrência 9, o tom do enunciador também é

amenizado, porque, na verdade, há aí um apelo e esse apelo não é feito pelo “gênio do

Direito” e pela “Deusa da Justiça”, mas sim pelo próprio enunciador.

De um modo geral, o que vale ressaltar é que o emprego das formas do discurso citado

constrói no discurso de Mário Covas um modo de dizer articulado, mostrando que o

enunciador possui habilidades próprias de um orador, pois transmite ardilosamente ao seu co-

enunciador as principais vozes do establishment, transformando-as em vozes aliadas. Mário

Covas complementa essa estratégia de não atacar frontalmente o regime militar, deixando de

indicar as fontes dos discursos que ele desqualifica, ou seja, ele critica um comportamento,

mas não se compromete com ninguém nominalmente.

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8.3. A cenografia

Antes de tratarmos propriamente da cenografia, cercaremos o quadro cênico e as

cenas validadas construídas pelo discurso de Mário Covas.

Assim como no discurso de Márcio Moreira Alves, o quadro cênico aí apresentado

estabelece entre os participantes da enunciação o estatuto pragmático e institucional da

comunicação que é definido pela cena genérica (propiciada pelo pronunciamento parlamentar)

e pela cena englobante (propiciada pelo discurso político), ou seja, o enunciador e o co-

enunciador são aí interpelados como parlamentares, independentemente da captação de papéis

sociais promovida pelas cenas validadas, as quais serão tratadas a partir de agora.

A exemplo do pronunciamento de Márcio Moreira Alves, o de Mário Covas também

trabalha fortemente com a cena validada do tribunal, captando, assim, os papéis sociais a ela

pertencentes. Vejamos os enunciados que permitem tal leitura:

Em sua análise, o coletivo domina o individual, o institucional supera o humano, a impessoalidade há de ser o traço marcante, eis que, hoje, esta Casa está sendo submetida a julgamento. Recolhida ao banco dos réus, aguarda o veredicto que será exarado pelos próprios ocupantes (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.99).

A acusação é o crime de injúria a uma instituição – as Forças Armadas. A

arma, a palavra. O instante: os dias em que atingiu o clímax, a alta tensão emotiva emergente dos episódios relacionados com a invasão da Universidade de Brasília (Ibidem, p.100-101).

Ora, sendo o Legislativo, por definição constitucional, um Poder

independente, juiz, portanto, de seus próprios atos, e dispondo de instrumental necessário ao exercício dessa competência, infere-se uma conclusão iniludível: concedendo a licença, o Poder Legislativo se estará autocondenando, pelo crime de omissão (Ibidem, p.104).

Porque em tudo isso creio, Sr. Presidente, e protegido pelo resguardo de

minhas palavras iniciais, quero declarar minha firme crença de que, hoje, o Poder Legislativo será absolvido (Ibidem, p.110).

Esses enunciados são permeados pelo campo lexical do tribunal, que pode ser

depreendido por meio dos seguintes itens lexicais: “julgamento”, “banco dos réus”,

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“veredicto”, “acusação”, “crime de injúria”, “arma”, “juiz”, “autocondenando” e “absolvido”.

Isso é que nos permite a leitura de uma cena validada que mobiliza a memória de um tribunal

e capta seus papéis sociais, autorizando o enunciador Mário Covas a falar e a agir como o

advogado de defesa do Poder Legislativo e a interpelar o seu co-enunciador (o plenário da

Câmara) como o júri que deverá absolver ou condenar tal Poder.

Entretanto, como já vimos, é preciso ponderar que Mário Covas não reproduz

exatamente o mesmo tribunal construído pela cenografia do discurso de Márcio Moreira

Alves, pois, enquanto este afirma a cena de um julgamento judicial, aquele constrói uma cena

mais contemporizadora que visa a estabelecer que o pedido de licença consiste em um

julgamento, porém um julgamento político que obedece aos trâmites do próprio Congresso.

Tratemos, agora, de correlacionar o quadro cênico e a cena validada que acabamos de

descrever a fim de compreender a construção da cenografia nesse pronunciamento.

A cena englobante e a cena genérica interpelam o deputado Mário Covas (enunciador)

e o presidente da mesa mais o plenário da Câmara (co-enunciador) como parlamentares. Já a

cena validada capta os papéis sociais do tribunal e os atribuem ao enunciador e ao co-

enunciador desse discurso. Assim, o discurso de Mário Covas vai construindo uma cena de

enunciação, em que os papéis suscitados pela cena validada e pela cena genérica se

entrelaçam e criam a cenografia do julgamento do Poder Legislativo.

Por meio dessa cenografia, Mário Covas reforça mais a idéia da criação não de um

tribunal judicial, mas sim de um tribunal político, em que o presidente da mesa é, então,

interpelado como o juiz da sessão deliberativa, isto é, o juiz do processo político, ao passo que

o plenário é interpelado como júri que irá absolver ou condenar o próprio Poder Legislativo,

assim como o enunciador é colocado como o advogado de defesa de Márcio Moreira Alves e,

por extensão, do Poder Legislativo.

Enfim, é no mundo criado por essa cenografia que o advogado de defesa encarnado

pelo enunciador deve construir seu ethos de modo a legitimar a enunciação desse discurso que

se inscreve na formação discursiva denominada MDB.

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8.4. Caracterização do ethos de Mário Covas

Tratemos, agora, de caracterizar o ethos construído no discurso de Mário Covas com

base nas análises que apresentamos até aqui.

A análise da dêixis lingüística, mais especificamente a categoria da pessoa, mostrou

que a projeção das pessoas enunciativas obedece a uma estratégia discursiva que visa a criar

uma identificação entre o enunciador Mário Covas e os membros do plenário da Câmara e a

manter certa distância em relação ao presidente da mesa. De um modo geral, essa estratégia

constrói nesse pronunciamento um tom de proximidade, um tom que permite ao enunciador

falar de perto com o seu co-enunciador.

O exame das modalidades epistêmicas nos mostrou que o deslizamento entre a certeza

e a incerteza constrói um tom relativizador, revelando a tolerância (tendência a admitir, nos

outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou mesmo diametralmente opostas às

nossas60) como traço de caráter do enunciador.

Ao analisarmos o discurso citado, vimos o desenvolvimento de uma estratégia

astuciosa que vai desenhando um modo refinado de dizer que, do ponto de vista oratório,

revela um sujeito argucioso, mas que, do ponto de vista ideológico, revela um sujeito que faz

concessões ao establishment em nome de um consenso.

Quanto à cenografia, vimos que o pronunciamento de Mário Covas produz uma cena

validada e uma cena genérica que se entrelaçam e constroem o que chamamos de cenografia

do julgamento do Poder Legislativo. Essa cenografia limita-se a criar a cena do julgamento

político, em que o presidente da mesa é interpelado como o juiz desse processo político, o

plenário é interpelado como júri e Mário Covas se posiciona como o advogado de defesa.

A fim de legitimar a enunciação de seu discurso, Mário Covas encarna o advogado e

enuncia em um tom que o permite se aproximar do júri para sensibilizá-lo, como o fazem os

grandes defensores. Ele se mostra como um sujeito contemporizador, que procura relativizar

seu ponto de vista em nome do consenso. Ele se vale de ardis para provar a inconsistência do

pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves. Essas são características que

atribuem ao enunciador Mário Covas o que podemos chamar de ethos conciliador. É esse

ethos que o torna fiador de um discurso endereçado a uma frente ampla, de um discurso que

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busca na própria existência do Congresso o motivo para a conciliação entre seus membros, os

quais, ainda que filiados a agremiações distintas, partilham o mesmo princípio que sustenta o

Poder Legislativo: a democracia. Assim, esse pronunciamento não se limita a ser o discurso

da formação discursiva denominada MDB, pois, ao despir-se da roupagem vistosa da

liderança transitória, Mário Covas discursa para todo o Congresso.

Também é importante dizer que a construção discursiva de um mundo em que a

liberdade é questionada, posta sob julgamento, indica a existência de uma classe oprimida e

outra opressora. Nesse mundo, as representações sociais não apresentam um matiz tão

variado. Então, ao mesmo tempo em que, desse discurso emerge um ethos conciliador do

defensor público da liberdade e da democracia, emerge também um anti-ethos brutal daquele

que é avesso à liberdade e à democracia, o anti-ethos tirânico.

Assim, a legitimação recíproca entre a cenografia e sua enunciação passa pela

legitimação dessa qualidade de ethos que o discurso está construindo, isto é, pressupõe-se que

o enunciador, ao construir de si a imagem do defensor público, ajuste o seu modo de dizer a

essa imagem construída, pois não basta ao enunciador apresentar tal imagem, é preciso que

ele fale como tal.

Tratemos agora de outros dois fenômenos ligados ao ethos. Primeiramente, para

entender o processo de incorporação no discurso de Mário Covas, é preciso lembrar que esse

discurso constrói uma identificação irrestrita entre o enunciador e seu co-enunciador, com

vistas a conquistar a maioria do plenário e obter êxito na votação, já que Mário Covas

representa aí a liderança da minoria no Congresso.

Considerando tal estratégia, vemos que Mário Covas oferece ao seu co-enunciador a

incorporação não simplesmente da imagem do defensor público da democracia, mas sim da

imagem do homem que acredita nos valores das tradições democráticas. Assim, o enunciador,

ao se mostrar como um igual perante seus pares e ao defender os valores da democracia,

oferece ao seu co-enunciador, os demais deputados, a experiência de eles se sentirem parte

desse grupo de homens que acreditam na democracia, que se expressam e que compreendem

uma fala conciliadora.

Todavia, se, do ponto de vista lingüístico e estratégico, esse discurso revela um

político habilidoso, ele suscita dúvidas quanto ao posicionamento ideológico desse político,

60 Conforme Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.

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pois ao convocar as vozes do establishment como defensores do Estado de direito, Mário

Covas, além de distorcer o discurso dessa formação discursiva, se aproxima demais dela e

compromete sua identidade discursiva.

O ethos, o anti-ethos e o processo de incorporação não se dão ao acaso, pois remetem

a corpos já dispostos socialmente e modos de ser no espaço social, em que as representações

sócio-culturais valorizam os democráticos e desvalorizam os antidemocráticos, impondo essa

axiologia aos seus sujeitos, que se instauram no discurso como enunciador e co-enunciador.

Podemos concluir que, diferentemente do ethos construído no pronunciamento de

Márcio Moreira Alves, esse ethos conciliador de Mário Covas, ao negociar com o regime,

garante a enunciação de um discurso preocupado com a sobrevivência do Congresso, ao

mesmo tempo em que promove uma abertura no discurso oposicionista da formação

discursiva MDB, pois deixa de ser o discurso da ruptura para ser o discurso do convívio com

o regime militar. Ao menos é o que parece.

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9. ANÁLISE DO ETHOS CONSTRUÍDO NO PRONUNCIAMENTO DE

GERALDO FREIRE (ARENA/MG)

9.1. As projeções da enunciação no enunciado

9.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem

O texto a seguir é uma transcrição da parte inicial do exórdio do pronunciamento de

Geraldo Freire:

Sr. Presidente, Srs. Deputados, o meu propósito nesta tribuna é apenas o de desfazer alguns equívocos. O primeiro deles, é quando se diz que estamos procedendo à degola de um Deputado, a cassação de um de nossos colegas. Não se trata absolutamente disto. O que temos em vista é apenas um pedido de licença dirigido pelo Supremo Tribunal Federal à Câmara dos Deputados. Então quem entender que se trata de degola, necessariamente, há de estabelecer que os juízes do Tribunal Superior Federal são carrascos e não magistrados (Diário da Câmara dos Deputados, 2000, p.111).

É interessante como o exórdio desse texto negligencia a captação da benevolência do

plenário e o anúncio das partes do discurso, pois privilegia a apresentação imediata do

seguinte contra-argumento: o Congresso não está julgando Márcio Moreira Alves, mas sim

votando um pedido de licença para processá-lo. E isso já indica duas características: um

discurso de refutação, por conseguinte um tom refutatório, e um modo de dizer franco e

direto, que desconsidera as etiquetas e o excesso de formalidades.

Quanto à instalação das pessoas no enunciado, o “eu” e o “tu” da enunciação são

projetados distintivamente apenas no primeiro enunciado, em que o “eu” é projetado pelo

pronome “meu”, enquanto o “tu” o é por meio da forma de tratamento consagrada pelo ritual

parlamentar: “Sr. Presidente, Srs. Deputados”.

No entanto, o que observamos durante a narratio e a confirmatio é o uso recorrente

do “nós” para projetar as pessoas da enunciação. As marcas lingüísticas expressas no texto –

tais como as formas verbais “estamos”, “temos”, “sabermos”, “vamos”, “recebemos”,

“votássemos” e “considerássemos” e os pronomes “nossos”, “nós” e “nos” – referem-se ao

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“nós” inclusivo e não ao plural majestático, de modéstia ou de autor, pois implica a

amplificação da primeira pessoa por meio da inclusão do “tu”.

Esse tipo de projeção enunciativa propõe ao co-enunciador um contrato que estabelece

uma identificação imediata entre enunciador e co-enunciador, delineando um mesmo corpo

para ambos. Nesse discurso de Geraldo Freire, os sujeitos da enunciação comungam do

mesmo corpo social daqueles que se identificam com os valores “patrióticos”. Cria-se a

imagem do defensor da Pátria, do homem patriótico que “todo brasileiro deve ser”.

Ainda na narratio e na confirmatio, vemos que o discurso de Geraldo Freire também

se concentra na construção da prova jurídica, pois visa a refutar o argumento central de Mário

Covas, que fora construído como algo irrefutável. Todavia, como Geraldo Freire não tem

(pois não apresenta) um argumento tão incontestável como o de Mário Covas, ele recorre a

onze representações do discurso citado que constituem uma estratégia que compreende cinco

etapas, a saber: (a) desqualificar o adversário; (b) configurar o parágrafo único do artigo 151

da CF/67 como uma exceção; (c) justificar a exceção; (d) respaldar sua justificativa; (e)

retomar e reler o parágrafo único do artigo 151.

Quanto às projeções da enunciação, há que se observar novamente a relação entre

discurso citante e discurso citado. As apreciações valorativas contidas no discurso citante são

emitidas por um “eu” projetado por meio da debreagem enunciativa, o que ressalta o caráter

subjetivo dessas apreciações. Esse número exagerado de citações, que são entrecortadas pelos

comentários do enunciador, cria a imagem de um sujeito glosador, um indivíduo capaz de

dialogar com a Bíblia, a Constituição e tantos outros textos religiosos e políticos. No entanto,

seu discurso não consegue mostrar astúcia, mas sim cominação, o que se desvela em seu

epílogo, como se vê no seguinte fragmento:

Louvo aqueles que pensam contra mim, louvo esta estreita fidelidade partidária do MDB. Vou mais, Sr. Presidente, não ouso censurar a ninguém pelo fato de discordar de mim, esteja em que legenda for (Diário da Câmara dos Deputados, 2000, p.120-121).

Nesse trecho, a unidade partidária do MDB está sendo julgada dentro de um sistema

de valores morais como um valor positivo pelo próprio líder da ARENA. No entanto, Geraldo

Freire, ao dizer que louva seu adversário, quer dizer que seus aliados devem seguir o mesmo

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exemplo de unidade do MDB, o que garantiria a vitória governista na votação. O que Geraldo

Freire faz aí é coagir os membros da ARENA.

Finalmente, é preciso considerar que o discurso de Geraldo Freire parece construir no

enunciado o corpo de um homem comportado, “desabusado”61, defensor da moral e da

ordem, já que ele se diz “líder de um grupo de homens desabusados e dignos, coerente e

puros, bravos e patrióticos...”, todavia são as suas estratégias, desenvolvidas na enunciação,

que constroem um modo de dizer desprovido de refinamento e, dessa maneira, o tom altivo

declina para o impositivo, o corpo vigoroso do herói para o corpo espesso do censor, o caráter

expansivo para o caráter castrador.

Esses traços mostram também como a imagem do enunciador é construção da

enunciação, pois notamos aí que o discurso constrói não um ethos “desabusado” como parece

pretender o enunciado, mas sim um ethos embrutecido. Com efeito, esses são alguns fatores

que comprometeram a eficácia do discurso arenista naquela sessão deliberativa, já que o

MDB não só venceu a votação como manteve sua imagem de paladino da democracia.

9.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização

O pronunciamento de Geraldo Freire é um discurso de refutação; dessa maneira, sua

narratio e sua confirmatio consistem na contra-argumentação de que não há julgamento nem

ameaça à instituição, mas sim uma votação para processar um deputado.

A forte presença das marcas da enunciação no enunciado e a constante lexicalização

do operador saber constituem um recurso lingüístico que caracteriza essa parte do texto.

Logo, o efeito de proximidade subjetiva e a atitude de certeza, daí decorrentes, imprimem na

voz do enunciador um tom exclusivamente assertivo.

O operador saber se manifesta por meio de lexicalizações como as apresentadas nos

enunciados “está claro a não mais poder...”, “evidentemente que o fato não constitui

crime...”, “fique esclarecido no juízo de cada qual...”, bem como se manifesta implicitamente

nos enunciados “o meu propósito nesta tribuna é o de desfazer alguns equívocos”, “o que

temos em vista é que fique esclarecido” e “o nosso voto é a respeito de sabermos...”. Esses

61 Embora “desabusado” corresponda ao que é abusado, de caráter atrevido, no discurso de Geraldo Freire significa o contrário de abusado.

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enunciados permitem ao enunciador construir sua ordem sobre um estado de coisas, além de

fazer pressupor um estado de desordem anterior, implicitamente atribuído ao seu adversário,

construindo a imagem de seu anti-sujeito, o anti-ethos.

Como dissemos, Geraldo Freire, para refutar Mário Covas, também privilegia a

construção da prova jurídica e revela aí o grau máximo de certeza como podemos observar

nos enunciados “evidentemente, está se tratando...”, “o parágrafo único do art.151 declara

expressamente que...”, “devemos acrescentar, por certo, outros nomes”, “está claro demais

que...”, dos quais destacamos as lexicalizações do operador saber.

Essa atitude epistêmica revela um tom assertivo que também soa prescritivo devido à

grande incidência das marcas dos operadores deônticos (do permitido e do proibido) como os

destacados em “a lei não pode ter palavras inúteis”, “não podemos presumir a inutilidade da

lei”, “temos de olhar à distância”, “ele não pode chamar para si o direito de ofender a própria

Pátria”, “da tribuna em que [ele] deveria fazer pequenas comunicações”, “não podemos

elevar as prerrogativas do Deputado...”.

Podemos dizer que a recorrência a esses operadores revela a atitude de um enunciador

que quer impor um determinado comportamento. Dessa forma, a prescrição e a interdição

mais a certeza imprimem ao discurso a firmeza de um tom que sustenta a voz de um

enunciador que sabe o que deve e não deve ser feito.

No epílogo, o que sobressai é a repetição do operador axiológico destacado em “Sr.

Presidente, eu louvo não apenas aqueles que me acompanharam, louvo a unidade monolítica

demonstrada pelo MDB” e “Louvo aqueles que pensam contra mim, louvo esta estreita

fidelidade partidária do MDB”, pois a unidade partidária do MDB está sendo julgada dentro

de um sistema de valores morais como um valor positivo pelo próprio líder da ARENA. No

entanto, Geraldo Freire não só louva a unidade do adversário, como também pressiona seus

aliados a seguirem o mesmo exemplo de unidade, já que a maioria governista garante a vitória

na votação.

A pressão e a coação impostas ao seu co-enunciador são desveladas por meio de

enunciados como “a hora é decisiva”, “há pressões, sim”, “existe a pressão autêntica”, em que

o tempo e o modo das formas verbais “há”, “é” e “existe” inspiram a atitude de certeza do

enunciador, implicitando o operador epistêmico saber, que identifica a assertividade de todo o

tom desse discurso de Geraldo Freire.

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9.2. A heterogeneidade enunciativa

9.2.1. O discurso citado

Como vimos, o pronunciamento de Geraldo Freire, o último deputado a discursar

naquela sessão, é essencialmente um discurso de refutação aos do MDB. Assim, o líder

governista argumenta que Márcio Moreira Alves deve sim ser processado com base no artigo

151 da CF/67, pois abusa do poder político, atentando contra a ordem democrática, em seus

pronunciamentos de 2 e 3 de setembro de 1968.

Geraldo Freire constrói esse argumento com uma forte recorrência às formas do

discurso citado, o que indica a intensa presença de outras vozes em seu discurso. No entanto,

o que se reconhece como a voz do enunciador também aparece fortemente no contorno do

discurso citado, o que permite projetar suas apreciações valorativas e dirigir bem de perto o

fazer interpretativo de seu co-enunciador.

As onze representações do discurso citado constituem uma estratégia que compreende

cinco etapas, a saber: (a) desqualificar o adversário; (b) configurar o parágrafo único do artigo

151 da CF/67 como uma exceção; (c) justificar a exceção; (d) respaldar sua justificativa; (e)

retomar e reler o parágrafo único do artigo 151. Vejamos.

No enunciado “Falou-se a não mais poder e o fizeram dezenas de ilustres deputados a

respeito do Art.34 da Constituição do Brasil [...]. Então, dir-se-á que não atinge”, Geraldo

Freire desqualifica a voz de seus adversários por meio discurso narrado, em que os verbos de

elocução “Falou” e “dir-(se)-á” indiciam a subsistência de um discurso alheio que é traduzido

como algo de pouca importância, pois “Falou” é empregado aí como fala de conteúdo

esvaziado e “dir-se-á” aparece no futuro e com sujeito indeterminado.

Em seguida, no enunciado “Não podemos presumir inutilidade da lei, se o parágrafo

único do Art.151 declara expressamente que em se tratando de titulares de cargo eletivo

federal, o processo deve ser precedido de licença da respectiva Câmara”, a voz do outro – da

lei – é agora representada de uma maneira um pouco mais mimetizada, pois é integrada à

situação de enunciação do enunciador por meio do discurso indireto62. Trata-se aí de uma

62 Lembrando que, dentre as várias considerações que faz, Grilo também coloca que “o discurso indireto é um pouco mais mimético que o narrado e em princípio capaz de exaustividade” (2004, p.115).

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integração reivindicada63, porque o verbo de elocução “declara” denota posição oficial e o

advérbio “expressamente” – derivado do adjetivo “expresso” – atribui ao ato de declarar a

qualidade de um ato realizado com palavras inequívocas.

Para validar a interpretação do parágrafo único do artigo 151 como uma exceção ao

princípio da inviolabilidade, Geraldo Freire cita três discursos de outros campos de atividade

que não o da política.

No primeiro momento, simula a enunciação bíblica por meio do enunciado:

Digamos, para evocar a mais sábia de todas as leis, quando no 5º Mandamento, Deus

disse a Moisés: ‘Não matarás’, o legislador bíblico colocou um ponto final (Diário Oficial da

Câmara dos Deputados, 2000, p.115).

O enunciador simula aí a voz de Deus, que é apreciada positivamente como “a mais

sábia de todas as leis”, para estabelecê-la como a regra.

No segundo momento, Geraldo Freire constrói a exceção dessa regra com os seguintes

enunciados:

Vire-se a página e, logo adiante, nota-se a pena de Talião, olho por olho, dente por dente. Aquele que matar será morto (Ibidem, p.116).

E, possivelmente o homem mais genial da humanidade até hoje, São Tomás

de Aquino, chegou a dizer que matar em defesa própria é um direito, porém matar em defesa de terceiro é um dever (Ibidem, p.116).

Nota-se aí um discurso citado menos mimetizado e integrado à situação de enunciação

do discurso citante que traduz esses dois discursos, distantes no tempo e no espaço, como

polêmicos em relação ao também distante discurso bíblico. Está feita a analogia, pois, se há

exceção no quinto mandamento, também há exceção no princípio da inviolabilidade, que, para

Geraldo Freire, está no parágrafo único do artigo 151.

63 Apenas para recordar, o emprego do termo se inspira no que diz Maingueneau (1997: 122) sobre a oposição entre as categorias semânticas reivindicadas (ou “positivas”) e as recusadas (ou “negativas”),

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Parece que tais justificativas não bastam. Geraldo Freire busca, então, respaldá-las por

meio de duas citações de autoridade, cujas vozes pertencem ao Professor Juan Antonio

Gonzales Calderon, de Buenos Aires, e ao Relator Martins Rodrigues.

No entanto, sua maneira de citar é distinta da de Mário Covas, pois não diminui o tom

de sua enunciação ao se apresentar como um sujeito que está no nível de comentar a citação

de autoridade. Por exemplo, no enunciado “‘A livre manifestação de suas idéias’ – do

Deputado ou do Senador – ‘não exime o representante de responsabilidade quando [...]’”, é

gritante a ênfase que o enunciador quer dar sobre o responsável pela ação, já que a parentética

“– do Deputado ou do Senador –” faz alusão ao deputado Márcio Moreira Alves.

Ao final, Geraldo Freire retoma o diálogo com o discurso legislativo, traduzindo-o por

meio do discurso indireto. Os fragmentos a seguir pertencem ao artigo 151 da CF/67 e ao

discurso de Geraldo Freire, respectivamente:

Art 151 – Aquele que abusar dos direitos individuais previstos nos §§ 8º, 23. 27 e 28 do artigo anterior e dos direitos políticos, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção, incorrerá na suspensão destes últimos direitos [...] (BRASIL. Constituição (1967)).

Mas o Art.151 diz que todo aquele – note-se bem – seja Deputado,

trabalhador rural, operário de fábrica, seja homem formado ou inculto – porque nesta Pátria não há privilégios – todo aquele que abusar dos direitos políticos, atentando contra a ordem democrática ou praticando corrupção, fica sujeito à perda desses direitos, à suspensão desses direitos [...] (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.119).

No discurso citado, o quantificador “todo” generaliza o sujeito que abusa do poder; já,

no discurso citante, o primeiro item do sintagma “seja Deputado, trabalhador rural, operário

de fábrica” especifica esse sujeito para fazer alusão ao deputado Márcio Moreira Alves.

Também é diferente o sentido entre “para atentar contra a ordem democrática ou

praticar a corrupção” (CF/67) e “atentando contra a ordem democrática ou praticando

corrupção” (Geraldo Freire).

relacionada ao imbricado processo de tradução do discurso do Outro e de construção da identidade discursiva.

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No enunciado da CF/67, os direitos individuais e políticos são suspensos somente se o

abuso desses poderes tiver a finalidade de atentar contra a ordem democrática ou praticar a

corrupção, enquanto que, no enunciado de Geraldo Freire, essas finalidades são traduzidas

como ações subjacentes ao abuso de poder. Dessa forma, simulando a voz da lei, Geraldo

Freire conclui a construção desse seu argumento.

O discurso de Geraldo Freire desenvolve uma estratégia discursiva assentada em um

grande número de citações, porque visa relativizar o argumento de Mário Covas a fim de

mostrar que para toda regra há uma exceção e também porque não dispõe de um argumento

tão incontestável como o de Mário Covas.

Essa estratégia se associa a um modo de dizer que acompanha bem de perto o fazer

interpretativo do co-enunciador para construir a imagem de um enunciador que impõe

brutalmente seu modo de entender um estado de coisas, revelando, assim, a arrogância como

traço de caráter desse enunciador.

9.3. A cenografia

Igualmente aos discursos de Márcio Moreira Alves e de Mário Covas, o quadro cênico

apresentado no pronunciamento de Geraldo Freire interpela o enunciador e o co-enunciador

como parlamentares, captando os papéis sociais dessa atividade humana.

No entanto, esse discurso se diferencia dos emedebistas no que diz respeito às cenas

validadas, pois, além de captar uma cena da ordem democrática, Geraldo Freire reafirma a

cena da sessão deliberativa, reiterando, assim, uma cenografia da reiteração parlamentar.

O enunciado a seguir ilustra como a cenografia construída pelo discurso de Geraldo

Freire visa não apenas à reafirmação de uma cena estritamente política, mas também à

denegação da cenografia produzida no discurso de seu adversário, Márcio Moreira Alves:

Sr. Presidente, Srs. Deputados, o meu propósito nesta tribuna é o de desfazer alguns equívocos. O primeiro deles, é quando se diz que estamos procedendo à degola de um Deputado. Não se trata absolutamente disto. Então quem entender que se trata de degola, necessariamente, há de estabelecer que os juízes do Tribunal Superior Federal são carrascos e não magistrados (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.111).

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A construção de uma cenografia totalmente alinhada a um modelo preestabelecido

pelo gênero pronunciamento parlamentar cria, nesse discurso, o efeito de sentido da ordem, o

que converge para (a) a discursivização da manutenção do establishment tanto no dito quanto

no modo de dizer; (b) a neutralização do discurso adversário; (c) a legitimação e inscrição de

seu discurso numa formação discursiva situacionista.

A cena validada da ordem democrática pode ser percebida por meio de enunciados que

apresentam o que chamamos de o campo lexical da “ordem”. Vejamos:

Sr. Presidente, Srs. Deputados, o meu propósito nesta tribuna é o de desfazer alguns equívocos (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.111).

É preciso que se restabeleça, Sr. Presidente, com toda tranqüilidade, a

verdade dos acontecimentos e dos comentários (Ibidem, p.114-115). Vou mais, Sr. Presidente, não ouso censurar a ninguém pelo fato de

discordar de mim, esteja em que legenda for (Ibidem, p.120-121). [...] me fez líder de um grupo de homens desabusados e dignos, coerentes e

puros, bravos e patrióticos [...] para sustentar esta causa que é patriótica e política (Ibidem, p.121).

Geraldo Freire se mostra como um sujeito que desfaz equívocos, que restabelece a

verdade dos fatos, que não ousa, logo é contido, que é líder de um grupo de homens

desabusados e patrióticos. Dessa maneira, Geraldo Freire não só constrói um mundo que

valoriza a ordem democrática e os valores da Pátria, mas como reconstrói discursivamente o

mundo ideal dos setores da sociedade brasileira que apoiaram o Golpe de 64. Então, o que

está sendo captado aí por essa cena validada da ordem democrática são os papéis sociais

valorizados positivamente por essas determinadas classes sociais, que Geraldo Freire

defendendo.

Dessa maneira, a cenografia da reiteração parlamentar e essa cena validada da ordem

constroem o mundo em que o enunciador deve construir seu ethos.

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9.4. Caracterização do ethos de Geraldo Freire

A análise da dêixis lingüística, mais especificamente a categoria da pessoa, mostrou

que a projeção das pessoas enunciativas obedece a uma estratégia discursiva que visa a criar

uma identificação entre o enunciador Geraldo Freire e os membros do plenário da Câmara. No

entanto, vimos que se trata de uma identificação que une enunciador e co-enunciador em um

mesmo corpo social, no corpo daqueles que se identificam com os valores “patrióticos”.

Nesse discurso, a estratégia também é a de construir um tom de proximidade que permite ao

enunciador falar de perto com o seu co-enunciador.

O exame das modalidades epistêmicas nos apontou que o enunciador manteve

perante seu enunciado uma atitude epistêmica de certeza constante, o que nos levou a

atribuir ao seu tom enunciativo um traço de assertividade.

Quanto ao discurso citado, vimos o desenvolvimento de uma estratégia associada a um

modo de dizer que acompanha bem de perto o fazer interpretativo de seu co-enunciador para

construir a imagem de um enunciador que impõe seu modo de entender um estado de coisas,

revelando, assim, a arrogância como traço de caráter desse enunciador.

No que toca à cenografia, vimos que Geraldo Freire constrói uma cena de enunciação

bem conformada à cena genérica e, ainda, é sustentada por uma cena validada da ordem. Essa

cenografia visa a rechaçar as cenografias de julgamento criadas por Márcio Moreira Alves e

Mário Covas, para estabelecer a ordem: não há julgamento, há deliberação política.

Assim, para legitimar a enunciação de seu discurso, Geraldo Freire encarna o político

patriótico que professa seus valores como se fossem verdades absolutas, ao enunciar em um tom

assertivo. Esse político patriótico não só se aproxima de seus ouvintes como já os considera

parte desse corpo de homens “desabusados” e patrióticos, que lutam contra a ameaça comunista

e o caos em nome da Pátria e da ordem democrática. Geraldo Freire, ao se deter na refutação do

discurso emedebista, se apresenta como um sujeito arrogante, pois exibe uma superioridade

moral, assumindo para si uma atitude prepotente em relação aos seus adversários.

Eis aí características que conferem ao enunciador Geraldo Freire o que podemos

chamar de ethos ordeiro. Esse ethos é que torna Geraldo Freire fiador de um discurso

preocupado com a ordem democrática, a disciplina dos Poderes, o bom comportamento dos

parlamentares, enfim, um discurso voltado à manutenção do próprio establishment, que não

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hesita em coagir ou excluir aqueles que se opõem ao regime ditatorial. Esse ethos ordeiro

legitima a enunciação desse discurso que emerge não só da formação discursiva denominada

ARENA, mas, sobretudo, daquelas formações discursivas que engendraram, apoiaram ou

consentiram o Golpe de 64.

Da construção desse ethos ordeiro, emerge também o que chamamos de um anti-ethos

abusado, como podemos ver em enunciados do tipo:

[...] o que há é um atentado contra a ordem democrática do Brasil, no qual o agente chega a aconselhar o nosso povo que boicote a nossa independência (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.114).

Toda vez, porém, que ele transborda, que ele foge às regras éticas, cívicas e

patrióticas do seu próprio procedimento (Ibidem, p.116). [...] a imunidade parlamentar deve ser entendida como ligada ao exercício

normal do mandato e não ao exercício anormal ou abusivo (Ibidem, p.119). [...] todo aquele que abusar dos direitos políticos, atentando contra a ordem

democrática (Ibidem, p.119).

Trata-se aí de uma estratégia em que o enunciador desqualifica e marginaliza seu anti-

ethos, bem como atribui valores positivos ao seu ethos, para captar o imaginário do co-

enunciador e fazê-lo membro de seu grupo ordeiro, conquistando sua adesão. Além disso,

Geraldo Freire legitima a enunciação de seu discurso situacionista, construindo, nesse mundo

discursivizado pela cenografia da reiteração parlamentar, seu ethos e seu anti-ethos com base

na oposição entre ordem e caos, valorizando positivamente o jeito ordeiro e comportado de

ser no espaço social.

Podemos concluir, portanto, que a construção de uma cenografia conformada à cena

genérica de um discurso político não significa só a produção de um discurso limitado, mas

censurador, pois o discurso de Geraldo Freire não inscreve apenas um sujeito conformado às

regras que lhe são impostas, mas sim um enunciador que utiliza todo esse conjunto de

coerções para construir uma imagem valorizada de si, um ethos ordeiro, enquanto marginaliza

a imagem do Outro com um anti-ethos abusado, passando-as ao seu co-enunciador como

modelos a seguir e a rechaçar, respectivamente.

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CONCLUSÕES FINAIS

Quem quere passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Fernando Pessoa

Finalmente, eis o momento de construirmos nossa asserção de chegada, de tecermos

nossas considerações finais. Como todo texto argumentativo visa a orientar o co-enunciador a

determinadas conclusões, pretendemos, nesse momento final, levar nosso leitor a recuperar

conosco os pontos mais relevantes deste trabalho.

No capítulo I, dedicado ao estudo teórico do ethos, nossa primeira observação sobre a

noção de ethos reside no problema da tradução francesa e portuguesa do termo ethos pelo

termo caráter, o que leva, segundo Plebe (1978) e Eggs (1995), a uma visão estreita dessa

noção retórica, já que operar com o ethos não é só pensar em sua dimensão moral, mas

também social. Nossa segunda observação de partida foi firmar com Barthes (1978), Ducrot

(1987), Declercq (1992), Fiorin (2004) e Maingueneau (2005), em concordância com

Aristóteles (1998), que o ethos é, essencialmente, uma construção do discurso, mas não algo

dado a priori.

A partir daí, passamos a comentar como Maingueneau (1997) integra e adapta o ethos

retórico no quadro teórico da Análise do Discurso (AD). Importa ressaltar que para AD

mesmo os textos escritos são dotados de uma voz, de um tom, que está associado a um caráter

e a uma corporalidade, o que vai ao encontro das advertências anotadas por Plebe (1978) e

Eggs (2005). Além disso, é preciso sublinhar que o ethos deve ser compatível com o mundo

que é construído no discurso por meio da cenografia. Vimos também que Maingueneau (2005,

p.72) fala da noção de incorporação para dar conta da relação entre o ethos e o co-enunciador.

Depois de estabelecer as questões básicas que cercam a noções de ethos, discutimos

algumas noções mais complicas. Colocamos nosso ponto de vista sobre os problemas aí

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suscitados, partindo sempre do pressuposto teórico de que o ethos está associado à imagem do

enunciador, o que nos levou a fazer algumas críticas às noções que, impropriamente, recebem

o rótulo de ethos. Apenas para recordar, tratamos da questão da questão da imagem prévia do

enunciador (chamada de ethos prévio), da eficácia do ethos enquanto efeito de sentido, do

ethos institucional.

Para concluir o primeiro capítulo, explanamos sobre algumas categorias de análise do

ethos, tais como a dêixis lingüística, as modalidades epistêmicas, o discurso citado, os objetos

de acordo com o auditório, a cenografia, etc.

No segundo capítulo, tratamos do gênero pronunciamento parlamentar, discorrendo

sobre a noção de gênero do discurso e, depois, sobre a origem do gênero pronunciamento

parlamentar, recuperando a própria origem da política, invenção dos gregos e dos romanos,

para, enfim, tentar traçar algumas características contemporâneas do gênero pronunciamento

parlamentar. Na seção 5, recobramos algumas questões históricas, cercando a conjuntura

política internacional e nacional que envolveu a sessão deliberativa de 12 de dezembro de

1968. Além da relevância de contextualizar os discursos sob análise, julgamos importante

sempre nos lembrarmos desses fatos históricos para que eles não se percam na memória. Na

seção 6, pudemos apresentar a transcrição que fizemos dos pronunciamentos, cujos fac-

símiles estão juntados em anexo, já que a leitura dos originais está parcialmente prejudicada.

Finalmente, no terceiro capítulo, pudemos aplicar, não sabemos se a contento, as

categorias de análise apresentadas no primeiro capítulo e descrever os ethé produzidos pelos

três deputados que protagonizaram a sessão parlamentar que antecedeu o AI-5.

Dessa forma, vimos que Márcio Moreira Alves constrói um ethos combativo, que é

condizente com a cenografia do julgamento (do paladino) da democracia e legitima a

enunciação de um discurso oposicionista e de ruptura com o establishment. Márcio Moreira

Alves oferece ao seu co-enunciador a incorporação desse ethos combativo e leva os membros

do plenário a experimentem fazer parte de um corpo de heróis que lutam contra tiranos em

nome dos valores democráticos do plenário, de modo que eles não se acovardem e não

aceitem as imposições do regime militar, sendo coniventes com a república forjada pelo

Golpe de 64.

Quanto ao discurso de Mário Covas, pudemos mostrar que esse enunciador constrói

uma cenografia do julgamento do Poder Legislativo, em que ele se coloca como o advogado

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de defesa e instala o plenário da Câmara como o júri que irá se auto-absolver ou se

autocondenar. Dessa cenografia, emerge um ethos conciliador que garante a enunciação de

um discurso dirigido a uma frente ampla, que está preocupada com a própria sobrevivência do

Congresso. Ao lado desse ethos, emerge um anti-ethos brutal daquele que é avesso à

liberdade e à democracia, o anti-ethos tirânico.

Já o discurso de Geraldo Freire, ao construir uma cenografia conformada à cena

genérica e sustentada pela cena validada da ordem democrática, mostra que a ordem orienta a

construção de seu mundo, do qual emerge um ethos ordeiro que garante a enunciação de seu

discurso alinhado ao establishment. Geraldo Freire oferece ao seu enunciador a incorporação

de um ethos que valoriza positivamente a ordem democrática e a Pátria e valoriza

negativamente o caos e a ameaça comunista, que é encarnada pelo anti-ethos abusado.

Nessa sessão deliberativa, em que o plenário negou ao regime militar o pedido de

licença para processar Márcio Moreira Alves, parece-nos que o Congresso deu a resposta que

os setores progressistas da sociedade brasileira esperavam e que o regime militar aguardava, a

fim de usar como pretexto para promulgar o AI-5 e concluir, definitivamente, o Golpe de 64.

Nesse episódio, Márcio Moreira Alves se mostrou alinhado às tradições democráticas

e não temeu as conseqüências. A tentativa de conciliação engendrada por Mário Covas serviu,

talvez, para conquistar a maioria do plenário, no entanto deixa suspeitas quanto às concessões

políticas as quais ele se mostrou afeito. Ao contrário de outros nomes da ARENA, como

Djalma Marinho, Geraldo Freire cumpriu fielmente o seu papel de liderança de um partido

que estava a serviço da ditadura militar, tentando imputar a Márcio Moreira Alves a

responsabilidade de um “delito impossível”.

Enfim, pudemos perceber que essa polêmica em torno do caso “Márcio Moreira

Alves” apresenta no dito a manifestação de uma disputa em torno da cassação de um deputado

que supostamente teria ofendido as Forças Armadas, mas esconde no dizer a disputa pela

hegemonia discursiva em torno da idéia de democracia, isto é, quem vai dizer e como vai

dizer para a população qual democracia é que vale.

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