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ANDERSON FERNANDO RODRIGUES MENDES A CONCEPÇÃO DE EMMANUEL LEVINAS SOBRE A MORTE: A crítica ao ser-para-morte da filosofia heideggeriana RECIFE/2015 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO - UNICAP PRÓ-REITORIA ACADÊMICA - PRAC COORDENAÇÃO DE PESQUISA MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

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ANDERSON FERNANDO RODRIGUES MENDES

A CONCEPÇÃO DE EMMANUEL LEVINAS SOBRE A

MORTE: A crítica ao ser-para-morte da filosofia heideggeriana

RECIFE/2015

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO - UNICAP PRÓ-REITORIA ACADÊMICA - PRAC

COORDENAÇÃO DE PESQUISA MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

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ANDERSON FERNANDO RODRIGUES MENDES

A CONCEPÇÃO DE EMMANUEL LEVINAS SOBRE A MORTE:

A crítica ao ser-para-morte da filosofia heideggeriana

Dissertação apresentada à Universidade Católica

de Pernambuco como parte de requisito para

obtenção do título de Mestre em Ciências da

Religião.

Linha de Pesquisa: Tradição e Experiências

Religiosas, Cultura e Sociedade.

Orientador: Prof. Dr. João Luiz Correia Júnior.

RECIFE/2015

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M538c Mendes, Anderson Fernando Rodrigues

A concepção de Emmanuel Levinas sobre a morte : a crítica

ao ser-para-morte da filosofia heideggeriana / Anderson Fernando

Rodrigues Mendes ; orientador João Luiz Correia Júnior, 2015.

94 f.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Católica de Pernambuco.

Pró-reitoria Acadêmica. Coordenação Geral de Pós-graduação. Mestrado

em Ciências da Religião, 2015.

1. Levinas, Emmanuel, 1905-1995. 2. Heidegger, Martin, 1889-1976.

3. Morte. 4. Medo. I.Título.

CDU 1:2

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ANDERSON FERNANDO RODRIGUES MENDES

A CONCEPÇÃO DE EMMANUEL LEVINAS SOBRE A MORTE:

A crítica ao ser-para-morte da filosofia heideggeriana

Dissertação aprovada como parte de requisito para obtenção do título de

Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco, por

uma comissão examinadora formada pelos seguintes professores:

____________________________________________________________

PROF. DR. JOÃO LUIZ CORREIA JUNIOR (ORIENTADOR)

____________________________________________________________

PROF. DR. JOSÉ TADEU BATISTA DE SOUZA (UNICAP)

____________________________________________________________

PROF. DR. INÁCIO REINALDO STRIEDER (UFPE)

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RECIFE/2015

DEDICATÓRIA

Aos meus pais que, nas horas de

dificuldade financeira, me socorreram e me

apoiaram quando tive que escolher entre trabalhar

e continuar em foco os estudos no programa de

Mestrado.

A minha mãe, Rosângela Rodrigues

Mendes, que, por muitas vezes, compartilhou de

minhas dificuldades diárias durante a dedicação

aos estudos nesses últimos dois anos,

incentivando-me, escutando-me e sustentando-me,

mesmo com bastante dificuldade financeira, não

me deixou esmorecer.

A minha avó, Olga Rodrigues Mendes,

que não está presente em nosso meio já há dez

anos e que me faz muita falta, pois é a ela a quem

devo tudo o que sou hoje.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, professor

João Luiz Correia Junior, que, junto

comigo nesse período, dedicou tempo

e não mediu esforços para contribuir

com a projeção, elaboração e

conclusão desse trabalho, que é para

mim, a grande vitória de minha vida.

A todos que direta ou indiretamente

contribuíram para que esse período fosse

instigante e enriquecedor tanto para a

minha vida pessoal quanto para a vida

acadêmica, em especial para Alexsandra

Prado, minha companheira de estudos

neste Mestrado.

A Dany Forcione e Mariana Barros,

que dedicaram seu pouco tempo livre para

auxiliar-me com as correções textuais

deste trabalho, bem como a releitura às

véspera da entrega do mesmo.

Em especial para o professor José

Tadeu que desde a época de PIBIC, não

viu e nem enxerga dificuldades em me

ajudar, seja academicamente seja

humanamente. O senhor sempre será um

dos grandes responsáveis pelas minhas

conquistas acadêmicas. Desejo

profundamente que Deus lhe abençoe.

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RESUMO

O presente trabalho pretende investigar o tema da morte a partir da abordagem do filósofo franco-

lituano Emmanuel Levinas, tendo como base suas obras Totalité et Infini (1961) – com tradução para

o português - e Dieu, la mort et le temps (1993) – em sua tradução para a língua espanhola -,

dialogando com a obra do filósofo alemão, Martín Heidegger, intitulada de Ser e Tempo (1927).

Provavelmente, Levinas seja um dos filósofos do século XX mais debatidos e, por pertencer a uma

família judaica, educado segundo sua tradição religiosa, a sua abordagem filosófica se mostra

pertinente para nossa reflexão. Esta pesquisa se delimitará no estudo e reflexão sobre o tema da morte,

pois essa questão não tem sua importância apenas para as reflexões religiosa e filosófica, mas para o

homem enquanto ser que vive como um todo. A relevância desta pesquisa está na reflexão do sentido

da morte para o ser humano, como um ser que vive, além das consequências emocionais envoltas no

fenômeno da morte como angústia, medo e desconhecimento. Levinas entra em um intenso diálogo

com a filosofia heideggeriana e sua abordagem sobre a morte e suas repercussões no homem. Esta

pesquisa está dividida em três partes: a primeira etapa deste trabalho tratará da introdução sobre o

autor, ou seja, sua pessoa, seu tempo e sua obra; na segunda parte deste estudo, trataremos da

concepção da morte para o filósofo com quem Levinas mais dialoga na obra Dios, la muerte y el

tiempo, Martín Heidegger e seu ser-para-a-morte. Aqui, trataremos da finitude do Dasein, do projeto

ontológico heideggeriano, bem como a angústia, medo e as possiblidades existenciais mais autênticas

do Ser; na terceira parte de nossa proposição de estudos, lançar-nos-emos à reflexão de temas

referentes à morte na filosofia levinasiana. Nessa parte, refletiremos acerca da nossa morte, da morte

do Outro e temas circundantes ao tema do morrer, como angústia, medo e o infinito. A metodologia

que será aplicada a esta pesquisa está baseada nas análises da reflexão levinasiana a partir de Dios, la

muerte y el tiempo, Totalidade e Infinito de Emmanuel Levinas e Ser e Tempo de Heidegger. Pretende-

se com este trabalho contribuir para os estudos em ciências da religião, filosofia da religião e teologia,

bem como em outras áreas afins.

Palavras Chaves: LEVINAS, MORTE, MEDO, HEIDEGGER.

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ABSTRACT

This paper aims to investigate the subject of death from the French-Lithuanian philosopher Emmanuel

Levinas approach, based on his works Totalité et Infini (1961) - with translation into Portuguese - and

Dieu, la mort et le temps (1993) - in its translation into Spanish - dialogue with the German

philosopher work, Martin Heidegger, titled Being and Time (1927). Probably Levinas is one of the

most debated philosophers on century XXI and, for belonging to a Jewish family, educated according

to their religious tradition, its philosophical approach proves pertinent to our reflection. This research

delimits the study and reflection on the theme of death, because this issue has not its importance only

to the religious and philosophical reflections, but for the man as being who lives as a whole. The

relevance of this research is the reflection of the meaning of death for humans, as a being that lives

beyond the shrouded emotional consequences on death phenomenon as anguish, fear and ignorance.

Levinas goes into an intensive dialogue with Heidegger's philosophy and his approach about death and

its impact on man. This research is divided into three parts: the first part of this study will deal with

the introduction of the author, or his person, his time and his work; in the second part of this study, we

will discurss the concept of death to the philosopher with whom Levinas more dialogues in work Dios,

la muerte y el tiempo, Martin Heidegger and his being-toward-death. Here, we will discurss the

finiteness of Dasein, Heidegger's ontological project as well as anguish, fear and the most authentic

existential possibilities of being; the third part of our proposition studies, we will launch the themes of

reflection regarding the death in Levinasian philosophy. In this part, we will reflect about our death,

the death of the Other and issues surrounding the death of the subject, such as anxiety, fear and

infinity. The methodology that will be applied to this research is based on analysis of Levinasian

reflection from de Dios, la muerte y el tiempo, Totality and Infinity of Emmanuel Levinas and

Heidegger Being and Time. The aim of this work contribute to the studies in the Sciences of Religion,

Philosophy of Religion and Theology as well as in other related areas.

Key Words: LEVINAS, DEATH, FAIR, HEIDEGGER

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................9

1 EMMANUEL LEVINAS: SUA HISTÓRIA, OBRAS E ELEMENTOS DE SUA FILOSOFIA .13

1.1 HISTÓRICO PESSOAL DE EMMANUEL LEVINAS ..................................................................13

1.1.1 De Kaunas, na Lituânia, a Karkov, na Ucrânia .............................................................................14

1.1.2 Fora da Europa Oriental ................................................................................................................18

1.1.3 Levinas e a experiência da Segunda Guerra Mundial ...................................................................21

1.2 AS OBRAS DE EMMANUEL LEVINAS ......................................................................................24

1.2.1 O primeiro período (1929-1951) ...................................................................................................25

1.2.2 O segundo período (1952-1964) ...................................................................................................27

1.2.3 O terceiro período ou “período ético” (1965-1995) ......................................................................31

1.3 A CONTRIBUIÇÃO DO TEMA DA CONDIÇÃO JUDAICA EM LEVINAS .............................33

1.3.1 O tema da condição judaica na primeira fase da filosofia de Levinas ..........................................34

1.3.2 O tema da condição judaica na segunda fase da filosofia de Levinas ...........................................37

2 HEIDEGGER: TEMPO, MORTE E MEDO ......................................................................................40

2.1 HEIDEGGER: HISTÓRIA, SER E TEMPO E O DASEIN .............................................................40

2.1.1 O histórico pessoal do Martin Heidegger: Da teologia à questão sobre o Nazismo .....................41

2.1.2 Ser e Tempo: Ontologia Fundamental ..........................................................................................45

2.1.3 Heidegger: O projeto ontológico – ser-aí (Dasein) e ser-no-mundo .............................................49

2.2 O TEMPO EM HEIDEGGER..........................................................................................................51

2.2.1 A virada filosófica de Heidegger: do Tempo ao Ser e a História da Verdade do Ser ...................51

2.2.2 O Tempo em Heidegger segundo Lévinas ....................................................................................54

2.3 A MORTE SEGUNDO HEIDEGGER ............................................................................................56

2.3.1 A morte em Heidegger: ser-todo e o ser-para-a-morte do Dasein ...............................................56

2.3.2 O tempo concebido a partir da morte em Heidegger segundo Levinas .........................................60

2.3.3 A angústia e o medo em Heidegger...............................................................................................62

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3 TEMPO, MORTE E MEDO EM LEVINAS ......................................................................................66

3.1 ELEMENTOS DA FILOSOFIA LEVINASIANA ..........................................................................66

3.1.1 Ética, responsabilidade e violência ...............................................................................................67

3.1.2 O Tempo em Levinas ....................................................................................................................72

3.2 A MORTE EM LEVINAS ...............................................................................................................75

3.2.1 A morte e o anonimato da morte em Levinas ...............................................................................75

3.2.2 A morte do Outro e a consciência de minha própria morte ...........................................................76

3.2.3 A morte como origem do tempo em Levinas ................................................................................81

3.3 LEVINAS: EMOÇÃO DIANTE DA MORTE, O INFINITO E O PENSAR ALÉM DO SER ......83

3.3.1 A emoção diante da morte em Levinas .........................................................................................83

3.3.2 A ideia do infinito e o Infinito: Descartes e Levinas .....................................................................84

3.3.3 O Êxodo do Ser ao Outro: Levinas para além de Heidegger ........................................................88

CONCLUSÃO .......................................................................................................................................91

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................................93

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INTRODUÇÃO

O problema desta pesquisa se concentra na reflexão sobre o fenômeno da morte no

pensamento levinasiano, em especial como ela é apresentada na obra Dios, la muerte y el

tiempo1 (1998 – edição em espanhol). Alguns questionamentos, por exemplo, são cruciais para o

desenvolvimento de nossa reflexão, tais como: Por qual motivo se tem medo da morte? Como

a morte é abordada na filosofia levinasiana? Como a religiosidade atual entende a morte?

Qual a relevância para a compreensão da questão da morte para a contemporaneidade?

Existe sentido na morte? Este trabalho pretende, principalmente, analisar, através da

fenomenologia da religião, o tema da morte a partir da filosofia de Emmanuel Levinas (1906-

1995).

Um primeiro passo a dar nesta pesquisa é relacionar historicamente Levinas e sua

experiência pessoal e religiosa com um dos temas formulados por ele no decorrer de sua vida

acadêmica, a morte. Por qual motivo o tema da morte é tão relevante em sua abordagem

filosófica? Sua experiência de peregrinação e diante do horror das duas Grandes Guerras

Mundiais influencia, de alguma forma, a sua filosofia? E ainda mais, o que sua terra natal e

sua confissão religiosa têm em relação com sua experiência diante dos eventos totalitários e

contra a vida humana?

Nosso filósofo nasceu em 1905, na Lituânia, no leste da Europa, mas o ato de

peregrinar por outros países, ora fugindo da guerra, ora em intercâmbio acadêmico, fê-lo

entrar em contato com diferentes correntes de pensamentos e fazer parte direta ou

indiretamente dos eventos trágicos contra a humanidade no decorrer do século XX,

principalmente, em sua primeira metade. A Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a

Segunda Guerra Mundial envolvem, de certa forma, os países nos quais Levinas se

estabelecera; depois de sua terra natal, Kaunas, na Lituânia, vieram os anos em Karkov na

Ucrânia, Estrasburgo no norte da França, Freiburg na Alemanha e, por fim, a capital francesa

é sua nova casa até o dia de sua morte, em 1995, Paris.

Neste trabalho, iremos aportar-nos tanto na referida obra Levinasiana, como em alguns

comentadores de nosso filósofo. Por exemplo, no primeiro capítulo e em nossa reflexão sobre

a história pessoal e bibliográfica, além da filosofia de Levinas, dialogaremos com autores,

como Nilo Ribeiro Junior, Rene Bucks, Nélio Melo, Hutchens, Marcelo Pelizzoli, José Tadeu

1 Dieu, la mort et le temps é o título original da obra em francês, publicada em 1993.

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de Souza dentre outros. No segundo capítulo, trataremos do mesmo tema da morte, agora na

filosofia heideggeriana, apoiando-nos em sua principal obra, Ser e Tempo (1927), pois é com

Heidegger e seu Dasein, que existe para a morte que Levinas estabelecerá um intenso e

grandioso debate na obra Dios, la muerte y el tiempo. Já no terceiro capítulo, refletiremos, em

especial, sobre o tema aqui proposto, a morte, e sobre outros temas afins à discussão. Para

isso, utilizaremos o próprio Levinas e uma série de autores de língua espanhola como Fredy

Parra, Matías Ruz, Manuel Sierra e autores brasileiros, como Gilmar Bonamigo e Marco

Werle.

Em sua abordagem filosófica, Levinas relaciona seus temas sob a ótica da ética, a ética

como filosofia primeira, como apontam seus principais comentadores. Nosso filósofo é um

ético, e sua filosofia foi erigida sobre este pilar, contudo, a morte não estaria fora desta

abordagem. A morte é refletida em sua filosofia a partir da morte do Outro, e é nas

repercussões dessa que tenho conhecimento desse evento que angustia e amedronta, talvez

pelo seu puro anonimato e desconhecimento.

Vale a pena adiantar que falar em morte na filosofia Levinasiana é também dialogar

com a filosofia heideggeriana, que compreende a morte pela ótica ontológica e, por isso, em

oposição à ética defendida pelo nosso filósofo de Kaunas. Então, se Levinas é um ético,

Heidegger é um ontológico e ambos, assim, apresentam suas estratégias metodológicas em

seu filosofar. Não só a morte, mas o tempo também é visto sob a perspectiva tanto ética, para

Levinas, quanto ontológica, para Heidegger. Tanto o tema da morte quanto o do tempo

confluem para um enlace de reflexões sobre o tema central deste estudo, o morrer.

Se em Heidegger tomamos de Ser e Tempo (1927), sua abordagem filosófica para

nossa reflexão, em Levinas, a obra que utilizaremos como referência central será Dios, la

muerte y el tiempo (1998). Nessa obra, Levinas propõe um intenso diálogo com Heidegger e

as questões sobre a morte, tempo, angústia e medo. Neste diálogo, nosso filósofo franco-

lituano esclarece, opõe-se e concorda com pontos cruciais da abordagem heideggeriana. Por

isso, a análise da questão da morte nesta obra e seu dialogar com o filósofo alemão é não só

importante para o nosso estudo, mas crucial.

Alguns questionamentos importantes a respeito da morte são propostos pelo autor nas

seguintes palavras: “O que sabemos da morte, o que é a morte?” (LEVINAS, 1998, p. 22).

Alguém que morre revela-se como um rosto que se converte em máscara, ou seja, sem

expressão. Se a morte é não resposta, a morte de alguém é o exibir-se através de sua nudez

para além da própria nudez, que me afeta ao ponto de não ser indiferente. A morte de outra

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pessoa está para além da morte biológica, assim como um que se relaciona comigo em forma

de alguém. O rosto, a nudez como expressão, é alguém que apela para mim, ao colocar-se sob

minha responsabilidade e ao qual eu tenho que responder.

Levinas propõe um importantíssimo questionamento sobre a relevância que a

experiência da morte do outro implica na minha compreensão desse evento: “Acaso a relação

com a morte do próximo não revela seu sentido, não o articula para a profundidade da

repercussão, do medo que se sente diante da morte de outros?” (LEVINAS, 1998, p. 24).

Já em Heidegger, a morte é certeza por excelência. Certeza como possiblidade segura

e que limita seu sentido à aniquilação, sendo a origem de toda a afetividade presente na

angústia, cujo medo está refreado pela aflição que tal sentimento causa. Diante disso, Levinas

aponta outra pergunta – “O medo é algo derivado?” (LEVINAS, 1998, p. 24). E se for, deriva

de quê? segundo sua filosofia, já que, em Heidegger, ao que parece, o medo da morte se

deriva da angústia do morrer?

Abrindo a discussão, Levinas propõe mais alguns questionamentos, como: “A

totalidade do ser humano não é sua vida, de nascimento à morte? Não é, portanto, o tempo

que ocupa?, e este tempo que ocupa, não é a soma dos instantes transcorridos?” (LEVINAS,

1998, p. 61). A reflexão sobre o tempo na filosofia levianasiana nos ajuda a compreender sua

apreensão de outros conceitos, como por exemplo, a morte, a angústia e o medo. Levinas

continua explicitando que o tempo não é uma progressão de dias e noites, sem a possibilidade

de abertura, no entanto, o próprio fato de viver é um “entregar-se à morte”.

De modo geral, nos lançaremos à reflexão da morte a partir da filosofia levinasiana, e

seu dialogar com a abordagem filosófica de Heidegger na obra Dios, la morte y el tiempo,

bem como aprofundar a discussão por meio do auxílio de seus comentadores tanto brasileiros

quanto estrangeiros, e a forma como a religiosidade atual tende a abordar este mesmo tema na

contemporaneidade. Para isso, lançamos, anteriormente, alguns questionamentos que nos

parecem pertinentes como estímulos primeiros ao tema e que iremos retomando com o passar

dos capítulos. Então, este trabalho está delimitado à análise e interpretação bibliográfica

acerca do tema da morte no pensamento de Emmanuel Levinas, em especial na referida obra,

composta por três capítulos.

No primeiro, será localizada a filosofia de Levinas com seu contexto histórico, sua

experiência com a Revolução Russa em plena Primeira Guerra Mundial e o Nazismo, na

Segunda Guerra Mundial, bem como seu exílio e suas primeiras publicações de reflexões

pessoais, suas principais obras e os pontos fundamentais de sua filosofia.

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No segundo capítulo, colocar-se-á o histórico pessoal de Martin Heidegger em contato

com os eventos nazistas na Alemanha, assim como sua trajetória filosófica e o lançamento de

sua maior obra em 1927, Ser e Tempo. A partir disso, discutir-se-á os elementos fundamentais

da filosofia heideggeriana e a constituição existencial do Dasein; não só isso, mas suas

possibilidades mais essenciais de seu poder-ser, inclusive o ser que vive diante de seu “existir

para morrer”, isto é, o ser-para-a-morte, típico do Dasein.

No terceiro capítulo, estudar-se-á a concepção de morte na filosofia de Emmanuel

Levinas, baseando-se em sua obra Dios, la muerte y el tiempo (edição em espanhol de 1998) e, por

vezes, Totalidade e Infinito (edição em português de 2008), bem como a morte do Outro e a

consciência da minha própria morte. Não só será analisada a concepção de morte, mas também

outras reflexões que circundam esse fenômeno para a filosofia levinasiana e a crítica que o

mesmo faz ao ser-para-a-morte da filosofia heideggeriana e o seu empreendimento egoísta

por completar-se em detrimento do Outro. Concluímos esse capítulo pautado no exercício

levinasiano de pensar o ser para além dele mesmo, em direção ao Outro.

A metodologia aplicada a essa pesquisa está baseada na análise bibliográfica das obras

aqui já citadas, como “Díos, la muerte y el tempo”, “Totalidade e Infinito” de Emmanuel

Levinas e “Ser e Tempo” de Martin Heidegger, além dos maiores comentadores de ambas as

filosofias em língua portuguesa ou traduzida para tal.

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1 EMMANUEL LEVINAS: SUA HISTÓRIA, OBRAS E ELEMENTOS DE SUA

FILOSOFIA

Neste capítulo, será apresentada a trajetória histórica de Emmanuel Levinas, desde sua

partida da Lituânia, onde nasceu, até a França, onde está sepultado. Também se pretende

remontar à trajetória histórica de suas produções bibliográficas, bem como sua proposta

filosófica, pois, como veremos no desenrolar deste capítulo, sua experiência com a guerra,

com a Revolução Russa e com os eventos postos em prática pelo Nazismo, que dizimou

milhões de pessoas de orientação religiosa como a dele. Sua família faz parte dessa lista de

vítimas do Holocausto, do qual ele, sua esposa e filha escaparam, o que vem a influenciar suas

proposições filosóficas, como marca principal, a ética como filosofia primeira.

Num primeiro momento, será abordada a sua peregrinação do leste da Europa e toda a

sua experiência fora da Lituânia – Ucrânia, norte da França e Alemanha – até se estabelecer

de vez em Paris e, neste período, sua experiência diante da iminência da morte ou por

ocupação militar estrangeira ou por sua orientação religiosa. A segunda parte deste capítulo

será referente ao processo de produção das obras de Levinas, num caminho paralelo com sua

experiência de peregrinação, que, segundo alguns autores, como Ribeiro Júnior e Melo,

advém de sua consciência judaica, a qual o colocara diante de eventos históricos trágicos no

leste europeu e na França. Por fim, na terceira e última parte, trataremos de apresentar a

proposta filosófica levinasiana e suas ideias-chave, a fim de contribuir com o estudo proposto

neste trabalho a respeito da concepção da morte.

1.1 HISTÓRICO PESSOAL DE EMMANUEL LEVINAS

Nesta parte de nossa reflexão, empenhar-nos-emos em reconstruir as peregrinações de

nosso filósofo, desde sua terra natal na Lituânia até a Ucrânia em plena Primeira Guerra

Mundial e Revolução Russa; depois, sua chegada à França e sua passagem pela Alemanha, e,

por fim, seu estabelecimento definitivo em Paris. Remontaremos sua experiência com a

Segunda Guerra Mundial e o Nazismo, além das consequências do Holocausto em seu

pensamento filosófico e religioso e, consequentemente, como ele aborda o tema da morte em

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sua abordagem filosófica como marca de todas essas experiências quando esteve diante de

eventos contra a vida humana.

1.1.1 De Kaunas, na Lituânia, a Karkov, na Ucrânia

Toda a história de Emmanuel Levinas começa no Leste europeu, mais precisamente

na cidade de Kaunas na Lituânia, onde nascera em 12 de janeiro de 1906. A relação entre sua

terra natal e sua peregrinação até Paris trará marcas significativas em sua filosofia, na qual

podemos citar um desses principais motivos, a invasão alemã em seu país, que o forçou a

deixar a Lituânia e fixar residência na França, passando esta a ser sua casa até o dia de sua

morte, em 27 de novembro de 1995, pouco antes de completar noventa anos (BUCKS, 1997,

p. 18).

Para compreendermos o fundo histórico da experiência de Levinas em consonância

com a religião, a guerra em 1914 e a revolução russa, reconstruiremos brevemente o passado

da Lituânia, pois isso nos ajudará a entender mais de sua peregrinação até a França e de suas

inquietações existenciais referentes à liberdade e à responsabilidade com o outro – ideia

oposta ao pensamento ocidental de autonomia –, que deriva de sua experiência com a

crueldade de homens contra homens, ou melhor, do assassínio de seres humanos pelos

mesmos seres humanos (MELO, 2003, p.12).

A história do filósofo Emmanuel Levinas está dividida em três partes segundo alguns

comentadores, como assevera U. Vázquez2. O Primeiro Período corresponde aos anos de 1929

a 1951, que retrata o momento de sua saída da Lituânia até sua chegada a Paris, além das

publicações de seus primeiros artigos sobre a filosofia de Husserl e Heidegger. Essa fase da

vida de Levinas está relacionada à sua peregrinação pessoal para fora de sua terra, o início de

seus estudos universitários e suas primeiras publicações (BUCKS, 1997, p. 30).

O Segundo Período se refere aos anos de 1952 a 1964, que está ligado à sua

familiarização com a capital francesa e com a cultura filosófica da França. É com a obra

Totalité et Infini, de 1961, que seus pensamentos passaram a ser conhecidos. O último e

Terceiro Período de sua filosofia compreende os anos de 1965 a 1995, conhecido também

como o período ético considerado o mais produtivo em comparação aos dois períodos

anteriores (BUCKS, 1997, p. 30).

2 Tal periodização está expressa na obra intitulada A teologia interrompida, para uma interpretação de E.

Levinas, 1982, p. 55-57.

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É neste último período que o filósofo de Kaunas recebe o reconhecimento merecido

por toda uma vasta produção filosófica e talmúdica, que não fora vista em momentos antes. É

nesse terceiro momento que ele recebe o doutorado honoris causa pelas universidades de

Loyola e de Chicago - EUA em 1971, de Leiden, na Holanda, em 1975, e de Louvain, na

Bélgica, em 1976. Além disso, recebeu o prêmio Albert Schweitzer de filosofia em 1971, na

Alemanha (BUCKS, 1997, p. 30).

Voltando-nos a uma breve reconstrução histórica da terra natal de nosso filósofo,

podemos dizer que Kaunas, onde Levinas nascera, era uma cidade que fazia parte do império

russo dos czares3, uma cidade dividida em parte velha e parte nova. Os judeus moravam na

cidade velha e eram os mais antigos habitantes do lugar. Não era de se estranhar tantos judeus

na cidade, pois assim como em Kaunas, a Lituânia foi um dos países da Europa Oriental em

que os judeus mais experimentaram seu apogeu espiritual. Foi aí que o judaísmo se

desenvolveu amplamente, onde os ensinamentos do Talmude e suas práticas marcavam a

própria dinâmica da região, pelo fato de o antissemitismo, nesse país, ter uma aparência mais

moderada que em outras regiões da Europa (BUCKS, 1997, 18).

No entanto, o judaísmo praticado na Lituânia era bem diferente do praticado na

Polônia e na Ucrânia, por exemplo. Nesses dois últimos, o judaísmo era da vertente

hassidista4 ou chassidista, ou seja, na prática o misticismo era mais importante que o próprio

ritual e o estudo talmúdico. Na Lituânia e, consequentemente, na Kaunas de Levinas, o

judaísmo era “mitnagdin” ou judaísmo mithnagued, cuja origem estava no pensamento

rabínico ligado à prática religiosa, segundo o qual, o mais importante era o estudo e reflexão

do Talmude. Segundo Bucks:

A família de Levinas pertencia ao judaísmo mithnagued, que vivia em oposição ao

chassidismo, o judaísmo piedoso do povo mais simples na Polônia e na Ucrânia. Os

chassidistas colocavam o sentimento religioso e a oração espontânea acima do ritual e do

estudo do Talmude. A partir da racionalidade talmúdica surgiu uma oposição contra o

3 Antes de pertencer ao Império Russo (a partir do século XVIII), a Lituânia pertencia à Polônia desde o século

XVI (RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 27). 4 Segundo Ehrlich, em sua obra Conhecendo o Judaísmo (2012, p. 87), o hassidismo foi uma das várias

divisões dos grupos ortodoxos do judaísmo moderno – a partir do século XIX – muito aceito na Europa Oriental

em resposta à ortodoxia religiosa e dogmática do judaísmo. Tudo começou através dos ensinamentos

carismáticos de Israel ben Eleazer (1700-1760), nos quais “ele e seus seguidores tentaram redescobrir a alegria

inerente a atos simples de celebração divina e oração”. Esse grupo contou com outra comunidade que se opunha

às suas intenções teológicas, os ortodoxos intelectuais baseados nas proposições de Elias ben Solomon (1720-

1797) na Lituânia, sendo que este “excomungou os hassídicos – ironicamente, porque o hassidismo havia se

tornado um campeão da Ortodoxia fundamentalista no judaísmo”. Tanto um quanto o outro, hoje em dia, servem

à ortodoxia que luta contra um possível desaparecimento do judaísmo tradicional.

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chassidismo. Na Lituânia, o Conselho Rabínico de Vilna decidiu denunciar junto ao governo

russo os líderes chassídicos como agitadores perigosos. Vinte e dois representantes da seita

foram presos. Por isso, na Lituânia, o chassidismo teve menos influência que o judaísmo

mithnagued, no qual Levinas foi educado (BUCKS, 1997, p. 18).

A família dos Levinas fazia parte da pequena burguesia lituana. Seu pai, chamado

Levyne, era dono de uma livraria de obras em língua russa. Eram seus principais clientes os

professores dos ginásios daquela área. Nosso filósofo teve dois irmãos, Boris e Aminadab.

Sua mãe foi a grande responsável por sua carreira filosófica. A família não apenas possuía a

livraria, mas também uma pequena propriedade rural onde passavam o verão junto com os

caseiros - uma família de camponeses cristãos (MELO, 2003, p. 12).

É relevante lembrar que a cultura russa era influente na Lituânia, sendo o russo falado

desde cedo pela família de Levinas. Ele mesmo afirma que aprendera a língua russa sozinho e,

ainda jovem, entrou em contato com os principais autores russos no idioma original, como

Tolstoi, Dostoievski, Puchkin, dentre outros. A literatura russa era praticamente um dever na

leitura dos alunos iniciantes (BUCKS, 1997, p. 18).

Pois bem, Levinas nascera numa família judaica e por isso sua religião está

diretamente ligada a sua peregrinação a novos países. Em 7 de outubro de 1915, devido à

Primeira Guerra Mundial, as tropas alemãs invadiram a Lituânia e os judeus foram expulsos.

Então Levinas e seus familiares foram forçados a se mudarem para a Ucrânia, onde fez seus

estudos secundários enquanto esperava o fim da guerra, morando na cidade ucraniana de

Karkov. O nosso filósofo ingressou no ginásio da cidade concorrendo a poucas vagas

dedicadas a judeus, sendo aprovado com ajuda de aulas particulares financiadas por sua

família burguesa (MELO, 2003, p. 12). Devemos lembrar que, em solo ucraniano, nosso

filósofo entrará em contato com as primeiras contradições entre religião e liberdade. A morte

começa a se fazer presente na história de nosso autor.

Para termos uma ideia de quanto foi o saldo de mortes nos eventos que se seguem,

segundo o historiador Eric Hobsbawn (1995), em sua obra A Era dos Extremos, o século XX

inicia com ar de guerra iminente entre grandes potências. Nesse intervalo de cem anos, não

houve alguma guerra que levasse os países a um conflito de dimensões globais, todos foram

locais. Conflitos regionais aconteceram motivados por questões de interesses locais, no

entanto, sem envolver nações de vários continentes em uma guerra com campos de batalhas

em partes distintas do globo. Para o autor não é possível compreender este século sem nos

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voltarmos à análise dos grandes conflitos militares internacionais. (HOBSBAWN, 1995, p. 30

– 32).

Nosso filósofo franco-lituano nasce neste complicado período da diplomacia mundial,

e, além disso, inserido em um território que se localizava entre as grandes potências

econômicas e militares do continente europeu, a Europa Oriental. Sua peregrinação contou

com países que de uma forma ou de outra se envolveriam nesses conflitos de proporções

mundiais – Lituânia, Ucrânia, França e Alemanha.

Para termos uma noção da proporção militar da Primeira Guerra Mundial, esse evento

catastrófico contra a vida humana, até hoje está na memória histórica dos franceses e ingleses,

ainda mais do que a Segunda Grande Guerra, décadas depois. A Alemanha, que pretendia

destruir a França no ocidente e ferir a poderosa Rússia dos czares no oriente, fracassou em

alguns momentos e contabilizou um número bem superior de mortes em seu exército. No

entanto, contava com um número ainda mais elevado em seus contingentes militares do que a

França e a Grã-Bretanha, fato que não representou uma grande baixa para os alemães, mas,

mesmo assim, impôs o terror na Europa do início do século XX. Um terço dos soldados

franceses morreram, foram capturados ou deram baixa por deformidade física. Já do lado

inglês, o exército contabilizou cerca de oitocentos mil soldados mortos, em sua maioria com

idade até os 30 anos, ou seja, período de idade militar (HOBSBAWN, 1995, p. 33).

Se, do lado ocidental, a França e a Inglaterra ainda se recuperavam de suas grandes

baixas, no lado oriental da Europa, a Alemanha empreendia ataques contra os Russos com a

ajuda da Áustria. Até então, os russos permaneceram em sua estratégia de defesa, sendo

obrigados a deixar a Polônia nos primeiros meses da guerra. França, Inglaterra, Alemanha,

Bélgica, Romênia e Itália colecionavam grandes baixas militares, enquanto o Império Austro-

húngaro dava sinais de desmantelamento e a Rússia assistia à sua derrota de camarote

(HOBSBAWN, 1995, p. 34).

Com o início da Revolução em 1917, a Rússia se retira da guerra com graves

problemas políticos e sociais, deixando livre o oriente para a Alemanha poder dedicar-se ao

plano de destruição da França e depois seria a vez dessa investida contra a Inglaterra

(HOBSBAWN, 1995, p. 34). Esse fato nos interessa grandemente, já que Levinas e sua

família se retiram da Lituânia ocupada pelos alemães e se mudam para a Ucrânia em plena

Revolução Russa.

Nos fatos finais da Primeira Guerra Mundial, levantou-se um intenso debate

humanitário sobre as consequências do uso de armas químicas – grande potencial científico

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alemão – cujo emprego logo foi proibido por ambos os lados do conflito. Outro atentado

contra a vida humana foi a estratégia posta em prática pelos militares alemães e ingleses

diante de um incômodo empate por mar e pelo ar, caso que levou os dois países a cortar o

fornecimento do básico para a sobrevivência dos civis inimigos. Os civis ingleses e

germânicos sofreriam grande retaliação numa espécie de briga fora dos campos de batalha

(HOBSBAWN, 1995, p. 35-36). Podemos perceber que os Estados para onde Levinas

peregrinará estão, de alguma forma, inflamados por esses conflitos sangrentos.

1.1.2 Fora da Europa Oriental

Após a Primeira Guerra Mundial, a Lituânia fazia parte de um plano estratégico de

isolar a União Soviética no Oriente, plano esse que consistia em criar um cinturão de

pequenos Estados-nações antissoviéticos que cumprisse a missão de manter a Rússia

revolucionária em seu território, bem longe das grandes potências europeias, Grã-Bretanha e

França (HOBSBAWM, 1995, p. 40). Nesse período, Levinas já se encontrava residindo com

sua família na Ucrânia, mais precisamente na cidade Karkov, lugar que também estava

envolvido com os eventos revolucionários russos pós-1918.

A Primeira Guerra Mundial expôs toda a fragilidade do Império Russo dos Czares:

economicamente afogado, militarmente derrotado e a população civil a ponto de se rebelar.

Uma série de levantes de agricultores, que exigiam do governo pão e terra e os movimentos

de greve de operários das áreas urbanas levaram a uma greve geral em Moscou e Petersburgo.

O poder do rei não resistiu a uma manifestação tão grande quanto a de 1917, chegando ao

ponto de nem o exército querer lutar contra os rebeldes, juntando-se a eles e enfraquecendo

qualquer reação por parte da realeza russa. Consequentemente, tal governo foi substituído por

um outro provisório e que, mais tarde, só veio a reproduzir a improdutividade administrativa

do imperador (HOBSBAWN, 1995, p. 66-68). Veremos mais à frente que a Revolução Russa

irá fazer fervilhar os ânimos dos ucranianos pró e contra a causa revolucionária, e Levinas

será diretamente atingido.

Os “sovietes”, que eram vários grupos locais com lideranças próprias, porém sem ação

unificada, passam a pressionar o governo provisório por mudanças imediatas. Esse, sem

respostas satisfatórias ao anseio das camadas revolucionárias, viu-se ameaçado por líderes

populares vindos dos sovietes. Quem de fato se projeta com o objetivo de satisfazer os desejos

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dos sovietes foi Lenin e seu partido dos bolcheviques. Não demorou muito para que grande

parte desses grupos passasse a apoiar Lenin como representante revolucionário, ao qual ele e

seu partido tomam o poder e passam a governar a Rússia Soviética (HOBSBAWN, 1995, p.

68-70).

Na década de 1920, o Exército Vermelho pretendia expandir sua influência leninista

para além de suas fronteiras na Europa. Tais ideias já estavam sendo difundidos pelo mundo

através de simpatizantes dos bolcheviques. Ao que parece, a Polônia era muito importante

para os russos, interesse que levou a Rússia a envolver-se em um breve conflito com os

poloneses. A Polônia, que passara aproximadamente um século e meio sem existir como um

Estado, após a Primeira Guerra Mundial, restaura sua autonomia política e passa a exigir suas

antigas fronteiras, que envolviam diretamente a Bielorrússia, Lituânia e Ucrânia

(HOBSBAWN, 1995, p. 76). Nesses dois últimos países, Levinas viverá antes de se mudar de

vez para a França.

Enquanto a Revolução Russa assustava a Lituânia, os pais de nosso jovem Levinas o

proibiam de qualquer participação política, porém ele não ficou indiferente diante da

revolução leninista. No entanto, os judeus que se inclinavam para o lado revolucionário eram

logo perseguidos pelo “exército branco5” contrarrevolucionário (BUCKS, 1997, p.19).

Nas constantes manifestações de ruas em Karkov, na Ucrânia, Levinas pôde perceber

que pertencia a uma raiz inimiga às intenções dos movimentos revolucionários que aumentara

a influência dos Russos Brancos, dos Vermelhos e dos nacionalistas ucranianos,

provavelmente pela sua condição judia e de sua família, daí continuar a viver na Ucrânia

ficara cada vez mais difícil. Com a ascensão de Lênin na Rússia, a permanência das tropas

alemães na Lituânia e nos países bálticos se enfraqueceu, culminando com a libertação do

domínio militar alemão em 5 de janeiro de 1919. No ano de 1920, ele e sua família puderam

retornar à terra natal. Foi em Kaunas que Levinas pôde concluir seus estudos secundários,

dedicando-se principalmente ao estudo da língua hebraica e aos costumes judeus (MELO,

2003, p. 13).

Levinas já estava bastante interessado em estudar fora de sua terra, caso que o levará a

se matricular na Universidade de Estrasburgo, na França (HUTCHENS, 2009, p. 19), uma vez

que os ares antissemitas da contrarrevolução russa e do comunismo antirreligioso, que fizeram

5 Os “Exércitos Brancos” Contrarrevolucionários eram russos que não aderiram a Revolução Bolchevique de

Lênin (estes chamados de Vermelhos), financiados pelas potências aliadas ainda na Primeira Guerra Mundial –

Grã Bretanha, França e Estados Unidos principalmente, dentre outros – enviando também soldados e material

bélico para as batalhas contra os “Exércitos Vermelhos” na Rússia revolucionária.

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com que muitos judeus fugissem para a parte ocidental da Europa, fossem as principais razões

que o motivaram a peregrinar até sua mais nova casa francesa. Seu novo lar, primeira parada

de Levinas na França, era a cidade francesa mais próxima da Lituânia, Estrasburgo, onde

iniciará seus primeiros estudos filosóficos ainda com 18 anos (BUCKS, 1997, p. 19).

Foi na Universidade onde ele teve os primeiros contatos com os intelectuais,

aproximando-se de uns e distanciando-se de outros. Foi aluno de M. Pradines, que logo o

encantou com o seu espírito humanista. Novo na França, tratou logo de aprender o francês.

Para isso, leu os clássicos da literatura francesa como Corneille e Racine (BUCKS, 1997, p.

19).

É neste momento histórico que Levinas passa a interessar-se mais por Husserl e

Heiddeger, mais próximos da fenomenologia, e com isso das novas bases da metafísica. De

Husserl, Levinas logo se tornou discípulo, e de Heidegger, ouvinte de suas palestras: os dois

passaram a ser os interlocutores do filósofo franco-lituano (RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 29).

Entre os anos de 1928 e 1929 mudou-se para a cidade de Freiburgo, na Alemanha,

para estudar a iniciante metodologia filosófica de Edmund Husserl, a escola fenomenológica.

Foi um teólogo protestante chamado J. Hering que apresentara Levinas à fenomenologia neste

período de estudos em terras alemãs. Ali conheceu Martin Heidegger, aluno de Husserl, que

brilhantemente utilizou o método husserliano (BUCKS, 1997, p. 20).

O contato com seu professor não fora apenas em ambiente acadêmico, pois Levinas

chegou até a ministrar aulas de francês à esposa de seu mestre. Já referente à Heidegger,

Levinas não teve tantos contatos, isso porque o próprio era inacessível, estava ocupado

demais em suas produções. Se, fora da Universidade, Heidegger era uma figura ausente, suas

conferências no período da tarde eram bastante disputadas, tendo os ouvintes que chegar ao

turno da manhã para assegurarem seu lugar no auditório onde ele discursava. E, ao que

parece, o mesmo sabia que suas palavras eram apreciadas (BUCKS, 1997, p. 21).

Ao retornar à França, ainda na cidade de Estrasburgo, Levinas defende sua tese de

Doutorado, cujo título era A teoria da intuição na fenomenologia de Husserl, que foi

publicada em 1930. Era o início da fenomenologia na filosofia francesa. Dada a importância

desse tratado sobre a doutrina husserliana, Sartre disse, em certa ocasião, que foi introduzido à

fenomenologia graças à Levinas, dizendo o seguinte: “Essa é a filosofia que eu gostaria de

escrever!” (BUCKS, 1997, p. 21).

Após receber a cidadania francesa em 1930 – inclusive, fato que o livra do campo de

concentração devido a sua prisão pelas tropas nazistas na Segunda Guerra Mundial –, Levinas

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passa a frequentar os principais ambientes filosóficos na França. Foi em uma reunião com os

existencialistas que conheceu Sartre, então dono da revista Les Temps Modernes. Em parceria,

o recém-doutor em filosofia lança alguns poucos artigos na revista, como por exemplo, “La

réalité et son ombre” (1946) e “La transcendance des mots” (1947). Sartre escreveu, ainda,

logo ao fim da Segunda Guerra Mundial, o ensaio Reflexões sobre a questão judaica. Levinas

casou-se em 1932 com Raïssa (Margarida) Lévi na cidade natal de Kaunas e, em 1935, nasce

sua primeira filha, Simone, período do lançamento de sua primeira obra filosófica, De

L’Évasion (BUCKS, 1997, p. 22).

1.1.3 Levinas e a experiência da Segunda Guerra Mundial

No ano de 1933, o mundo assiste ao que seria a principal ascensão política na Europa

entre guerras, Hitler se torna chanceler da Alemanha e, logo em 1934, acaba o tratado de não

agressão com a Polônia, prosseguido pela morte do presidente alemão, abrindo as portas para

a tomada do poder pelo Führer. Esses fatos marcam o pano de fundo dos acontecimentos

antissemitas entre alemães e poloneses. Em 1936, a Alemanha firma com o Japão o tratado

anti-comitern, apoiado logo depois pela Itália (HENIG, 1991, p. 5-7). Forma-se, neste

período, a aliança que instaurou o terror militar na Europa e no extremo Oriente, culminando

na Segunda Guerra Mundial.

Segundo Erhlich, o desenvolvimento das teorias de supremacia racial era produto das

influências da teoria evolucionista darwiniana: o mais forte sobrevive em detrimento do mais

fraco, propiciando o surgimento de correntes antijudaísmo. Ainda, segundo ele, o

antissemitismo foi um termo criado no fim do século XIX para elucidar o ódio contra os

judeus a partir de bases raciais, e não mais religiosas. Vários movimentos aderiram ao

sentimento antissemita no fim do século XIX, décadas à frente de um desses grupos, o mais

conhecido foram os “Nacionais Socialistas”, liderado por Adolf Hitler na Alemanha, também

chamado de Nazismo (ERHLICH, 2012, p. 22).

O Nazismo colocou em prática um terrível e eficaz projeto de perseguição, tortura e

homicídios que chegou a dizimar cerca de dois terços dos judeus da Europa. Isso significou

aproximadamente um terço da população judaica durante o evento trágico do Holocausto

(1941-1945). O ápice do sanguinário projeto nazista antissemita foi entre os anos de 1933 a

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1945 (ERHLICH, 2012, p. 22), período esse em que Levinas já deixara o leste da Europa e se

estabelecera na França.

A Alemanha da Segunda Guerra Mundial colocava em prática um plano econômico de

sustentação fiscal da guerra, tratando os povos não-alemães conquistados como inferiores –

judeus, russos e poloneses principalmente – como escravos descartáveis, sem a mínima

necessidade de mantê-los vivos. O trabalho escravo sustentava a necessidade de mão de obra

constante para manutenção alemã no conflito. Diferentemente das demais potências, onde se

utilizava a mão de obra nacional, a Alemanha nazista preferia ocupar, escravizar e livrar seus

cidadãos desse empreendimento (HOBSBAWM, 1995, p. 54).

Um dos planos de Hitler para uma Alemanha vitoriosa na Segunda Guerra Mundial

envolvia diretamente os judeus e os povos não alemães. Hitler era obcecado pela ideia de agir

a favor da purificação racial da Alemanha, ou seja, de manter a “raça alemã” longe das

misturas étnicas, que, segundo ele, tal contato possibilitava o corrompimento da raça ariana.

Para ele, a raça judia era a mais perigosa dentre as demais e deveria ser controlada como se

combate uma doença contagiosa para não sair de controle. Para isso, os nazistas empenharam-

se em proteger os alemães dos judeus, eslavos, russos ou qualquer outro povo dito inferior

(HENIG, 1991, p. 28).

O leste da Europa, onde Levinas nasceu e peregrinou, era um sonho para Hitler. Além

da purificação da raça alemã, a Alemanha precisaria expandir-se territorialmente para que sua

raça superior pudesse sustentar-se. O leste europeu se tornou propício para tão desumana ação

nazista, que visava à ocupação, à retirada de sua população local e ao estabelecimento dos

alemães. Este seria, enfim, o estabelecimento do Terceiro Reich6 (HENIG, 1991, p. 29).

Se em 1933 já havia alguns campos de concentração para inimigos do governo nazista,

inúmeros outros foram construídos para judeus, ciganos, homossexuais, Testemunhas de

Jeová e povos não alemães. Se o leste europeu estava abarrotado de judeus, que, além de

viverem em um local estrategicamente importante para os planos de Hitler, também

representavam a grande raça inimiga da raça pura germânica: obviamente que sua presença na

Europa deveria ser varrida para que alemães não mantivessem contato com eles. Este

antissemitismo chegou a tal ponto no governo de Hitler que, em 1935, foi promulgada, na

Alemanha, uma lei que proibia os alemães de casar-se ou manter relações sexuais com judeus,

com o objetivo de conservar a raça ariana imune ao contato com esses povos aqui já citados

(HENIG, 1991, p. 31).

6 O Primeiro Reich fora o Sagrado Império Romano Medieval da “nação germânica” e o segundo fora o Império

Alemão fundado por Bismark em 1871.

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É nesse contexto histórico da primeira metade do século XX que Levinas se situa. Em

1936, ele publica a primeira meditação filosófica, de caráter pessoal, intitulada De l’Évasion,

como uma espécie de presságio às angústias da guerra que eclodiria três anos depois

(BUCKS, 1997, p. 22). Lévinas já tinha experimentado a realidade antissemita na Revolução

Russa e, mais uma vez, vê-se diante de mais um atentado contra a liberdade. Alguns grandes

intelectuais, que professavam a fé judaica, escreviam e participavam do movimento que

visava a combater o fascismo e o antissemitismo, como, Blanchot, Paul Ricouer e Merleau-

Ponty, sendo que alguns foram presos, deportados ou exilados, assim como Levinas (MELO,

2003, p. 15).

Em 1939, serviu ao exército francês como suboficial-intérprete do idioma russo, no

entanto, já um ano depois, foi capturado e preso junto com outros militares franceses. De

início, esteve preso na Bretanha com prisioneiros africanos, depois foi enviado para um

campo de concentração na Alemanha. Judeu declarado, porém poupado da deportação pela

farda, foi enviado de volta junto com outros judeus num comando especial. Entretanto, sua

família não obtivera o mesmo futuro: ainda no início da guerra, sua família foi vitimada pelo

regime nazista na Lituânia. Contudo, na França, sua esposa e sua primogênita foram salvas

recebendo abrigo, de início, da comunidade judaica e, em outro momento, das irmãs do

convento de S. Vicente de Paulo (MELO, 2003, p. 15).

Esse período de sua vida marcou para sempre sua filosofia e sua compreensão

religiosa, já que, em meio à guerra, observa-se uma grande crise na teologia judaica com a

perseguição aos judeus, resultado da campanha de extermínio por parte dos nazistas. Logo,

Levinas se aproxima de um ateísmo, motivado pela falta de esperança frente ao terror

totalitarista encabeçado pela Alemanha. Entretanto, contrariando essas expectativas, ele passa

a dedicar-se aos estudos judaicos em Paris, após a guerra, chegando a assumir a direção da

Escola Normal Israelita na capital francesa, tornando-se um grande expoente da reflexão

judaica e da filosofia do século XX (HUTCHENS, 2009, p. 21).

Com o fim da guerra, Levinas assume a direção do Instituto de Estudos Judaicos em

Paris, onde se dedicara às investigações sobre o Talmude com um grande especialista

chamado M. Chouchani. Dessa experiência será produzido um grande volume de estudos

talmúdicos, com a dedicação de cerca de trinta anos de estudos a respeito do tema

(HUTCHENS, 2009, p. 21).

Nas décadas de oitenta e noventa, serão publicadas grandes obras como resultados de

cursos, conferências, artigos, ensaios e aulas ministradas em universidades famosas na Europa

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e nos Estados Unidos. Sua morte está datada em 25 de dezembro de 1995, com quase 90 anos.

Foi sepultado no Cemitério do Patin, em Paris, onde repousa junto ao corpo de sua esposa

Raïssa (BUCKS, 1999, p. 18).

1.2 AS OBRAS DE EMMANUEL LEVINAS

Não há um consenso na divisão histórica das obras de Emmanuel Levinas, no entanto,

a maioria dos seus comentadores prefere dividi-las em três períodos, entretanto, existe outra

proposta que apresenta um quarto período. Não se esgotando as possibilidades de

periodização do vasto histórico de publicações de Emmanuel Levinas, outros comentadores

propuseram um quarto período sem, porém, eliminar os anteriores. Eles são S. Petrosino e J.

Rolland e de acordo com a proposição destes, este novo período trata de novos temas

filosóficos, não abordados nas alternativas anteriores. A vigilância, má consciência, tempo e a

morte são alguns exemplos desses novos tópicos na filosofia de Levinas. Neste momento, três

publicações são destaques De Dieu qui vient à l’idée (1982), Entre Nous (1991) e Dieu, la

mort et le temps (1993), este último como produto de cursos ministrados em 1975 a 1976

(BUCKS. 1997, p. 32), que é nossa obra levinasiana, base para este estudo, em especial para a

reflexão no próximo capítulo, com o tema central da morte na compreensão do nosso filósofo

nessa referida produção.

Stephan Strasser (1905-1991) propõe outra didática na periodização das publicações

de Emmanuel Levinas, no entanto também as divide em três períodos. Bucks cita:

[...] Strasser situa em torno do ano de 1947 o primeiro período, caracterizado

pela crítica de Levinas à ontologia. O ser não é mais considerado na linha de

Heidegger como mistério gratificante, mas como “o mal de ser”, o “há”

anônimo que carece de sentido. O segundo período, Strasser caracteriza pelo

lema: metafísica em vez de ontologia fundamental. Não se fala mais do “mal

de ser”. Agora, o problema é que a ontologia tradicional considera o ser

como “totalidade”, o que torna impossível uma verdadeira transcendência.

Para Levinas, o infinito faz explodir na totalidade. Esse período abrange

Totalité et Infini e os estudos que preparam essa obra. O terceiro período é

caracterizado pela “ética” como filosofia primeira. Nesse período não se fala

mais de metafísica, e sim da ética como transcendência do ser. (BUCKS,

1997, p. 30).

Entretanto, na parte que se segue, trabalharemos tanto a diferença entre as divisões

históricas das obras levinasianas, como também explicitaremos os três grandes períodos

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apontados pela maior parte dos estudiosos sobre Levinas – O Primeiro Período (1929-1951),

O Segundo Período (1952-1964) e O Terceiro Período ou “período ético” (1965-1995).

Já podemos adiantar que a obra à qual iremos nos ater nos próximos capítulos, Dios, la

muerte y el tiempo (1998), está situada no Terceiro Período ou “período ético”, como veremos

mais adiante. Como consequência desse período da produção filosófica de Levinas,

perceberemos como o tema ético diante da morte e do tempo são proposições comuns durante

toda a obra, como característica particular deste recorte histórico de sua vasta jornada

bibliográfica.

1.2.1 O primeiro período (1929-1951)

Como colocado anteriormente, a trajetória das publicações de Levinas é dividida em

três períodos de acordo com alguns comentadores, como U. Vázquez7. O primeiro período,

que vai de 1929 a 1951, trata principalmente de sua produção acerca da fenomenologia de

Edmund Husserl e Martin Heidegger. Nesse período, o autor publica sua tese de doutorado

em 1930, com o título de Théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl; em 1931,

traduz a obra de Husserl Meditations Cartésiennes, do alemão para o francês; em 1935,

publica De l’Evasion, em 1947, De l’Existence a l’Existant e, em 1948, Le Temps et l’Autre

(SOUZA, 1999, p. 47).

Historicamente, o primeiro período das produções filosóficas de Emmanuel Levinas se

centra logo após a peregrinação de sua terra natal – a Lituânia – até Paris, passando por

Karkov na Ucrânia e, principalmente, a partir do norte da França, em Estrasburgo. Segundo

Nilo Ribeiro Júnior (2005, p. 25), esse momento na vida do nosso filósofo de Kaunas está

ligado ao seu nomadismo pessoal, numa reflexão da vocação dos judeus em não se estabelecer

em seu lugar de origem. Ainda segundo o autor, sua filosofia será influenciada diretamente

por essas sucessivas peregrinações até sua terra final, filosofia essa, marcada pela

sensibilidade bíblico-judaica, tema que nos é muito importante para a reflexão sobre a morte.

Os primeiros dois anos na Universidade de Estrasburgo, entre seus contatos estavam

Marc Bloch e Lucien Fevbre, quando se dedicou ao estudo do latim, em 1923, para sua

7Doutor em Teologia, Universidad Pontificia Comillas, Madrid, 1979. Como já fora citado antes, Vázquez expõe

a periodização das obras de Levinas em sua obra Tal periodização está expressa na obra intitulada A teologia

interrompida, para uma interpretação de E. Levinas, 1982, p. 55-57.

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dissertação na Faculdade de Letras, que seria aprovada logo no ano seguinte, a respeito do

filósofo Immanuel Kant. Nesse mesmo período, as ideias de Bergson e Durkheim estavam

marcando fortemente o pensamento filosófico daquela época, e não seria diferente com o

nosso filósofo. Mas é o contato com a fenomenologia de Edmund Husserl que dará um norte

para as intenções filosóficas de Levinas, que, após o título de mestre, não pareciam muito

concretas. A dedicação assumida entre ele e seu colega Blanchot em iniciar as leituras de

Heiddeger levou-o a decidir pelo doutorado em 1927, escolhendo o tema da teoria da intuição

em Husserl (RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 25).

Em destaque na universidade, Levinas foi escolhido para representá-la como aluno

estrangeiro em seminários ministrados por Husserl na Universidade de Friburgo, na

Alemanha: um no verão de 1928 e outro no inverno de 1928-1929. Nesse período, Levinas

manterá relações bem próximas com a família de seu mestre, como vimos anteriormente,

dando aulas de francês para sua esposa. O que recebia, ajudava a manter-se no período em

que permaneceu na universidade alemã (RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 31).

Levinas não apenas se restringiu ao contato com Husserl em seus seminários, levando

em consideração que fora para isso que ele foi enviado a Friburgo, pelo contrário, o contato

com Heidegger em suas palestras e em sua reflexão filosófica, através das leituras de Sein und

Zeit, fe-lo se render à fenomenologia existencial heideggeriana. Lembrando que Heidegger

era aluno de Husserl e seu principal porta-voz das reflexões fenomenológicas husserlianas,

como já vimos antes. Retornando para a França, nosso filósofo defende sua tese em 4 de abril

de 1930, intitulada de La théorie de L’Intuition dans la Phénoménologie de Husserl

(RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 32).

Após a defesa de sua tese de doutorado em 1930, e a Segunda Guerra Mundial já

batendo à porta, Levinas. aos poucos. vai sendo apresentado à capital francesa. Recebe a

cidadania francesa em 1931, presta serviço militar em 1932 no exército da França e se casa

com Raïssa, trocando Estrasburgo por Paris – a rota final de sua peregrinação pessoal. Ainda

em 1932, Levinas assume a direção da Aliança Israelita Universal com o objetivo de estimular

a reflexão religioso-filosófica através de publicações por parte dos judeus de vários lugares

(RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 33).

Sobre o hitlerismo, Levinas publica na revista do catolicismo progressista Esprit,

intitulado Quelques Réflexions sur la Philosophie de l’hitlerisme em 1934, que tratava.

Principalmente. de uma relação com a filosofia de Heidegger (questão ontológica) e a

“filosofia do hitlerismo”. Essa última irá impactar bastante nosso filósofo, principalmente no

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que concerne às questões éticas de seu pensamento, chegando a denominá-la de “nova moral”,

devido ao teor racista e da ideologia do poder. Para finalizar sua condição de indivíduo livre,

em 1936. antes de ser preso em guerra, nosso filósofo publica sua primeira reflexão de caráter

pessoal, com o título de De l’Évasion. (RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 35-36).

Nosso filósofo se aproxima de quem ele mesmo denominou como um mestre do

Talmude, M. Chouchani. Entretanto, ainda na prisão, Levinas escreve parte de sua primeira

obra sob o título De l’Existence a l’Existant, que foi publicada após o fim da guerra,

exatamente em 1947. Todavia. o esboço primeiro de sua filosofia surge das aulas que

lecionava no Colégio Filosófico de Paris, convidado pelo próprio fundador, o filósofo J.

Wahl. Dessas aulas surgiram as publicações em 1948 de Le temps et l’Autre; em 1949, En

Découvrant l’Existence avec Husserl et Heidegger (RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 37-38).

Quando era diretor da Escola Normal Israelita em Paris, entre 1946 a 1964, Levinas

demonstrou interessar-se principalmente por questões acerca da educação judaica, a situação

do judaísmo no mundo e pelo estudo dos assuntos referentes aos judeus, como, por exemplo,

a criação do Estado de Israel. No tempo em que foi diretor da escola, o autor acumulou uma

série de produções a respeito dos temas judaicos, um período de aproximadamente trinta anos,

que tanto abrange o primeiro período, quanto o segundo período da filosofia levinasiana. Sua

reflexão sobre tais temas foi publicada à época em diferentes revistas e periódicos, como

Évidences, l’Arche, Journal des Communautés, Les Nouveaux Cahiers e Les Temps

Modernes. Vale ressaltar que. enquanto muitos intelectuais judeus se posicionavam sobre a

guerra árabe-israelita, Levinas preferiu não se envolver, por achar que “ser judeu, para ele,

não quer dizer o mesmo que ter uma pátria judaica, um Estado de Davi” (MELO, 2003, p.

17).

1.2.2 O segundo período (1952-1964)

Este momento se caracteriza pelas obras mais pessoais de Levinas, no entanto, não é

só isso, o autor também se distancia das teses de Husserl e, principalmente, de Heidegger.

Podemos abarcar este período como fazendo parte das publicações sobre seus estudos

judaicos, iniciados no momento anterior e estendendo-se até a segunda fase de sua filosofia,

ou seja, cerca de trinta anos de empenho a respeito dos temas judeus. (MELO, 2003, p. 17).

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Em tratando de produção acadêmica, na segunda metade do século XX, Levinas

acumularia uma vasta coletânea bibliográfica e maior maturidade em suas proposições

filosóficas. Já em 1957, participa regularmente dos Colloque des intellectuels juifs, cujas

proposições lhe renderiam famosas publicações posteriores como Quatre lectures

talmudiques, Du sacré au saint, Cinq nouvelles lectures talmudiques, Au dèla du Verse e A

l’heure des nations (MELO, 2003, p. 18).

Em 1961, viria sua mais famosa obra, Totalité et Infini, uma obra marcante e

complexa. Devido à sua dedicação e empenho nas pesquisas sobre os temas a respeito do

judaísmo e, em seguida, às suas várias publicações, Levinas passou a ser admirado tanto nos

meios judaicos franceses, quanto nos não judaicos e em outros países. Em 1963 seria

publicado Difficile Liberté, uma reunião de ensaios sobre o judaísmo, sendo reeditado em

1976. Ainda sobre temas judaicos, nosso autor lança obras importantíssimas para sua filosofia

e estudos talmúdicos no terceiro período, como Quatre lectures talmudiques (1968) e

Humanisme de l’autre homme (1972), (MELO, 2003, p. 19).

Podemos citar como desse momento as seguintes publicações: La Philosophie et l'Idée

de l'Infini (1957), Intentionalité et métaphysique (1959), Réflexions sur la 'Technique'

phénoménologique (1959) e A priori et subjectivité (1962) (SOUZA, 1999, p. 47).

É imprescindível falarmos das grandes contribuições da filosofia francesa ao

pensamento filosófico de Levinas, uma vez que, nesse período, nosso filósofo já está

familiarizado com a vida parisiense e, principalmente, com sua cultura filosófica. Suas

reflexões judaicas agora aparecem mais vívidas em sua filosofia marcada pela fenomenologia-

existencialista e pelo pensamento talmúdico. Ao se distanciar da filosofia hegeliana, na qual

ele atribui o pensamento de Hegel ao pensamento da totalidade, nosso filósofo faz uma clara

oposição ao Espírito absoluto hegeliano aos seus estudos da Fenomenologia do Espírito

partindo do pensamento do filósofo judeu Rosenzweig (RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 119).

Fica claro o distanciamento desse período do pensamento de seus interlocutores

primeiros, Husserl e Heidegger, mas também da filosofia hegeliana, com a qual iniciou suas

leituras antes da Segunda Guerra Mundial, retomando-a enquanto esteve no exílio na

Alemanha. Sobre essa oposição levinasiana a Hegel, Ribeiro Júnior diz que este momento da

filosofia de Levinas é:

“... sobretudo, com certa apologia contra a filosofia hegeliana, seja do ponto

de vista de sua fenomenologia idealista, seja em relação à definição de

subjetividade, de religião, política, ética, etc. Esta oposição justifica-se

porque o autor identifica a filosofia hegeliana como a legitimação ideológica

das atrocidades das guerras e do nazismo. A razão revelou-se responsável

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pela imoralidade que produziu o horror do assassinato do homem pelo

homem” (RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 119-120).

Como veremos na próxima sessão deste capítulo, Levinas é um grande crítico do

pensamento ocidental, que se revela um ditador implacável das pretensões de abstração e da

subjetividade do pensamento filosófico. Este período, como já foi exposto, é de intensa

produção sobre temas judaicos, após ter passado por grandes crises bíblico-teológicas após o

trágico episódio do Holocausto. Enquanto esteve à frente da Aliança Judaica Francesa de

Paris, empenhou-se em reconciliar a filosofia e o pensamento religioso através dos estudos

sobre o Talmude. Entretanto, esse interesse não se deu apenas por sua confessionalidade

religiosa, mas como caminho de romper com essa hipocrisia cientificista do Ocidente

(RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 120).

Já no final do primeiro período, podemos observar a relação insolúvel para Levinas

entre filosofia e religião. No entanto, será no segundo período de suas produções que essa

afinidade estará melhor perceptível. Para o nosso autor, a religião se revela na relação com o

outro, e a filosofia, na sabedoria como responsabilidade pelo outro. Tanto uma como outra

estão ligadas à reflexão sobre a ética como forma irredutível da responsabilidade com o outro

(RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 121), que, para nosso filósofo, é complementemente oposto ao

pensamento filosófico de autonomia, como foi dito anteriormente.

A filosofia do judeu Rosenzweig propôs a Levinas pensar numa religião que rompesse

o totalitarismo do pensamento filosófico de Hegel e Marx, cuja Razão e o Estado filosófico

transformaram o homem em refém do sistema, mesmo prometendo-lhe justamente o oposto: a

libertação de todas as escravidões. Rosenzweig está muito presente na reflexão levinasiana,

apresentada na mais importante obra do segundo período, Totalité et Infini (1961), quando o

filósofo de Kaunas reflete sobre a ética como filosofia primeira. Nem a filosofia proposta por

Hegel nem tampouco por Marx propõem pensar o sujeito para além do pensamento racional

ocidental, ou seja, a favor de qualquer forma de subjetivação, inclusive a religião (RIBEIRO

JUNIOR, 2005, p. 121-122).

A filosofia ocidental, praticamente, propõe uma “religião da razão”, sugerindo uma

forma totalizante do pensar. Levinas pega o caminho contrário, o indivíduo não pode ser

despido de seu direito de individualidade, mas é confrontado com o mesmo direito individual

da outra pessoa. Para o pensamento levinasiano, esse tipo de pensamento filosófico não

respeita a singularidade e, muito menos, a dignidade do homem (RIBEIRO JUNIOR, 2005, p.

122-123).

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A religião é em si a responsabilidade pelo outro homem, e isso a compreensão da

racionalidade do ocidente, que prega a autonomia, não capta. A ética é tanto filosofia quanto

religião, e o infinito já o é enquanto vivo, não há temporalidade e se expressa no rosto da

outra pessoa. Enquanto a filosofia ocidental cultua o “amor à sabedoria”, Levinas nos

interpela a pensar sobre uma “Sabedoria do amar”, uma reflexão ética como filosofia primeira

e, também, o desafio religioso monoteísta judaico do “amar ao próximo como a ti mesmo”

(RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 124 -125).

Neste segundo período, Levinas se dedica a uma produção filosófica que visa a refletir

sobre as leituras do Talmude, especialmente em oposição à crescente leitura de Heidegger na

França. Principalmente enquanto esteve na direção da Escola Normal Israelita do Ocidente, e

em pleno e produtivo contato com o mestre talmúdico Chouchani. A intenção era fomentar a

reflexão filosófica entre os judeus logo após o evento do Holocausto, como forma de repensar

a identidade judaica no pós-guerra. Somando-se filosofia e pensamento judaico em crescente

releitura na década de 1950, chegamos aos Colóquios de Intelectuais Judeus como proposta

de reinterpretação das questões judaicas nesse período, como “a consciência judaica diante da

história, da guerra, do perdão, da moral, da política, dentre outros” (RIBEIRO JUNIOR, 2005,

p. 126).

Até o fim do segundo período, podemos destacar algumas obras de maior importância

para a filosofia levinasiana, como, por exemplo, as suas Leituras Talmúdicas como uma

proposta de apresentar essa literatura a um grupo de intelectuais não talmudistas, como

apresenta Ribeiro Júnior, numa tentativa de refletir o Talmude com uma linguagem moderna

com temas relevantes para os grupos intelectuais judeus. Em 1963, sua publicação intitulada

Difficile Liberté reúne seus escritos sobre o judaísmo, a cujo tema se dedicou desde o

primeiro período (RIBEIRO JUNIOR, 2005, p. 127 -129).

Em decorrência de seus escritos sobre os filósofos, Levinas republicara, em 1967, sua

obra de 1949, En Decouvrant l’existence avec Husserl et Heidegger, que, em sua segunda

edição, conta com novos comentários sobre os filósofos. Sua obra mais importante de todo o

segundo período é Totalité et Infini, que foi sua tese defendida na Universidade de Paris, em 6

de junho de 1961. Essa obra é, em síntese, um resumo de toda sua filosofia até então. No

entanto, tem o caráter de filosofia pessoal, já que as outras obras foram, geralmente,

resultados de vários artigos publicados em diversas revistas de filosofia (RIBEIRO JUNIOR,

2005, p. 130 -131).

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1.2.3 O terceiro período ou “período ético” (1965-1995)

O terceiro período, que se estende de 1965 a 1995, também chamado de período ético,

é o momento de maior maturidade do autor, não só por sua produção filosófica e talmúdica,

mas também pela maturidade de sua filosofia e seu reconhecimento fora da França. É entre

esses anos que ele publicará importantes obras, como: Humanisme de l’Autre Homme (1972),

Autrement qu’être ou au-delà de l’essence (1974) e Deus e a Filosofia (1975). É também

nesse período que o filósofo de Kaunas publica algumas obras importantes sobre o nome de

Deus, o Estado e a Tradição judaica, como em 1968 Quatre Lectures Talmudiques e em 1977

Du Sacré au Saint (SOUZA, 1999, p. 47).

Esse, sem dúvida alguma, foi o período mais produtivo da filosofia de Emmanuel

Levinas. Após 1979 foram publicadas grandes obras, como De Dieu qui vient à l’idée (1982),

Éthique et Infini (1982), Transcendance et Inteligibilité (1984), além das produções que

derivaram de cursos e escritos filosóficos, bem como os mais antigos, tanto os mais recentes,

como Hors Sujet (1987), À l’Heure des Nations (1984), Entre Nous (1991) e Dieu, la mort et

le temps (1993) (MELO, 2003, p. 18) – esse último como resultado de suas aulas ministradas

nos anos de 1975-76 na Universidade de Paris.

É também neste período que o autor lança suas principais obras sobre a reflexão

judaica, resultado de anos de estudos talmúdicos com seu mestre, M. Chouchani. Algumas

dessas publicações vieram através das apresentações de Levinas nos Colóquios dos

intelectuais judeus em Paris, como, por exemplo, Quatre Lectures Talmudiques (1968), Du

sacre au Saint (1977) e Au delà du Verset (1982) (MELO, 2003, p. 19).

São quarenta anos de produção filosófica nos quais, parte desse período, o filósofo

esteve à frente da Escola Normal Israelita do Oriente, o que viabilizou a produção de uma

vasta bibliografia sobre as leituras talmúdicas. Além das apresentações nos Colóquios de

Intelectuais Judeus em Paris, que culminaram com a publicação de vários artigos e, em anos

posteriores, na reunião desses escritos em obras de valores inestimáveis para o pensamento

filosófico e teológico-judaico do século XX (RIBEIRO JUNIOR, 2008, p. 20-21).

Segundo Ribeiro Junior, dois fatos históricos influenciaram Levinas no terceiro

período, bem como a sua filosofia. São eles a guerra dos seis dias entre israelenses e árabes,

em junho de 1967, e a greve geral dos estudantes e trabalhadores franceses em maio de 1968.

O período ético é caracterizado, principalmente, pelo fim da filosofia como crise do

humanismo no ocidente, e pelo movimento estudantil de 68, que representou o acirramento

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das contradições do sistema vigente, numa busca por liberdade em estágios múltiplos da

sociedade. O autor afirma:

O fato reacendeu nos judeus espalhados pelo mundo inteiro um aguçado

sentimento de pertença a Israel. Isto fez que fossem acentuados o valor e a

importância do Estado de Israel como Estado Moderno. O conflito com os

árabes teve forte repercussão no pensamento de Levinas, a ponto de, em seus

escritos sobre judaísmo, ele se perguntar se “depois de junho de 67 há uma

nova maneira de ser judeu” (DL 360).

O segundo evento [...] atua como indicador do nível a que chegou a

contradição do humanismo ocidental, identificado com a razão moderna,

refém da própria autonomia. O humanismo se viu, naquele momento,

questionado pela reivindicação da absoluta autarquia da liberdade (RIBEIRO JUNIOR. 2008, p. 22-23).

O hegelianismo, que produzira um ser humano autônomo, tornou o próprio ser em

escravo de suas obras, como afirma Ribeiro Júnior, numa espécie de humanismo

desumanizado, refém de suas ações infecundas de humanidade. Não há humanidade no ser

humano cercado por aparatos cientificistas, e em crise com sua própria compreensão de ser

humano. O homem de atitudes heroicas e corajosas parece ter sido abalado pelo anti-

humanismo que anunciara o “fim da essência do homem”, ou o fim da moral, o fim da

filosofia (RIBEIRO JUNIOR. 2008, p. 25).

Pois bem, em 1974, temos mais uma grande obra, como um conjunto de artigos

escritos por Levinas iniciado logo após Totalité et Infini, que foi publicado com algumas

modificações e acréscimos, sob o título de Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Nessa

obra, como já mencionamos anteriormente, nosso filósofo relembra a memória de sua família

que fora exterminada na Segunda Guerra Mundial pelo antissemitismo nazista no leste da

Europa, e reflete sobre uma moral que procura as melhores condições de proporcionar apenas

o bem e a felicidade da outra pessoa, com o objetivo de se contrapor ao homem que deseja

manter o poder perante outro homem (RIBEIRO JUNIOR. 2008, p. 52).

Em vista disso, na filosofia humanista levinasiana, como o homem poderia ser

humano, ou humanizado, ou ainda humanizador na década de 1970, se o mundo estava à beira

de uma catástrofe nuclear? Segundo Júnior, era o que os filosófos italianos se perguntavam

frente à filosofia de Levinas. A resposta se direciona para o pensar sobre a paz:

[...] paz que é vida para os outros e esquecimento de si; paz inquieta como

amor, isto é, um pensamento que acede ao único em cada um ao único do

outro para além da universalidade em que ele é particular (RIBEIRO

JUNIOR. 2008, p. 53).

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Segundo Ribeiro Júnior (2008, p. 54-55), Autrement qu’être reflete bem o terceiro

período das produções filosóficas de Levinas, que é por excelência o período ético de sua

filosofia. Essa obra representa o auge de sua reflexão ética e exprime o mal praticado pelo Ser

contra o rosto do outro. Nosso filósofo de Kaunas quis propor uma ética que rompesse com a

totalidade do Ser e que preservasse a unicidade e irredutibilidade do ser. Assim, a ética

levinasiana é constituída pela responsabilidade ao apelo do rosto, que é o lugar em que Deus

fala.

Como já foi falado antes, e refletiremos melhor na partição que se segue, a

cientificidade moderna do Ocidente tende a desprezar o não científico e, neste desprezo,

inclui-se a teologia. Será nesse período ético que Levinas não demonstrará problema algum

em reatar filosofia e teologia. Para ele, a teologia começa no rosto do próximo. A sua

linguagem do profetismo, como seu discurso filosófico, atinge seu ápice na intriga ética. A

linguagem teológica é a própria linguagem dessa intriga ética (RIBEIRO JUNIOR. 2008, p.

55).

1.3 A CONTRIBUIÇÃO DO TEMA DA CONDIÇÃO JUDAICA EM LEVINAS

Por Levinas ser um judeu confesso, sua filosofia está em consonância com o

pensamento religioso do Tamulde ao qual ele dedicou vários anos de estudos com seu grande

mestre Chouchani. Esse período lhe rendera algumas de suas principais obras sobre o tema,

como foi falado anteriormente. Nesta parte do capítulo, dedicaremos ao que Levinas abordou

sobre a condição judaica no século XX, e todas as suas crises diante dos eventos catastróficos

contra a dignidade humana de direito à vida, principalmente a Segunda Guerra Mundial, e os

desdobramentos dela em conflitos regionais pós-estabelecimento de Israel como um Estado de

direito.

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1.3.1 O tema da condição judaica na primeira fase da filosofia de Levinas

Como já vimos anteriormente, Levinas era um religioso judeu dedicado às reflexões

bíblica e talmúdica, além de ter visto de perto os horrores empreendidos, por conta de se

confessar desta matriz religiosa em meio a uma tumultuada época de guerras. Sua dedicação à

reflexão bíblico-talmúdica possibilitou uma vasta produção bibliográfica sobre o tema, como

diz Pelizzoli (2002, p. 23), desde o político ao religioso, do filosófico ao ético.

Também é importante destacar que Levinas é do leste da Europa e, por isso, sua

formação primeira envolvia a produção literária russa. No entanto, em contato com o

ocidente, nosso filósofo se debruça sob a filosofia grega e seu pensar racional,

compreendendo-a como violenta, mas que ainda assim orienta as sociedades contemporâneas

no ocidente. Fatores importantes devem-se levar a cabo quando se trata da filosofia

levinasiana, como essa foi marcada por diversas fontes da literatura e filosofia, tanto do

ocidente quanto do oriente, bem como as marcas deixadas pelo furacão chamado Nazismo,

como discutimos anteriormente (PELIZZOLI: 2002, p. 23-24)

Não podemos deixar de citar a grande influência que exerceu a filosofia do também

judeu Rosenzweig no período entre guerras sobre o pensamento de Levinas. A proposta de

uma ética judaico-cristã de paz mundial em um momento tão delicado e violento, como fora o

inflamado e curto tempo entre as duas Guerras Mundiais, parece ter encantado a Levinas.

Pelizzoli retoma uma crucial indagação para a reflexão filosófico-judaico francesa desse

período: “Como filosofar depois de Auschwitz?”. A filosofia ocidental, que pregara a

emancipação do sujeito em detrimento do outro, provavelmente tenha levado as civilizações

do ocidente a se erigir utilizando-se do outro (PELIZZOLI: 2002, p. 24-25).

Sobre a condição judaica do primeiro período (1929-1951) das obras de Levinas,

Ribeiro Júnior (2005) apresenta a proposta levinasiana de antropologia do homem messias do

outro homem, graças às reflexões talmúdicas dedicadas pelo nosso filósofo durante cerca de

quarenta anos. Hermeneuticamente, podemos perceber uma mudança no pensamento

levinasiano, durante este primeiro período de suas obras, do método fenomenológico-dialético

para o método exegético-talmúdico. Isso quer dizer que Levinas aborda temas centrais para o

judaísmo naquele momento, como educação, vida e identidade judaica. Ainda segundo

Ribeiro Junior, nosso filósofo se distancia claramente dos denominados “judeus filósofos”,

que pretenderam sintetizar o judaísmo e a filosofia grega, dando sinais de aproximação com o

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existencialismo francês, contribuindo para que o filósofo de Kaunas elaborasse sua concepção

de judaísmo como “filósofo judeu” (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 57).

O que seria ser judeu diante do horror do Nazismo? Segundo Ribeiro Júnior apresenta,

os judeus não tinham uma segunda alternativa, estavam sendo atirados dentro do próprio

judaísmo, não como lugar espiritual, mas como uma verdadeira prisão. Não se podia negar o

judaísmo. Ele existia e pronto. Os ensaios sobre temas judaicos deste período perpassam a

consciência judaica como povo eleito, mas que sua eleição se caracteriza no sofrimento, o

terror do Nacional-Socialismo alemão, o advento do Estado de Israel, dentre outros

(RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 58).

Os ensaios filosóficos sobre o judaísmo, produzidos por Levinas entre os anos de

1949-1963, foram reunidos em uma de suas obras mais importantes sobre o tema, sob o título

de Difficile Liberté. Nosso filósofo se esforça em redefinir qual era a condição judaica após o

período hitlerista. Em síntese, esta condição judaica está ligada à crítica a uma religião

utópica e a busca por uma exegese talmúdica, sendo uma das grandes críticas pós-guerra

direcionada ao cristianismo. Um cristianismo como religião do Estado que, por várias vezes,

assimilou os judeus espalhados pela Europa. Levinas fala de um cristianismo como uma

religião à espera de um ato final milagroso e um pensamento ingênuo de redenção em uma

vida paradisíaca. A esse pensamento cristão, ele denomina como utopia cristã, que arranca o

homem de suas bases mais sólidas e o direciona a um pensamento religioso poético, em que

se inclui a relação com o outro (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 59-60).

Na década de 1940, os judeus passavam por uma enorme crise em sua identidade.

Primeiro, diante do terror nazista e, segundo, pelas numerosas conversões destes ao

Cristianismo. Diante disso, Levinas propõe a volta ao Talmude, um retorno aos estudos

bíblicos sobre o que é ser um judeu. Sua reflexão filosófico-teológica se dedica a pensar não

só na condição judaica, mas também na condição humana como tal, no homem e sua

liberdade de ser homem, tentando justificar o sentido da felicidade e da dignidade humana.

No Talmude, a felicidade e dignidade humana estavam diretamente ligadas à compreensão de

“responsabilidade ou obediência à lei do outro anterior à liberdade”. A grande novidade da

ética levinasiana, em oposição ao homem livre da filosofia ocidental, era o “homem

responsável pelo outro homem” (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 62).

Em seu ensaio intitulado État d’Israel et Religion d’Israel (1951), Levinas toca num

assunto muito importante e debatido para a intelectualidade judaica desse período, o Estado

de Israel. De início, nosso autor admite que é no Estado Moderno que o homem atinge sua

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realização humana nos povos ocidentais, como o homem do humanismo, sendo um homem

num Estado. Mas, diferentemente dos Estados modernos cristãos, nosso filósofo defende a

inteira separação entre o Estado e a religião. Como no Cristianismo sacralizador da realidade,

o homem é um coadjuvante numa obra teatral em que Deus desumaniza o homem-pessoa, que

é um ser agente da história, para uma figura imóvel e coadjuvante. Levinas defende uma das

mais importantes características do Estado moderno, que é a “desmitologização” da

sociedade, para a qual o homem deve ser plenamente consciente de si mesmo, livre da magia

do Cristianismo (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 63).

O Estado de Israel8, para Levinas, seria constituído sob as bases da vida espiritual, no

entanto, dessacralizada em oposição ao Ocidente. Tendo uma religião como ética, proveniente

da reflexão rabínico-talmúdica. Então, o Estado de Israel representa a oportunidade ideal para

se “realizar a lei social do judaísmo”. Nesse Estado, segue-se um esquema: o Estado tem suas

bases na religião e a justiça é sua razão, a religião é uma religião ética9, e a realização da lei

social do judaísmo é a maior obra desse Estado de Israel. Através dessa compreensão,

podemos observar que a justiça do Estado (Israel) é proveniente das bases dessa religião ética,

cujo sentido entre justiça e ética se tornam insolúveis (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 61).

Enquanto o Cristianismo abre a relação do eu com o Outro após o encontro de cada

um com o mistério da religião, no judaísmo essa relação acontece mediante o encontro de

ambos, face a face, ou seja, antes de qualquer coisa porque, quando estou diante da outra

pessoa, já sou responsável por ela e necessito responder às interpelações éticas de seu rosto

com responsabilidade. Ao passo que a religião cristã se preocupa com a salvação individual

como resultado da moral proveniente do dogma, a religião judaica preocupa-se com a justiça

social como salvação do Outro, e não como a salvação de si próprio. A vida espiritual não se

revela no contato com o mistério, pois Deus já me fala pela mensagem irresistível do Rosto da

outra pessoa. É no Rosto do Outro que o eu tem a possibilidade de escutar-se a si mesmo e

não escutar-se para si mesmo (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 91-92).

8 O Estado de Israel representava para Levinas um meio importante para a questão ética. Com ele a tradição

rabínica poderia ser traduzida e aplicada a cada situação humana, sempre com o objetivo da justiça social. 9Levinas compreende a religião como um modo de viver espiritual e social baseado na observância das

Escrituras, tanto bíblicas quanto talmúdicas, que direcione o eu para relações éticas com o Outro. A preocupação

maior dessa religião ética é a ação moral e a preocupação pela justiça. Esse modo de viver proporcionou ao

Judaísmo do exílio não ser assimilado pelo Cristianismo ou pela racionalidade ocidental.

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1.3.2 O tema da condição judaica na segunda fase da filosofia de Levinas

No segundo período (1952-1964) das produções bibliográficas de Levinas, nosso

filósofo não tem a intenção de fazer apologia de uma religião mitológica. Como afirma

Ribeiro Júnior, neste período já contamos com as lições talmúdicas que reforçam o valor de

aprofundar a compreensão de uma religião como ética ou como filosofia, sem reduzi-la a tal.

Nesse momento da carreira de filósofo, a reflexão bíblico-talmúdica não só influenciou seus

escritos sobre o judaísmo, mas também a sua própria compreensão filosófica (RIBEIRO

JÚNIOR, 2005, p. 172).

A reflexão sobre a condição judaica não se esgota no primeiro período da produção

filosófica levinasiana, ela é continuada no segundo período com outra problemática. Levinas

apresenta um judaísmo sem judeus10

e judeus sem judaísmo11

, como característica de crise no

judaísmo moderno ou liberal. Podemos pedir o auxílio da história para compreender melhor

esta questão, caminho tomado pelo próprio Levinas. Desde o século XVII, os judeus foram

sendo assimilados pelas sociedades europeias do Ocidente, fato que ocorreu até o século XIX.

Com a eclosão das duas Grandes Guerras Mundiais no século XX ecoaram para além da

Europa o reconhecimento do povo judeu sem pátria, arrastado para o terror dos campos de

concentração e dizimada grande parte de sua gente no evento trágico do Holocausto

(RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 174).

No mundo moderno, o judaísmo não ficou imune às influências da racionalidade

moderna, porém havia tanto judeus que condenavam quanto judeus que defendiam. Os que

condenavam viam num judaísmo ritualístico a preservação de sua compreensão religiosa, a

fim de ficar bem longe da razão e de seus métodos científicos. Outros não resistiram às

possibilidades de redescobrir o judaísmo por meio da sociologia, da filosofia e do método

histórico-científico, afastando-se o máximo do ritualismo e do jugo da lei. Levinas é do

judaísmo intelectual e denuncia que a Sinagoga esvaziou a própria Sinagoga, ou seja, o

judaísmo ficou refinado a uma casa de oração. E diz mais, símbolos judeus separados do

estudo direcionam o judaísmo à condição de uma religião poética e cansativa. Por outro lado,

10

Para Levinas, a aproximação do judaísmo com as ciências modernas traria perigo para a própria identidade

judaica, pois, através das interpretações das ciências humanas, o judaísmo seria reduzido à mera história e esta

postura acadêmica fundamentaria a ideia de judaísmo sem judeus, escapando o verdadeiro judaísmo aos próprios

judeus. 11

O termo judeus sem judaísmo se dá pelo impedimento de reconhecimento das raízes judaicas pelos próprios

judeus, devido à assimilação desses pelas culturas cristãs nos Estados Modernos, mesmo que neste o Estado seja

separado da Igreja, o Cristianismo sempre impõe à vida pública e política sua determinação, calendário, arte e

principalmente moral.

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da mesma forma que a razão moderna ameaça o judaísmo de uma forma desigual, a

redefinição da concepção da religião judaica, através da inteligência do Talmude, pode

devolver ao judaísmo sua identidade de judaísmo (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 175).

Mas qual seria a condição judaica no segundo período? Para Levinas, a grande crise do

judaísmo se deriva da assimilação dos judeus pelas culturas ocidental-cristãs. Não só isso,

mas principalmente pela completa falta de interesse dos próprios judeus de refletirem sobre

isso. Para o nosso filósofo, os judeus “exilados” no Ocidente se renderam às tentações do

Estado Moderno, da emancipação pessoal, pela “moral do bem-estar” e pelo encantamento

diante da razão ocidental, sem ao menos se indisporem com essa assimilação. Pelo contrário,

responderam com pura passividade. A cultura cristã representou o distanciamento dos judeus

das raízes do judaísmo, por assimilação passiva. Como retornar às raízes judaicas então? O

próprio Levinas responde, voltando-se ao estudo das Escrituras e do Talmulde (RIBEIRO

JÚNIOR, 2005, p. 176-177).

Se, no primeiro período, Levinas apontava o Estado de Israel como a grande

oportunidade de se erigir “a lei social do judaísmo”, no segundo, desconfia das maravilhas

esperadas do Estado de Israel. Principalmente pela dúvida de que sua criação promoveria a

simples manutenção desses no mundo moderno ou se pretendia submergir sua eternidade no

contexto. Já podemos observar que há uma crítica à sedução do judeu que não reflete sua

própria condição como tal, ganhara um novo sedutor, um Estado Moderno próprio. Portanto,

Levinas se indaga se a própria realidade espiritual do judaísmo, de ser vocacionado a estar de

fora da história, não faz parte de sua própria realidade como judeu. A crise advém da religião

judaica, e a retomada dos judeus às fontes hebraicas simboliza a sua compreensão de que

existe uma identidade e essa está presente na literatura bíblico-talmúdica. Entretanto, nosso

filósofo busca conduzir os judeus a uma reflexão maior do que a retomada de uma religião

cultualística, mas à religião ética do judaísmo expresso na responsabilidade pelo Outro

(RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 178-179).

Para Levinas, o fim da tentativa de declarar o fim do judaísmo é através do judaísmo

intelectual-prático ou “judaísmo humanista”. Somente o universalismo judaico, que tem como

principal característica a ética advinda do Talmude, pode superar a totalização religiosa

dogmática do Ocidente. É através dos ensinamentos talmúdicos que o judeu poderá superar o

egocentrismo, ou egoísmo individual, tão vívido nas sociedades que passou a pertencer. O

judeu empenhado com o estudo do Talmude é uma voz que não se cala, um profeta, um ser

que não se deixa ser reduzido a uma instituição, é a sua identidade profética, típica do

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judaísmo, e que resiste à totalização do Ocidente sedutor (RIBEIRO JÚNIOR, 2005, p. 180-

181).

Emmanuel Levinas foi, enfim, um filósofo marcado pelos eventos históricos de seu

tempo, no que diz respeito à sua nacionalidade e condição religiosa judaica. Sua filosofia

carrega sua experiência direta com a morte das outras pessoas que viu durante sua vida,

principalmente no período de sua peregrinação e exílio. Aprofundaremos estas questões sobre

o tema da morte no próximo capítulo, em consonância com a reflexão levinasiana, abordada

nesta parte que se encerra.

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2 HEIDEGGER: TEMPO, MORTE E MEDO

Para, refletirmos sobre o pensamento levinasiano sobre morte e toda a emoção que se

abre diante dela, iremos abordar, neste capítulo, como filósofo franco-lituano entra em um

intenso diálogo tanto na obra Dios, la muerte y el tiempo como em Totalité et Infini sobre tais

temas, Heidegger e seu ser-para-a-morte. Tratar dos aspectos fundamentais da filosofia

heideggeriana que aqui nos interessa ao embate filosófico com Levinas, bem como seus

principais termos e abordagens, como o Dasein, seu ser-no-mundo, seu poder-ser, sua

temporaneidade, a angústia e o medo, além de outros importantes conceitos caros para a

filosofia de Heidegger que diretamente entra em diálogo com a crítica levinasiana sobre o ser

que se projeta para o seu próprio fim.

Dedicaremos-nos, na primeira parte deste capítulo, a apresentação de um breve

histórico de Martin Heidegger ,bem como sua trajetória acadêmica, seu desenvolvimento na

filosofia fenomenológica e como discípulo de Edmund Husserl; além de seu envolvimento

com o Nazismo, fato que o distanciara de vários intelectuais judeus, inclusive Levinas. Em

um segundo momento, trataremos da concepção heideggeriana sobre o tempo em sua obra-

prima Ser e Tempo (1927) e como Levinas interpreta a ideia de tempo na filosofia de

Heidegger. E, por fim, na última parte deste capítulo, abordaremos o tema da morte segundo o

filósofo alemão, um estudo sobre a angústia, medo e, principalmente, acerca do ser-para-a-

morte heideggeriano.

2.1 HEIDEGGER: HISTÓRIA, SER E TEMPO E O DASEIN

Nesta sessão, trataremos de um breve histórico pessoal do filósofo alemão, bem como

sua projeção para o mundo da filosofia alemã e suas influências enquanto estudante, que trará

marcas para a sua filosofia posteriormente. Abordaremos também a relação de Heidegger com

o nazismo e seus desdobramentos em sua vida pessoal e em sua vida como filósofo.

Refletiremos sobre seus temas principais e sobre o esboço de sua principal obra, Ser e Tempo.

O Dasein e seus modos de pode-ser, bem como o tempo próprio do ser-aí e suas repercussões

no Ser do Dasein.

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2.1.1 O histórico pessoal do Martin Heidegger: Da teologia à questão sobre o Nazismo

Martin Heidegger nasceu na Alemanha, mais especificamente na cidade de Messkirch,

em 26 de setembro de 1889. Fazia parte da Companhia de Jesus até 1909 como noviço da

ordem, até se desligar por problemas de saúde. Era estudante de teologia e filosofia na

Universidade de Freiburg12

, onde pretendia se preparar para assumir o sacerdócio católico,

mas desistiu do curso de teologia e passou a dedicar-se apenas aos estudos filosóficos, em

1913. Na mesma universidade, concluiu seu Doutorado com a tese A doutrina do juízo no

psicologismo e, logo dois anos depois, concluiu sua livre-docência na mesma instituição

alemã, com o título A doutrina das categorias e da significação em Duns Scoto (GIACOIA

JUNIOR, 2013, p. 15).

No internato, os problemas no coração começaram a aparecer, e o notável estudante de

teologia passara por vários momentos de debilidade ao ponto de ser enviado de volta para

casa de seus pais em Messkirch. Os contínuos problemas de saúde do candidato ao sacerdócio

pôs em dúvida sua resistência física para assumir as atividades da igreja pelos seus superiores

do internato. É nesse período que Heidegger entrará em uma crise pessoal sobre seu futuro

profissional, escrevendo poemas que décadas mais tarde seriam publicados, como por

exemplo, Horas no Calvário publicado em abril de 1911 (SAFRANSKI, 2000, p. 69).

O curso de teologia não estimulava muito a Heidegger, fato que o levou a ler por conta

própria livros sobre doutrina escolástica. Apenas adiante, ele reconhece um teólogo que

depois o chamará de mestre, Carl Braig. Com ele, Heidegger pôde entrar em contato com os

primeiros conceitos da ontologia, devido à leitura da obra de seu professor, “Do Ser.

Compêndio de Ontologia (1896)”. A Ontologia será o tema central da filosofia heideggeriana

décadas à frente (SAFRANSKI, 2000, p. 43).

Alguns amigos de universidade de Heidegger acreditavam em seu sucesso como

teólogo, mesmo com os problemas de saúde e a desconfiança de seus superiores no internato.

Porém o caso é que, sem a bolsa que recebia da Igreja, ele não poderia custear os estudos em

Freiburg. Laslowski, estudante de história da mesma universidade que Martin, dizia-lhe em

correspondência que, se ele não fosse de família tão humilde e seus pais pudessem custear-lhe

12

Mesma universidade onde Levinas irá estudar o método fenomenológico husserliano. Ambos eram alunos de

Edmund Husserl, que era professor da Universidade de Freiburg, desde 1916. Heidegger logo assumiria o cargo

de assistente de seu mestre e a convivência com seu professor determinara os rumos iniciais e futuros do seu

pensamento, como afirma Giacoia Junior (cf. 2013, p. 15). Já Levinas seria professor particular de francês da

esposa de Husserl (cf. BUCKS, 1997, p. 21).

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o Doutorado, tais problemas seriam resolvidos. Mas o que prendia Heidegger ao curso de

teologia não era nada mais que a filosofia e, por isso, sua segunda opção de carreira passou a

ser concentrar-se nos estudos filosóficos (SAFRANSKI, 2000, p. 70).

Mas uma terceira opção se apresentou para o jovem Heidegger em crise, matricular-se

em disciplinas escolares, fazer exames oficiais e tornar-se professor. Talvez a estabilidade

profissional dessa opção o tenha feito decidir-se por matricular-se nas disciplinas física,

química e matemática no centro de ciências naturais da Universidade de Freiburg, sem,

contudo, abandonar seu zelo pelos estudos filosóficos, deixando assim o curso de teologia

(SAFRANSKI, 2000, p. 71).

A opção de dedicar-se aos estudos filosóficos, Heidegger o fez de forma paralela aos

estudos de ciências naturais. Seu interesse era estudar filosofia sem comprometer suas

certezas da fé católica. Para isso, seu amigo de universidade, Laslowski, o aconselhara a se

dedicar ao estudo da filosofia e apologética católica, além de buscar publicar seus artigos em

editoriais de filosofia confessional. A um desses editorais, o seu amigo apresentara a

Heidegger. Foi através do professor e filósofo católico Clemens Baeumker que Martin

publicará seus artigos sobre filosofia e catolicismo no Anuário Filosófico da Sociedade

Görres e, por meio do professor de história da arte e arqueologia cristã, Josef Sauer, ele

conseguirá publicar também na Literarischen Rundschau católica (SAFRANSKI, 2000, p. 70-

71).

Ainda anterior aos estudos filosóficos, indicado por um de seus professores, Corrad

Gröber, iniciou a leitura da dissertação de Franz Brentano, intitulado de Do significado

Múltiplo do Ente Segundo Aristóteles. Foi uma tarefa difícil para o jovem Heidegger, mas que

o fez nas férias, no ano de 1907. Brentano fora mestre de Husserl, e daí um dos fundadores da

fenomenologia. É através dele que Heidegger entrara em contato com a literatura filosófica

husserliana. A obra de Husserl, Investigações Lógicas, torna-se para Heidegger um culto

pessoal. (SAFRANSKI, 2000, p. 51-53).

Com uma pequena bolsa que recebe da universidade e com a ajuda de um empréstimo

adquirido com um idoso católico que seu amigo Laslowski conseguira, Heidegger recebe o

grau de Doutor em filosofia no verão de 1913, através da tese intitulada de A Doutrina do

Juízo no Psicologismo. Durante o Doutorado, foi o aluno mais aplicado e estudioso de

Husserl. Além disso, a obra de seu mestre, Investigações Lógicas, exerce enorme influência

no jovem doutor. Não obstante, o recém-doutor em filosofia é audacioso, critica filósofos já

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renomados no meio acadêmico, tais como Theodor Lipps e Wilhelm Wundt (SAFRANSKI,

2000, p. 72).

Uma vaga na cátedra de filosofia na universidade está aberta e Heidegger é o

candidato mais próximo da nomeação ainda com vinte e quatro anos de idade. Para a vaga ele

se dedica ao estudo sobre a escolástica, devido a estar concorrendo a uma cátedra católica e

por receber uma bolsa de estudos que financiava sua vida fora de sua cidade natal, onde, sem

poder contar com o auxílio financeiro de seus pais, pois eram muito humildes, Heidegger se

via obrigado, por exigência da Fundação de Santo Tomás de Aquino, a trabalhar com esse

tema. Dedicou-se, então, à teologia tomista como requisito para a manutenção da renda que o

ajudava a viver fora de Messkirch. Contudo, o que mais impressiona é como o jovem doutor

se dirigia em suas cartas ao cabido da Catedral de Freiburg, de uma forma quase de

humilhação pedia o direito ao auxílio para que pudesse continuar sua vida acadêmica na

cidade, pois suas condições são muito modestas (SAFRANSKI, 2000, p. 74-76).

Husserl e Heidegger trabalharam juntos entre 1918 e 1923, quando se tornou

catedrático de filosofia na Universidade de Marburg. Logo depois, Heidegger irá substituir

seu mestre em 1928 – logo após publicar a sua maior obra, Ser e Tempo em 1927 – na cátedra

de filosofia na Universidade de Freiburg, onde iniciou seus estudos teológicos e filosóficos

décadas antes (GIACOIA JUNIOR, 2013, p. 16).

Em 1933, Heidegger se filiou ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores

Alemães (NSDAP), cujo líder era Adolf Hittler13

. Em 1933, foi eleito reitor da Universidade

de Freiburg, época em que colaborou no projeto de reforma da universidade alemã,

introduzindo ali o princípio do líder, princípio esse que institui a autoridade do líder

(Führer)14

. Em seu discurso de posse, Heidegger reitera sua aliança com a liderança nazista e

a missão da universidade, da ciência, da cultura e do destino político e histórico do povo

alemão15

. Todavia, Heidegger não se colocara aliado dos princípios do Nazismo por toda a

vida. Em 1934, demite-se do cargo de reitor da universidade motivado por desentendimentos

com colegas de trabalho e com autoridades do governo. Entre 1934 e 1946, em Superação da

13

Esse fato será um marco divisório na relação entre Levinas e Heidegger. Essa decisão do filósofo alemão

implicará o afastamento entre ambos, já que Levinas e sua família eram judeus, assim, inimigos ideológicos do

Partido hitleriano. 14

O público presente em sua cerimônia de posse como reitor da Universidade de Freiburg, em sua maioria, foi

composto pelo ministro nazista da Educação e Cultura, autoridades do partido e representantes das forças

armadas. Ainda podemos citar que o cerimonial contou com os hasteamento de bandeira e o canto do hino do

partido e os gritos da saudação nazista “Sieg Heil!” (cf. COLLINS, 2006, p. 26). 15

No discurso de posse da reitoria da Universidade de Freiburg em 1933, como em outros escritos da época,

como jornais, periódicos do partido e em publicações estudantis, Heidegger valorizava o partido e seu líder. Em

outubro do mesmo ano, ele foi reempossado como um dos novos “líderes reitores” de Hitler, mas, desta vez, não

eleito (cf. COLLINS, 2006, p. 14).

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metafísica, já podemos notar o afastamento crítico da filosofia hedeggeriana dos princípios do

governo Nacional-socialista (GIACOIA JUNIOR, 2013, p. 16-17). A sua demissão da reitoria

da universidade, pode ter sido motivado por um sentimento de decepção de Heidegger pelo

fracasso ideológico do partido Nazista. Como uma espécie de portador do verdadeiro

Nazismo, Heidegger pretendia estreitar a radicalidade da “filosofia” nazista, principalmente

nos meios acadêmicos. O fracasso do partido, ao que parece, tê-lo-ia motivado a abandonar o

ativismo declarado e dedicar-se a uma formulação de um novo olhar sobre o regime

(COLLINS, 2006, p. 45-46).

Segundo Jeff Collins (2006, p. 34), Heidegger16

era seguro na crença no regime

Nazista e em Hitler, seu líder. No entanto, seus textos e discursos não mostravam qualquer

característica de racismo biológico. Convivia com nomes antissemitas importantes do Partido

Nacional-Socialista, como Kriek e Baeunler, além de sua própria mulher, que era adepta

declarada do pensamento racista que os nazistas pregavam. Apesar disso, Heidegger parece

ter protegido alguns personagens judeus enquanto foi reitor da Universidade de Freiburg,

como alguns alunos e colegas de trabalho. Se ele tinha nomes antissemitas importantes em seu

ciclo de amizades, ele também dispunha de judeus próximos, como Husserl (que era

descendente de judeus), a esposa do ex-amigo Karl Jaspers (amizade que se desfez devido à

filiação de Heidegger ao partido hitleriano) e, sua aluna judia e amante, Hannah Arendt (ibid,

p. 35). Ainda chegou a proibir a colocação de cartazes que atacavam os judeus na

universidade, isso por conta de sua amante, além de ter impedido a queima de livros e de ter

protegido obras de autores judeus que faziam parte do acervo da biblioteca (ibid, p. 36).

Quando findou a Segunda Guerra Mundial, Heidegger teve que explicar-se a um

comitê, em 1945, organizado pelos exércitos aliados, sobre seu engajamento com o Partido

Nazista, e de acusações que pesavam contra ele de ter comportamentos antissemitas enquanto

era reitor da Universidade de Freiburg, onde era acusado de ter perseguido colegas e alunos

judeus, fato não comprovado. Esse momento parece ter abalado a saúde do filósofo alemão,

levando-o a um esgotamento nervoso e a uma profunda depressão (GIACOIA JUNIOR, 2013,

p. 18).

Apesar de nunca ter-se desculpado publicamente de seu envolvimento com o

Nazismo, Heidegger foi punido pelas autoridades vigentes à época na Alemanha, sendo seu

16

“Ainda muito jovem, antes de iniciar seus estudos filosóficos, Heidegger está rodeado por uma população

antissemita, no Liceu da cidade, nas ruas das aldeias, no meio político, o ar anti-judeu se vivia diariamente. Mas,

ao que parece, o jovem Heidegger não apreendera tal sentimento comum entre seus conterrâneos, estava mais

interessado em criticar a superficialidade da cultura e sociedade do início do século XX” (cf. SAFRANSKI,

2000, p. 47).

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direito de lecionar nas universidades alemãs cassado, principalmente mediante parecer de um

ex-amigo e também filósofo, Karl Jaspers. Sua interdição durou até 1949, quando o conselho

universitário de Freiburg solicitou ao Ministério da Educação que revogasse a ordem de

interdição de Heidegger. Mas, mesmo com o pedido aceito, ele volta a lecionar apenas em

1951, intervalo que ele usa para palestrar em conferências em diversas cidades alemãs. Essas

conferências produziriam como resultado as suas meditações sobre a história da verdade do

Ser, que foram publicadas anos mais tarde, compondo o fundamento do programa de

superação da metafísica do que foi chamado de “segundo Heidegger” (GIACOIA JUNIOR,

2013, p. 19).

Em se tratando da relação entre a filosofia heideggeriana e os fundamentos teóricos do

Nazismo, Jeff Collins afirma:

O encontro do pensamento de Heidegger com o nazismo já foi descrito como

desastroso, até monstruoso. Metáforas de colisão se aplicam: como em uma

batida de trens, talvez – produtiva ou não – o filósofo mais inovador do

século XX emprestou seu pensamento a um dos mais notórios regimes

políticos da época (COLLINS, 2006, p. 9).

Aos que tentaram defender Heidegger e sua relação passada com o hitlerismo, afirma-

se que se a filosofia heideggeriana de fato fosse resultado de seu engajamento no pensamento

nazista, a mesma teria perecido assim como foi o regime Nacional-Socialista na Alemanha.

Mas o que se viu depois de 1934 foi um verdadeiro começo do revelar-se. A filosofia de

Martin Heidegger começa a ganhar espaços entre as filosofias do século XX pós-guerra

(COLLINS, 2006, p. 11).

2.1.2 Ser e Tempo: Ontologia Fundamental

Os primeiros interesses de Heidegger foram pela teologia – católica e depois

protestante –, filosofia grega e a filosofia moderna de seu mestre, Edmund Husserl, cujo nome

estava em sua lista de fontes de leitura, destacaram-se a filosofia de Aristóteles, a escolástica

medieval e a fenomenologia husserliana. Será em Ser e Tempo (1927) que Heidegger levará a

debate os aspectos contidos em seus primeiros trabalhos, sendo a maior obra de sua filosofia

(COLLINS, 2006, p. 16-17).

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Ser e tempo foi editado sob a direção de ninguém mais que o próprio mestre de

Heidegger, Edmund Husserl, no Jahrbuch für Philosophie und phänomenogische Forschung.

Pela primeira vez, é elaborada uma reflexão sobre o ser numa linguagem nova e, por isso, a

obra conquista a atenção do mundo. Vale salientar que, apesar da grande repercussão de Ser e

Tempo, ela não foi compreendida à sua época. Heidegger foi cuidadoso, porém, em se afastar

da abordagem antropológica para dedicar-se estritamente à questão do ser – num esquema que

analisa do Dasein ao ser e do ser ao Tempo. Daí o próprio autor disparar críticas aos seus

críticos que não seguiram tal esquema e, por isso, a obra fora mal compreendida (PASQUA,

1997, p.7-8).

Ser e Tempo, escrito ainda na fase primeira da vida de Heidegger, representa um

marco em sua filosofia. Apesar de escrito muito cedo, essa obra é retomada à reflexão em

períodos distintos e posteriores de sua publicação em 1927, dada a importância de virada

filosófica que a obra representou na filosofia no século XX. Se, na época da publicação, o

esquema heideggeriano de se conceber o ser partia do ser para o tempo, em fases mais tardias

de sua filosofia, Heidegger invertera o esquema da compreensão do Dasein, que passou a ser

a partir do Tempo ao Ser. Isso quer dizer que a analítica do ser-aí parte da temporalidade do

sentido do ser e não do próprio ser (GIACOIA JUNIOR, 2013, p.50-51).

Heidegger inicia a questão do ser fazendo uma crítica sobre o esquecimento relegado

a tal tema pela filosofia de então: a questão do ser caiu no esquecimento, chegando à

conclusão que a questão do ser não fora só esquecida, mas sim omitida. Primeira crítica ao

esquecimento da questão do ser é em relação à universalização do conceito, ou seja, por ser

universal o conceito do ser, dispensa, então, qualquer necessidade de explicação. Esse tema

passa períodos sem ser concretamente desenvolvido, que Heidegger fez questão de se dedicar

aos estudos, enquanto ainda jovem, relendo os clássicos de Aristóteles à filosofia medieval,

como São Tomás de Aquino e Duns Escoto. Ao que parece ambos tendem a compreender a

questão do ser sob a ótica universalizante, achando-se obviamente claros, mas tornando-a

ainda mais obscura, que reacende a necessidade de retomar o tema e sua questão (PASQUA,

1997, p.15-16).

Depois, apresenta uma segunda crítica ao esquecimento da questão do ser, sendo o ser

de absoluta universalidade, isso o torna indefinível. Se definirmos o ser, ele se torna num ente,

expresso no questionamento: o ser é tal. No entanto, tudo o que se pode dizer sobre o ser é

que ele não é qualquer coisa como o ente. E a terceira crítica a respeito da questão planteado

por Heidegger na obra Ser e Tempo, é que sendo o ser evidente, então seria inútil questionar-

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se sobre ele. Entretanto, na abordagem filosófica heideggeriana, sendo o ser evidente não

impede que o enigma sobre o seu sentido permaneça, legitimando o planteamento da questão

do ser e seu sentido na filosofia (PASQUA, 1997, p.16-17).

Pasqua destaca nas seguintes palavras como Heidegger distingue o ente e o ser do

ente:

Chamamos de “ente” a uma multiplicidade de coisas e de modos: aquilo de

que falamos, aquilo em que pensamos, aquilo com respeito ao qual nos

comportamos, o que nós próprios somos e o modo como o somos. Quanto ao

ser, reside no “quê”, no “quem”, naquilo que subsiste, no que existe, nesse

ente particular que é o “Dasein”. Este é o único ente capaz de se interrogar

sobre o seu ser. A questão do ser faz parte do que ele é (PASQUA, 1997,

p.18).

O conceito do Dasein, em Heidegger, é literalmente ser-aí, possibilidade constante de

se chegar à totalidade do sujeito, que adquiriu um valor fundamental na filosofia

heideggeriana. Além disso, o filósofo alemão analisou as possibilidades de o Dasein ser,

como, em seu mundo de entidades práticas, com os outros e na história. O ser-aí não é

nenhum corpo biologicamente observável ou mensurável, ou ainda alguma espécie zoológica,

está antes de tudo isso, é anterior a qualquer observação ou racionalização do Dasein

(COLLINS, 2006, p.18-19).

Se as principais filosofias e a ciência ocidental tendiam a pensar a partir do ente ou do

ôntico, Heidegger preferia pensar a partir do ser do ente, do ontológico. Segundo Collins

(2000, p. 20), Heidegger se apoiará na abordagem do filósofo dinamarquês Sören

Kierkegaard, para explicar os modos do Dasein ser. Em sua singularidade, como sendo o

Dasein “sempre meu” e “apenas meu” – por isso autêntico – e não singular, quando o ser

esquece, dissolve ou perde sua singularidade diante dos outros – por isso inautêntico.

Oswaldo Giacoia Junior (2013, p. 51), diz que a “Ontologia17

fundamental nomeia a

principal característica de Ser e Tempo”. Para ele, Heidegger tenta desconstruir a metafísica e

elabora, nessa grandiosa obra, a analítica da finitude, a partir de uma fenomenologia

hermenêutica fundamentada no Dasein. A questão a que se propõe o filósofo alemão, como já

foi citada antes, é a busca pelo sentido do ser, partindo de Platão até a filosofia

contemporânea, sendo o ser sempre um tema de intenso interesse para o pensamento

17 Ontologia é a disciplina filosófica que estuda o ser dos entes. A palavra “ente” traduz o termo grego “onta”,

que designa entidades, aquilo que é ou existe. Ontologia, portanto, é ciência e estudo metódico (logia) daquilo

que é – o ente –, visando a determinar sua essência ou seu ser. A busca pelo sentido da pergunta constitui já

uma modalidade de questionamento ontológico, pois o que se tornou problemático não é outra coisa senão o

“sentido do Ser” (cf. GIACOIA JUNIOR, 2013, p.53).

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filosófico desde os tempos dos filósofos gregos. Mas a novidade da filosofia heideggeriana

talvez seja a pergunta que se instaura ao se perguntar: sabemos, ao certo, o que é o ser? Essa

dúvida permeava a filosofia de Platão, ao qual a abordagem heideggeriana, especificamente a

obra Ser e Tempo, procura ambiciosamente desenvolver (ibid, p. 51).

Ser e Tempo é uma obra cara para o pensamento filosófico contemporâneo, pois nela

se planteia o questionamento que, desde a filosofia grega até esta publicação, a filosofia

parece não ter pensado suficientemente: que sentido tem a pergunta pelo sentido do Ser? A

obra mais importante da filosofia heideggeriana, de que estamos tratando aqui, se mostrou ao

longo do século XX inestimável para a filosofia por pretender tratar de elaborar

concretamente essa questão. A próxima etapa da reflexão ontológica do ser é referente ao

tempo, como sugere o próprio título da obra. O tempo seria o possível horizonte para toda e

qualquer compreensão do Ser. O tempo é o próprio limiar da compreensão e resposta que se

estabelece à busca de sentido do ser. (GIACOIA JUNIOR, 2013, p.53).

A ciência que à época de Husserl e Heidegger passava por uma crise, principalmente

metodológica, dedica-se à pesquisa sobre os entes e os conceitos a eles atribuídos, com o

objetivo de universalizá-los e objetivá-los com termos próprios, mas que não exprimem

qualquer reflexão sobre tais entes. Já a filosofia, em especial a filosofia heideggeriana,

propõe-se a buscar sentido dos entes, e isso se dá em primeira mão, através da pergunta e do

questionamento a respeito do sentido do Ser. Pergunta que foi silenciada tanto pela ciência

quanto pela ontologia metafísica18

que pretenderam investigar o ser dos entes, em sua

totalidade, e não aos sentidos do Ser como tal (GIACOIA JUNIOR, 2013, p.55-56).

Para Heidegger existe uma diferença entre o que é o conceito Existenziel (existencial-

ôntico) e o que é o conceito Existenzial (existencial-ontológico). O primeiro se refere aos

entes como tais; já o segundo, refere-se ao plano do Ser em sua diferença com os entes, isso

quer dizer que este termo não se refere às características particulares ou possíveis, mas

indica o fundamento originário, ou seja, o que os constitui em seu ser próprio, como afirma

Giacoia Junior (2013, p. 58-59). Ainda sobre a oposição entre os conceitos de ôntico e

ontológico, Heidegger pensa que as ciências particulares se dedicam à investigação sob o

domínio ôntico, ou seja, das entidades – o mundo dos objetos realmente existentes ou

possíveis, inclusive o homem - todavia, a pergunta sobre o sentido do Ser transcende esse

plano ôntico, que exige uma recolocação da questão do sentido ontológico desses entes (ibid,

p. 58-59).

18

A metafísica constitui um tipo de ontologia que se pergunta com a identificação de um ente ou um gênero

supremo de entes metafísicos, cujo estatuto cabe à filosofia explicitar (cf. GIACOIA JUNIOR, 2013, p. 56).

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. Oswaldo Giacoia Junior, sobre a questão ontológica evocada por Heidegger em Ser e

Tempo:

Está voltada para a meditação filosófica a respeito do sentido do Ser, visando

não apenas ao ser dos entes, tais como se apresentam enquanto fenômenos,

mas ao Ser enquanto tal. Ora, essa tarefa exige um ponto de partida

absolutamente novo, uma vez que, na história da filosofia ocidental, o Ser

sempre foi pensado apenas em relação aos entes, sempre a partir da presença

das coisas que são, nunca sendo levadas em conta as diversas modalidades

em que os entes se dão e se mostram, nunca sendo considerados a instância

ou o limiar originário desse dar-se e mostrar-se (GIACOIA JUNIOR, 2013,

p. 59).

A questão ontológica que foi esquecida pela tradição filosófica ocidental é

redirecionada através de um vetor que a impulsiona em uma determinada direção, partindo do

ser-aí ao sentido do Ser. Esse vetor, que é um ente de natureza essencialmente ontológica,

aberta e voltada para o Ser é o ser-aí (Dasein). Apenas o ser-aí compreende o Ser em sua

reflexão originária e a ele faz total sentido (GIACOIA JUNIOR, 2013, p. 60-61), é ainda,

além disso, o Dasein, é esse ente privilegiado capaz de levantar a questão do ser, e, por isso, é

a partir dele que tal questionamento deve partir. A ciência por partir do ente é incapaz de

levantar a questão do ser do ente (PASQUA, 1993, p. 19 – 20).

2.1.3 Heidegger: O projeto ontológico – ser-aí (Dasein) e ser-no-mundo

Já falamos que em Ser e Tempo, Heidegger denuncia o esquecimento da questão do

ser na filosofia ocidental, desde Platão e Aristóteles até Hegel. Não só esquecida, mas,

quando refletida, foi de maneira supérflua. Para o filósofo alemão, a questão do sentido do ser

não foi abordada suficientemente desde a filosofia grega. Ele mesmo diz sobre a

dogmatização do ser sancionar a falta na reflexão sobre o sentido do ser (HEIDEGGER, 2005,

p. 27). Heidegger afirma:

Pois se diz: “ser” é o conceito mais universal e o mais vazio. Como tal,

resiste a toda tentativa de definição. Esse conceito mais universal, e por isso,

indefinível prescinde a definição. Todo mundo o emprega constantemente e

também compreende o que ele, cada vez, pretende designar. Assim o que,

encoberto, inquietava o filosofar antigo e se mantinha inquietante,

transformou-se em evidência meridiana, a ponto de acusar quem ainda

levantasse a questão de cometer um erro metodológico (HEIDEGGER,

2005, p. 27-28).

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O ser é o conceito mais universal e tudo o que se compreende sobre ele já inclui tudo

que se apreende no ente. Desde Aristóteles, passando pela filosofia medieval, mas

especificamente a tomista e a escotista, a questão do ser não fora esclarecida

satisfatoriamente, segundo Heidegger. Mesmo chegando a Hegel, que caracteriza o ser como

“imediato indeterminado”, a filosofia não parece ter chegado a uma clareza na compreensão

sobre o ser, caminhando na mesma direção da reflexão ontológica antiga. Para Martin, por

ser, então, o conceito do ser, um conceito universal, não significa que ele não necessite ser

retomado à discussão por sua óbvia clareza, é justamente o oposto, o conceito do ser é o mais

obscuro (HEIDEGGER, 2005, p. 28-29).

A máxima da universalidade do conceito do ser, diz Heidegger, é o seu caráter de ser

indefinível. A primeiro momento, o ser não pode ser reduzido ao conceito de ente,

simplesmente porque o ser não é um ente. Todavia, alerta o filósofo alemão, a

impossibilidade de se definir o ser não dispensa a questão de seu sentido, ao contrário,

justamente por isso a exige, ou seja, sendo o ser um conceito indefinível, o problema do

sentido do ser não se esgota por aqui. Em contrapartida, se não chegamos ao que é o ser, isso

não quer dizer que não consigamos chegar ao seu sentido. Para ele, o viver numa

compreensão do ser – pois o ser é conceito evidente em si mesmo – e, ao mesmo tempo,

tomado por sua obscuridade, é necessário retomar a reflexão sobre o sentido do ser

(HEIDEGGER, 2005, p. 29).

Na busca por conceituar o ser, principalmente à luz da razão (Kant) ou da lógica

(Hegel), tornou:

... ao mesmo tempo claro que não somente falta a resposta à questão do ser,

mas que a própria questão é obscura e sem direção. Repetir a questão do ser

significa, pois, elaborar primeiro, de maneira suficiente, a colocação da

questão (HEIDEGGER, 2005, p. 30).

Para Heidegger, a colocação da questão, não só isso, mas a retomada dessa discussão

é, a priori, fundamental para a pergunta sobre o sentido do ser. A colocação da questão do ser

deve primeiro apresentar-se conveniente, pois assim poderá se for tomada de forma já

privilegiada. A partir do questionamento, tira a direção da questão a que se pergunta; assim

como um interrogatório, se é interrogado sobre alguma coisa (o questionado). O questionado

é concebido através da investigação e com o desenvolvimento explícito de uma questão se

pode tomar claro o questionamento mediante todas as etapas desta. A estrutura não finda aqui,

pois presente no questionado está o perguntado, que é a intenção de fato que leva o

questionado a atingir sua meta (HEIDEGGER, 2005, p. 30-31).

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Assim, o sentido do ser deve ser colocado à discussão. Não obstante, o ser também

deve ser retomado à reflexão por meio dos momentos estruturais do questionar-se,

sistematizados aqui. O questionado da pergunta ontológica é o ser e o perguntado é o sentido

do ser. Ambos não se caracterizam pelo mesmo conceito de ente, todavia, tanto o questionado

(o ser) quanto o perguntado (o sentido do ser) requerem conceituação própria. Em outras

palavras, o ser é a questão a que se é interrogado e o sentido do ser é a meta a ser atingida a

partir do questionar-se sobre o ser (HEIDEGGER, 2005, p. 31-32).

2.2 O TEMPO EM HEIDEGGER

Aqui trataremos da virada na filosofia heideggeriana após a publicação de sua maior

obra, Ser e Tempo. Veremos como Heidegger passou a analisar o Ser e o tempo no período

que os especialistas no filósofo alemão chamam de segundo Heidegger. Quais as mudanças

mais relevantes neste período? Como a Ontologia Fundamental é substituída por outra

analítica do Dasein e como Levinas interpreta a questão do tempo na filosofia do alemão,

Martin Heidegger. Não apenas isso, mas como a filosofia heideggeriana trata a questão do

tempo e como Levinas interpreta esse tema na abordagem de filósofo alemão.

2.2.1 A virada filosófica de Heidegger: do Tempo ao Ser e a História da Verdade do Ser

Segundo Oswaldo Giacoia Junior (2013, p. 85), no projeto completo de Ser e Tempo,

estava inclusa uma parte em que a análise seria deslocada do ser ao tempo para do tempo ao

ser; em outras palavras, Heidegger invertera a direção da reflexão ontológica do Dasein a

partir da própria temporalidade do ser (Temporalität = temporalidade). Então a principal

mudança no projeto de Ser e Tempo consistia em o Dasein passar a ser tematizado no

horizonte transcendental de sua própria finitude, tendo, porém, como referência a

temporalidade própria do ser, como foi dito antes.

Para os analistas atuais da filosofia heideggeriana, há uma divergência em relação à

mudança pós Ser e Tempo. Enquanto uns defendem que esse redirecionamento da análise

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filosófica de Heidegger, especificamente após 1930, caracteriza a virada em sua filosofia, era

uma ruptura com a ontologia fundamental de Ser e Tempo, virada tal que caracteriza o

segundo momento do filósofo alemão chamado de segundo Heidegger. Já para outros, não se

trata de uma descontinuidade, mas uma complementação e um aprofundamento na mesma

temática, porém também uma mudança de sentido no mesmo caminho da reflexão inicial

(GIORCIA JUNIOR, 2013, p. 86).

Neste segundo Heidegger, o pensamento do filósofo deixa de apoiar-se no Ser-aí, sem,

contudo, abandoná-lo completamente, para assim atribuí-lo ao Ser. Aí está a característica

fundamental dessa nova fase da filosofia heideggeriana, os polos se invertem, como Giacoia

Junior (2013, p. 86) afirma: parte do Ser, em sua verdade ou desvelamento na história, para

incluir uma reflexão sobre a essência do ser-aí humano, como correspondência ao apelo do

Ser. Não só a temática do ser, mas também a da temporalidade do Ser é reformulada no

pensamento heideggeriano após os anos de 1930. Sobre a temporalidade do Ser, Giacoia

Junior afirma:

A temporalidade do Ser é ainda mais originária do que a do ser-aí; ela é

temporaneidade. Em seu curso, a história (Geschichte) é pensada como o

âmbito do acontecer do Ser (Geschichte des Seins), que se desoculta nos

entes. As épocas que escondem a história do mundo são desvelamentos do

Ser, em sua verdade, que o ser-aí recebe e medita, à qual corresponde no

elemento da linguagem (GIACOIA JUNIOR, 2014, p. 86).

A partir, então, da análise fenomenológica das estruturas fundamentais do Dasein,

toda compreensão do Ser só pode dar-se no horizonte temporal da finitude humana. Apenas

sob a reflexão do tempo pode-se chegar ao entendimento e abertura ao Ser, a partir do Dasein.

Em uma de suas comunicações após Ser e Tempo, Heidegger explica qual seria a mais

adequada tradução do termo Dasein para a língua francesa, dando ênfase ao verbo “ser” (da-

sein) e não no advérbio “aí” (da-sein). Isso retrata bem a viravolta da filosofia heideggeriana

após 1930, de uma saída de Ser e Tempo para a História da Verdade do Ser (GIORCIA

JUNIOR, 2014, p. 88-89).

E o termo heideggeriano de temporaneidade que falamos logo antes? Para Heidegger,

é a temporalidade que transcende a ex-sistência do ser-aí, no sentido de que não se limita a

ela, é a temporaneidade originária do Ser. Esse tempo do Ser assume a forma, segundo

Giacoia Junior (2013, p. 91), de acontecimento (geschehen, Geschehnis), mais ainda, como

acontecimento apropriador (Ereignis) que pode designar também destinação. Então, para essa

temporalidade destinamental a palavra mais adequada, segundo expõe o autor, é história

(Geschchite). Como vimos antes, a história é o âmbito onde o Ser acontece. Da mesma forma

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que a Ontologia Fundamental é um termo que Heidegger utiliza várias vezes em Ser e Tempo,

História da Verdade do Ser também o é em Tempo e Ser.

História pode ter dois sentidos, ou como Historie ou como Geschchite. O primeiro é a

disciplina científica que estamos acostumados a conceber, como historiografia. Já o segundo

designa o acontecer adventício, os acontecimentos singulares que impregnam a configuração

e determinam o sentido de uma era do mundo. Sob o apoio de outro termo alemão, Geschick

significa o que é enviado, destinado, concluído com êxito e propriedade, ou ainda através de

uma tradução ao francês, Événemetiel, que quer dizer o que ocorre e tem importância para o

homem. Então, podemos afirmar que o acontecer do Ser se dá sob sua temporalidade, um

tempo ao qual o Ser se dá e se mostra no horizonte da história e não sob o signo do tempo

cronológico e nem a de sua finitude, que é própria de seu existir (GIACOIA JUNIOR, 2014,

p. 91-92).

Para Safranski (2000, p 213), logo após Ser e Tempo, numa conferência sobre Lógica

do semestre de verão de 1928, Heidegger nomeia pela primeira vez como doutrina analítica

temporal que é, ao mesmo tempo, a volta, essa volta (Kehre) significa a própria doutrina do

Dasein, sendo primeiro a descoberta do tempo, voltando depois sobre si mesma para o próprio

pensar sob o ponto de vista do tempo compreendido.

Pensar sobre o tempo não quer dizer pensar no sentido de uma análise das

circunstâncias históricas, pois para Heidegger esse não é o objetivo da temporalidade. É

através da preocupação que o Dasein entra em seu horizonte temporal aberto, e viabiliza seu

acontecer; desse modo, através do que Safranski denomina pontos de apoios, que podem ser,

segundo ele, trabalho, rituais, instituições organizações, valores, dentre outros (SAFRANSKI,

2000, p. 214).

Como o Dasein percebe o tempo? Através do tédio. Safranski diz que o tédio é o

momento em que se percebe como o tempo passa porque não quer passar, pois não o

podemos fazer passar nem controlar, nem, como se diz, preenchê-lo com sentido

(SAFRANSKI, 2000, p. 236). O autor ainda comenta como Heidegger aborda o tédio como

percepção do tempo pelo Dasein:

Essa paralisia [provocada pelo tédio] abrangente nos faz perceber que o

tempo não é simplesmente um meio onde nos movemos, mas é algo que nós

produzimos. Nós temporalizamos (zeitigen) o tempo, e quando ficamos

paralisados pelo tédio cessamos de o produzir. Mas esse cessar nunca é total.

O processor de produção do tempo que cessa e para por momentos,

permanece relacionado ao rio do tempo que somos nós mesmos- mas no

modus da interrupção, do encantamento e da paralisia (SAFRANSKI, 2000,

p. 239).

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Na paralisia do tédio, se nada mais anda, o Dasein deve pôr-se a caminho. O tema do tempo e

sua paralisia no tédio leva a um novo tema na filosofia heideggeriana, a liberdade. O Dasein apenas

existe no libertar-se do Dasein e isso só é possível se ele mesmo decidir em favor de si mesmo, de sua

liberdade (SAFRANSKI, 2000, p. 239).

2.2.2 O Tempo em Heidegger segundo Lévinas

Levinas faz uma breve abordagem das questões referentes ao ser e à consciência

temporal do Dasein de Heidegger. O filósofo franco-lituano coloca as três estruturas

heideggerianas que definem a existência humana19

e que em si já é compreensão de tempo: o

primeiro, o ser que está à frente de si (compreensão de futuro), do ser que já está no mundo

(compreensão de passado) e do ser que está no mundo como estar ao lado de todas as coisas,

bem como todos os seres que estão no mundo (compreensão de presente). O ser consciente de

seu próprio ser é consciente também dos tempos que se abrem por sua existência: presente,

passado e futuro. O Dasein consiste nas perguntas que se sugere na consciência do/no ser

sobre sua própria existência. Aqui, a consciência deriva do cotidiano (tempo), nas relações do

ser como aquele que está no mundo e com tudo com que ele se relaciona (LEVINAS, 1998, p.

43).

Levinas usa desses três termos para refletir sobre a temporalidade em Heidegger, não

como o tempo do relógio, mas um tempo que seja natural para o próprio Dasein:

A fórmula “está já à frente de si mesmo como ser no mundo” contém

fórmulas temporais: “já”, “à frente de”, “ao lado de”. Há uma tentativa de

descobrir a temporalidade sem fazer intervir a sucessão de instantes, o tempo

que transcorre. A preocupação de buscar um tempo original que não se

defina como um rio que flui (LEVINAS, 1998, p. 43).

Em Ser e Tempo (1927), sua maior obra, Heidegger esboça a dimensão do tempo

como horizonte da compreensão do próprio conceber o ser. Chegamos a esse pensamento a

partir da ideia da temporalização do ser, ou seja, a temporalidade do ser é, já por excelência, o

sentido do ser do homem, ou ainda, da própria existência, momento em que o tema do tempo

entra na reflexão ontológica heideggeriana (RUZ, 2003, p. 7),

19

O ser que compreende ou busca compreender sua condição como ser, sua condição como existência humana.

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Levinas, citando a obra Ser e Tempo, aponta que, para Heidegger, não se deve

questionar “o que é o tempo?”, pois o caracterizaríamos como um ente, mas deveríamos

perguntar “Quem é o tempo?”. A perspectiva do tempo, para o referido filósofo, expressa-se

nos termos já citados, “já”, “à frente de” e “ao lado de”, que servem ao tema ontológico, no

qual nos percebemos do tempo que corre como consequência ou a partir de um tempo original

(LEVINAS, 1998, p. 39).

Aprofundaremos, nesta seção, esses tópicos, porém nos ateremos aqui à análise sobre

o tema do tempo na filosofia heideggeriana como intrínseco ao tema da morte, na contramão

do pensamento levinasiano. Do contrário, cairemos numa apresentação de conceitos que mais

interessam ao tema ontológico.

Já podemos adiantar que Levinas toma como partida a reflexão do tempo como

postura ética nas relações sociais, nas quais o eu tem seu tempo próprio e os outros também

têm os seus. A chegada deste revela ao eu que ele não está só e, por isso, precisa agir com

responsabilidade com o outro, também referente à sua compreensão de temporalidade

(HUTCHENS, 2009, p. 105). Já Heidegger erige a compreensão de tempo a partir da reflexão

ontológica, mais precisamente, através do vocábulo in-der-Welt-sein (ser-no-mundo) (RUZ,

2003, p. 11).

À primeira vista, o termo Ser-no-mundo nos pode levar a compreensões equivocadas.

Isso nos interessa para a reflexão sobre o tema do tempo e, mais à frente, acerca da morte. O

vocábulo mundo não designa natureza, como analisam as ciências naturais, mas as coisas que

estão dentro do mundo, coisas essas que Heidegger apresenta como instrumentos carregados

de signos. Em outras palavras, mundo representa o nosso viver diário. Na mesma direção, o

termo ser-no não se refere apenas a “estar no”, mas a “referir-se a”, ou no sentido de estar

jogado no mundo. Daí, ser-no-mundo não é apenas estar no mundo, é estar submergido em

signos que dão significados às nossas experiências cotidianas. O ser-no-mundo já faz parte da

consciência do Dasein (ser-aí) desde o nascimento até a morte, e dá significados à existência

pessoal de cada um, através das experiências cotidianas (RUZ, 2003, p. 11-12).

O ponto de partida foi dado. O ser-no-mundo, que dá significados diversos ao ser em

seu existir no mundo, abre a noção de tempo em Heidegger. Existir é o viver cotidiano nesse

mundo de significados, não só isso, mas descobri-los, compreendê-los e interpretá-los. A

morte representaria o fim desse viver cotidiano no mundo, desse interagir e sempre aprender

com as coisas que estão no mundo e possibilitam o ser a compreender e buscar “poder ser” -

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Dasein. E, por isso, a morte representa o fim do ser, ou melhor, o fim das possibilidades do

“poder ser” do Dasein, o fim da historicidade do ser. (RUZ, 2003, p. 14).

2.3 A MORTE SEGUNDO HEIDEGGER

Chegamos aqui com bases suficientes para nos debruçarmos sobre a questão da morte

na filosofia heideggeriana, bem como a angústia, o medo, as possibilidades do Dasein existir

e sua possibilidade mais autêntica, seu ser-para-a-morte. Aqui trataremos em miúdos como

Heidegger aborda a morte e seus desdobramentos na experiência existencial do Dasein,

reflexão fundamental em sua maior obra, Ser e Tempo.

2.3.1 A morte em Heidegger: ser-todo e o ser-para-a-morte do Dasein

Depois de discutirmos sobre a Ontologia Fundamental, os modos de ser do Dasein e

sua relação com o mundo, entraremos, neste momento, abordando sobre o modo de ser mais

autêntico do Dasein, o modo em que o ser deixa sua incompletude e avança para seu existir

sem excedentes, o ser-para-a-morte. O Dasein é próprio, inacabado, faz parte de sua

constituição e poderá ser tudo o que pode ser quando nele não houver mais excedentes. É

neste momento que o Dasein é esvaziado de si mesmo, nada mais sairá dele, e, enfim, tornar-

se-á totalidade. Para Heidegger, totalidade é o mesmo que vacuidade, onde o todo é igual a

nada (PASQUA, 1993, p. 119).

Existir no mundo implica viver, aprender o significado de viver, e buscar conhecer

tanto a si quanto ao mundo que está ao redor. Como ser-no-mundo, Heidegger apresenta um

ser que experimenta inúmeras possibilidades de se desenvolver, através de tudo o que

constitui o mundo, sejam elas recursos naturais ou recursos desenvolvidos e aprimorados pelo

homem através dos tempos. Viver representa desenvolver-se, a passo que morrer representa

completar-se. A morte representaria o fim do ser que se desenvolvia e que chegou ao fim de

seu desenvolvimento pessoal. A morte é, como todas as coisas, possibilidade do pode-ser, ou

seja, a morte representa a possibilidade de acabamento, tão necessária e natural da existência

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humana como qualquer outra coisa. Essa reflexão se apresenta através de outra expressão na

filosofia heideggeriana, Sein zum Tode - ser-para-a-morte (RUZ, 2003, p. 14).

Poderíamos tentar interpretar a morte? Para Heidegger, a tentativa de interpretar a

morte é inautêntica. No entanto, poderíamos extrair toda autenticidade do ser-para-a-morte

através da angústia. A angústia, sim, é a autêntica interpretação do diante da morte, natural do

Dasein, que exige liberdade diante dela. Segundo o filósofo alemão, a angústia não é um

estado psicológico, é a consciência de uma existência temporária, de um ser que uma hora ou

outra irá acabar (RUZ, 2003, p. 14).

Segundo Heidegger, com a morte de outro Dasein abre-se diante dos olhos a

totalidade. Não se pode experimentar a morte de outro por que ele já não existe mais e nem

ele (Dasein) pode retornar para depor sobre sua morte, mas a morte ganha sentido para os

sobreviventes que ainda são. Mesmo se um sacrifica-se por outro, é impossível experimentar

sua morte, o morrer do outro Dasein é insubstituível e sua análise é meramente a respeito de

sua finitude, logo escapa-lhe o sentido ontológico do ser chegado-ao-fim. Cada Dasein, então,

só pode experimentar sua própria morte, devido o morrer ser próprio de cada ser (PASQUA,

1993, p. 120-121).

A busca de que trata Heidegger sobre a morte é por seu sentido ontológico, seu sentido

Existencial. Segundo Pasqua (1993, p 122-123), o ser do Dasein não é um ser acabado, é um

ser a findar, então ele é um ser que caminha para o seu acabamento. O Dasein é um excedente

constante, um ainda-não que será, cujo fim é deixar de ser-aí, ou seja, deixar de ser Dasein.

Enquanto o Dasein é, o é como ainda-não, sendo seu excedente o que falta realizar, pura

expectativa de completar-se. Se o Dasein é, o ser ainda não é completo, findando o ser do

Dasein, ele é enquanto ser sem excedentes, em outras palavras, completo, acabado, finalizado.

Pasqua afirma:

Este tornar-se do Dasein, Heidegger compara-o à maturação dum fruto. A

não-maturidade, que é o ainda-não do fruto, faz parte deste último. Ele é a

sua não-maturidade amadurecendo, tal como o Dasein é o seu ainda-não

existindo. [...] Tal como o fruto maduro chega ao seu fim, assim a morte

conduz o Dasein à sua conclusão (PASQUA, 1993, p. 123).

Como vimos, a morte é natural do próprio Dasein, o ser que é ser-no-mundo é também

ser-para-a-morte. O ser chega ao seu fim como fim de sua historicidade, do seu tempo como

ser. Daí um novo conceito é apresentado, o ser-para-seu-fim, como Matías Ruz afirma: “a

morte é certa, porque está presente no ser do homem como ser-para-seu-fim” (RUZ, 2003, p.

17).

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58

A morte em Heidegger poderá, então, ter algum sentido positivo, já que o ser é

conhecedor de sua finitude enquanto ser. No ser-para-a-morte, o homem enxerga sua morte

como uma possibilidade natural do existir, que não deve ser reduzida e sim apreendida por

ele; deve ser suportada, como diz Ruz, como possibilidade. Essa resposta é um estar adiante

em pensamento, resposta como expectativa (RUZ, 2003, p. 18).

Ser um poder-ser – constituição do próprio Dasein -, ser um ser-no-mundo significa

ser finito, e na sua finitude é que se encontra a sua determinação fundamental. Apesar de ser a

determinação fundamental do Dasein, a finitude é o fator mais característico do ser. Já o é

desde que existe, desde seu início, e nunca deixará de ser. Para Hedeigger, o ser corre desde

sempre o risco de perder sua finitude, mas isso é, ao mesmo tempo, tão natural ao ser como é

um evento extrínseco ao ser (CASANOVA, 2009, p. 130-131).

Se, para Levinas, o anonimato da morte é o que, talvez, mais amedronte o homem que

tem consciência de sua morte diante da morte do Outro, em Heidegger, o ser tem a

consciência de sua possibilidade extrema, sua morte, através de seu estar-no-mundo, então, a

morte é uma consequência do próprio existir – estar no mundo – e a compreensão de seu

próprio fim se dá na angústia; é nela que o homem fica face a face com a morte. Então, a

ameaça não está na chegada inesperada da morte, na abordagem heideggeriana, e nem no

próprio evento da morte como acontecimento que está por vir, como em Levinas (RUZ, 2003,

p. 18).

A temporalidade é um conceito caro ao Dasein, pois o ser que compreende a si

mesmo como ser-no-mundo e que esse é seu viver cotidiano – que implica dois extremos, o

nascimento e a morte –, já se compreende como um ser-para-a-morte. Então, a totalidade do

ser, atingida no evento de sua morte, caracteriza-se pela medida desses dois extremos, pois a

existência é o intervalo de tempo entre o nascimento e a morte. Daí, viver já é estar diante de

sua morte, e a consciência disso é o que caracteriza o Dasein. A morte já é a possibilidade

peculiar do Dasein e o ser-para-a-morte é a finitude da temporalidade, a possibilidade que

direciona para a totalidade do ser (RUZ, 2003, p. 19).

Não é só conceber a totalidade do Dasein como morte biológica; se assim o fosse, a

totalidade se alcançaria apenas com o fim da vida. É certo, porém, que a morte encerra as

possibilidades de “poder ser” do Dasein, mas a totalidade do ser vem quando todas as

possiblidades de totalização do Dasein se cumprirem junto com a morte. Refletindo mais a

fundo sobre esse tópico, a morte representa a possibilidade da impossibilidade do Dasein

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“poder ser” depois dela. A morte encerra qualquer possibilidade do “poder ser” do homem

para além da morte (RUZ, 2003, p. 19).

Um fato bastante importante deve ser esclarecido sobre a morte: ela não se encontra no

fim do caminho do Dasein, encontra-se no decorrer da jornada em seu empreendimento de

ser-no-mundo. Logo, não é o Dasein que finda com a morte, mas é a morte que finda o

Dasein. A morte continua no ser-no-mundo de outros Daseins, ela é assumida logo que este é

e continua no mundo mesmo depois do seu fim. Daí, o Dasein não ser constituído como

totalidade no fim, pelo contrário, ele se realiza como tal a caminho do fim. Não é um ser-no-

fim, mas sim um ser-rumo-ao-fim (PASQUA, 1993, p. 123-124).

Ao assumir a finitude de sua existência, o ser antecipa-se diante de sua morte e lhe

agrega uma visão positiva, não para dominá-la, mas para aceitá-la como uma das várias

possibilidades que são abertas na existência de um homem em direção a um ser total, sendo

esta a última dessas possibilidades. Aceitar sua própria morte é inclui-la no projeto de seu

próprio desenvolvimento como existência (Dasein), diante do tempo que passa e que não

teme a morte por sua chegada ou seu desconhecimento. Viver é completar-se diante das várias

possibilidades que nos são apresentadas enquanto se vive, sendo a morte a última dessas

oportunidades de encerrar o que somos. Depois da morte, o ser não pode mais ser, pois todas

as possibilidades foram fechadas, e o ser está completo (RUZ, 2003, p. 19).

Enquanto o Dasein é, não é sua totalidade. O Dasein é possibilidade de ser até o fim,

há sempre algo que lhe falta e esse algo que ainda está ausente não pode ser retirado, pois,

senão, o próprio ser o teria tirado. Nessas contínuas possibilidades de ser, o Dasein é sempre

um ser-adiante-de-si-mesmo. O estar sempre adiante de si é um dos modos de ser do Dasein,

e estar a caminho de sua própria morte, ou melhor, estar ciente da chegada de sua própria

morte é já existir como ser-adiante-de-si-mesmo (SEIBT, 2007, p. 126).

O conceito existencial da morte foi testada por Heidegger em Ser e Tempo,

primeiramente na experiência da morte dos outros20

, mas logo foi considerada impossível,

pois a morte é uma experiência pessoal, então é própria de cada Dasein e impossível de ser

substituído. Para Heidegger, a morte é uma experiência solitária, insubstituível, pessoal e

singular. Momento de individualização do Dasein (SEIBT, 2007, p. 127). Pasqua diz:

a morte revela-se como a possibilidade mais própria, a mais autêntica, a que

pertence apenas a ele. Compreendemos agora, por que razão não é

necessário passar pela morte de outrem para pôr a descoberto a sua dimensão

20

A morte dos outros que, para Heidegger, não constitui seu conceito existencial, é uma clara oposição ao que na

filosofia levinasiana se chama de consciência de minha própria morte através da morte do Outro (cf. p. ).

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ontológica. Ela é Existencial no sentido em que é um momento do cuidado,

do ser do Dasein (PASQUA, 1993, p. 126).

Enquanto a morte cristã é uma passagem para o além, na filosofia heideggeriana é um

falecimento. De acordo com Pasqua (1993, p. 125), Heidegger não tem nenhum problema

com o além, até porque para ele não há senão um adiante, porém a eternidade estaria no

próprio tempo como ex-stase e não fora do deste.

Então, a morte é a única possibilidade de ser do Dasein que silencia todas as outras

possibilidades, esta é a característica da morte. Já essas outras tais possibilidades do poder-ser

do Dasein trabalham para que elas próprias sejam realizadas, assim, destruindo-se a favor do

Dasein. Ele, ao distanciar-se da morte, vive morrendo, pois, estando morrendo, o Dasein não

está morto, está vivendo (PASQUA, 1993, p. 131).

2.3.2 O tempo concebido a partir da morte em Heidegger segundo Levinas

Já apontamos que, em Heidegger, a morte é o fim da duração do ser no tempo que não

para de correr. Isto significa o aniquilamento, como o próprio Levinas afirma. Para nosso

filósofo, pensar em Heidegger falando sobre a morte como final é, também, repensar a

compreensão do tempo heideggeriano, como já vimos antes, como um tempo anterior à

temporalização como a concebemos, progressivo e sucessão de feitos e eventos (LEVINAS,

1998, p.46).

Para Heidegger, o ser é existir-para-a-morte21

, assim como, na mesma medida do

Dasein, ser um ter-que-ser também é um ter-que-morrer. Mas, para o Dasein, o morrer não é

esperar o ponto final de seu ser, mas estar consciente de seu fim em todo o momento do seu

ser. A morte, então, não é um momento, mas uma maneira de ser do qual o Dasein é

consciente, desde que existe. Porém, este ter-que-morrer não é um futuro a consumar-se, mas

é, desde já, o conceber inicial do tempo (LEVINAS, 1998, p. 57).

O existir-para-a-morte nos dará uma nova forma de conceber o tempo, já que, a partir

deste, a análise nos possibilitará compreender o tempo como o modo de ser do ser mortal.

Vimos que é característica do Dasein o ser para “à frente de si”, como entendedor de sua

21

O termo existir-para-a-morte é usado pelo próprio Levinas, ao ponto que Matías Ruz o traduzir de uma outra

forma ao longo de todo o seu trabalho, do qual utilizamos em outras partes deste estudo: ser-para-a-morte.

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própria morte, que, em outras palavras, é estar à frente de seus próprios olhos, adiante de seu

tempo futuro como Dasein, como ser que vai morrer. Em síntese, é um ser-até-a-morte.

(LEVINAS, 1998, p. 58).

A totalidade do Dasein, então, leva-nos a uma compreensão de tempo a partir da

morte. Vejamos como Levinas propõe alguns questionamentos sobre essa visão

heideggeriana:

A totalidade do ser humano não é sua vida, do nascimento à morte? Não é,

por tanto, o tempo que ocupa? E esse tempo que ocupa, não é a soma dos

instantes transcorridos? A morte, que marca o final do tempo, é a totalidade

e o ser próprio do Dasein? Ou acaso não temos utilizados conceptos vulgares

(elaborados de acordo com um modo não autêntico, no modo próprio do

Dasein)? (LEVINAS, 1998, p. 61).

Toda essa discussão direciona Levinas a nos questionar do que é a morte para o tempo.

Não só isso, mas o que é a mortalidade da vida? Para ele, essa é a verdadeira investigação de

sua pesquisa, o significado da morte para o tempo. E ele continua expondo o que seria a morte

e o tempo para Heidegger. Segundo nosso filósofo, para Heidegger, a morte significa minha

morte no sentido de minha aniquilação. Já o significado da relação entre a morte e o tempo

tem sua origem no esforço de garantir a totalidade do Dasein, mediante as experiências da

vida cotidiana em que o ser é submergido em sua existência ou “estar ao lado das coisas”

(LEVINAS, 1998, p. 64 -65).

Se a certeza da morte é uma das características do Dasein, mais precisamente, o

existir-para-a-morte, o viver é, todavia, um dialogar mediante a vida e as experiências do

cotidiano no falar: “a morte é certa, mas agora estou vivo”. O viver é o adiamento da morte, e

o falecer dos outros é ciência de que a morte é um acontecimento intramundano, mas não é

minha morte ainda porque vivo. A cotidianidade tem como ponto de partida a continuidade da

vida e, por isso, o afastamento da morte. Daí, a percepção do tempo existe, originalmente, a

partir da consciência da morte que ainda não chegou (LEVINAS, 1998, p. 66).

Então, como foi abordado antes, o tempo medido não é o único e, muito menos, o

verdadeiro tempo. Existe um tempo anterior ao tempo medido ou um tempo natural do Dasein

que sua consciência origina o tempo mensurável. Esse tempo próprio do Dasein é expresso

através do existir-para-a-morte e do ”estar à frente de si”, conhecedor de um evento futuro – a

morte. Sua relação com o ser abre o conhecimento de um tempo que caracteriza o próprio

Dasein em sua totalidade, ou sua relação com a morte. Então, “graças à morte, existe o tempo

e existe o Dasein” (LEVINAS, 1998, p. 67-68).

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2.3.3 A angústia e o medo em Heidegger

Sobre o tema que iremos refletir a partir de agora, também tomaremos como ponto de

abordagem a obra maior de Heidegger, Ser e Tempo. Mediante o que analisamos

anteriormente, acerca da analítica do Dasein, iremos debruçar-nos diante das possibilidades

de o ser compreender sua própria existência. Se partirmos do pensamento que o ser humano

está tão atarefado em seu empreendimento de ser-no-mundo que não lhe sobre tempo para

pensar sobre sua própria condição de existente, o tema da angústia e do medo na filosofia

heideggeriana apresenta-se como um abalo à cotidianidade tranquila do ser-no-mundo e

devolve o Dasein a si próprio (SEIBT, 2007, p. 122).

Para Heidegger a angústia e o medo fazem tremer essa tranquilidade existencial,

levando o ser a olhar para dentro de si e perceber as suas possibilidades enquanto existente.

Assim, a angústia e o ser-para-a-morte assumem um papel de despertadores causando uma

certa desordem ao Dasein e perturbando sua tarefa de simples ser-no-mundo. Existir já é

possibilidade primeira no ser-no-mundo. O Dasein que vive, vive de forma impessoal, em

meio a uma multidão de impessoais. Suas possibilidades de ser mais autênticas ficam por

muito adormecidas ou até desconhecidas. Se faz o que todo mundo faz, não se gosta sozinho,

não se odeia sozinho e o que se concorda ou o que se discorda, se o faz em conjunto (SEIBT,

2007, p. 122).

O Dasein está tão preocupado com seu empreendimento do existir que se esquece de

sua própria existência. A cotidianidade do ser-no-mundo torna a impessoalidade do Dasein

algo totalmente óbvio e desnecessário de ser criticada. Como se pode questionar algo que

obviamente se compreenda como normal? Essa obviedade encobre o modo de ser do Dasein,

sendo assim é necessário algo que descubra sua visão e lhe mostre as possibilidades dispostas

ao seu existir (SEIBT, 2007, p. 123).

Como, então, desvendar a visão do Dasein e possibilitar-lhe o retorno a si próprio?

Para Heidegger, esse caminho de volta a si mesmo é percorrido pelo Dasein através da

angústia. Na angústia, segundo Cezar Luís Seibt (2007, p. 123), a totalidade entra em

colapso e desnuda a condição humana. Heidegger afirma que o cotidiano do ser-no-mundo

representa a fuga do Dasein dele próprio, o impessoal dos modos do ser é o caminho mais

óbvio de fuga do Dasein que o leva para longe dele próprio. A angústia é exatamente o

caminho de volta para si (ibid, p. 123).

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Mas temos aqui que diferenciar o que Heidegger apresenta como angústia e como

medo. Mas em que são diferentes? No medo, há sempre algo diante de quem se amedronta, já

na angústia não existe nada em lugar nenhum que se manifeste alguma ameaça. Na angústia,

não há nada determinável que traz a ameaça, mas ela torna o impessoal em uma total

insignificância, ou seja, a cotidianidade óbvia da existência impessoal do ser-no-mundo perde

sua importância, nada faz mais sentido. Sobre a angústia, Cezar Luís Seibt expõe:

Na angústia nos foge o sentido que os entes tomaram na totalidade de

remissões, como se o nó que amarrava os entes na relação uns com os outros

se desfizesse e o Dasein, dessa forma, caísse no nada, no vazio do sentido.

[...] O que se abre com a angústia é o mundo enquanto mundo, ou seja, a sua

mundanidade, evidenciando a imperceptibilidade cotidiana do mundo

(SEIBT, 2007, p. 124).

Para Heidegger, angústia e medo são conceitos totalmente distintos, e que ele

esclarece em Ser e Tempo. A angústia se encontra nos lugares mais profundos do homem e

não é causada por algo determinado. Eu me angustio por algo indeterminado, que não indico

em qualquer horizonte ou determino em alguma percepção temporal, porém, está tão próximo

de mim, que me angustio. Já o medo é causado por algo que eu posso determinar, e perceber

sua chegada, é algo do meu mundo que me ameaça em meu ser-no-mundo. Sempre se tem

medo de algo, já a angústia é algo tão profundo no homem que chega a caracterizá-lo, como

afirma Ruz: “Se se quer adquirir uma visão do homem como totalidade e o caminho até essa

visão está na compreensão do homem como angústia” (RUZ, 2003, p. 15).

A angústia isola e singulariza o Dasein para o seu ser-no-mundo, afastando-o daqueles

que antes davam significado para assim colocá-lo no caminho do seu próprio poder-ser. A

cotidianidade que antes lhe dava sentido óbvio de existir, agora é abalada diante da angústia

que conduz o Dasein para a via que leva para si próprio. É mediante a angústia que o Dasein

se depara com o seu ser-possível, ou seja, daquilo que ele pode ser a partir dele mesmo. É na

angústia que o Dasein se descobre livre para a autêntica existência (SEIBT, 2007, p. 124-

125).

Contudo, o Dasein não se angustia constantemente porque está sempre fugindo de si

mesmo, escondendo seu ser-no-mundo. Mediante o predomínio do cotidiano, o Dasein sente

mais medo do que angústia. É por isso que ele está geralmente em um estado “interpretativo

do impessoal” e isso lhe configura estar oculto a ele mesmo e de seu caráter próprio. A

angústia evidencia as possibilidades fundamentais do Dasein como são em si mesmas, além

de lhe abrir e mostrar o seu ter-que-ser (SEIBT, 2007, p. 125-126).

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A morte, então, é a possibilidade maior do Dasein em seu poder-ser. O Dasein está

jogado em seu ser-no-mundo e está entregue à sua morte, logo, esta faz parte da constituição

do próprio Dasein. A morte se torna visível na cotidianidade do ser-no-mundo do Dasein;

mesmo que seja de maneira impessoal, o Dasein interpreta o seu ser-para-a-morte, que é

cotidiano em seu existir no mundo. Essa presença da morte na cotidianidade do existir torna o

morrer um evento próprio da existência, é a certeza máxima, totalização do ser. Já em seu

caráter impessoal, o Dasein é tentado a encobrir o seu próprio ser-para-a-morte. A

cotidianidade é caracterizada pela fuga da morte, bem como a incapacidade de não suportar a

angústia diante dela (SEIBT, 2007, p. 128).

Daí, retomamos a reflexão sobre o papel exercido pela angústia na tarefa cotidiana do

existir do Dasein, agora diante do evento da morte. Seibt afirma:

Na cotidianidade a angústia transforma-se em medo, como aquele medo que

sucede diante de um acontecimento qualquer que ofereça perigo. É como se

a morte fosse algo conhecido, e não a última possibilidade, que anula todas

as possibilidades. Diante da morte impessoal, constrói-se uma tranquilidade

indiferente, que aliena o Dasein do seu poder-ser mais próprio (SEIBT,

2007, p. 128).

A cotidianidade transforma a compreensão originária da morte, passando a ser

entendida de maneira imprópria, fato pelo qual o Dasein é tentado a encobri-la e assim a

fugir. Em contrapartida, a morte é certeza, porém uma certeza impessoal, devido a sua

presença na cotidianidade do ser-no-mundo do Dasein. Todavia, o ser-para-a-morte é a

possibilidade do Dasein não mais existir, certeza e possibilidade extrema. No ser-para-a-

morte, o Dasein, em seu modo de se antecipar-a-si-mesmo, caracteriza o estar voltado para o

próprio fim (SEIBT, 2007, p. 128-129).

Porém, como o Dasein poderá superar a tentação de encobrir seu ser-para-a-morte

além de responder diante da angústia diante dela? Heidegger nos diz o caminho, primeiro

quando o Dasein passar a compreender o seu ser-para-a-morte como o seu mais extremo

poder-ser. No entanto não de uma forma negativa como o fim da vida, mas positiva, como a

maneira de completar a vida. A morte não apenas como uma compreensão e nem uma espera,

mas como possibilidade das possibilidades. Não como compreensão apenas porque a morte

seria reduzida ao status de objeto, ao qual posso dispor e planejar. Não como espera devido a

não se tratar de algo que não se pode antecipar. E sim como possibilidade, possibilidade de

ser suportada, suportada como possibilidade extrema (SEIBT, 2007, p. 129-130).

Seibt, ao comentar sobre as possibilidades que se abre ao Dasein diante da morte,

afirma:

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A possibilidade da morte, de acordo com nosso autor [Heidegger],

caracteriza-se por ser própria, irremissível, insuperável, certa e

indeterminada. É própria porque abre ao Dasein o seu mais próprio

poder-ser. É irremissível, porque o Dasein singular é reivindicado

através dela e, nisso, é levado a assumir a responsabilidade pelo seu

próprio ser. É insuperável no sentido de que abre para a capacidade de

suportar o caráter insuperável que ela comporta, evitando a fuga,

rompendo assim todo enrijecimento de que a existência já foi vítima.

Além disso, é certa, pois na antecipação ela se torna possível como

poder-ser mais próprio. Mas ela é também indeterminada em sua

certeza, representa uma ameaça constante para o Dasein, na qual ele

sempre tem de manter-se. A disposição afetiva que mantém aberto a

morte como constante ameaça é a angústia. A angústia abre a

possibilidade extrema (SEIBT, 2007, p. 130).

É superando a fuga de si mesmo que a angústia faz tremer todas as certezas óbvias de

que o Dasein se apropriou no emprego cotidiano do ser-no-mundo. A angústia faz com que o

Dasein tome o caminho de volta para ele mesmo, assim compreendendo suas possibilidades

do poder-ser. Ao compreender suas possibilidades do poder-ser, o Dasein se depara com o

seu ser-para-a-morte que lhe abre para a possibilidade mais extrema do seu existir, a morte.

Contudo, o Dasein não é chamado de volta para ele próprio ouvindo uma voz de um ser

diferente de seu próprio Dasein, mas é mediante a voz de sua consciência que ele supera as

impessoalidades da cotidianidade, voltando para a sua própria singularidade (SEIBT, 2007, p.

130-133).

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3 TEMPO, MORTE E MEDO EM LEVINAS

Neste capítulo trataremos sobre temas importantes como o tempo, a morte e o medo

nas obras chaves levinasianas que aqui consideramos, Totalidade e Infinito (1961) e Dios, la

muerte y el tiempo (1993). Refletiremos também sobre as críticas que Levinas faz a elementos

da filosofia heideggeriana como o ser-para-a-morte como possibilidade última do ser

completar-se. Além da oposição a elementos da filosofia de Heidegger, abordaremos temas

fundamentais na filosofia de Emmanuel Levinas como ética, responsabilidade, a morte do

Outro, pensar o ser para além do ser, ou seja, o êxodo do ser ao Outro, dentre outros temas

circundantes ao tema da morte, tema este que é central neste trabalho.

Neste capítulo abordaremos elementos importantes da filosofia levinasiana, sendo que,

em sua primeira parte, trataremos sobre ética, responsabilidade, violência e a questão do

tempo levinasiano. Na segunda parte, refletiremos sobre o tema da morte (ponto central de

nossa discussão), em especial, acerca do anonimato da morte, a morte do Outro, a consciência

de minha própria morte e a morte como origem do tempo, segundo Levinas. E, em um último

momento, discutiremos como nosso filósofo franco-lituano trata a respeito de temas como a

emoção diante da morte, a ideia do infinito e o exercício ético de pensar o Ser para além de si

mesmo, ou seja, em direção ao Outro.

3.1 ELEMENTOS DA FILOSOFIA LEVINASIANA

Nesta parte do capítulo, pretendemos retomar as principais ideias do pensamento

filosófico e também bíblico-talmúdico de Emmanuel Levinas, relevantes para nosso estudo.

Aqui se apresentam, em linhas gerais os temas levinasianos que irão contribuir para a nossa

reflexão sobre a morte, presente neste capítulo. Temas referentes à ética, à responsabilidade e

à violência; além do tema do tempo na filosofia levinasiana, bem como o tempo como

paciência em Levinas.

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3.1.1 Ética, responsabilidade e violência

Quando se diz, por exemplo, que Levinas surpreendeu o mundo com a complexidade

contida em Totalité et Infini (1961), podemos afirmar que a consciência tecnicista de utilidade

e de inteligibilidade de todas as coisas realmente importantes para o pensamento racional

ocidental, deixa esvair pensamentos tão importantes quanto os científicos do ocidente,

desprezando o conhecimento das grandes matrizes do pensamento oriental. Não é de espantar,

pois Levinas é um profundo pesquisador do pensamento judaico-rabínico referente ao

Talmude (HUTCHENS, 2009, p. 29).

Grandes eventos envolveram o filósofo de Kaunas em consequência dessa mesma

matriz religiosa. Segundo Hutchens (2009, p. 29), a proposta ocidental de tornar tudo o que é

verdadeiramente importante em inteligibilidade tem como temas centrais “Deus, o agente

individual, o passado histórico, o futuro progressivo, as culturas não ocidentais e qualquer

tradição cultural que seja mitológica ou ‘supersticiosa’”. O autor ainda afirma que o que é

contrário à perspectiva da busca permanente pela inteligibilidade ou é esmagada, ou

distorcida, ou ainda ignorada (ibid, p. 30).

A busca por racionalidade leva-nos ao individualismo, e esta ao uniformismo. Em

vista disso, Hutchens (2009, pag. 31) afirma que o conhecimento sobre a realidade, segundo a

racionalidade ocidental, é de fato verdadeiro quando o reduzimos a regras globais ou

uniformes, ou seja, à totalização. O Eu que está separado da realidade que ele próprio reduziu

e dominou, é o mesmo que está alcançando a autonomia que lhe justifica e lhe dá objetivos.

Então, quanto mais subjetividade o eu alcançar diante de sua própria realidade, mais distante

estará da singularização ou totalização do conhecimento. A própria metafísica ocidental ter-

se-ia debruçado diante da racionalização de todas as coisas, reduzindo tudo o que é diferente à

uniformidade.

Para o pensamento racional do ocidente, não existe nada no interior do eu que não

tenha sido reduzido ao racionalismo: emoções, prazer ou crenças, tudo foi reduzido ao status

de inteligível. Não é que Levinas seja sempre um crítico da racionalidade ocidental, mas ele

tenta absorver o que ela deixa escapar, principalmente no que se refere à ética – para ele

negligenciada pela busca de inteligibilidade do ocidente -, portanto uma “ética da ética”. É

claro que, para Levinas, o eu é moldado por muitos aspectos da racionalidade. No entanto,

existe algo que Hutchens coloca como o “mundo do eu”, que a racionalidade não capta e nem

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reduz, e nem poderia, pois não é de conhecimento nem do próprio eu, nem do Mesmo e nem

do Outro (HUTCHENS, 2009, p. 32).

De fato, para Levinas, não há absoluta totalização das coisas, sejam elas materiais ou

sensíveis. Pelo contrário, existe sim um fascínio por aquilo que é misterioso no

relacionamento humano. E como veremos, existe o mistério que se revela diante do

desconhecido da morte e diante da morte do Outro. A fuga, muitas vezes, até inconsciente

dessa totalização, é a consciência de que há algo de estranho e diferente entre os seres

humanos em seu contato social, que não se consegue reduzir a essa busca caprichosa pela

inteligibilidade. Ser humano em contato social é de fato estar em contato com o que há de

misterioso no outro, ou seja, do que é diferente de mim e, por isso, não conheço, do qual não

posso, eu, totalizar, em virtude de todo o seu sentido singular que cada um representa neste

intercâmbio de sociabilidade (HUTCHENS, 2009, p. 33).

O tema da “ética da ética” como responsabilidade perpassa o sentido do rosto da outra

pessoa. O rosto da outra pessoa aparece a mim como um grande mistério, como algo que é

diferente de mim e, por isso, interpela-me a agir para com ela com responsabilidade.

Independente se, para mim, o que ela representa é ou não é de minha importância. Ainda

sobre a racionalidade ocidental, Hutchens aponta que o ser livre decide se quer optar pela

responsabilidade ou não, e que, para Levinas, a liberdade estaria subordinada à

responsabilidade. Logo, o ser livre seria em si próprio um ser responsável (HUTCHENS,

2009, p. 34).

Se a racionalidade ocidental declarou o eu um ser livre e conquistador dos seus

próprios interesses, a filosofia levinasiana representou o olhar do eu para o outro, não para

reduzi-lo, mas para concebê-lo como superior a si. Para Pelizzoli (2002, p. 26-27), a

declaração da “morte de Deus” e o status de órfãos, a morte do homem, a ênfase burguesa e

pós-moderna do ser que é livre, não esgota a tarefa de se descobrir nas culturas o elemento

humano que atenda ao caráter irredutível do Outro.

Talvez esse tema seja tão presente na filosofia de Emmanuel Levinas por obra de sua

vasta experiência pessoal com o terror das invasões militares, exílios e peregrinações fugitivas

do ódio de humanos contra outros humanos. Possivelmente, nosso filósofo é o filósofo da

ética por motivos relacionados aos tempos de crise, vividos durante o terror do Holocausto,

que devorou sua família no leste da Europa e diante de sua própria experiência na prisão, e

nas idas e vindas no entre guerras. Como diz Bucks:

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Assim, a guerra, apesar dos horrores, fez Levinas entrar em contanto

com a caridade cristã. Ele também se sentiu sensibilizado pela atitude

de um padre católico que, junto a “um camarada judeu que os nazistas

quiseram enterrar como cachorro, recitou orações que eram, em

sentido absoluto, orações semitas” (DL, 27). Um dos responsáveis no

campo era um homem chamado de “Abbé Pierre”, que sabia por seu

comportamento restaurar nos judeus humilhados a consciência de

dignidade. “Nesse canto da Alemanha onde, ao atravessar a cidade, os

moradores nos olharam como a judeus (...) a condenados ou a

portadores de vírus. Mas um cachorrinho nos acolhia à entrada do

campo latindo alegremente e fazendo festa ao nosso redor” (EL, 85).

(BUCKS, 1997, p. 25)

Hutchens (2009, p. 35) aponta, na ética levinasiana, três sentidos da responsabilidade:

o primeiro, como uma reação ao outro de uma forma inevitável; o segundo, como reação a

partir de nós à outra pessoa e sua exigência; e o terceiro, como reação para o outro,

colocando-nos no lugar da outra pessoa em suas responsabilidades. Em primeiro lugar, afirma

o autor, nós nascemos num mundo social que não escolhemos, mas, no final, simplesmente

existimos, e existir em contato social implica que não podemos ignorá-lo em nossos arranjos

sociais.

É no contato social que descobrimos nossa liberdade diante do outro, o que exige de

mim a responsabilidade necessária para com ele conviver entre as pessoas. Então, é no

contato com outras pessoas que sabemos e percebemos que somos responsáveis pelos outros e

vice-versa. É um caminho duplo de responsabilidade. Aqui se habita a reflexão de um eu que

é responsável pelo Outro até mesmo de sua morte, onde sua face cheia de expressões silencia

e toma a forma de máscara, imóvel, mas que fala comigo mesmo assim. Retomaremos essa

reflexão mais adiante.

Anteriormente foi dito que o eu é responsável, e o é de forma inevitável, devido à não

possibilidade de se negar a ser. Até antes do contato social, já somos responsáveis por uma

exigência já exterior a nós mesmos. Para Levinas, não é preciso dizer algo para mim para que

eu saiba reagir com responsabilidade diante da outra pessoa, o próprio momento de estar

diante do outro, através do que ele analisou como rosto – com todo o seu sentido misterioso –

já se mostra o suficiente para exigir de mim a ação de um ser responsável por esta pessoa

(HUTCHENS, 2009, p. 36).

Na proposta ética levinasiana, o eu não pode negar-se a esta responsabilidade diante

do outro, pois essa é inevitável. Sendo assim, a presença da outra pessoa me impele a

responder eticamente a ela, uma responsabilidade em que não digo “não!”. Para Levinas, até o

fato de tentar nos esquivarmos dessa responsabilidade já é uma resposta diante do apelo ético

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do rosto da outra pessoa, que se apresenta como superior a mim e ao qual não consigo fugir.

Para isso, nosso filósofo analisa a ideia de substituição, no sentido de se colocar no lugar da

outra pessoa como resposta a esse apelo ético. Fica claro assim, que, para Levinas, as

responsabilidades são intransferíveis, a presença da outra pessoa põe em dúvida a liberdade

autônoma do eu e exige que este atue com responsabilidade (HUTCHENS, 2009, p. 40-41).

Levinas coloca a responsabilidade como um dever, principalmente quando estamos

diante de outra pessoa em estado de sofrimento, como se eu fosse responsável por alguém que

sofre diante de mim. Essa “responsabilidade pelo outro” exige de mim respostas diante do

rosto de quem para mim é enigmático, ou seja, que eu desconheço e exerce sobre mim uma

força da qual não tenho como me desviar (HUTCHENS, 2009, p.42). Hutchens exemplifica

este caso muito bem:

Por exemplo, quando alguém sentindo dor se aproxima, a

responsabilidade por essa dor é radical mesmo que não tenhamos

causado essa dor nem assumido qualquer responsabilidade por ela.

Somos solidários com a outra pessoa em seu sofrimento. “Posso lhe

ajudar?” ou “Você está bem?” ou “O que foi que houve?” ou “Quem

lhe fez isso?” são reações possíveis que sugerem “responsabilidade

por”. Nossa exposição à face de uma pessoa que sofre nos coloca em

uma posição em que devemos tratar deste sofrimento como se fosse

nosso próprio (HUTCHENS, 2009, p. 42-43).

Então, para Levinas, somos tão responsáveis pelas pessoas que sofrem quanto pelas

que fazem sofrer. Somos chamados à responsabilidade, por exemplo, pelas pessoas que são

alvo de qualquer ato violento como se fôssemos nós mesmos as vítimas quando dizemos

“basta de violência!”, ou ainda, pelos agressores quando nos chocamos com tal atitude

criminosa, mesmo que não tenha sido nenhum de nós que a tenha praticado, mas que gere

mesmo assim sofrimento a alguém e que, na exposição nos rostos dela nos chame ao mesmo

sofrimento. Somos responsáveis por todos, mesmo sem assumir qualquer responsabilidade,

pelo fato de que de alguma forma, o que acontece aos outros mexe conosco (HUTCHENS,

2009, p. 43).

Hutchens (2009, p. 60-61) continua contextualizando Levinas e apontando que a

filosofia insiste em estimular a compreensão do eu filosófico separado da realidade, e ainda

que esse eu tivesse poder sobre ela. Como foi abordado anteriormente, a filosofia parece não

aceitar que os seres humanos sejam diferentes uns dos outros, e que procura totalizar qualquer

diferença em um termo neutro e universalizante, e que possibilite a racionalização da própria

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compreensão que temos de nós mesmos. Tudo em busca de termos inteligíveis e uniformes. O

autor exemplifica bem isso no parágrafo que segue:

Em vez de serem seres diferentes uns dos outros, somos empilhados fora da

realidade como seres a quem foi dado o poder. E, é claro, aqueles que são

mais poderosos como resultado dessa violência que é cometida contra eles

irão utilizar esse poder violentamente contra os que são menos poderosos

(HUTCHENS, 2009, p. 61).

Hutchens (2009, p. 61) nos concede outro exemplo, bem mais prático, sobre a

contínua busca por termos neutros e uniformes da filosofia ocidental. Desprezando qualquer

individualização ou seu sentido, um humano é agrupado com outros, em uma categoria de

outro termo, mais global que o anterior, “humanidade”. Este último exclui qualquer caráter

individual do ser enquanto único, esvaindo, com isso, toda a compreensão de diferenças

existentes entre os seres humanos, adquirindo cada vez mais um sentido uniforme. Podemos

dizer que o eu é violentado à medida que se nega todo o seu sentido como ser individual e

com suas particularidades próprias.

O eu é livre para governar sua existência à medida que se afasta da racionalização de

seu próprio existir e resiste contra sua própria totalização. Isso garante sua individualidade,

não sendo vítima da violência contra si mesmo através da uniformização e singularização de

seu próprio ser pela filosofia tradicional. Resistimos à totalização de nós mesmos através da

responsabilidade. Reconhecer que a outra pessoa é diferente de mim já põe em xeque a

tentativa de inteligibilidade das relações entre os seres humanos (HUTCHENS, 2009, p. 64-

65).

O eu é alvo de sua própria violência à medida que seu egoísmo o leva a compreender a

realidade sobre a visão de suas próprias experiências. Hutchens chama a atenção para o eu

que experimenta de sua existência lá fora e depois volta para si mesmo e se fecha,

desprezando tudo o que ficou do lado de fora, diferente das coisas que agora fazem sentido

para o eu. Em razão da liberdade, escolhemos ser e fazer o que queremos, porquanto, Levinas

chama a atenção para “o despir” do orgulho do eu e de seu imperialismo, que é característico

dele mesmo. Esse egoísmo e renúncia de visões exteriores e diferentes da realidade fora do eu

leva a ações tirânicas e ao não diálogo com o que é diverso dele (HUTCHENS, 2009, p. 66-

65).

Provavelmente toda a experiência totalitarista de personagens individuais,

manipulando uma massa, nos vários conflitos a que nosso filósofo assistiu e vivenciou-os,

instigando-os a não aceitar o diferente, o estranho, o enigmático, reduzindo-os a coisas

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inferiores do que a sua própria compreensão, tenha levado os seres humanos a genocídios sem

precedentes em prol de uma realidade única de um grupo de pessoas.

3.1.2 O Tempo em Levinas

Antes de tudo, é importante compreendermos um pouco como Levinas concebe o

tempo, servindo-nos como introdução à compreensão da morte como tempo e à consciência

do tempo a partir da morte, que veremos logo após.

Levinas compreendia o tempo diferente do tempo do relógio, cronometrado, contínuo

e progressivo. Esse tempo, chamado de tempo histórico, é caracterizado pela sucessão de

eventos da história, em que a memória pôde reconstruir e preservar. Essa ideia de tempo só

temos como memória histórica daquilo que se conseguiu resgatar do passado, que não se

viveu como resgate de um tempo que se deve preservar para que não se perca com sua

progressão. Entretanto, nosso filósofo compreendia um tempo descontínuo, cheio de rupturas

– separado pelos tempos mortos e ressuscitado por um novo tempo22

-, compreensão tal que se

permite, então, regressar e avançar no tempo. Essa percepção de tempo apresenta a

característica não progressiva, tempo esse que podemos chamar de tempo da subjetividade,

em clara oposição ao tempo histórico ou cronológico (HUTCHENS, 2009, p. 97).

A respeito do tempo da subjetividade, apresentado por Hutchens (2009), podemos

observar três etapas: sincronia, diacronia e anacronismo. Vejamos, em linhas gerais, cada

uma dessas etapas.

O tempo não é progressivo pelo fato de o próprio Levinas não conceber o tempo como

progressão, como tempo medido ou tempo do relógio, concebendo, enfim, o tempo de forma

anacrônica, não como ideia de medição de curso, como ele próprio aponta em sua obra Dios,

la muerte y el tiempo (1998):

Esta palavra [duração] evita as ideias de fluxo e curso que fazem pensar em

uma substância líquida e anunciam a possiblidade de medir o tempo (o

tempo medido, o tempo do relógio, não é o autêntico tempo). Como

temporalização – zeit-gang – a palavra duração evita todos esses mal-

22

Através desta forma de conceber o tempo, a morte seria um desses tempos mortos que inscreve o ser para uma

nova etapa do tempo, através da ressurreição do tempo anterior que faleceu, como o próprio Levinas assume: A

constituição do intervalo que liberta o ser da limitação do destino chama a marte. O nada do intervalo – um

tempo morto – é a produção do infinito. A ressurreição constitui o acontecimento principal do tempo.[...] O

tempo é descontínuo. [...] O instante na sua continuação encontra uma morte e ressuscita. Morte e ressurreição

constituem o tempo (LEVINAS, 2008, p. 282).

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entendidos e a confusão entre o que transcorre o tempo e o tempo de si

(LEVINAS, 1998, p.17).

Imaginemos se, vivendo o presente, pudéssemos recordar o passado e predizer o

futuro. Esse, sim, é o grande sonho de um eu autônomo, vencedor de suas próprias limitações.

Mas, na prática, só lembramos aquilo que é verdadeiramente significativo para nossas

experiências cotidianas, ou seja, nossa memória frágil apenas se recorda dos eventos mais

importantes de nossa vida (HUTCHENS, 2009, p. 98).

A história oficial não poderia ser contada, por exemplo, através de nossas lembranças,

num esquema temporal e evolutivo de fatos que acontecem um após o outro, apenas se

utilizando daquilo que recordamos. Seria necessário, então, voltar ao passado e reconstruir

aquilo que a memória histórica é incapaz de reconstruir. A primeira percepção de tempo, logo,

é sincrônico – passado (relembrando), presente (vivenciando) e futuro (predizendo)

(HUTCHENS, 2009, p. 98).

Se o eu é senhor do seu tempo sincrônico, no egoísmo de sua solidão, a chegada da

outra pessoa – que já é fato futuro – choca-o, apresentando-lhe tempos e memórias diferentes

das suas, pondo em cheque sua perspectiva de senhorio diante de seu próprio tempo. O eu em

seus arranjos sociais abre a ideia de tempo diacrônico. Levinas chama de diacronia um

aspecto do tempo que “rompe” a temporalidade, no que Levinas aponta como uma ruptura de

continuidade e uma continuação através dessa ruptura. No tempo diacrônico, abre-se a

possibilidade, assim, de ir e voltar no tempo, como já vimos antes, através das mortes e

ressurreições dos tempos mortos (HUTCHENS, 2009, p. 101-103). No entanto, devemos

ressaltar que, embora haja várias rupturas mediante os eventos que seguem, não se elimina

aqui a consciência de uma duração de tempo durante essas rupturas. O importante é conceber

que as multiplicidades dos atos que se seguem e rompem o tempo, solucionem o anterior

(LEVINAS, 2008, p. 281).

Pois bem, nesse relacionamento entre o Eu e o Outro, ainda existem os “outros da

outra pessoa”, representados pelos já falecidos e pelos não nascidos, cada um com seu tempo

próprio e perturbador para o eu. Neste mesmo relacionamento, abre-se:

[...] uma dimensão maciça de relacionamentos temporais, que envolvem não

só a outra pessoa e seu tempo, o eu e seu tempo, mas também o tempo de

outros que ainda não nasceram ou já faleceram. Ao responder à outra pessoa,

o eu responde por meio do outro a todos os outros “passados” que “passaram

por ele” exigindo responsabilidade. [...] A temporalidade da outra pessoa, a

imprevisibilidade da geração futura e a imemorabilidade das experiências

dos mortos abrem aquilo que Levinas chama de “anacronismo”, o tempo que

não tem qualquer princípio e origem (HUTCHENS, 2009, p. 104).

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Os vários tempos dos outros da “outra pessoa” requerem do eu responsabilidade no

relacionamento face a face, pois a experiência entre esses diferentes tempos mostra ao eu suas

limitações diante da outra pessoa. O anacronismo do tempo expresso no relacionamento do eu

com o Outro e, mais ainda, com os outros da “outra pessoa”, exige atitudes responsáveis do

eu, devido à verificação de sua própria limitação no face a face com o Outro (HUTCHENS.

2009, p. 105).

Então, tempo e morte estão intimamente interligados na filosofia levinasiana, devido

ao fato de a morte ser um ótimo exemplo da descontinuidade do tempo da subjetividade,

como foi abordado em parágrafos anteriores. Por isso, o tempo da subjetividade procura

distanciar-se da morte por dois motivos: primeiro, porque a morte tende a tornar as coisas em

passado ou aniquilá-las; e, segundo, porque não se conhece o tempo depois da morte. Logo, é

impossível antecipar um momento final, pois a morte é um evento que não se apresenta em

nenhum lugar, e que é acontecimento imprevisível. Então, assim como o tempo não pode ser

dominado pelo eu, segundo Levinas, a morte também não pode ser retida por ninguém. Ela é

futuro e não determina qualquer temporalização (BRITO, 2002, p. 98-99).

Brito (2002, p. 99) alerta para um fator importante: com a vinda da morte, a

subjetividade finda, pois a morte da outra pessoa não encerra a mensagem exposta pelo rosto

da pessoa que morreu. Se assim o fosse, a morte seria uma compreensão do ser para o nada.

Como já vimos, a morte abre o ser para o infinito, para o que é desconhecido, para a

continuidade do tempo da subjetividade, como veremos adiante. Segundo Brito, a morte não é

o lançar-se ao nada, não é o fim. Citando Levinas (BRITO, 2002, p. 99), ele afirma que a

angústia diante da morte é devido à consciência de que o ser que morre é alguém que termina

sem estar terminado, como consciência do tempo que não deu tempo de terminar o que

deveria ter sido concluído. Talvez, seja aí que resida a angústia diante da morte, da chegada

repentina dela, no não ter como escapar e por ela silenciar meus sentidos, sem que me dê a

possibilidade de completar-me.

Em suma, para Levinas, não existe um tempo universal no qual estamos todos

situados. Existem vários tempos – inúmeros passados, presentes e futuros – e esses se

encontram no contato entre as pessoas. Esse contato dos vários tempos entre as pessoas no

face a face exige dos agentes envolvidos uma resposta ética, uma responsabilidade com a

outra pessoa e com seu tempo, experiências e lembranças próprias que não podem ser

violentadas em prol das minhas próprias convicções temporais.

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3.2 A MORTE EM LEVINAS

Nesta seção do capítulo, refletir-se-á a respeito do tema da morte na filosofia

levinasiana. Analisaremos como Levinas trata do anonimato da morte, consciência da minha

própria morte diante da morte do Outro e a morte como origem do tempo. Aqui trataremos,

assim como em todo este capítulo, do diálogo que Levinas trava com a filosofia heidegerriana

e seu ser-para-a-morte, principalmente na obra Dios, la muerte y el tiempo (1993), no

entanto, como na seção anterior, também trataremos do tema da morte em sua obra mais

expressiva, Totalité et Infini (1961).

3.2.1 A morte e o anonimato da morte em Levinas

Para Levinas, o tempo verdadeiro não é o tempo cronometrado, como nos impõe a

racionalidade tradicional, pois o tempo não pode ser capturado por (origem) e em (destino)

uma ideia de temporalização. A morte, para nosso filósofo, é um ponto cujo tempo conserva

sua paciência, em uma espera que rejeita sua intenção de espera (LEVINAS, 1998, p. 18). A

morte nada mais é do que paciência e extensão do tempo, provavelmente devido à ideia de já

participarmos do infinito. A morte, de fato, não representa o fim, e sim uma continuidade,

porém continuidade passiva pelo caráter irreversível da morte. Não escolhemos morrer, é um

evento ao qual não podemos resistir, é mais forte do que nós e, por isso, irreversível, fora do

nosso alcance de controle (ibid, p.18).

Mas, o que, de fato, conhecemos sobre a morte? Sabemos a respeito da morte de ouvir

falar ou através do conhecimento empírico, afirma Levinas. A Linguagem nos dá essas

primeiras compreensões, por meio de ditos, provérbios, frases poéticas e religiosas. No

entanto, o que conhecemos sobre a morte não é derivado de experiências ou observações de

comportamentos humanos, como moribundos ou mortais que conhecem e esquecem sua

morte (LEVINAS, 1998, p. 19). Então, de imediato, podemos dizer que o que conhecemos

sobre a morte não deriva de comprovação científica ou racional, e sim do conhecimento que

advém do senso comum e do que se é culturalmente repassado entre os homens. Em Totalité

et Infini, Levinas afirma:

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A minha morte vem num instante sobre o qual, sob nenhuma forma, posso

exercer o meu poder. [...] A morte é uma ameaça que se aproxima de mim

como um mistério; o seu segredo determina-a – ela aproxima-se sem poder

ser assumida [...] (LEVINAS, 2008, p. 231).

Se pararmos para refletir sobre a questão do anonimato da morte ou do não fazer-se

conhecer da morte, perceberemos o caráter negativo do morrer (aniquilação). Talvez, tanto

para o que odeia quanto para o que deseja a morte, seu caráter anônimo se pareça, ora como

solução desconhecida, ora como desespero desconhecido. Em ambos os casos, ao que

pretende fugir da morte e ao que anseia por ela, se depara com o total desconhecimento de sua

própria compreensão. Mas uma coisa Levinas adianta: é na morte do meu próximo que

concebo a morte e seu caráter negativo como aniquilação (LEVINAS, 1998, p. 19).

Como primeiras considerações sobre o tema da morte, Levinas nos provoca a pensar o

que seria a morte e o que sabemos sobre ela. Ele mesmo inicia as ideias sobre nossa

discussão. A morte é a interrupção de comportamento, o fim de movimentos expressivos e de

processos fisiológicos. A enfermidade já é um distanciamento de ambos os movimentos, os

expressivos e os fisiológicos. Alguém que morre, e perde seus movimentos expressivos e

biológicos, aparece, a mim, como um rosto sem expressão, uma máscara, uma morte que não

é a minha própria, mas que nem por isso deixa de se relacionar comigo (LEVINAS, 1998, p.

22-23).

3.2.2 A morte do Outro e a consciência de minha própria morte

Ao vermos uma pessoa que antes, em vida, tinha uma identidade como ser, após sua

morte, percebe-se a negação desse mesmo status, o de ser. O que antes era um ser, agora é um

corpo, um corpo que o processo de decomposição fará desaparecer – o caráter aniquilador da

morte nega o status de ser da pessoa que antes vivia. Em contrapartida, afirma Levinas, a

morte é partida, mas uma partida que não deixa qualquer direção e retorno, uma partida para o

desconhecido. Para o nosso filósofo, a morte é emoção por excelência, não é um excesso, é

um passo, uma partida e uma fonte de emoções que rejeita qualquer tentativa de consolação.

Isso devido ao relato do Fedón, sobre a morte de Sócrates, no qual nosso autor aponta para

duas compreensões da morte: uma como esperança e outra como um evento caracterizado

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pelo excesso, e, por isso, como fonte de emoções fora da possibilidade de poder consolar-se

(LEVINAS, 1998, p. 20).

Em meio a esse total desconhecimento da morte, a partir de que compreendemos o

morrer? Segundo Levinas, eu a compreendo por meio da minha relação com a morte

constituída pelas repercussões emocionais e intelectuais do conhecimento da morte das outras

pessoas. Ao nos depararmos com a morte dos demais, refletimos sobre ela a partir da relação

estabelecida entre mim e o Outro que vejo morto. Além disso, todo o significado emocional e

compreensível que envolve a morte nos é revelado por meio das repercussões que ela atinge

em nós mesmos (LEVINAS, 1998, p. 20).

A morte da outra pessoa é um exibir-se, um expressar-se, um relacionar-se. Mesmo

após a morte, a outra pessoa continua a relacionar-se comigo e afeta-me como resposta ética

diante de seu rosto. Para Levinas, a morte do Outro me afeta em minha própria identidade

como responsável por ele. A morte é, em si, um relacionar-se ético entre o eu e a outra pessoa

que está morta. É pelo fato de sua morte afetar-me como responsável pela outra pessoa que se

constitui minha relação com sua morte (LEVINAS, 1998, p. 23). Nosso filósofo continua:

O morrer, como morrer do outro, afeta a minha identidade como Eu, tem

sentido em sua ruptura do Mesmo, sua ruptura do meu Eu, sua ruptura do

Mesmo em meu Eu. Com o qual minha relação com a morte dos outros não é

nem unicamente conhecido de segunda mão, nem experiência privilegiada

da morte (LEVINAS, 1998, p. 24).

Levinas trata de nos levar à reflexão com mais alguns questionamentos sobre o tema

da morte. Primeiro, ele se pergunta se o sentido da morte não é revelado na morte do outro, e

que existe já uma articulação para a profundidade da repercussão do medo que se sente na

morte quando estamos diante da morte do outro. Segundo, nosso autor se questiona se é

acertado medir esse medo sob a ameaça que pesa sobre mim, ameaça que se apresenta como

única fonte de afetividade. Levinas já adianta, citando Heidegger, que a angústia é a origem

de toda afetividade. E, por último, ele se indaga se o medo é algo derivado dessa afetividade

que tem origem na eminência angustiante da morte (LEVINAS, 1998, p. 24).

Lévinas chama a atenção sobre a compreensão da morte como experiência do nada no

tempo, mas Levinas busca outra compreensão tanto sobre o nada, quanto sobre o tempo que

nos foi imposto ou pelo conhecimento racional, ou pela filosofia ocidental. Antes do que se

refere ao que se abre com a morte, ele afirma que a morte é a imobilização da mobilidade do

rosto que nega a morte (LEVINAS, 1998, p. 25). De fato, a mobilização do rosto é

característica da pessoa que vive, sendo característico ao que morre o fim deste movimento do

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rosto. No entanto, isso não implica o fim do exibir-se enquanto rosto, como vimos

anteriormente.

O rosto voltado à morte é abertura ao Infinito, quando diante da morte o rosto implora

por responsabilidade. A relação ética presente no rosto da vítima, que está prestes a morrer,

diante de seu algoz interpela pelo mandamento ético que é expressão original do rosto: “não

matarás”. Essa angústia é vivida pelo eu em primeira pessoa que, unicamente, só sente não

como egoísmo, mas como solidão, medo da chegada de sua própria morte. Não como morte

diante do nada, como é em Heidegger, mas para algo que eu desconheço e, por isso, é

diferente de mim e impossível de se tematizar (NUNES, 1993, p. 155).

Levinas afirma que a morte é, ao mesmo tempo, cura e impotência. Se observarmos o

que ela é como cura, o é se superarmos a compreensão desta como alternativa de ser/não-ser.

Esta é impotência na medida em que afirmamos a morte sob a ótica desta mesma relação

ambígua de ser/não-ser. Em contrapartida, questionar se na morte se abre ao ser para uma

viagem ao desconhecido é significado pela sua própria interrogação, pela problemática diante

da falta de seus dados (LEVINAS, 1998, p. 25). Ele afirma que:

O fim é somente um momento da morte; um momento cuja inclinação não

seria a consciência ou a compreensão, mas sim a pergunta, pergunta distinta

de todas as que se apresentam como problemas (LEVINAS, 1998, p. 25).

Para Levinas, na filosofia, a relação com minha morte se descreve como angústia e me

direciona para um compreender da morte como nada, e é no problema da relação com minha

morte que se conserva a estrutura dessa compreensão. Se a compreendemos como o nada,

então assimilamos toda a negatividade do morrer como angústia, como medo da morte. A

morte é diacronia no tempo, é ruptura; a relação com a morte não é visão do nada (LEVINAS,

1998, p. 26).

Para a filosofia levinasiana, a morte tem um sentido ou aponta para a existência de um

sentido. Em oposição à compreensão da vida como preparação para a morte ou para sua

aceitação, Levinas já aponta a morte em uma estrutura social, nem vem do nada e nem abre o

ser para o nada. Refletindo sobre as mortes em Auschwitz, o indivíduo que entrega sua vida

ao seu carrasco não exclui a presença do medo e do terror contido no morrer, mas escancara

ao outro o sentido diante da pessoa que está se dirigindo para a sua morte aos seus próprios

olhos. Daí a morte adquire um sentido para aquele que acompanha o morrer da outra pessoa

que sofre seu próprio destino sozinha, mas reflete nas demais a responsabilidade para com

quem ainda vive (NUNES, 1993, p. 156-157).

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Para Lévinás, a morte conserva todo o seu sentido positivo, porém, se falarmos no

sentido negativo do morrer, falamos, então, no ódio ou no homicídio, sentido negativo esse

que apreendemos sempre diante da morte da outra pessoa. Se, na morte, o rosto do Outro se

abre para mim como expressão do mandamento “Não matarás”, então, tirar a vida de uma

pessoa coloca em cheque não só minha identidade como um eu responsável, mas também toda

a compreensão de positividade sobre a morte. No entanto, o rosto do Outro que morre não só

exige de mim o mandamento “Não matarás”, mas também “não deixá-lo morrer sozinho”,

então, o morrer é interpelação ética do rosto diante de um assassinato ou diante do morrer

abandonado. (SIERRA, 2009, p. 97).

Quando falamos que a morte da outra pessoa me interpela para a responsabilidade,

Levinas quer nos dizer que a morte tem seu sentido maior na relação humana.

Responsabilidade essa que não permite que me esquive de qualquer frieza diante da morte da

outra pessoa, o não deixar o outro morrer sozinho, ou ainda, o não abandonar o outro na

solidão da angústia da sua morte. O rosto da pessoa que está morrendo me chama a ser tão

responsável por seu sofrimento quanto por ela mesma. Enfim, o eu, que se vê responsável

pelo outro que morre, foi instigado, através das expressões de seu rosto, a não deixá-lo morrer

sozinho (NUNES, 1993, p. 158-159).

Em oposição a Heidegger, que quer ver a morte como final, Levinas afirma que esse

pensamento não poderia medir todo o seu alcance. tal alcance pode ser atingido através da

conversão do compreender a morte como final para a morte como responsabilidade

intransferível. Segundo nosso filósofo, eu “sou responsável pela morte do outro até ao ponto

de me incluir em sua morte [...] Sou responsável pelo outro na medida em que é mortal. A

morte do outro é a primeira morte” (LEVINAS, 1998, p. 57).

O rosto é a revelação do Outro, mais especificamente, em seu falar, em seu expressar e

em seu pedir resposta ao que se apela. Ao responder ao rosto da outra pessoa já é minha

resposta ética. Minha relação com o rosto do Outro é apelo e resposta por responsabilidade. O

rosto da outra pessoa não é estático, imóvel, um retrato, pelo contrário, expressa-se, fala e

ainda exige de mim resposta. Não é só isso, mesmo quando alguém morre, a imobilidade das

expressões do seu rosto não finda sua comunicação, é, justamente, o oposto: a nudez de seu

rosto me afeta em minha emoção e identidade, fala até quando morre (SIERRA, 2009, p. 98).

A proximidade ou o distanciamento espacial entre o eu e o Outro não caracteriza a

essência da proximidade que este exerce sobre mim. O Outro que se aproxima é mais que um

conhecido meu, é alguém que representa um ministério para mim, alguém que, ao aproximar-

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se, já me apela por uma relação ética, pondo em questão meu egoísmo e individualismo.

Apenas diante deste mistério, que é o rosto da outra pessoa, caio em mim mesmo e percebo

que o Outro exerce força sobre mim, mesmo distante espacialmente e próximo eticamente

(SIERRA, 2009, p. 99).

O saber puro, segundo Levinas, é o vivido, e a consciência não apreende mais do que

as aparências de um processo expresso pela imobilização de quem, há pouco tempo, podia

expressar-se. Sobre a morte do meu próximo, ele completa que a relação com a morte:

[...] é uma relação puramente emocional, que move com uma emoção não

produzida pela repercussão, em nossa sensibilidade e nosso intelecto, de um

saber prévio. É uma emoção, um movimento, uma preocupação no

desconhecido (LEVINAS, 1998, p. 27).

Levinas nos questiona se a inquietude da emoção na proximidade da morte não seria a

pergunta que dá origem precisamente à emoção. Emoção como diferença à morte, emoção

como pergunta, mas que não se apresenta como resposta. Pergunta que é relação com a morte

do outro, medo do desconhecido, mas responsabilidade e compaixão com a outra pessoa. O

desconhecido é a inquietude com a qual se coloca um questionamento que não pode se

transformar em resposta (LEVINAS, 1998, p. 28).

No Fédon de Platão, Levinas se utiliza do diálogo da morte de Sócrates para refletir

sobre o sentido da morte. No Fédon, a morte é reconhecida como o próprio esplendor do ser,

morte como desnudez de todos os véus. O ser apenas resplandece em sua divindade com o fim

da corporeidade. Na morte, Sócrates continua visível e, nela, a repercussão emocional não se

esgota. Além disso, o mesmo diálogo apresenta o excesso da emoção na morte de Sócrates,

quando Apolodoro chora mais que os demais, fora de toda medida (LEVINAS, 1998, p. 29).

Levinas esclarece alguns dos temas que tratamos até aqui, como por exemplo, o

tempo, que, para ele, não é a limitação do ser, provavelmente, como oposição à compreensão

do tempo enquanto se vive, sendo o fim da vida o fim do tempo, abre sua relação com o

infinito. Como já vimos, tempo como diacronia, como ruptura e nascimento de um novo

tempo. Já o tema da morte, para o nosso autor, não é aniquilamento, mas a pergunta

necessária para que essa relação com o infinito, ou com o tempo se produza. A morte, então,

não é, além do fim, um recomeço? Ou, ainda, a morte não nos liga ao infinito23

, através do

fim de um tempo e nascimento de outro? Esses podem ser alguns questionamentos que se

23

Ter a ideia do Infinito é ter uma relação com uma realidade que nos transcende, a qual não pode ser objetivada

nem objetivante. O infinito não é o objeto do nosso pensamento, mas o conteúdo que ultrapassa a ideia que

temos dele (NUNES, 1993, p. 25).

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produzem diante da consciência da morte e do tempo, a partir do mistério que se segue após o

morrer (LEVINAS, 1998, p. 30).

Já sobre o ser que pensa acerca de sua própria finitude e que, através da reflexão do

próprio ser, chega a algo que lhe é transcendente, dá-se a compreender como Infinito.

Levinas se apoia em Descartes, que apresenta o Infinito como consciência do próprio ser de

pensar a sua finitude, já que sua finitude o leva a refletir sobre o que é infinito. Nosso filósofo

concebe o Infinito como exterioridade, algo que não é do próprio ser, mas que vem de fora do

ser (NUNES, 1993, p. 26)

Entretanto, não se pode assistir à própria morte, então, não sei nada sobre minha

morte. A consciência da morte está no olhar para o morrer da outra pessoa, e é, na experiência

com o fim das expressões biológicas do Outro, que chego à consciência de minha própria

morte. O não saber sobre minha morte caracteriza a minha relação com a consciência entre

mim e ela, ou seja, quanto menos conheço sobre minha morte – seu tempo, sua chegada, do

que esteja após ela – mais me questiono a respeito do morrer (LEVINAS, 1998, p. 30).

3.2.3 A morte como origem do tempo em Levinas

Já ao final de sua obra Dios, la muerte y el tiempo, Levinas nos provoca com alguns

questionamentos referentes ao nosso compreender de tempo como uma metáfora de um rio

que corre, de fluxo, ou, em outras palavras, como sincrônico – sucessão de acontecimentos

(LEVINAS, 1998, p. 130). Partindo desses questionamentos24

, nosso filósofo nos remete ao

termo de diacronia do tempo, como vimos no início deste capítulo. Compreensão de tempo

que ressuscita com a morte para um novo tempo, o infinito, assim como ele mesmo afirma,

“Embora, seguiria havendo uma relação, a própria diacronia. O tempo deveria conceber-se

como a verdadeira relação com o infinito” (ibid, 131).

Observamos, então, que Levinas toma o caminho oposto ao de Heidegger, não de um

ser para o nada, mas de um tempo que se relaciona com o infinito através da diacronia do

tempo (LEVINAS, 1998, p. 132). Nosso filósofo chega a afirmar que o infinito constitui a

teologia do tempo. Matías Ruz afirma:

24

cf. LEVINAS, 1998, p. 131.

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Na duração do tempo, a morte é o ponto cujo tempo conserva toda a sua

paciência, é uma espera que rejeita sua intencionalidade de espera, por isso

se concebe a morte como paciência do tempo (RUZ, 2003, p. 35).

Então, o homem é um ser mortal; é essa a característica de ser homem, de estar na

iminência da morte. A consciência do evento da morte vem pelo desconhecimento do

momento de sua chegada. Tendo a consciência, o ser resiste a ela, quer adiá-la. Segundo Brito

(2002), essa resistência origina a consciência de tempo do “agora não”, do ser contra a morte,

da não aceitação de sua vinda. O homem é, ainda, um ser temporal, pois a consciência da

morte nos leva à consciência do tempo. Tempo esse como ruptura, como diacronia, e morte

como transcendência para o que está para além dela, para os espaços vazios do infinito -

vazios como desconhecimento (BRITO, 2002, p. 100).

Tocarmos no assunto da morte e do tempo é logo dialogar com Heidegger, que

apresenta o ser como “ser-para-a-morte”, que discutimos anteriormente. O filósofo alemão

compreende o tempo a partir da morte, e ela a partir da angústia diante do nada, do ser que

chega ao fim. Já para Levinas, o caminho deve ser o oposto, pensar na morte a partir do tempo

e, para isso, deve-se abdicar de um conceito muito caro em Heidegger, o do ser, e, como

consequência, o conceito do “para o nada”. Mas é importante frisar que Levinas não é todo

antagônico a Heidegger, pelo contrário, os dois têm no tema da morte e do tempo seus

pensamentos próximos, principalmente, sobre a morte sem resposta, a angústia e a morte

como partida (SIERRA, 2009, p. 96).

Por outro lado, o momento de divergência entre ambos está na forma como eles

compreendem o ser e sua angústia diante da morte. Para Levinas, o estar diante da morte já é

uma busca por sentido. Meu primeiro contato com a morte é a afetividade, ou melhor, meu ser

emocionado diante da morte do Outro. Diante da morte do outro, chego à consciência do

tempo como paciência, como tempo que tenho que durar, pura passividade, mas não tempo

que desemboca para o nada, diferente do que Heidegger propõe. Então, se, na compreensão

heideggeriana, a morte é reflexão ontológica, em Levinas a morte é reflexão ética, relação

ética por excelência (SIERRA, 2009, p. 96).

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3.3 LEVINAS: EMOÇÃO DIANTE DA MORTE, O INFINITO E O PENSAR ALÉM DO

SER

Enfim, na última parte deste capítulo, abordaremos aquilo do que trata Emmanuel

Levinas a respeito da emoção diante da morte, da ideia do infinito e do próprio infinito, aqui

fazendo um diálogo com a filosofia cartesiana e por último uma reflexão sobre a intenção

levinasiana de superar o egoísmo do Dasein na obra heideggeriana principal, Ser e Tempo

(1927), e refletir sobre um ser que pensa e que é responsável pelo Outro.

3.3.1 A emoção diante da morte em Levinas

Para Levinas, tempo e morte já são temas subordinados à busca por significado que

possui o ser do ente, uma busca que é curiosidade de explorador, que ao mesmo tempo é

essencial ao homem (LEVINAS, 1998, p. 60). No entanto, está no passo irremediável do

aproximar da minha morte que se tem a ideia de seu movimento de aproximação. Talvez o

melhor seria não pensar na minha morte, ou ainda, o não conhecer sobre a minha morte.

Parece-nos que quanto mais se conhece sobre a morte mais ela nos cerca. E como temos

conhecimento de nossa morte? Levinas responde, “minha morte não se deduz, por analogia,

da morte dos outros; increve-se, isso sim, no medo que posso ter para o meu ser” (LEVINAS,

2008, p. 230).

Mas é de saber comum que tanto a tradição filosófica quanto a religiosa interpretam a

morte ou como passagem ao nada, ou como passagem a uma existência que é outra, que

continua e se estende num novo contexto. Também, na morte, nasce uma alternativa tanto

para o ser quanto para o nada, como se o morrer desse a resposta final sobre ambos. Como

nada, Levinas ilustra através da história de Caim que mata seu irmão Abel, talvez com o saber

que a morte é desaparecimento empírico, o deixar de existir. O assassínio é, em si, a

alternativa que reduz o Outro ao nada (LEVINAS, 2008, p. 229-230), aqui, a morte é sua

alternativa e resposta.

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Quando estamos diante de uma pessoa que está morta, sua imobilidade nos estarrece,

talvez pelo silêncio profundo a que foi submerso aquele que antes vivia. Silêncio este que

parece escancarar diante de nós a hora inevitável de um dia parar de viver dentre os outros.

Levinas afirma que:

O “conhecimento” do ameaçador antecede toda a experiência racionalizada

sobre a morte de outrem – o que, em linguagem naturalista, se exprime como

conhecimento instintivo da morte. Não é o saber da morte que define a

ameaça, é na iminência da morte, no seu irredutível movimento de

aproximação, que originalmente consiste a ameaça, que se profere e se

articula, se assim podemos exprimir-nos, o “saber da morte”. O medo mede

esse movimento (LEVINAS, 2008, p. 230).

Para Levinas a ameaça não vem de um ponto exato do futuro, de uma espécie de último ato da

vida que, de uma forma ou de outra, chegará. O não conhecer desse último instante não o caracteriza,

como se a alternativa de conhecê-lo me traria poder de assim superá-lo. Impossibilidade atemorizante

porque a morte não se retém em qualquer horizonte que eu possa, enfim, dominá-lo. Ao contrário, ela

que me apanha de repente sem ao menos deixar-me a hipótese de luta, pois, assim, segundo Levinas,

eu me apodero daquilo que me agarra enquanto estou lutando (LEVINAS, 2008, p. 230-231)

3.3.2 A ideia do infinito e o Infinito: Descartes e Levinas

Falar em infinito na filosofia levinasiana é pensar numa oposição à totalidade.

Tomamos como base para tal reflexão a obra Totalité et Infini (1961), que representa um

marco na história das publicações filosóficas de Levinas. Segundo Nunes (1993, p. 22), na

referida obra, nosso filósofo se reflete sobre os dois principais sistemas filosóficos que

percorre toda a abordagem em Totalité et Infini. Ela mesma antecipa como Levinas aborda

esses dois sistemas, a Totalidade e o Infinito. A autora afirma:

À totalidade Levinas opõe o Infinito, a infinidade; o infinitamente infinito

que é Outrem. Ao ser, Levinas opõe a transcendência. A um egoísmo, se

opõe um Altruísmo. Trata-se de passar do Mesmo ao Outro. Esta passagem

dá-se na relação face-a-face; é aqui que a transcendência e o Infinito se

manifestam (NUNES, 1993, p.22).

A totalidade é atribuída por Levinas ao egoísmo da filosofia ocidental que reservou à

razão um lugar de majestade. Nosso filósofo ilustra os dois sistemas filosóficos através de

dois personagens, Ulisses e Abraão. Ulisses, que ao deixar sua terra, sempre deseja retornar, é

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a ilustração para o sistema da totalidade; já o sistema do infinito, Levinas o ilustra através do

personagem bíblico Moisés, que deixa sua terra e vai para o lugar que Deus lhe mostrara, e

que recebe em sua tenda os estrangeiros desconhecidos, prostrando-se diante deles. O que de

fato se quer com essa ilustração é elucidar o egoísmo do sistema da totalidade, que, ao sair,

retorna e se tranca em si mesmo, em oposição ao infinito que prevê o esvaziamento de si

mesmo e a abertura ao Outro e tudo o que for de desconhecido em seu acolhimento (NUNES,

1993, 22).

Pois bem, Levinas quer com isso denunciar todo o egoísmo que carrega o sistema

filosófico que, por muito tempo, priorizou o ser em detrimento do Outro, numa filosofia desde

Parmênides até Hegel, Husserl e Heidegger, nosso filósofo se coloca contra a uma ontologia

como filosofia. É se aproximando de um grande mestre, que Lévinas dá-se conta da oposição

à ideia de totalidade, através da filosofia de Franz Rosenzweig. Nele a ontologia tem sentido

de um imperialismo e um egoísmo(NUNES, 1993, p. 23). Levinas, em relação ao egoísmo da

ontologia como filosofia, afirma a seguir:

A relação com o ser, que atua como ontologia, consiste em neutralizar o ente

para o compreender ou captar. Não é, portanto, uma relação com o outro

como tal, mas a redução do Outro ao Mesmo. Tal é a definição da liberdade:

manter-se contra o outro apesar de toda a relação com o outro, assegurar a

autarcia de um eu. A tematização e a conceptualização, aliás inseparáveis,

não são paz com o Outro, mas supressão ou posse do Outro. A posse afirma

de fato o Outro, mas no seio de uma negação da sua independência

(LEVINAS, 2008, p. 32).

Então, para Levinas, a ontologia como filosofia, especialmente a ontologia

heideggeriana, é uma tirania do poder. Será na oposição deste egoísmo e violência que ele

propõe o Infinito como base para o seu sistema filosófico (NUNES, 1993, p. 23).

Essa ideia do infinito não é nova, vem da filosofia de Descartes que, segundo Nunes

(1993, p. 24), é marca de Deus na sua obra e estrutura constitutiva do ser humano. Levinas

utiliza-se da ideia do infinito cartesiano nas relações humanas, em especial na relação com o

Outrem. Diante disso, Nunes questiona em que medida a aplicação da ideia do Infinito e a

relação do Outrem é cartesiana? Ela responde que:

Descartes escreve uma situação onde existe uma prioridade da ideia do

infinito em relação à ideia do ser e em relação à ontologia. Parte do cogito,

vai do cogito ao mundo, passando pela ideia do infinito. O eu que pensa tem

uma relação com algo que ultrapassa, algo que ele não pode conter e do qual

é separada. A ideia do infinito é uma ideia excepcional, já que o ideatum

ultrapassa a sua ideia. Quando se pensa a ideia de infinito, a distância que

separa a ideia do ideatum ultrapassa em larga medida a ideia do simples

objeto, “visa aquilo que não se pode abraçar, e neste sentido precisamente

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infinito”. O infinito é a desmedida entre a ideia e o ideatum; é a própria

Transcendência [...] (NUNES, 1993, p. 25).

Em outras palavras, a ideia do infinito é relação com uma realidade que nos

transcende, que não pode ser objetivada e nem objetivante, marca da filosofia levinasiana

contra a constante tentativa de racionalizar todos os temas, inclusive a ideia do infinito. Não

se pode objetivar a ideia do infinito porque ela não é o objeto do pensamento filosófico em

Levinas, isso porque o infinito é o conteúdo que ultrapassa a ideia que temos dele,

transcendência (NUNES, 1993, p. 25).

Antes de Levinas, outros filósofos abordaram o tema do infinito. Além de Descartes,

Kant considerava a ideia do infinito como um ideal da Razão, ele projetava o finito num além,

como algo que deveria completar, numa espécie de necessidade que o infinito tem no finito

para poder completar-se infinitamente. Em Heidegger, o tema também é desenvolvido a partir

do finito, isso porque a consciência do limite não surge no homem através da ideia do infinito.

Hegel, por sua vez, retoma Descartes no que se refere à positividade do infinito, mas também

exclui o infinito como um totalmente outro e assim já o limita. Nas filosofias tradicionais,

Levinas aponta para uma filosofia do simplesmente finito, como em Heidegger, ou filosofia

do mau infinito, como em Hegel. Assim nosso filósofo de Kaunas prefere o retorno a

Descartes e Platão, pois eles não procuram incluir o infinito no todo, mas, em contrapartida,

mantêm a transcendência do infinito (NUNES, 1993, p. 25 - 26).

A ideia do infinito cartesiano levou Levinas à admiração, principalmente pela

necessidade de passar a ideia do infinito para chegar ao concreto e ao mundo. Para Descartes,

o infinito tornou-se impensável, cuja única forma de se relacionar com ele seria através da

contemplação e adoração, então a relação com a ideia do infinito tornou-se pessoal, segundo

NUNES (1993, p. 26 ), porque tornou um rosto. A autora continua dizendo que Levinas

chegou a quase abusar do texto de Descartes, utilizando-o como princípio para justificar a

primazia da moral. Para a filosofia levinasiana, a ideia do infinito é “relação social”, relação

com Outrem, que não é meu igual e nem meu irmão, mas meu Senhor e Mestre, que me olha

de cima a baixo na sua altura e majestade, baseada em sua infinidade. Essa relação nada mais

é que o infinito no finito (NUNES, 1993, p. 27).

Se, para Descartes, a ideia do infinito e o próprio infinito vêm do sujeito que se

interroga sobre sua própria finitude, Levinas aborda o infinito como exterior ao sujeito, vem

de fora, é pura exterioridade que se produz na relação com o rosto do Outro, uma

exterioridade total. A ideia do infinito é proporcionada pelo desejo, um desejo metafísico

(NUNES, 1993, p. 30 – 31).

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Pelizzoli (1994, p.79) diz que:

A ideia do infinito, importante e central noção da filosofia de Levinas, tem a

função de “descrever”, de servir de paradigma teórico para a relação entre o

Mesmo e o Outro na qual se mantém a exterioridade dos interlocutores,

assegurando a um cogito a sua transcendência, sem que a totalidade exerça

integração.

Como vimos antes, Levinas pensa o infinito que não é constituído pelo finito, cuja

alteridade mantém a exterioridade. A relação Mesmo-Outro mantém os seres independentes e

aponta para a infinitude do infinito, ou seja, a sua medida. Pelizzoli (1994, p. 80) afirma que

“a transcendência que a ideia do infinito sugere não é uma transcendência ao modo das

religiões (‘onde se mergulha no ser para o qual se caminha’)”. Assim como em Descartes,

Levinas apresenta uma cena na qual eu e Deus somos dois momentos distintos e não se

confundem, assim como o Mesmo e o Outro que não se unem numa totalidade. Assim é uma

relação que é antes da intencionalidade objetiva, com alguém que não posso dominar ou

conter.

Ribeiro Junior (2008, p. 448) diz que “ao eu é concedido pensar na ideia do infinito na

situação ética”, para ele, Levinas concebe a ideia do infinito como desejo do eu pelo outro.

Mais uma vez, como foi dito em linhas anteriores, a filosofia levinasiana desenvolve seu

pensar filosófico sobre as bases da ética no relacionamento face a face, a ética também é o

ponto crucial para se compreender também o que Levinas apresenta como a ideia do infinito e

o próprio infinito.

Para Ricardo Timm de Souza (1999, p. 80), os modelos de filosofias que estavam em

destaque no século XX já haviam chegado a sua maior maturidade, fato que possibilitou o

grande momento da filosofia levinasiana no que se refere ao modelo filosófico em que a Ética

substituiu a Ontologia no lugar mais importante do filosofar. O infinito ético de Levinas será

sistematizado pela primeira vez no artigo La Philosophie et l’Idée de l’Infini de 1957. Neste

trabalho, nosso filósofo faz uma introdução acerca do Infinito como “a primeira instância de

substituição da Ontologia pela Ética” (SOUZA, Ricardo Timm de. 1999, p. 81).

Como já vimos, Levinas busca em Descartes a raiz de sua compreensão acerca do

Infinito, mas isso não ocorre de forma total, pois, entre os dois filósofos, existem algumas

distinções em ambas as abordagens filosóficas. Para nosso filósofo, é fato que exista uma

ideia de infinito que seja exterior ao sujeito, ou seja, não venha do sujeito, assim como na

filosofia cartesiana – o modelo formal do Infinito segundo Levinas -, no entanto, o que separa

os dois teóricos está delimitado no tema do inatismo da ideia de Descartes sobre o Infinito,

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que se contrapõem no conteúdo e no sentido ético do Infinito na filosofia levinasiana

(SOUZA, Ricardo Timm de. 1999, p. 82).

A ideia do Infinito na filosofia cartesiana é uma ideia de fronteira, um pensar mais do

que pode, pensando no limite da coerência racional tradicional, ou seja, a última ideia possível

com que o pensar racional se depara em seu limite, contra sua própria insuficiência. Até aí,

Levinas se coloca de acordo com Descartes, e chega a ser até sua inspiração, devido essa ideia

significar, para nosso filósofo, um romper com a Totalidade pensante do mundo. Não só isso,

mas, o “ponto de contato entre o mundo e o extra-mundo não simplesmente racional”. Para

Levinas, esse esquema deve continuar conservado, mais ainda, na superação dele mesmo,

através da superação da ideia de inatismo na abordagem cartesiana (SOUZA, Ricardo Timm

de. 1999, p. 85).

Onde, porém o sujeito teria uma real experiência com o Infinito? Segundo afirma

Bonamigo (2005, p. 95), é na acolhida do rosto do Outro onde nos deparamos com o Infinito.

Para Lévinas, o rosto não é algo cuja chegada consigamos adiantar, visto que ele

simplesmente advém, e todo esse mistério no face a face revela a ideia de Deus. Podemos

compreender o motivo de, para a filosofia levinasiana, o rosto do outro ser o início da Ética.

Lá é onde está expresso o mandamento “não matarás!”, onde a vulnerabilidade do rosto

caracteriza sua maior resistência contra a violência (BONAMIGO, 2005, p. 95-96).

3.3.3 O Êxodo do Ser ao Outro: Levinas para além de Heidegger

Uma das mais fundamentais críticas de Levinas a Heidegger é a impossibilidade de

pensar para além do ser. O ser, na filosofia hedeggeriana, não é só fundamental, é preciosa

para a compreensão de todo o desenvolvimento ontológico para uma totalização do ser, como

vimos anteriormente. Não obstante, Heidegger parece reduzir a relação com o Outro à

reflexão ontológica, e isso é pura oposição ao pensamento levinasiano (RUZ, 2003, p. 22).

O tempo em Heidegger é reflexão ontológica, pois o ser consciente de sua existência é

também consciência do já estar no mundo, do estar submergido às coisas do mundo e do estar

adiante de si mesmo, de seu próprio futuro, de seu próprio fim. Então, o entendimento de

tempo pelo Dasein subordina a temporalização da existência à reflexão ontológica. Não é,

porém, uma visão de tempo a partir de sua medição, mas de suas possibilidades do ser

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continuar sendo ou “poder ser”. Levinas não compreende o tempo como ontologia, mas como

ética, em que o tempo sempre remete ao relacionamento face a face (RUZ, 2003, p. 24).

As oposições entre os dois filósofos não se encerram. Se Heidegger vê o tempo como

apropriação do ser de seu próprio futuro, como um ser-para-a-morte, como um enfrentamento

do sujeito com sua morte, uma conformidade com seu morrer, Levinas pensa que o tempo é

uma modalidade do ser contra a morte, pois a relação do sujeito com ela não é intencional,

mas é em sua relação que os questionamentos sobre o além dela, o que se abre após a morte e

sobre o desconhecido se produz (RUZ, 2003, p. 25).

Como vimos no capítulo anterior, o ser em Heidegger está ocupado em um

empreendimento de ser, numa busca por completar-se a si mesmo. Levinas irá fortemente de

encontro ao empreendimento egoísta do eu. A medida do sábio, para nosso filósofo, não

consiste em completar-se enquanto ser, numa busca pela própria saúde, enquanto outras

pessoas ao redor requerem de nós nossa ajuda, enquanto criam miséria e submetem-se

silenciosamente. Não que ele atacasse esse desejo pelo que é útil e por uma alegria infinita,

mas ele não o considera a “medida do homem” e classifica esse interesse como estar sob o

signo da violência e da guerra. Esse, então, não seria o interesse primeiro do ser

(BONAMIGO, 2005, p. 90).

Esse cuidado extremo por si mesmo pode ser superado a fim de se direcionar para

além do ser, através da sabedoria contida nas Escrituras hebraicas que a filosofia ocidental fez

questão de desconsiderá-la em nome de um discurso racional e de um espírito livre. Para

Levinas, através das Escrituras podemos chegar a uma forma essencial do espírito, sem

destruir as contribuições do pensar racional, um não auto-anula o outro, além de a fonte

hebraica atribuir um sentido original ao ser, sentido esse que a filosofia tradicional mostrou-se

incapaz de escutar (BONAMIGO, 2005, p. 90).

Segundo Bonamigo, Levinas pretende superar as filosofias do Ser em busca do

Humano:

É por detrás da perseverança no ser (Espinosa), do ser-no-mundo

(Heidegger) e da dialética que rege a história (Hegel) que Levinas procurará

o Humano. Com efeito, para ele a vinda do humano no Ser não é possível,

pois aquele que se põe a tarefa de ser como o absoluto de sua vida fará todo

o esforço para dirimir todos os obstáculos que se interpuserem na

consecução de seu fim, inclusive exercendo violência contra aqueles que

possam ameaçar tal consecução (BONAMIGO, 2005, p. 91).

Em contraposição a Heidegger, Levinas não concebe o homem como ser-para-a-

morte, mas sim um homem que está ancorado na eternidade, que, segundo Bonamigo,

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implicará a ultrapassagem da questão do Ser pela questão do Outro. Esse conceber o humano

no homem, Levinas extrai da fonte hebraica, onde a Bíblia afirma que todos somos

estrangeiros nessa Terra, no entanto a condição de estrangeiros caracteriza cada homem como

um próximo. Quando o homem abdica de sua liberdade enquanto eu, este se encontra com o

seu caráter mais humano, como um ouvir a voz do estrangeiro, da viúva e do órfão

(BONAMIGO, 2005, p. 91).

Nas filosofias do Ser, em que a liberdade é uma questão cara para tais, Levinas

discorda de que tal liberdade tenha o significado de autonomia como princípio universal da

moralidade. Na questão da moral, para Levinas, está o Outro, ou melhor, a presença do Outro.

Então, a moralidade na abordagem levinasiana, segundo Bonamigo (2005, p. 91-92), se funda

sobre a possibilidade de acolher o Outro e não na liberdade ou na vontade racional do Eu.

Essa ideia de subordinação da liberdade a uma exterioridade não vem da filosofia ocidental,

mas sim, mais uma vez, das Escrituras hebraicas. Basicamente a tradição hebreia lança as

bases para que nosso filósofo conceba o contato com um ser exterior não comprometedor da

soberania humana, mas a ressignifica. Por isso, o homem livre é aquele voltado para o Outro.

Não dá para falar em liberdade sem tocar na questão da responsabilidade na filosofia

levinasiana. Para Levinas, o verdadeiro eu se encontra com sua humanidade quando ele deixa

sua responsabilidade pelo Outro ultrapassar os limites de sua liberdade, ou seja, quando ele

adia sua própria satisfação pessoal para responder à urgência do estender a mão à outra pessoa

(BONAMIGO, 2005, p. 93).

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CONCLUSÃO

Emmanuel Levinas é um filósofo que desde os primeiros períodos de suas publicações

filosóficas propôs uma volta às Escrituras hebraicas, principalmente, no período pós-guerra

quando assume em Paris a coordenação do Instituto Judaico, onde pôde dedicar-se aos

estudos do Talmude. A ética presente nos textos sagrados do judaísmo está também na

filosofia levinasiana. Levinas é um ético e sua filosofia é construída sobre esta mesma ética.

Sua confissão judaica aliado a sua nacionalidade leva Levinas a estar em contato

constante com a morte de tantas pessoas, bem como a da sua própria família que fora

exterminada pela perseguição Nazista aos judeus do Oriente da Europa, onde nascera nosso

filósofo e a possibilidade da sua própria morte. Hora ou outra, Levinas está peregrinando de

um lado para o outro fugindo da ameaça da morte ou tentando se estabelecer em algum lugar

mais seguro. Lituania, Ucrania, França e Alemanha, são alguns dos itinerários feitos pelo

filósofo franco-lituano até se estabelecer de vez em Paris.

Levinas é dono de uma vasta bibliografia, sendo que seus principais comentadores a

dividem em três períodos. No primeiro período (1929-1951), Levinas trata, principalmente,

sobre a fenomenologia de Edmund Husserl e Martin Heidegger. No segundo período (1952-

1964), o filósofo franco-lituano desenvolveu uma bibliografia mais pessoal, escrevendo

grandes obras como Difícil Liberdade (1963) e, sua mais notável obra, Totalidade e Infinito

(1961). No terceiro período de suas publicações (1965-1995) é caracterizado por uma maior

maturidade na filosofia levinasiana e de maior produção filosófica. Trata-se de um longo

período de reflexão sobre o judaísmo e um retorno às Escrituras e o Talmude. Esse último

momento da bibliografia levinasiana, destacam-se as obras: Quatro Leituras Talmúdicas

(1968), O humanismo do outro homem (1972), Do Sagrado ao Santo (1977), Ética e Infinito

(1982), Entre Nós (1991) e Deus, a morte e o tempo (1993) – sendo essa última, uma das

principais referências bibliográficas que nortearam essa pesquisa.

Não obstante, Levinas discute sobre a ética como responsabilidade pelo Outro como

filosofia primeira. Até quando morre, o Outro continua a interpelar-me por responsabilidade.

O direito a vida sempre deve ser inviolável partindo da expressão bíblica do “não matarás” e

do “amar ao próximo como a ti mesmo”. O eu é responsável pelo Outro até quando este

morre.

Falar em morte na filosofia levinasiana é colocá-lo em diálogo com a filosofia

heideggeriana e seu ser-para-a-morte. Enquanto o Eu levinasiano se preocupa com o Outro, o

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Dasein heideggeriano está empenhado em completar-se através de todas as possibilidades que

se abre em seu poder-ser. Levinas critica o egoísmo do Dasein que se preocupa mais com seu

individualismo existencial do que com os sofrimento e angústias de outros que fazem parte

desse mesmo mundo.

É na morte do Outro, segundo Levinas, que tenho conhecimento do evento do morrer e

que este faz parte do existir humano. Mas o apelo ético do Rosto do Outro que está morto

suplica-me para que o Eu não deixe que o Outro morra só. Já em Heidegger, mesmo que o

Dasein passe a conhecer a morte diante do morrer de outro Dasein, a morte é individual e

insubstituível, isto é, ninguém pode se colocar no lugar de quem agora está morto, pois o

morrer é algo tão individual que eu morro sozinho.

A morte na filosofia de Heidegger é um completar-se, um findar de todos os

excedentes do existir, o fim de todas as possibilidades do ser continuar sendo. Não é, porém

uma presença da morte no final da historicidade do Dasein, mas sim, a morte é das

possibilidades mais essenciais do ser. A possibilidade da morte acompanha o ser desde o

início até o fim de sua existência. Não há, porém, negatividade na morte, a aceitação pelo

Dasein de sua própria finitude garante ao ser o adiantar-se diante da surpresa de sua morte.

Em Levinas, a morte, amedronta devido a seu total anonimato. Quanto menos se sabe

sobre a morte mais se tem medo dela. Principalmente, porque não se sabe o tempo de sua

chegada. Ela simplesmente vem e silencia todos os movimentos e expressões biológicas. A

negatividade na morte se determina nesse silenciar autoritário do morrer, que se impõe sobre

mim, não me deixando alguma chance de defesa, pois não se sabe de onde vem ou quando

vem.

No entanto, Levinas nos leva ao exercício do pensar o ser além dele mesmo, ou seja,

pensar em direção ao Outro, um rompimento com a ideia egoísta e individualista do Dasein e

seu empreendimento por completar-se. Viver é um continuo relacionar-se com o Outro e, esse

relacionar-se, exige responsabilidade para que de forma alguma o Eu venha violentá-lo. Em

suma, o Eu sempre será responsável pelo Outro, até quando esse não vive mais, mediante as

repercussões psicológicas de sua morte. Continuo me relacionando com o Rosto imóvel do

Outro e que me afeta com todo o seu silêncio existencial e implora-me para que não lhe

abandone.

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