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história da física

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  • 26 Cad. Bras. Ens. Fs., v. 23, n. 1: p. 26-52, abr. 2006.

    TRS EPISDIOS DE DESCOBERTA CIENTFICA: DA CARICATURA EMPIRISTA A UMA OUTRA HISTRIA+*

    Fernando Lang da Silveira Instituto de Fsica UFRGS Porto Alegre RS Luiz O. Q. Peduzzi Departamento de Fsica UFSC Florianpolis SC

    Resumo

    Examina-se o papel da experimentao na gnese de conhecimentos relativos a trs episdios da descoberta cientfica: a fsica de Galileu, a teoria da relatividade restrita e o modelo atmico de Bohr. A insufici-ncia da epistemologia empirista na abordagem desses contedos e-videnciada pelo contraste entre a histria empirista e uma outra hist-ria, muito mais rica, dinmica e complexa. Do ponto de vista didtico, a filosofia da cincia contempornea abre novas e ainda pouco exploradas vias para um melhor entendimento da cincia e dos processos de construo do conhecimento cientfico.

    Palavras-chave: Histria da Cincia, epistemologia empirista, fsica galileana, relatividade restrita, tomo de Bohr.

    Abstract

    The hole of experimentation in the genesis of knowledge concerning three episodes of the scientific discovery is examined: Galileu s physics, special theory of relativity and Bohr s atomic model. The insufficiency of the empiricist epistemology in the approach of these contents is

    + Three scientific discoveries episodes: from the empirical caricature to another history

    * Recebido: maro de 2005. Aceito: maro de 2006.

  • Silveira, F. L. e Peduzzi, L. O. Q. 27

    showed by doing a contrast between the empiricist history and another history much richer, dynamic and complex. In didactic terms , the con-temporary philosophy of science opens new and still not explored roads for a better understanding of Science and the processes of construction of the scientific knowledge.

    Keywords: History of Science, empiricist epistemology, Galileu s Physics, special theory of relativity, the Bohr s atom.

    I. Introduo

    Aristteles (384-322 a.C.) j propugnara que no h nada no intelecto que no estivesse antes nos rgos dos sentidos (LOSEE, 1993, p. 108). Esta afirmao consistente com o empirismo: concepo que fundamenta nosso conhecimento, ou o material com o qual ele construdo, na experincia atravs dos cinco sentidos (HON-DERICH, 1995, p. 226).

    O empirismo, como concepo sobre o conhecimento cientfico, afirma que os cientistas obtm as teorias cientficas (leis, princpios, etc) a partir da observao, da experimentao e de medidas. Ao relatar um episdio de descoberta cientfica, a hist-ria da cincia empirista apresenta os dados e os resultados observacio-nais/experimentais a partir dos quais o cientista, aplicando as regras do mtodo cientfi-co, produziu conhecimento.

    Embora no se possa dizer que exista uma histria da cincia nos livros-texto do ensino mdio, e tambm universitrios, de um modo geral, mas sim uma cari-catura dessa histria, ela consistente com a epistemologia empirista. O objetivo deste trabalho o de criticar o relato empirista, independentemente do seu grau de sofistica-o, mostrando, em trs conhecidos episdios de descoberta cientfica, que existe uma outra histria, muito mais rica e complexa, sobre a produo do conhecimento cientfi-co.

    Nessa perspectiva, discute-se o papel que a experimentao desempenhou ou no na gnese da fsica de Galileu (as experincias de Pisa e do plano inclinado), na gnese da teoria da relatividade restrita (as experincias de Michelson-Morley) e na gnese do modelo atmico de Bohr (os espectros de emisso atmica). Para cada um desses temas, apresenta-se uma sntese histrica empirista seguida de uma outra hist-ria.

    LipianoRealce

    LipianoRealce

    LipianoRealce

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    II.1 Os experimentos de Pisa e do plano inclinado e a teoria da queda dos graves de Galileu: a histria empirista

    Galileu (1564-1642) o fundador do mtodo cientfico e produziu a teoria da queda dos graves a partir da observao e da experimentao. Somente depois de fazer experimentos, concluiu que a teoria aristotlica estava errada.

    Ao experimentar deixando cair simultaneamente dois objetos do alto de uma torre Galileu constatou experimentalmente que, no importando quais eram os seus pesos, eles atingiam o p da torre ao mesmo tempo. Quem melhor do que Viviane, seu primeiro bigrafo, para descrever a lendria experincia realizada na cidade de Pisa?

    Naquele tempo (1589-1590), ele estava convencido de que a investi-gao dos efeitos da natureza exigia necessariamente um conheci-mento verdadeiro da natureza dos movimentos, de acordo com o a-xioma ao mesmo tempo filosfico e vulgar ignorato motu ignoratur natura . Foi ento que, para grande indignao de todos os filsofos, ele demonstrou

    com o auxlio de experincias, provas e raciocnios exatos

    a falsidade de numerosssimas concluses de Aristteles sobre a natureza do movimento, concluses que, at ento, eram tidas como perfeitamente claras e indubitveis. Assim, entre outras, a de que as velocidades de mveis da mesma matria, mas desigualmente pesados e movendo-se atravs do mesmo meio, no obedecem proporo de seus pesos, como declarado por Aristteles, mas se movem, todos, com a mesma velocidade. O que demonstrou em repetidas experincias, feitas no alto do campanrio de Pisa, na presena de todos os outros professores e filsofos de toda a Universidade. (VIVIANE, apud KOYR, 1988, p. 200. Grifo no original)

    A nica razo pela qual os doutores da Universidade de Pisa, que assistiram aos experimentos, no se convenceram da falsidade da teoria aristotlica a de que eram dogmticos. Com os experimentos de Pisa, Galileu assestou um golpe mortal na velha teoria aristotlica, lanando as bases de uma nova dinmica.

    Galileu continuou aplicando o mtodo cientfico, realizando uma srie de novos experimentos. Ao fazer medidas sobre o movimento dos corpos em planos incli-nados, descobriu que:

    a) o movimento uniformemente variado;

    b) quanto mais inclinado o plano, maior a acelerao.

    Em face desses resultados experimentais,

    concluiu que, no vcuo, indepen-dentemente do peso, todos os corpos caem com a mesma acelerao.

  • Silveira, F. L. e Peduzzi, L. O. Q. 29

    II.2 Os experimentos de Pisa e do plano inclinado e a teoria da queda dos graves de Galileu: outra histria

    Galileu um personagem de mltiplas interpretaes dentro da histria da cincia.

    1 Como um dos possveis contrastes com a verso empirista, apresenta-se a

    influncia pitagrico-platnica na fsica de Galileu. A fsica galileana foi profundamente influenciada e motivada pelas convic-

    es copernicanas de Galileu. Desde o incio, a teoria copernicana sofria importantes objees astronmicas e mecnicas2, alm das religiosas, por parte de seus opositores. O compromisso de Galileu com as idias copernicanas levou-o a enfrentar tais objees e a sua teoria dos movimentos desempenhou um importante papel na confutao de alguns argumentos mecnicos contra o movimento da Terra. Mas o que teria levado Coprnico, e mais tarde Galileu e Kepler, a considerar o Sol e no a Terra o centro do mundo?

    No incio do Commentariolus , obra na qual Coprnico divulgou em 1510, sem provas e sem demonstraes matemticas , a essncia de seu sistema, ele manifes-

    tou a sua insatisfao com a astronomia ptolomaica, repudiando o equante3. A introdu-

    o de crculos equantes determinava que um planeta no parecia mover-se numa velocidade uniforme nem em seu orbe deferente e nem ao redor do centro de seu epici-clo. Assim tal especulao no parecia nem bastante absoluta, nem bastante racional

    (COPRNICO, 1990, p. 113). Aquele famoso equante que introduzira nos cus um movimento no uniforme, parecia-lhe verdadeiramente inadmissvel

    (KOYR, 1988, p. 82). Ou seja, os crculos equantes rompiam com o antigo pressuposto de que o mo-vimento dos planetas devesse ser uniforme em relao ao centro de suas trajetrias e tal pressuposto era caro a Coprnico

    4.

    1 Zylbersztajn (1988) discute quatro diferentes perspectivas da obra galileana: Galileu

    o empi-rista , O herdeiro da fsica medieval , O platonista e O manipulador de idias .

    2 Para uma discusso detalhada, pode-se consultar Medeiros e Monteiro (2002).

    3 Neste arranjo geomtrico da astronomia ptolomaica, o centro do epiciclo de um planeta (C) no

    se desloca com velocidade angular constante nem em relao ao centro de seu deferente (D), que no coincide com o centro da Terra (T), nem em relao Terra. O movimento uniforme ocorre apenas para um ponto prximo a estes dois ltimos, denominado equante (Q). Isto , medida que o planeta se movimenta, o segmento CQ descreve ngulos iguais em intervalos de tempo iguais.

    4 A Narratio prima , escrita por seu discpulo Jorge Joaquim Rtico a pedido de Coprnico,

    tambm expunha a insatisfao da nova astronomia com o equante.

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    As objees ao equante (estticas e fsicas) demonstravam a insatisfao de Coprnico com a astronomia ptolomaica, mas no

    justificam a origem da hiptese heliosttica. A nova ordem para o universo, instituda por Coprnico, reservou a posi-o central ao seu astro mais importante, a fonte da luz e da vida, o Sol. Ou seja, o Sol est no centro por uma razo transemprica que denota, juntamente com o pressuposto de que a matemtica imprescindvel para a compreenso do mundo, a herana da metafsica pitagrica, platnica e neoplatnica na obra de Coprnico5. O De revoluti-onibus , derradeiro livro de Coprnico, publicado em 1543, foi um fantstico produto inspirado nessa metafsica. Segundo Coprnico:

    No meio de todos os assentos, o Sol est no trono. Neste belssimo templo poderamos ns colocar esta luminria noutra posio melhor de onde ela iluminasse tudo ao mesmo tempo? Chamaram-lhe corretamente a Lmpada, a Mente, o Governador do Universo; Hermes Trimegisto chama-lhe o Deus Visvel, a Electra de Sfocles chama-lhe O que v tudo. Assim, o Sol senta-se como num trono real governando os seus filhos, os planetas que giram volta dele (CO-PRNICO, apud KUHN, 1990, p. 155).

    Ou seja, contrariamente

    ao ditame da epistemologia empirista6, h uma in-

    dubitvel inspirao metafsica na gnese do heliocentrismo. Kepler (1571-1630) tambm manifestou razes metafsicas para situar no

    Sol as causas

    do movimento dos planetas. A influncia neoplatnica bem ilustrada pela seguinte passagem de um de seus textos:

    Em primeiro lugar, a menos que talvez um cego possa neg-lo pe-rante ti, dentre todos os corpos do universo o mais notvel o Sol, cuja essncia integral nada mais que a mais pura das luzes [...], a fonte da viso, pintor de todas as cores [...], denominado rei dos planetas [...], corao do mundo [...], olho do mundo; por sua bele-za, nico que podemos considerar merecedor do Deus Altssimo [...] Pois se os germnicos elegem como Csar o que tem o poder

    5 Para os platnicos e neoplatnicos o Sol tem a mesma funo no universo das coisas visveis

    do que a idia do bem no universo das idias

    (POPPER, 1982, p. 214). O Sol, por conferir luz, vitalidade, crescimento e progresso s coisas visveis, deve ocupar o status mais elevado na ordem das coisas da natureza. Certamente nenhuma posio inferior no espao ou no tempo podia ser compatvel com a dignidade do Sol e com sua funo criativa. (...) As suas fontes (fon-tes de Coprnico) imediatas so neoplatnicas

    (KUHN, 1990, p. 155). 6

    Um dos dogmas do empirismo, exacerbado na verso do positivismo lgico do Crculo de Vie-na, que cincia se faz sem metafsica. Como a metafsica no tem fundamentao emprica, os positivistas lgicos consideraram as idias metafsicas carentes de significado cognitivo.

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    mximo em todo o imprio, quem hesitaria em conferir votos dos movimentos celestes quele que j vem administrando todos os demais movimentos e mudanas por graa da luz, que a sua posse exclusiva? [...] Nenhuma parte do mundo e nenhuma estrela mere-cedora de to grande honra; ento, pelas razes mais elevadas, vol-tamos ao Sol, o nico que parece, em virtude de sua dignidade e po-der, adequado a essa misso motora e digno de tornar-se a morada do prprio Deus (KEPLER, apud BURTT, 1991, p. 45-46).

    Como se viu anteriormente, desde a sua formulao, a teoria copernicana esteve envolta em importantes objees astronmicas e mecnicas, alm de religiosas, por parte de seus opositores. No mbito da astronomia, encontravam-se as previses no corroboradas empiricamente de que:

    a) Marte e Vnus deveriam sofrer grandes modificaes no seu tamanho aparente quando observados da Terra;

    b) Vnus deveria exibir fases, como a Lua; c) as estrelas deveriam apresentar paralaxe.

    Ao apontar o telescpio para o cu por volta de 1610, Galileu, copernicano convicto, contestou a propalada perfeio do cosmo aristotlico no domnio supralunar, observando estrelas nunca antes vistas, irregularidades na superfcie lunar, manchas no Sol, orelhas em Saturno, bem como variaes nos tamanhos aparentes de Marte (1:60) e Vnus (1:40), e fases em Vnus7.

    Ainda que no corroborassem apenas o sistema de Coprnico (as fases de Vnus, por exemplo, eram igualmente previstas pelo sistema de Tycho Brahe), e em que pese a ausncia de uma teoria ptica para o telescpio, as evidncias propiciadas por aquele novo

    instrumento eram to espetaculares que Kepler, mesmo sem olhar atra-vs de suas lentes, referendou as observaes de Galileu. O copernicanismo de ambos ensejava isso.

    O significado das novas observaes enaltece, ainda mais, o respeito de Ga-lileu para com os heliocentristas que o precederam:

    Estas so as dificuldades que me fazem admirar como que Aristar-co e Coprnico [...] tenham confiado tanto no que a razo lhes dita-va, a ponto de confiadamente terem afirmado no poder a estrutura do universo ter outra forma que a por eles apontada. (GALILEU, apud BANFI, 1983, p. 158. Grifo nosso)

    7 A paralaxe das estrelas somente veio a ser observada em 1837 por Bessel.

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    Como j afirmei antes, ter ele (Coprnico) continuado a afirmar, guiado pelas razes aquilo que as experincias sensveis mostravam o contrrio: porque eu no posso deixar de surpeender-me que ele tenha constantemente persistido em dizer que Vnus gire em torno do Sol, e que est afastado de ns mais de seis vezes num caso do que no outro, embora se mostre sempre igual a si mesmo, quando deveria mostrar-se quarenta vezes maior (GALILEI, 2001, p. 424. Grifo nosso).

    Galileu sabia das restries (de toda a ordem) ao heliocentrismo, mas exer-citava uma concepo epistemolgica que privilegia a razo

    8 em detrimento da empiria.

    Essa postura era consistente com a sua inspirao platnica: Plato (428/7- 348/7 a.C.) argumentava que o Mundo Sensvel (o mundo percebido pelos cinco sentidos) encon-trava-se em contnua alterao e mudana. Como o verdadeiro saber tem as caractersti-cas da necessidade lgica

    e da validade universal, no se pode procur-lo no Mundo Sensvel. Para Plato existe um segundo mundo

    Mundo das Idias ; este tem reali-dade independente do homem, existe objetivamente, fora de ns, apesar de ser imateri-al. Os objetos do Mundo Sensvel so cpias distorcidas das Idias; por exemplo, um corpo pode ter a forma aproximada de um tringulo retngulo, mas nunca ser verdadei-ramente um Tringulo Retngulo. Entretanto, ns conhecemos o Tringulo Retngulo e tambm sabemos, por exemplo, que a soma dos quadrados dos catetos igual ao qua-drado da hipotenusa

    9.

    Dentre as objees mecnicas ao movimento de rotao da Terra, confuta-das por Galileu nos Dilogos sobre os dois mximos sistemas do mundo

    (GALILEI, 2001), destacam-se as seguintes:

    a) argumento da torre: um objeto abandonado no topo de uma torre no pode cair verticalmente se a Terra estiver em movimento.

    b) argumento do canho: o alcance de um projtil de canho no pode ser o mesmo para o leste e para o oeste caso a Terra esteja em movimento.

    8 A supremacia da razo sobre a empiria a caracterstica do racionalismo. O racionalismo a posio epistemolgica que v no pensamento, na razo, a fonte principal do conhecimento

    (Hessen, 1987, p. 60); a experincia externa ou sensvel secundria, podendo at ser prejudicial ao conhecimento. Em sentido estrito, [o racionalismo o] conjunto das filosofias que sustentam que basta o pensamento puro, tanto para a cincia formal, como para a cincia ftica

    (BUNGE, 1986, p. 165). 9

    O conhecimento matemtico, especialmente a geometria, serviu como modelo para Plato e os demais racionalistas; nessa concepo o pensamento impera absolutamente independente de toda a experincia, constituindo um conhecimento conceptual e dedutivo. Com base em alguns conceitos e axiomas, todo o resto deduzido. Portanto, no de se admirar que diversos raciona-listas, como Descartes (1596-1650) e Leibniz (1646-1716), tenham sido tambm matemticos.

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    c) argumento da extruso: caso a Terra esteja em movimento, os corpos deveriam ser extrudidos, expulsos da sua superfcie.

    A retirada da Terra do centro do universo agregava novos questionamentos: a) de acordo com os aristotlicos, os graves caiam devido tendncia natu-

    ral que tm em se dirigirem para o centro do universo. Para onde, ento, iriam, se a Terra no estivesse mais nesse centro?

    b) o cosmo aristotlico era organizado sob o pressuposto da dicotomia exis-tente entre os mundos sublunar e supralunar. Se a Terra se movimenta como os demais planetas, no se poderia mais falar de diferenas na composio da matria terrestre e celeste; quem desejaria ou era capaz de subverter tudo isso?

    Mesmo tendo Coprnico lidado com alguns desses problemas a partir do conceito de impetus, introduzido por Jean Buridan (PEDUZZI, 1998), Galileu conside-rava que apenas uma nova fsica poderia superar todas essas dificuldades. Assim a fsica de Galileu, em especial a teoria do movimento, foi fortemente motivada na neces-sidade de dar suporte teoria de Coprnico, isto , de superar as objees mecnicas ao movimento da Terra. A nica alternativa para colocar a Terra em movimento era criar uma nova teoria dos movimentos.

    Mas como, enfim, Galileu chegou sua teoria do movimento de queda dos graves? Certamente, rompendo primeiro com a tradio da anlise do movimento pelas suas causas. Em sua obra Duas Novas Cincias , ele afirma:

    No me parece ser este o momento oportuno para empreender a investigao da causa da acelerao do movimento natural, a respeito da qual vrios filsofos apresentaram diferentes opinies... Estas fantasias, e muitas outras, conviriam ser examinadas e resol-vidas com pouco proveito (GALILEI, 1988, p.164).

    Mais adiante, destaca que:

    Antes de tudo convm investigar e explicar a definio que corres-ponde convenientemente a esse movimento, tal como a natureza o utiliza. [...] O que acreditamos ter finalmente descoberto depois de longas reflexes [...] Finalmente, no estudo do movimento natural-mente acelerado, fomos, por assim dizer, conduzidos pela mo gra-as observao das regras seguidas habitualmente pela prpria natureza em todas as suas outras manifestaes nas quais faz uso de meios mais imediatos, mais simples e mais fceis. [...] Quando, por-tanto, observo uma pedra que cai de uma certa altura a partir do repouso e que adquire pouco a pouco novos acrscimos de veloci-dade, porque no posso pensar que tais acrscimos de velocidade

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    no ocorrem segundo a proporo mais simples e bvia? Se considerarmos atentamente o problema, no encontraremos nenhum acrscimo mais simples que aquele que sempre se repete da mesma maneira. [...] concebemos no esprito que um movimento natural-mente acelerado, quando em tempos iguais quaisquer, adquire au-mentos iguais da velocidade (Idem, 1988, p. 156-160).

    Conforme se pode notar, nessa passagem no h referncia a qualquer ex-perimento que o induza a propor que o movimento de queda dos graves seja um movi-mento com acelerao constante. Ao contrrio, novamente a razo invocada, por Galileu.

    E quanto aos famosos experimentos no plano inclinado que, segundo a his-tria empirista, teriam propiciado a base indutiva para a teoria de queda dos graves de Galileu? Efetivamente, eles parecem ter sido realizados. Entretanto, na forma como so apresentados por Galileu em Duas Novas Cincias , no constituem experimentos dos quais se obtm indutivamente como concluso que o movimento uniformemente ace-lerado.

    Depois de discorrer, em Duas Novas Cincias , sobre o movimento de queda dos graves, Salviati, o expositor das idias galileanas, admoestado por Simpl-cio, o representante do aristotelismo ( bom lembrar que o empirismo a epistemologia de Aristteles):

    Simplcio - ... Mas, se essa a acelerao da qual se serve a natureza no movimento de queda dos graves, tenho no momento minhas dvidas. Parece-me, pelo que diz respeito a mim e a outros que pensam como eu, que teria sido oportuno neste lugar apresentar uma das muitas experincias que, em diversos casos, concordam com as concluses demonstradas (Idem, 1988, p. 175).

    Ao que Salviati responde:

    Como verdadeiro homem de cincia, sua exigncia muito razo-vel; pois assim que convm proceder nas cincias, que aplicam demonstraes matemticas aos fenmenos naturais, [...], as quais confirmam com experincias sensatas seus princpios (Idem, 1988, p. 175. Grifo nosso).

    Para assegurar-se (ou, em terminologia atual, testar a hiptese) de que a acelerao dos graves em queda se d de modo a que os espaos d percorridos em qual-quer tempo t esto entre si na razo dupla desses tempos, isto , para certificar-se da validade da relao matemtica 2td , Galileu desenvolveu experimentos com o plano inclinado. Com esse dispositivo ele diluiu a rapidez da queda, tornando possvel

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    medidas de distncia e de tempo. Naturalmente ele tem claro o pressuposto incorreto de que a acelerao de uma esfera que rola sobre o plano a componente da acelerao de queda na direo paralela ao plano, e que, portanto, o movimento da esfera tem acelera-o constante

    10. Conforme Galileu:

    O que foi demonstrado no referente s quedas verticais, tambm a-contece do mesmo modo para os movimentos que se realizam em planos inclinados quaisquer; supusemos, com efeito, que em tais planos os graus de velocidade aumentam sempre na mesma propor-o, ou seja, proporcionalmente ao tempo, ou ainda, segundo a sim-ples srie dos nmeros inteiros (Idem, 1988, p. 177).

    O plano inclinado constituiu-se de uma canaleta com cerca de 12 braas (a-proximadamente 7 m), escavada em uma viga de madeira e forrada com pergaminho. Fazamos descer por ele uma bola de bronze durssima perfeitamente redonda e lisa

    (Idem, 1988, p. 175). Tendo medido, com um relgio d gua, o tempo necessrio para que a bola percorresse toda a canaleta, fizemos descer a mesma bola por uma quarta parte do comprimento total da canaleta; e, medido o tempo de queda, resultava ser sem-pre rigorosamente igual metade do outro

    (Idem, 1988, p. 175-176). Segue relatando que, para outras experincias, sempre se encontrava que os espaos percorridos esta-vam entre si como os quadrados dos tempos e isso em todas as inclinaes do plano

    (Idem, 1988, p. 176). Simplcio parece plenamente satisfeito:

    Teria tido grande satisfao em presenciar tais experincias; contu-do, estando certo de seu zelo em efetu-las e de sua fidelidade em relat-las, no tenho escrpulo em aceit-las como verdadeiras e certas (Idem, 1988, p. 176).

    Dessa forma, contrariamente histria empirista, o experimento serviu como um teste para a teoria e no como o ponto de partida para a teoria.

    Alexandre Koyr, fsico e historiador da cincia, demonstrou em 1937 que os famosos experimentos da torre de Pisa nunca

    foram feitos por Galileu, so um mito (KOYR, 1988). Koyr relata experimentos realizados por outros cientistas que, tendo deixado cair do topo de uma torre objetos de pesos diferentes, constataram que o corpo

    10 De acordo com a mecnica newtoniana sabe-se que o pressuposto de que a acelerao de uma

    esfera que rola uma componente da acelerao gravitacional est errado. Na verdade, essa acelerao menor do que a componente da acelerao gravitacional na direo paralela ao plano, pois a esfera que rola sofre tambm uma fora de atrito. Apenas no deslizamento sem atrito que a acelerao do corpo a componente da acelerao gravitacional na direo paralela ao plano.

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    mais pesado atingia o solo antes do corpo mais leve. Em especial, apresenta uma carta de Vincenzo Renieri, professor da Universidade de Pisa, onde este relata a seu mestre Galileu ter feito um experimento na Torre de Pisa com uma bala de canho e com uma bala de mosquete, ambas de chumbo, e verificado que quando a mais pesada e a mais leve caem deste campanrio, a maior precede a menor de muito

    (RENIERI, apud KO-YR, 1988, p. 203). Em sua resposta, Galileu limita-se a remeter Renieri ao seu livro ( Duas Novas Cincias ) onde demonstrou que no podia acontecer de outro modo. Ou seja, Galileu tinha uma teoria qualitativa para a queda em meios resistivos que previa que se duas esferas de mesma densidade fossem deixadas cair simultaneamente do topo de uma torre, a esfera maior se adiantaria em relao menor. Por isto Galileu nunca realizaria um experimento, deixando cair juntos de uma torre dois objetos, com o obje-tivo de demonstrar empiricamente que o objeto mais pesado chegaria simultaneamente com o mais leve ao solo, pois sabia que o objeto mais pesado se adiantaria em relao ao outro.

    Quanto ao relato de Viviane, no se sabe, ao certo, qual o seu propsito. Koyr (1988) demonstra a sua completa improcedncia, analisando as condies de hierarquia da universidade poca e o papel que nela poderia desempenhar um jovem e desconhecido professor de matemtica recm contratado.

    Galileu nunca soube qual era o valor da acelerao de queda livre de um nico corpo

    11. Entretanto, afirmou que todos os corpos caem com a mesma acelerao

    no vcuo. Na poca de Galileu, discutia-se se realmente era possvel existir vcuo! Conforme se procurou mostrar, a teoria dos movimentos de Galileu foi for-

    temente motivada por um problema terico, qual seja o de dar suporte mecnico teo-ria copernicana; os alegados experimentos, quando ocorreram, tiveram uma funo diversa daquela propugnada pela histria empirista.

    III. 1 Os experimentos de Michelson-Morley e a teoria da relatividade res-trita de Einstein: a histria empirista

    A idia da luz como um fenmeno ondulatrio que demanda um meio para a sua propagao, defendida no sculo XVII por Ren Descartes (1596-1650), Christia-an Huygens (1629-1695), Robert Hooke (1635-1703), entre outros, retomada no in-cio do sculo XIX, a partir dos trabalhos de Thomas Young (1773-1829) e Agustn Fresnel (1788-1827), aps um longo perodo de predomnio da concepo corpuscular.

    11 Em uma passagem dos Dilogos sobre os dois mximos sistemas do mundo , Galileu estimou

    que um corpo em queda a partir do repouso descesse nos primeiros cinco segundos cerca de cem braas

    aproximadamente 58 m

    (GALILEI, 2001, p. 305), o que resultaria em uma acelerao de cerca de 4,6 m/s2 (portanto, menos da metade do valor correto). A primeira medida precisa da acelerao gravitacional foi realizada 17 anos aps a morte de Galileu, em 1659 por Huygens, que encontrou cerca de 9,5 m/s2 (SILVEIRA, 1995).

  • Silveira, F. L. e Peduzzi, L. O. Q. 37

    Uma substncia de propriedades (ainda) desconhecidas e bastante contradi-trias, o ter, era o (suposto) meio de propagao da luz, permeando todo o universo12. Era em relao a ele que a luz (e as demais ondas eletromagnticas) possua a velocida-de, prevista pelas equaes de Maxwell e determinada experimentalmente, de cerca de 300.000 km/s. Para muitos o ter representava, inclusive, a possibilidade concreta do referencial absoluto em relao ao qual vigiam as leis da mecnica newtonina.

    Em 1881 o cientista alemo Albert Abraham Michelson (1852-1931) reali-zou experimentos em Berlim e Potsdam para detectar o vento de ter. Ou seja, como a Terra se movimenta atravs do ter, previa-se teoricamente que a velocidade de propa-gao da luz em relao Terra fosse diferente em diferentes direes.

    Esses primeiros experimentos apresentaram resultados negativos. Em 1887, Michelson e o norte-americano Edward Williams Morley (1838-1923) refizeram os experimentos em Cleveland, com um equipamento muito mais sensvel que o anterior, no conseguindo mais uma vez observar o vento de ter.

    Segundo a histria empirista, esses experimentos mostraram que a hiptese da existncia do ter era falsa e que, portanto, no existia um sistema de referncia absoluto. Os experimentos de Michelson-Morley derrubaram a fsica clssica que pres-supunha um sistema de referncia absoluto (o espao absoluto de Newton) e o tempo absoluto. Albert Einstein (1879-1955) aceitou o veredicto experimental da constncia da velocidade da luz, estatuindo-o como um dos postulados fundamentais da sua teoria em 1905. A teoria einsteiniana depende inteiramente do resultado da experincia de Michelson e pode ser derivada dele (PETZOLD, apud THUILLIER, 1994, p. 237).

    Robert Millikan (1868-1953), prmio Nobel em 1923, sintetizou bem a su-posta gnese emprica da teoria da relatividade restrita:

    A teoria da relatividade restrita pode ser considerada... essencial-mente uma generalizao a partir do experimento de Michelson [...] Descartando todas as concepes a priori sobre a natureza da rea-lidade [...] Einstein tomou como ponto de partida fatos experimen-tais cuidadosamente testados [...] independentemente deles parece-rem no momento razoveis ou no [...] Mas este experimento [de Michelson-Morley], depois de ter sido realizado com extraordinria habilidade e refinamento pelos seus autores, deu a resposta definiti-va [...] que no existe nenhuma velocidade observvel da Terra em relao ao ter. Este incrvel e aparentemente inexplicvel fato ex-perimental perturbou violentamente a Fsica do sculo XIX e por quase vinte anos os fsicos [...] se esforaram por torn-lo razovel. Mas Einstein nos chamou a ateno: vamos aceit-lo como um fato

    12 O ter devia ser um meio sutil, atravs do qual os planetas e os demais astros podiam se mover

    livremente e, de forma paradoxal, apresentar tambm caractersticas de um slido elstico, para propagar ondas luminosas transversais.

  • 38 Cad. Bras. Ens. Fs., v. 23, n. 1: p. 26-52, abr. 2006.

    experimental estabelecido e tirar as suas inevitveis conseqncias [...] Assim nasceu a teoria da relatividade restrita. (MILLIKAN, apud VILLANI, 1981, p. 36)

    III.2 Os experimentos de Michelson-Morley e a teoria da relatividade restrita de Einstein: outra histria

    A concepo empirista-indutivista da cincia, que ainda hoje se encontra fortemente disseminada no meio acadmico, concebe, fundamentalmente, a teoria da relatividade restrita como uma resposta objetiva e correta aos experimentos de Michel-son-Morley.

    De modo geral, a divulgao da produo do conhecimento cientfico (atra-vs de artigos em revistas de cunho mais popular, livros de divulgao, materiais did-ticos etc) veicula um contexto de desenvolvimento linear e cumulativo, fortalecendo ainda mais a proliferao da concepo empirista.

    Conforme argumenta o historiador da cincia Gerald Holton, o quadro emi-nentemente positivista

    13 em que se situam as idias de Einstein no comeo do sculo

    passado acabou fomentando uma forte ligao entre a sua teoria da relatividade restrita e os experimentos de Michelson-Morley. Em tais circunstncias,

    [...] parece inevitvel que, durante a dcada que se seguiu o traba-lho de Einstein de 1905

    especialmente na literatura didtica

    se

    desse uma unio simbitica entre o enigmtico experimento de Mi-chelson e a incrvel teoria da relatividade. O indubitvel resultado dos experimentos de Michelson podia ser visto como fonte de uma base experimental para a compreenso da teoria da relatividade que, por outro lado, parecia contrria ao prprio senso comum; a teoria da relatividade, por sua vez, podia fornecer uma explicao do resultado experimental de Michelson de forma no artificial ou ad-hoc, como parecia ser baseada na suposta contrao de Lorentz-FitzGerald. Isto provou ser um casamento de longa durao (HOL-TON, apud VILLANI, 1981, p. 37).

    13 Positivismo designa vrias doutrinas filosficas que se caracterizam pela valorizao de um

    mtodo empirista e quantitativo, pela defesa da experincia sensvel como fonte principal do conhecimento

    (JAPIASSU; MARCONDES,1990, p. 198), pela aceitao das partes descritivas da cincia, por certa desconfiana da teoria, e que recusa admitir ou negar a realidade do mundo fsico

    (BUNGE, 1986, p. 164) e que nega valor cognitivo investigao filosfica

    (RAZIN-KOV, 1984, p. 342).

  • Silveira, F. L. e Peduzzi, L. O. Q. 39

    A vinculao didtica da teoria da relatividade ao experimento de Mi-chelson-Morley parece ter desempenhado, poca, importante papel para a sua aceita-o por parte de cientistas, estudantes e pblico em geral. O prprio Einstein conside-rava que o experimento de Michelson-Morley era necessrio para que a maioria dos fsicos aceitasse a sua teoria; mas isso bem diferente de considerar o experimento como gnese e base da relatividade (VILLANI, 1981, p. 38).

    Entretanto, em seu famoso artigo de 1905, intitulado Sobre a eletrodinmi-ca dos corpos em movimento (EINSTEIN, 1983), no h qualquer meno aos expe-rimentos de Michelson-Morley. Na primeira frase daquele trabalho encontra-se o se-guinte: Como sabido, a eletrodinmica de Maxwell tal como atualmente se concebe

    conduz, na sua aplicao a corpos em movimento, a assimetrias que no parecem inerentes aos fenmenos

    (Idem, p. 47). Abraham Pais, bigrafo de Einstein, embora acreditando que os experimentos de Michelson-Morley fossem de conhecimento do cientista, considera-os como secundrios para a gnese da teoria; a frase inicial explica a motivao para o artigo de 1905: Einstein foi levado teoria da relatividade restrita principalmente por motivos estticos, isto , por argumentos de simplicidade

    (PAIS, 1993, p. 160).

    Segundo o prprio Einstein em suas Notas Autobiogrficas (EINSTEIN, 1982), a gnese da teoria da relatividade restrita encontra-se em duas vertentes diferen-tes:

    a) Einstein percebera, ainda estudante que, quando se aplica as transforma-es de Galileu aos fenmenos eletromagnticos, surgem contradies. O experimento mental da perseguio do raio de luz um exemplo disto: imagine-se viajando junto com uma onda eletromagntica. V-se ento um campo eltrico e um campo magntico que variam no espao senoidalmente, mas que so constantes no tempo. Entretanto, segundo as equaes de Maxwell (lei de Faraday e lei de Ampre-Maxwell para o v-cuo), no podem existir tais campos. A teoria da relatividade restrita se originou das equaes do campo eletromagntico de Maxwell

    (Idem, 1982, p. 63). De fato, se o princpio da relatividade de Galileu for aplicado eletrodinmica de Maxwell, origi-nam-se assimetrias que no parecem ser inerentes aos fenmenos

    (Idem, 1983, p. 47) pois as equaes de Maxwell so invariantes frente s transformaes de Lorentz.

    b) Einstein aceitou as crticas que Ernst Mach (1838-1916) havia feito mecnica clssica, em especial s idias do espao e do tempo absolutos. Ou seja, Eins-tein acreditava que a mecnica clssica estava com problemas insanveis. Segundo suas prprias palavras, estava:

    firmemente convencido da no-existncia do movimento absoluto; meu problema residia em como conciliar isso com nosso conheci-mento de eletrodinmica. Talvez assim seja possvel entender por-que razo, na minha luta pessoal, no desempenhou qualquer papel, ou pelo menos um papel decisivo, a experincia de Michelson (E-INSTEIN, apud PAIS, 1995, p. 200-201).

  • 40 Cad. Bras. Ens. Fs., v. 23, n. 1: p. 26-52, abr. 2006.

    Embora tenha sido inegvel a influncia da filosofia positivista de Mach o empiriocriticismo

    14

    sobre o jovem Einstein, como ele ressaltou em suas Notas Auto-biogrficas , percebeu posteriormente as suas insuficincias: Mach no reconheceu devidamente a natureza essencialmente construtiva e especulativa de todo o pensamen-to e principalmente do pensamento cientfico

    (EINSTEIN,1982,p. 29). A rejeio da hiptese atmica por Mach um exemplo, pois ao no aceitar a presena desses no observveis (os tomos, as molculas) ele condenou a teoria precisamente nos pontos em que esse carter construtivo-especulativo claro e indiscutvel, como na teoria cin-tica dos tomos

    (Idem, p. 29). Mach era to bom em mecnica como deplorvel em filosofia. Esta viso mope sobre a cincia o levou a rejeitar a existncia dos tomos

    (Idem, p. 334) Para Einstein, as bases axiomticas da fsica no

    podem ser obtidas a partir da experincia, pois nenhum caminho lgico pode conduzir das percepes aos princ-pios de uma teoria. Os fundamentos de uma teoria cientfica so livres criaes do esp-rito humano.

    Sabemos agora que a cincia no pode se desenvolver apenas a par-tir do empirismo; nas construes da cincia, precisamos da inven-o livre, que s a posteriori pode ser confrontada com a experin-cia para se conhecer a sua utilidade. Este fato pode ter escapado s geraes anteriores, para as quais a criao terica parecia desen-volver-se indutivamente a partir do empirismo, sem a criativa influ-ncia de uma livre construo de conceitos. Quanto mais primitivo for o estado da cincia, mais rapidamente pode o cientista viver na iluso de que um empirista puro. No sculo XIX, muitos ainda jul-gavam que a regra fundamental de Newton

    hypotheses non fingo

    devia constituir a base de toda a cincia natural saudvel (EINS-TEIN, apud PAIS, 1995, p. 14-15).

    luz dessa concepo epistemolgica, pode-se ento afirmar que a teoria da relatividade restrita, segundo o seu prprio idealizador, no

    foi uma resposta aos resultados negativos dos experimentos de Michelson-Morley.

    O projeto inicial de Einstein, com a teoria da relatividade restrita (1905), era o de criar uma mecnica teoricamente consistente com o eletromagnetismo. Posteri-ormente, com a relatividade geral (1916), ele resolve o conflito da relatividade restrita com a gravitao newtoniana (pois nenhuma informao pode se propagar com veloci-dade superior a da luz).

    14 Concepo que eliminava todas as noes cientficas no verificveis direta ou indiretamente

    atravs da experincia sensvel (HONDERICH, 1995, p. 229).

  • Silveira, F. L. e Peduzzi, L. O. Q. 41

    verdade que a teoria da relatividade restrita teve como conseqncia no-intencionada a explicao dos resultados negativos dos experimentos que visavam detectar efeitos do movimento do sistema de referncia sobre a velocidade de propaga-o da luz, como por exemplo, os resultados negativos dos experimentos de Michelson-Morley. Entretanto, historicamente inverdico

    que os experimentos de Michelson-Morley, ou anteriormente as medidas de aberrao estelar15, tenham sido cruciais para a velha fsica. Diversos cientistas explicaram os resultados negativos em detectar o vento de ter sem descartar a fsica clssica.

    Por exemplo, H. A. Lorentz (1853-1928), em 1904, no artigo intitulado Fenmenos eletromagnticos num sistema que se move com qualquer velocidade infe-

    rior da luz

    (LORENTZ, 1983), supondo a existncia do ter, explicava no somente os resultados negativos dos experimentos de Michelson-Morley em detectar o movimen-to da Terra em relao ao ter, como os resultados negativos ulteriores de Rayleigh-Brice (em 1902 sobre a dupla refrao) e de Trouton-Noble (em 1904 sobre torque em um capacitor).

    Quando em 1907 Michelson recebeu o Prmio Nobel no houve referncia alguma aos seus famosos experimentos, nem por parte da comisso que lhe concedeu o prmio, nem por ele mesmo (PAIS, 1995). A justificativa da comisso que outorgou o Prmio Nobel a Michelson foi a seguinte: pelos instrumentos pticos de preciso e pelas investigaes espectroscpicas e metrolgicas realizadas com a sua interveno.

    Michelson, que se aferrou ao ter at o amargo fim

    (LAKATOS, 1989, p. 103), nunca crendo que seus experimentos o refutavam, acreditou em 1925 ter de-tectado experimentalmente o vento de ter (Michelson morreu em 1931).

    Dessa forma, a teoria da relatividade restrita foi motivada por um proble-ma terico: resolver uma inconsistncia entre a mecnica e o eletromagnetismo. Os resultados negativos dos experimentos de Michelson-Morley, apesar de justificados teoricamente pela teoria de Einstein, no

    foram cruciais para a fsica clssica e, particu-larmente para Michelson (bem como para outros cientistas), no se constituram em uma refutao da hiptese do ter.

    IV.1 Os espectros de emisso atmica e a teoria do tomo de Bohr: a histria empirista

    No final do sculo XIX e incio do sculo XX, o espectro de emisso do hi-drognio foi objeto de extensos estudos. Em 1885 J. J. Balmer (1825-1898) mostrou que os quatro comprimentos de onda do espectro do hidrognio, at ento conhecidos,

    15 As medidas anmalas para a aberrao estelar haviam sido explicadas primeiramente por G.

    G. Stokes (1819-1903), supondo o arrasto do ter pela Terra.

  • 42 Cad. Bras. Ens. Fs., v. 23, n. 1: p. 26-52, abr. 2006.

    HHHH ,, e , podiam ser encontrados atravs de uma relao matemtica bastante simples.

    Sem conhecer o trabalho de Balmer, J. R. Rydberg (1854-1919) sugeriu, em 1890, haver uma relao geral para a determinao das linhas espectrais do hidrognio em qualquer segmento do espectro eletromagntico. Essa relao, que inclua a srie de Balmer como um caso particular

    prevendo tambm outras sries, que viriam a ser conhecidas experimentalmente mais tarde, com o aperfeioamento dos instrumentos e das tcnicas de anlise espectral tem a forma

    22Hmn, n

    1m

    1R1 , (1)

    sendo n, m o comprimento da radiao eletromagntica emitida pelo tomo de hidrognio, n e m nmeros inteiros (n > m) e RH a constante de Rydberg. A constan-te de Rydberg possua o valor de aproximadamente 109,7 cm-1 (determinado experi-mentalmente). Para m igual a 2 e a 3, respectivamente, a frmula de Rydberg reproduzia os comprimentos de onda das sries de Balmer e de Paschen, esta ltima encontrada em1908, na regio do infravermelho.

    Em 1912, Niels H. D. Bohr (1885-1962), que trabalhava com Ernest Ru-therford (1871-1937) em Manchester, investiu um grande esforo intelectual para expli-car teoricamente porque o tomo de hidrognio emitia radiao eletromagntica de acordo com a frmula emprica de Balmer. Finalmente Bohr postulou que as rbitas eletrnicas obedeciam a um princpio da quantizao do momento angular

    isto , somente so possveis rbitas eletrnicas para as quais a quantidade de movimento angular seja um nmero inteiro que multiplica a constante de Planck e que os eltrons somente emitiam radiao de forma quantizada quando decaiam de uma rbita estacio-nria para outra, obtendo teoricamente uma expresso para o comprimento de onda da radiao emitida. A partir da sua teoria, Bohr demonstrou a frmula emprica de Bal-mer.

    Niels Bohr conseguiu no apenas justificar teoricamente a frmula emprica de Balmer, mas tambm obter teoricamente a constante de Rydberg nela presente como funo de constantes fsicas fundamentais: a carga do eltron (e), a massa do eltron (m), a constante de Planck (h), a velocidade de propagao da luz no vcuo (c) e a per-missividade eltrica do vcuo ( 0).

    Constante de Rydberg: 3

    o

    4

    H h.c8emR

    ..

    .

    (2)

  • Silveira, F. L. e Peduzzi, L. O. Q. 43

    IV.2 Os espectros de emisso atmica e a teoria do tomo de Bohr: outra histria

    As origens da moderna fsica atmica encontram-se nos estudos desenvol-vidos por Michael Faraday (1791-1867) sobre a eletrlise galvnica, no reconhecimento da natureza corpuscular da eletricidade, e na identificao do eltron a partir dos fen-menos de descargas eltricas em gases rarefeitos, feita no final do sculo XIX. A des-coberta do ncleo atmico por Rutherford completou nosso conhecimento das unida-des estruturais da matria

    (BOHR, 1995, p.21), como disse Bohr em discurso no Con-gresso de Fsica e Biologia em memria de Luigi Galvani (1737-1798), em 1937.

    Com o tomo de Rutherford, retoma-se a questo da instabilidade dos sis-temas saturnianos (um corpsculo central carregado positivamente circundado por anis de eltrons em movimento uniforme) ainda sem soluo, mas de muito interesse pelo seu potencial explicativo. Como se sabe, a estrutura ncleo-planetria de H. Naga-oka (1904), j antecipada por Jean B. Perrin (1870-1940) em 1901, representava uma tentativa, embora em termos bastante incipientes, de interpretar os espectros pticos, atribuindo as linhas espectrais a oscilaes desses anis e a emisso radioativa de part-culas por ncleos pesados, vinculando o decaimento quebra do anel exterior de eltrons do tomo pesado (ROSENFELD, 1989, p. 32).

    De fato, desde o grande impulso que a espectroscopia teve a partir de 1859, em funo dos trabalhos (alguns em conjunto) desenvolvidos por G. R. Kichhoff (1824-1887) e R. W. Bunsen (1811-1899), parecia no haver dvidas de que a posio e o nmero das linhas espectrais exibidas por um elemento constituam evidncias ine-quvocas da existncia de propriedades ainda desconhecidas, que jaziam no mais ntimo universo do tomo, e que, de alguma forma, estavam relacionadas a vibraes atmicas. E mais, que todo elemento qumico possui um espectro que lhe caracterstico. Ao mostrarem que a anlise espectral podia ampliar o quadro atmico (ao descobrirem o csio e o rubdio) esses dois cientistas abriram um novo e extraordinrio campo de investigao no mbito da Qumica, e da Fsica, por extenso.

    Para Bohr, a anlise espectral era uma evidncia inconteste da estabilidade intrnseca das configuraes eletrnicas dos tomos. Por isso, considerava que a estabi-lidade macroscpica da matria um reflexo de sua estabilidade em nvel microscpico. Contudo, Bohr no via como compatibilizar a estrutura interna dos sistemas atmicos com a fsica clssica. A analogia com a dinmica do sistema solar insustentvel, pois quando um corpo desse sistema perturbado, no h retorno a seu estado original. J o tomo de um elemento admite grandes transformaes (por exemplo, mudanas de estado fsico da matria) permanecendo (em geral) o mesmo. Por outro lado, do ponto de vista da teoria eletromagntica, uma partcula carregada emite radiao. Assim, o tomo de Rutherford no poderia existir por mais do que 10-9 s. A chave para a soluo de todo esse dilema est no quantum elementar de ao, de Planck:

  • 44 Cad. Bras. Ens. Fs., v. 23, n. 1: p. 26-52, abr. 2006.

    A existncia do quantum

    elementar de ao expressa, a rigor, uma nova faceta da individualidade dos processos fsicos, a qual des-conhecida das leis clssicas da mecnica e do eletromagnetismo, e restringe a validade destas leis basicamente aos fenmenos que en-volvem aes grandes em comparao com o valor de um nico quantum, tal como fornecido pela nova constante atmica de Planck. Essa condio, embora amplamente satisfeita nos fenme-nos da experincia fsica comum, no de modo algum aplicvel ao comportamento dos eltrons nos tomos e, a rigor, somente a exis-tncia do quantum

    de ao impede a fuso dos eltrons e do ncleo num corpsculo neutro macio, de extenso praticamente infinitesi-mal (BOHR, 1995, p. 22-23).

    importante ressaltar que a intuio fsica de que a constituio do tomo governada pelo quantum de ao (a constante de Planck) no foi uma idia exclusiva de Bohr. Conforme Segr (1987, p.125), o astrnomo britnico J. W. Nicholson j ha-via tentado introduzir a constante de Planck h em modelos atmicos e o qumico dina-marqus N. Bjerrum em modelos moleculares. Mas com Bohr que o tomo de Ruther-ford sujeito a novas e nunca antes imaginadas condies, que o tornam estvel. O conceito de estado estacionrio, no qual o equilbrio dinmico era regido pelas leis da mecnica clssica, e o postulado da quantizao do momento angular, para a determi-nao desses estados, ensejaram a construo revolucionria de Bohr. A conservao da energia determinava a relao entre a energia (emitida ou absorvida) e a freqncia da radiao, na passagem de um estado estacionrio a outro.

    O reconhecimento dessa situao sugeriu prontamente a descrio da ligao de cada eltron no campo ao redor do ncleo como uma sucesso de processos individuais, pelos quais o tomo passa de um de seus chamados estados estacionrios para outro desses estados, com emisso de energia liberada sob a forma de um nico quantum de radiao eletromagntica. Essa viso, intimamente aparentada com a exitosa interpretao einsteiniana do efeito fotoeltrico, e to convincentemente corroborada pelas belas pesquisas de Franck e Hertz sobre a excitao das linhas espectrais pelos impactos dos e-ltrons nos tomos, de fato no apenas forneceu uma explicao i-mediata para as intrigantes leis gerais das linhas espectrais, des-trinadas por Balmer, Rydberg e Ritz, como tambm, com o auxlio de provas espectroscpicas, levou gradativamente a uma classifica-o sistemtica dos tipos de ligao estacionria de qualquer el-tron num tomo, fornecendo uma explicao completa das notveis relaes entre as propriedades fsicas e qumicas dos elementos, tal

  • Silveira, F. L. e Peduzzi, L. O. Q. 45

    como expressas na famosa tabela peridica de Mendeleiev (BOHR, 1995, p. 22-23).

    Como bem enfatizou Lakatos (1989, p. 75-92) no estudo Bohr: um pro-grama de pesquisa que progride sobre fundamentos inconsistentes , a histria do pro-grama de pesquisa de Bohr comea com um problema: o enigma da estabilidade do tomo de Rutherford. O problema de Bohr no era explicar as sries de Balmer e Pas-chen. Lakatos enfatiza isso porque, como as sries eram conhecidas antes de 1913, alguns historiadores (e, talvez, tambm os autores de livros-textos) contextualizam o tomo de Bohr na perspectiva de uma ascenso indutiva baconiana

    16 constituda por: o

    caos dos espectros de emisso e absoro; uma lei emprica (Balmer) e a explicao terica (Bohr).

    O modelo atmico de Bohr encontra-se em seu clebre trabalho Sobre a constituio de tomos e molculas , publicado em 1913 no peridico Philosophical Magazine, em trs partes: a primeira em julho, a segunda em setembro e a ltima em novembro. Nesses trs artigos, Bohr mostrou que a sua teoria:

    a) aplicava-se ao problema da radiao e da absoro da energia pela mat-ria, explicando os espectros de emisso, a frmula emprica e a constante de Rydberg;

    b) permitia um esboo de uma teoria para a constituio de tomos com poucos e muitos eltrons;

    c) permitia um esboo de uma teoria para a constituio de compostos qu-micos (molculas);

    d) tinha conexo com os problemas do calor especfico, da radiao do cor-po negro e das propriedades magnticas da matria.

    Cerca de um ano antes da publicao da primeira parte da trilogia, em junho de 1912, Bohr entregou a Rutherford o primeiro esboo das suas idias. Nesse estudo j existia tudo o que iria constar na trilogia, exceto a discusso dos espectros de emisso atmica (ROSENFELD, 1989).

    Em uma carta datada de 31 de janeiro de 1913, endereada a Rutheford por Bohr, encontra-se a seguinte passagem: No trato, de modo nenhum, da questo do clculo das freqncias correspondentes s linhas do espectro visvel

    (BOHR, apud ROSENFELD, 1989, p. 66).

    Em 6 de maro de 1913, Bohr envia outra carta a Rutherford, onde repro-duzia na ntegra a soluo do problema dos espectros de emisso atmica para o to-

    16 O filsofo empirista Francis Bacon (1561-1626) propugnava um mtodo indutivo

    experimental, sustentando que o cientista deveria inicialmente estabelecer os fatos de uma cincia particular e depois procurar as correlaes entre estes fatos. E ele (Bacon) insistia sobre uma ascenso gradual indutiva, desde correlaes de baixo grau de generalidade at as mais abrangen-tes

    (LOSEE, 1993, p. 68).

  • 46 Cad. Bras. Ens. Fs., v. 23, n. 1: p. 26-52, abr. 2006.

    mo de hidrognio, calculando tambm a constante de Rydberg. Em um trecho desta carta encontra-se o seguinte:

    Como ver (Professor Rutherford), o primeiro captulo trata princi-palmente do problema da emisso dos espectros de linhas [...] pare-ce possvel dar uma interpretao simples da lei do espectro do hi-drognio (refere-se aqui frmula de Balmer), e que do clculo re-sulta um acordo quantitativo ntimo com as experincias (Idem, p. 67).

    Leon Rosenfeld, amigo de Bohr, na interessantssima Introduo ao livro que contm a trilogia de 1913, assim se pronuncia sobre a carta de 6 de maro a Ruther-ford:

    Sabendo quo longe ele (Bohr) estava ainda de todo o assunto dos espectros de linhas algumas semanas antes, no podemos deixar de ficar impressionados, ao lermos esta carta, pela maestria que ad-quiriu to rapidamente na matria. Para precipitar este desenvolvi-mento dramtico bastara apenas Bohr ter tido conhecimento do tra-balho de Rydberg sobre a classificao das sries espectrais (RO-SENFELD, 1989, p. 69).

    Durante o ms de fevereiro de 1913

    portanto entre a data da carta na qual Bohr falava no tratar dos espectros de emisso e da carta que dizia j haver resolvido o problema , o seu colega H. M. Hansen, fsico de Copenhague, perguntou a Bohr como explicaria, luz da sua teoria, os espectros de emisso (Idem, p. 69). Bohr disse-lhe que no se interessara, at ento, por este problema, julgando que os espectros eram dema-siado complexos para darem qualquer chave para o conhecimento da estrutura dos to-mos. Hansen objetou-lhe, aconselhando-o a dar uma olhada na frmula de Bohr. Logo que vi a frmula de Balmer, tudo se tornou claro para mim

    declarou Bohr muitos anos mais tarde

    (SEGR, 1987, p. 125. Grifo nosso). Essa afirmao de Bohr, descontextu-alizada, pode suscitar um aporte empirista sua teoria (BASSO; PEDUZZI, 2003). Contudo, nota-se que decorreu muito pouco tempo (cerca de um ms) entre o questio-namento, a resposta de no conhecimento e a publicao do artigo incluindo a explica-o terica das sries espectrais.

    As previses tericas do modelo de Bohr foram corroboradas com a desco-berta de outras sries no espectro do hidrognio: uma no ultravioleta, por T. Lyman (1914) (correspondente a m = 1, na equao (1)), e duas no infravermelho, por F. S. Brackett (1922) e A. H. Pfund (1924) (para m = 4 e para m = 5, respectivamente).

    Assim, a teoria do tomo de Bohr, contrariamente histria empirista, no comeou com um problema emprico, mas com um problema terico, qual seja, dar sustentao hiptese de Rutherford do tomo com ncleo. A teoria de Bohr teve

  • Silveira, F. L. e Peduzzi, L. O. Q. 47

    como conseqncia no-intencionada17

    a explicao dos espectros de emisso do hi-drognio! Alm disso, adiantou-se em relao empiria, prevendo novas sries espec-trais.

    V. Concluso

    No h dvida que experimentos, observaes, resultados de medidas so importantes para o conhecimento cientfico. Entretanto, a relao da empiria com a teoria muito mais complexa do que a histria empirista julga.

    Nos trs episdios discutidos, vimos que os resultados observacionais/ ex-perimentais desempenharam um papel diferente daquele propugnado pelos empiristas e nunca se constituram na base indutiva da qual os cientistas ascenderam teoria. A produo do conhecimento cientfico no pode ser entendida atravs da epistemologia empirista (apesar dos livros-texto e muitos cientistas assim acreditarem18) e no pode ser descrita como conseqncia da aplicao de um mtodo cientfico que comea com resultados observacionais/experimentais.

    Por no reconhecer que os cientistas inventam e especulam, a histria em-pirista se cala sobre as idias que no se mostraram bem sucedidas. Somente as idias corretas

    merecem um lugar nesta histria, pois como algum que segue o mtodo cientfico poderia incorrer em erro?

    Em relao a Galileu, a histria empirista no menciona que ele acreditava ser o movimento pendular iscrono para qualquer amplitude (alm de considerar a circunferncia como a curva braquistcrona

    19), que a sua teoria das mars no fazia qualquer referncia a efeitos da Lua e se constitua na prova do movimento dirio da

    17 Dizendo em outras palavras, a explicao dos espectros de emisso por Bohr no foi ad-hoc,

    isto , a sua teoria no foi criada com o objetivo de explic-los. A explicao, como relatada anteriormente, aconteceu de maneira no pretendida.

    18 De acordo com a tese favorita de Lakatos A maioria dos cientistas tende a saber um pouco

    mais sobre a cincia do que os peixes sobre a hidrodinmica

    (LAKATOS, 1989, p. 84). O fsico e filsofo da cincia Mario Bunge refere-se a esta epistemologia como o Credo do Fsico Inocen-te, fazendo parte dele, entre outros dogmas os seguintes: a observao a fonte e a funo do conhecimento fsico [...] hipteses e teorias fsicas no passam de experincia condensada, i. e., snteses indutivas de itens experimentais [...] as teorias fsicas podem ser descobertas em conjun-tos de dados empricos. A especulao e inveno dificilmente desempenham qualquer papel na fsica

    (BUNGE, 1973, p. 12). 19

    A braquistcrona a curva que leva um corpo de um ponto a outro no menor intervalo de tempo.

  • 48 Cad. Bras. Ens. Fs., v. 23, n. 1: p. 26-52, abr. 2006.

    Terra, que a sua teoria sobre o movimento violento ou dos projteis valia-se de idias anlogas a da fora impressa de Hiparco (170-125 a.C.).

    Alguns filsofos da cincia do sculo XX, por exemplo Gaston Ba-chelard (1884-1962) e Karl Popper (1902-1994), destacaram o erro como um constitu-inte intrnseco ao processo de construo do conhecimento cientfico. pela retificao dos erros que esse conhecimento evolui. Nessa perspectiva, deve-se notar tambm que Galileu, antes de chegar proporcionalidade da velocidade com o tempo em um movi-mento retilneo com acelerao constante, pensava existir uma proporcionalidade entre velocidade e distncia para esse movimento.

    No que se refere aos trabalhos de 1913 de Bohr, a nfase empirista sobre a relao do modelo com as sries de Balmer e Rydberg desconsidera toda a riqueza de uma construo terica que, ao postular a no emisso de radiao por um eltron em um estado estacionrio, se colocava em contradio com uma teoria bem corroborada experimentalmente, como o eletromagnetismo de Maxwell.

    As diferentes reaes teoria de Bohr

    de apoio, como a de J. H. Jeans (1877-1946), quando diz que o Dr. Bohr conseguiu uma explicao engenhosssima e sugestiva, e penso que devemos acrescentar convincente, das leis das riscas espectrais (ROSENFELD, 1989, p. 83) e destaca que o seu xito era, no momento, a nica (e de grande peso) justificativa a favor das hipteses fundamentais utilizadas; de cautela, como a de J. W. S. Rayleigh (1842-1919), que evitou comprometer-se com uma ob-servao inteligente e espirituosa sobre a inconvenincia de pessoas de mais de sessenta anos proferirem juzos sobre idias modernas ; e de ceticismo, como a de H. A. Lorentz (1853-1928) (Ibidem, p. 83)

    constituem-se em indicativos importantes do arrojo e da originalidade do novo modelo para o tomo, e da perplexidade que causou comunida-de cientfica. Uma histria empirista no mostra, ou releva, isso. Cala-se tambm sobre as demais conseqncias do modelo atmico de Bohr (lembremos que as idias de Bohr foram publicadas em trs artigos em 1913, sendo que a explicao das sries espectrais j era dada na segunda seo do primeiro artigo), ultrapassadas pela nova mecnica quntica de Werner Heisenberg (1901-1976) e Erwin Schrdinger (1887-1961) em 1924-25.

    Da mesma forma, desfigura-se o trabalho cientfico de Einstein quando se associa uma epistemologia empirista sua cincia. a teoria que decide o que pode-mos observar , diz clara e convictamente Einstein a Werner Heisenberg, ao conversa-rem sobre a importncia de fundamentar ou no uma teoria fsica apenas sobre grande-zas observveis (HEISENBERG, 1996, p. 73-85).

    A histria (ou caricatura) empirista no apenas empobrece a histria da ci-ncia, induz a vises distorcidas da natureza da cincia e do empreendimento cientfico. Os trs exemplos considerados neste trabalho ilustram isso. A epistemologia sem con-tato com a cincia se torna um esquema vazio. A cincia sem epistemologia

    at o ponto em que se pode pensar em tal possibilidade

    primitiva e paralisada (EINS-TEIN, apud HOLTON, 1978, p. 36). Do ponto de vista didtico, em particular, a filoso-

  • Silveira, F. L. e Peduzzi, L. O. Q. 49

    fia contempornea da cincia abre imensas e ainda pouco exploradas vias para uma interpretao mais realista e humana da histria do conhecimento cientfico.

    Em termos educacionais, e na perspectiva do delineamento de estratgias que busquem uma mudana epistemolgica da concepo empirista para uma outra, mais rica e compatvel com o fazer cientfico, fundamental a contextualizao histri-ca do conhecimento. Assim, por exemplo, uma possvel estratgia para o ensino do tomo de Bohr (PEDUZZI; BASSO, 2005) baseada na epistemologia de Lakatos, a metodologia do programas de pesquisa cientfica (LAKATOS, 1989; SILVEIRA, 1996) envolveria:

    a) Estudar aspectos da Fsica do final do sculo XIX e comeo do sculo XX pertinentes ao tema, de modo a contextualiz-lo historicamente (o eletromagnetis-mo de Maxwell, as sries espectrais, o quantum de Planck, a explicao de Einstein do efeito fotoeltrico, o tomo de Rutherford).

    b) Destacar que, segundo o eletromagnetismo de Maxwell, as rbitas dos eltrons do tomo de Rutherford eram instveis.

    c) Introduzir as hipteses revolucionrias de Bohr

    o ncleo duro da sua teoria ou, de acordo com a terminologia de Lakatos, do seu programa de pesquisa , enfatizando que a motivao precpua dessas hipteses era a de explicar a estabilidade do tomo de Rutherford.

    d) Discutir a importncia da interao entre teoria e experincia no desen-volvimento dos primeiros modelos do programa de pesquisa de Bohr destacando o carter progressivo dessas idias (previso de fatos novos, explicao

    originalmente no intencionada e, portanto, no ad-hoc

    dos espectros de emisso, corroborao experimental de algumas previses).

    e) Examinar as limitaes da concepo empirista-indutivista quando con-frontada com a histria do programa de pesquisa de Bohr.

    f) Destacar que com as novas evidncias experimentais, por exemplo os efeitos Stark e Zeeman, o programa de pesquisa de Bohr comeou a dar indcios de saturao pois as incurses ao cinturo protetor, com o recurso relatividade e a novas tcnicas matemticas (no caso das rbitas elpticas, usadas por Sommerfeld para expli-car o desdobramento das linhas espectrais do hidrognio em presena de um campo magntico), produziam explicaes ad-hoc e, quando havia novas previses, estas no eram corroboradas experimentalmente. Ou seja, o programa de pesquisa de Bohr en-trou na fase regressiva, caracterizada pelo atraso do crescimento terico em relao ao crescimento emprico.

    Agradecimentos

    Agradecemos Profa Maria Cristina Varriale, do IM-UFRGS, e ao Prof. Rolando Axt, do DEFEM/UNIJU, pela leitura crtica deste artigo e pelas sugestes apresentadas.

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