· 2019-05-26 · 2 rodrigo viana sales educaÇÂo infantil, infÂncia onÍrica e reencantamento...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM CIÊNCIAS SOCIAIS
EDUCAÇÂO INFANTIL, INFÂNCIA ONÍRICA E REENCANTAMENTO DO MUNDO
Rodrigo Viana Sales Orientadora: Profª Drª Ana Laudelina Ferreira Gomes
NATAL/RN 2018
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RODRIGO VIANA SALES
EDUCAÇÂO INFANTIL, INFÂNCIA ONÍRICA E REENCANTAMENTO DO MUNDO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais.
Área de Concentração: Complexidade, cultura e pensamento social.
Orientadora: Profª Drª Ana Laudelina Ferreira Gomes
NATAL/RN
2018
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RODRIGO VIANA SALES
EDUCAÇÂO INFANTIL, INFÂNCIA ONÍRICA E REENCANTAMENTO DO MUNDO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais.
Data da aprovação: 23/03/2018.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ Profª Drª Ana Laudelina Ferreira Gomes - Orientadora-UFRN
_________________________________________________ Prof Dr Orivaldo Pimentel Lopes Junior – Membro Interno – UFRN
_________________________________________________ Profª Drª – Michelle Ferret Badiali – Membro Interno – UFRN
_________________________________________________ Prof Dr Victor Hugo Guimarães Rodrigues – Membro Externo - FURG
_________________________________________________ Prof Dr – Maurício Camargo Panella – Membro Externo – Instituto Casadágua
_________________________________________________ Hermano Machado Ferreira Lima – Suplente
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Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748
Sales, Rodrigo Viana.
Educação infantil, infância onírica e reencantamento do mundo /
Rodrigo Viana Sales. - 2018.
217f.: il.
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande Norte.
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais. Natal, RN, 2018.
Orientador: Prof.ª Dr.ª Ana Laudelina Ferreira Gomes.
1. Educação Infantil. 2. Infância onírica. 3. Reencantamento do
Mundo. 4. Imaginação Poética. 5. Educação Imaginativa. I. Gomes,
Ana Laudelina Ferreira. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 37.013.42
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
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Dedico essa Tese à Infância Onírica. Ao estado de felicidade infantil da alma que provoca o corpo da criança à brincadeira e o corpo maduro ao devaneio poético. Aos pequerruchos que são capazes de despertar em nós nosso núcleo de infância, e aos adultos que sabem que a leveza da vida passa por experimentar o mundo como um infante. Por fim, aos meus avós paternos, maternos e adotivos, seja na presença, ou nas minhas memórias sonhadas, sempre suscitam em mim o menino que sou.
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AGRADECIMENTOS
A origem da palavra gratidão vem do latim e pode ser associada
etimologicamente a palavra agradável. Gratidão é a agradável expressão do
reconhecimento da bem feitoria de outros na sua vida, no seu trabalho, numa
atividade exercida. Já a palavra obrigado, que também tem uma raiz latina, possui
um radical filiado a concepção de ligação. Dito isto, reconheço as múltiplas ligações
em forma de amor, carinho, apoio, compreensão, incentivo, torcida, ensinamentos,
inspiração, paciência, força e orações que favoreceram a escrita deste trabalho. Não
poderia deixar de expressar minha felicidade e gratidão pelos bem feitores do meu
caminho.
Começo a tecer o fio da gratidão iniciando pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), instituição que me acolheu e colaborou com minha própria
reinvenção e abertura de mundos. Todavia, essa trama só se fez possível por meio
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da referida
instituição. Agradeço ao Coordenador Alex Galeno e aos incansáveis parceiros da
secretaria do programa Jeferson e Othânio representando todos os que compõem o
PPGCS/UFRN.
Gratulo também a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) pelas bolsas recebidas, instrumento que muitas vezes garante a
oportunidade de estudantes oriundos das classes populares se manterem na pós-
graduação. Portanto, um instrumento de democratização ao acesso à universidade
pública e ao conhecimento. Sem esquecer da Associação Nacional de Pós-
Graduandos (ANPG), da Advogada Lisiane Rosa Magalhães, e em especial, de
minha companheira Jamilly de Souza Costa, por terem lutado para garantir o meu
direito de ser professor do Governo do Estado do Rio Grande do Norte e bolsista
CAPES, como assegura a lei. Não podemos esquecer que para um educador da
rede pública, muitas vezes a bolsa de pós-graduação é a única maneira de
conservar este profissional na universidade, sem o mesmo ter que se desdobrar em
três turnos de trabalho docente para garantir seu sustento. Além de ser uma
oportunidade ímpar da educação contar com um profissional cada vez melhor
capacitado para atender as demandas e desafios do ensino público.
Reconheço, agradeço e alegro-me com o aceite e ensinamentos dos
membros da banca de defesa desta tese: Hermano Machado, Maurício Camargo
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Panella, Michelle Ferret Badiali, Orivaldo Pimentel Lopes Junior e Victor Hugo
Guimarães Rodrigues. São para mim, perene fonte de admiração, inspiração,
aprendizados e devaneios.
Regracio também a minha orientadora, Ana Laudelina Ferreira Gomes, quem
me encantou com o pensamento bachelardiano, mudando minha forma de meditar,
entender o mundo, e de viver. Exercendo com sua prática um fazer acadêmico de
religação dos saberes, além de um exercício docente de orientação que ensina a
razão e imaginação, com respeito, escuta, delicadeza, cumplicidade, rigor e carinho.
O meu profundo obrigado também, pela amizade retribuída. Dedico-lhe grande
admiração. Presto minha gratidão e amizade aos orientandos da professora Ana
Laudelina, pessoas com quem aprendi muito sobre razão e imaginação, bem como
sobre afeição, estima e corresponsabilidade. Cito-os nominalmente: Alecrides,
Analis, Daniella Lago, Danielle Sousa, Evaneide, Genison, Genilson, Karla, Isabel,
Marcelo, Michelle, Míriam e em especial ao caro Ozaías, que muito me ajudou.
Gratifico incomensuravelmente a gestão e professores do Núcleo de
Educação Infantil-NEI/UFRN (piloto da pesquisa) em especial à coordenadora
Analice Cordeiro e as professoras da Suzana, Daniele e Gildete; à Escola Freinet,
agradeço representando toda a comunidade escolar a pessoa do seu gerente
administrativo João Vianney, da gerente pedagógica Lilian Carvalho, além das
professoras Sarah e Soraia que me acolheram em sua sala; Da mesma maneira,
meu obrigado ao Centro Infantil Municipal Dona Liquinha Alves, e também
representando toda comunidade escolar cito a diretora Maria Rosângela Silva, a
coordenadora Sarah Mendes e os professores Isaac Terciano, Mariana Soares,
além da auxiliar de sala Hélida. Sem a ajuda dos referidos profissionais e suas
respectivas equipes, nossa pesquisa não teria sido possível.
Todavia, minha gratidão especial vai para todas as crianças observadas
durante a pesquisa. Foi tentando ser regado pela forma encantada de cada uma
viver sua experiência no mundo que minha própria relação com a vida se tornou
mais encantada. Elas poetizaram meus pensamentos com suas manifestações e
brincadeiras. Acenderam dentro de mim um menino que sempre me habitou, me
fazendo lembrar e sonhar com minha criança interior e permitindo minha alma
petiza1 trazer encantamento e felicidade para a vida de adulto.
1 Feminino de petiz que quer dizer pequeno. Petiza é sinónimo de criança pequena. Aqui, refere-se a um estado de alma infantil, ou que acessa um núcleo de infância antes indisponível.
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Não poderia deixar de lembrar da estimada e benquista professora Dalcy da
Silva Cruz, mais do que qualquer outra pessoa, responsável por essa conquista.
Pois, enquanto não me achava capaz de ingressar na pós, ela me incentivou, me
apoiou, me ensinou, me provocou, enxugou minhas lágrimas, me presenteou com
sua amizade, me fez sorrir e me fez sonhar. Me sinto fruto de um sonho seu. De um
tempo onde eu não acreditava em mim. Antes de acreditar em mim mesmo, acreditei
na crença dela em mim, e assim, ela me inventou. Não existem palavras para
agradecer. Em nome dela, que me mostrou que ensinar é transformar vidas,
agradeço à todos os meus professores e todos os meus alunos.
De importância ímpar na tessitura desta tese destaco e dedico minha gratidão
pela disponibilidade de me ajudar e apoiar com suas leituras atentas e conversas
inspiradas à competente professora Telma Araújo, à minha querida irmã Maiara, e
mais uma vez, a minha namorada Jamilly. Meu obrigado também à gestão e toda a
equipe da Escola Estadual Professor Antônio Basílio Filho que foi bem mais que
compreensiva comigo, foi parceira, cúmplice, acolhedora e incentivadora.
Por fim e principalmente, agradeço à Deus por se fazer presente em minha
vida por meio dos meus amigos e familiares. Estes por sua vez, colaboraram de
todas as formas possíveis. Por vezes com silêncio, horas com palavras de ânimo; às
vezes reunidos, mas a maior parte do tempo respeitando minha necessidade de
ausência, ou a minha tensão e estresse; agradeço por toda energia positiva
canalizada em orações, apoio, acolhimento, respeito e amor. Agradeço
nominalmente a minha mãe Ana Magaly e minha segunda mãe Magna. Assim como,
ao meu pai Jorge e à querida Neide. Minha avó Marlene e meus tios Jairo,
Guilherme e Marcelus, minhas tias Jane e Mariza. Ao primo Ariston. Aos meus
irmãos Magnus, Rafael, Maiara e Iago. A pequena Flora, o “encomendado” Vinícius
e o meu querido Pedro Henrique. Em especial endosso minha gratidão a Jamilly
Costa e seus familiares. Agradeço eternamente aos meus avós já encantados (in
memoriam): Francisca, Jerônimo, Ilza, José e Expedito. Cito também amigos os
quais representarão todos os não citados, mas não menos reconhecidos: André,
Bender, Bethise, Dennys, Laura, Marcos, Mário, Mércia, Mikelly, Werneck, aqui não
existe um ponto final... Obrigado.
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RESUMO
Essa Tese filia-se a abordagens teóricas sintonizadas a uma crítica da radicalização
do processo de racionalização levado a cabo pela Modernidade Ocidental, tal como
postulado por Max Weber. Processo este que vem fragmentando o humano na
medida em que privilegia a dimensão do Logos sobre o Mythos, a razão sobre a
imaginação, especialmente uma razão domesticada pela ciência moderna, impondo-
se o pensamento prosaico e conceitual sobre o pensamento por imagens, este
vinculado ao domínio do imaginário poético. O trabalho teve por objetivo investigar
como (e em que medida) experiências de vivência da infância onírica (noção de
Gaston Bachelard) por crianças da Educação Infantil de duas escolas da Grande
Natal, Rio Grande do Norte – Brasil, possibilitaram (ou não) um reencantamento do
mundo para as crianças e demais atores do processo educacional, incluindo o
próprio pesquisador. Para tanto, realizou-se uma pesquisa etnográfica nas escolas
Freinet e Dona Liquinha Alves, o que foi articulado a reflexões de Edgar Morin em
relação ao pensamento complexo e à necessidade de religação dos saberes na
educação, e de Maria da Conceição Almeida em relação a uma perspectiva que leve
em conta a inteireza do antropos. Adicionalmente, dialogou-se problematizações de
Wunenburger acerca da educação imaginativa implícita na filosofia de Gaston
Bachelard. Para a leitura das imagens poéticas referidas à infância onírica, a
pesquisa teve como referência as duas vias da filosofia estética bachelardiana, a
fenomenologia da imaginação e a imaginação arquetípica dos elementos materiais.
As experiências escolares investigadas demonstraram a possibilidade de
reencantamento do mundo dos sujeitos estudados na medida em que razão e
imaginação se articulam de modo equilibrado na prática educativa dos envolvidos no
processo.
Palavras-chave: Infância onírica; Educação Infantil; Imaginação poética;
Reencantamento do mundo. Educação imaginativa.
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RESUMÉ
Cette thèse est basée sur des approches théoriques adaptées à une critique de la
radicalisation du processus de rationalisation menée par la modernité occidentale,
telle que postulée par Max Weber. Un processus qui fragmente l'être humain en ce
sens qu'elle met l'accent sur l'ampleur du Logos sur le Mythos, la raison pour plus
d'imagination, surtout une raison domestiqué pour la science moderne, en imposant
la pensée prosaïque et conceptuelle sur la pensée par les images, cette borne au
royaume de l'imagerie poétique. L'étude visait à étudier comment (et dans quelle
mesure) les expériences de vie de l'enfance oneiric (notion de Gaston Bachelard)
pour les enfants de la maternelle dans deux des écoles de la Grand Natal, Rio
Grande do Norte - Brésil, a permis (ou non) un r éenchantement du monde pour les
enfants et les autres acteurs du processus éducatif, y compris le chercheur lui-
même. Par conséquent, il y avait une recherche ethnographique sur les écoles
Freinet et Dona Liquinha Alves, qui a été articulée les réflexions d'Edgar Morin par
rapport à la pensée complexe et la nécessité de religation des connaissances dans
l'éducation, et de Maria da Conceição de Almeida concernant une perspective qui
prend en compte la totalité de l'anthropos. En outre, nous avons travaillé sur la
problématique de Jean-Jacques Wunenburger à propos de l'éducation imaginative
implicite dans la philosophie de Gaston Bachelard. Pour lire les images poétiques
visées de l'enfance onirique, la recherche a référence aux deux voies de la
philosophie esth&ea cute;tique de Bachelard, la phénoménologie de l'imagination et
l'imagination archétypale des éléments matériels. Les expériences scolaires étudiées
ont démontré la possibilité de ré-enchantement du monde des sujets étudiés dans la
mesure où la raison et l'imagination sont articulées de manière équilibrée dans la
pratique éducative des personnes impliquées dans le processus.
Mots-clés: Enfance oneiric; Éducation des enfants; Imagination poétique; ré-
enchantement du monde. Éducation imaginative
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SÚMARIO
PRÓLOGO ................................................................................................................ 12
A INFÂNCIA ONÍRICA ............................................................................................... 16
SEGUINDO A TRILHA INVESTIGATIVA: EM BUSCA DO ENCANTAMENTO .......... 18
ESCOLAS E CRIANÇAS COMO CAMPOS/SUJEITOS DA INVESTIGAÇÃO ........... 19
O campo de pesquisa .............................................................................................. 22
PERCURSO INVESTIGATIVO .................................................................................. 24
O estudo tipo etnográfico ........................................................................................ 29
Instrumentos de pesquisa ....................................................................................... 30
Método de pesquisa ................................................................................................. 31
Escolha dos sujeitos da pesquisa .......................................................................... 32
Sobre o lócus da pesquisa: seleção e características .......................................... 33
ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO (OU BRICOLAGEM TEXTUAL) ............................ 34
CAPÍTULO I............................................................................................................... 36
TODO MENINO É UM REI ......................................................................................... 37
AS INFÂNCIAS POÉTICAS QUE DESAGUARAM EM MIM ...................................... 43
A poeta de infâncias e a fuga do asilo .................................................................... 45
O menino das literaturas ......................................................................................... 47
Recordações sonhadas da cigarra dos trópicos ................................................... 48
Alegrias amansadoras de tristezas ........................................................................ 50
Brinquedos e flores, retratos do sertão ................................................................. 51
Há um moleque ........................................................................................................ 53
CAPÍTULO II.............................................................................................................. 55
DESENCANTO, INFÂNCIA E REENCANTO ............................................................ 56
INFÂNCIA: INVENÇÃO E DESENCANTO ................................................................. 56
Modernidade e desencantamento ........................................................................... 61
O sujeito moderno ................................................................................................... 65
Infância, escola e pedagogia ................................................................................... 66
O IDIOMA ARRUMADO E O IDIOMA ONÍRICO ........................................................ 69
As linguagens de nossa humanidade .................................................................... 71
Por um paradigma aberto e dialógico .................................................................... 73
Educação onírica e complexa ................................................................................. 75
11
A necessidade de retorno à infância ...................................................................... 79
Horizontes de uma educação imaginativa ............................................................. 82
CAPÍTULO III ............................................................................................................. 85
CAMPO ESCOLAR: INFÂNCIAS ONÍRICAS E DEVANEIOS DE ESCRITA ............ 86
NÚCLEO DE EDUCAÇÃO INFANTIL: O PILOTO, AS LIÇÕES E AS LIMITAÇÕES .. 87
ESCOLA FREINET NATAL ........................................................................................ 91
CENTRO INFANTIL MUNICIPAL DONA LIQUINHA ALVES: O NÍVEL V ................. 114
CAPÍTULO IV ........................................................................................................... 144
O CAMPO DAS MINHAS INFÂNCIAS: IMAGINAÇÃO, INFÂNCIA ONÍRICA E
POESIA .................................................................................................................... 145
TAIPU DAS MINHAS VONTADES ............................................................................ 148
O REPOUSO DO SOLEDADE II ............................................................................... 156
INFÂNCIA PERMANENTE ........................................................................................ 162
CAPÍTULO V ............................................................................................................ 172
DIALOGANDO ENTRE ESCOLAS E HISTÓRIA DE VIDA: O COGITO SONHADOR
E OS JARDINS DE INFÂNCIAS............................................................................... 173
OBSTÁCULOS DO COGITO SONHADOR ............................................................... 179
JARDINS ARTIFICIALIS ........................................................................................... 181
O DEVANEIO ENSINA? ........................................................................................... 185
UM BACHELARD COMPLEXO?............................................................................... 188
EDUCAÇÃO BACHELARDIANA ............................................................................... 191
EPÍLOGO. ................................................................................................................ 197
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 204
APÊNDICE ............................................................................................................... 216
OUTRAS ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS ......................................................... 216
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PRÓLOGO
Fig. 1 – Atividade de criança da Escola Freinet Fonte: Acervo do Autor (2016)
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PRÓLOGO
A CASA
Era uma casa
Muito engraçada Não tinha teto
Não tinha nada Ninguém podia Entrar nela, não Porque na casa Não tinha chão
Ninguém podia Dormir na rede Porque na casa
Não tinha parede Ninguém podia
Fazer pipi Porque penico Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero Na Rua dos Bobos
Número Zero (Vinícius de Moraes)
A canção infantil “A casa”, de Vinícius de Moraes (2000), parece mais um
sonho impossível. Isto porque (su)a poesia ultrapassa os limites da realidade. Pois
bem, é partindo dela que inicio a escrevedura e a contação deste estudo. É bem
verdade que a palavra “partindo” não expressa exatamente o que desejo dizer –
melhor utilizar seu antônimo, “chegando”. Então, a motivação para esta pesquisa foi
chegando e ajudando a sonhar uma “casa” (eternamente inacabada) como essa.
Assim essa história iniciou. Na verdade, a casa nem é bem uma casa, por isso peço
licença para parafrasear o poetinha, como era carinhosamente conhecido, e digo:
“Era uma escola muito engraçada. Não tinha teto, não tinha nada. [...] Mas era feita
com muito esmero, na rua dos bobos, número zero”.
No ano de 2012, ao entrar no Programa de Pós-graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da
Professora Dra. Ana Laudelina Ferreira Gomes, continuo com os estudos complexus
(MORIN, 2011, 2008, 2005, 2003; ALMEIDA, 2013, 2012, 2006), e agora me
aventuro à conhecer o Bachelard noturno2: da poesia, dos arquétipos e da
2 José Américo Mota Pessanha, filosofo brasileiro que introduziu os estudos de Bachelard no Brasil, foi o primeiro autor a falar que existe uma divisão na obra de Bachelard. De um lado um Bachelard diurno, da epistemologia. De outro, o Bachelard noturno, da poética.
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fenomenologia da imaginação. Daí passo a participar dos encontros de orientação
coletivas promovidos pela orientadora, e, paulatinamente, a colaborar timidamente
com a nossa casa/escola onírica.
Rubem Alves (2015, s/p) conta que quando o navegador Amyr Klink foi
questionado sobre qual “a escola que você desejaria para os seus filhos?”, o
navegante replicou: “uma escola que há na Ilha Faroe, entre a Inglaterra e a
Islândia. Lá as crianças aprendem tudo o que devem aprender construindo uma
casa viking…”. Segundo Alves, “para aprender uma coisa é preciso fazê-la. As
crianças da Ilha Faroe aprendiam o que precisavam saber para viver construindo
uma casa! Mas não será muito difícil construir uma casa? É difícil”, e complementa,
“mas há um truque: a gente pode “imaginar” a casa que a gente quer construir. Tudo
o que a gente faz começa na imaginação” (ALVES, 2015, s/p).
Assim, a professora Ana Laudelina começou esse sonho/casa/escola com
outros orientandos em tempos idos, mas essa orientação coletiva e democrática que
chamo de escola onírica, para mim, contribuiu decisivamente com uma nova forma
de ver e viver o mundo. Há sonhos que intervêm no real mais que a realidade não
sonhada. “Paulo Freire nos falava da ‘boniteza’ do sonho de ser professor de tantos
jovens deste planeta. Se o sonho puder ser sonhado por muitos, deixará de ser um
sonho e se tornará realidade” (GADOTTI, 2003, p.12). E é isso que as orientações
coletivas vêm proporcionando: transformar dissertações, teses, estudos, trabalhos,
intervenções sonhadas em realidade escrita, pensada, materializada e vivida. Não
posso deixar de pontuar que, para além da escola sonhada, somos filiados ao Grupo
de Pesquisa “MYTHOS-LOGOS: Religião, Mito e Espiritualidade” do Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais da UFRN.
Sabemos que Paulo Freire ao falar sobre a boniteza de ser professor
(FREIRE, 1996), sobre o sonho como propulsor da mudança (1992), e até sobre a
dialogia3, que deve mediatizar o sujeito entre os demais e com o mundo (2004), diz,
sobretudo, sobre um contexto social e político. Entretanto, vamos além desse campo
tão imprescindível abordado por ele. É com a afirmação de Alves que essa escola
onírica torna-se possível. Imaginamos a escola e os textos que queremos. Daí o
filósofo sonhador Gaston Bachelard (2008, 2009), mais seus comentadores como
3 Para Freire (2004), o diálogo é uma categoria muito cara, pois, por meio dele, os sujeitos são capazes de pensar, repensar e refazer a sua realidade. Há portanto, na dialogia freriana um exercício de tomada de consciência, por isso o autor insere o diálogo como um dos pilares de sua pedagogia. Aqui, dialogia diz respeito a esse exercício.
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Gomes (2013a, 2013b, 2016a, 2016b, 2016c, 2018b) e Rodrigues (1999, 2008,
2013), entre tantos, vem “fundamentar” a nossa necessidade de devaneio poético,
de transcender a realidade vivida por meio da nossa imaginação sonhadora. Mas
isso só se faz possível porque a minha orientadora e os meus caros colegas
cultivam um ambiente onde ensinamos a razão, mas também a imaginação, como
nos aconselhou o mestre Bachelard (2009).
A estratégia de orientação coletiva, que permite leituras de textos seminais
escolhidos (sobretudo a leitura das produções em andamento dos próprios membros
do grupo) foram de suma importância para eu conhecer na prática o modelo de
escola que defendo no decorrer deste texto: escolas dialogais, que ensinem o saber
e a poesia (BACHELARD, 2009), que articulem a cultura humanística e a cultura
científica, o homo sapiens e o homo demens (MORIN, 2003, 2005), as faculdades
racional e imaginativa (WUNENBURGER, 2003, 2005).
Assim, posso afirmar com convicção que esta tese foi tecida de muitos fios,
sugestões, provocações e acolhimento, os quais ressignifiquei no meu labor e
artesanato intelectual. Aqueles encontros foram regados de conversas saudáveis e
prazerosas, leituras comprometidas, reflexões pertinentes e encantamentos
poéticos. Por isso, a escola imaginada e sonhada é tão engraçada, como a casa de
Vinícius de Moraes. Ela não existe fisicamente, falta teto, chão, paredes, penico,
mas ela é feita com muito esmero, cumplicidade e corresponsabilidade4.
Sob os muros muito velhos da academia, posso ser adjetivado de bobo (não
enquadrado na ciência tradicional). Porém, se ser bobo é se abrir para a poesia
como uma nova possibilidade mais sensível de entender o mundo, se é imaginar e
sonhar, tomo o exemplo de Manoel de Barros e admito minha bobice com felicidade.
Chamo-a de encantamento. Agradeço timidamente o adjetivo, pois assim como no
poema citado abaixo, sou fraco para elogios. Na ocasião, disse o poeta:
[...] Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro / Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas) / Por essa pequena sentença me chamaram de imbecil / Fiquei emocionado e chorei / Sou fraco para elogios (BARROS, 2010, p. 403).
4 Sobre a escola onírica, trago uma (re)leitura dos trabalhos do grupo que contribuíram diretamente com a tessitura do meu texto já no primeiro capítulo.
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A INFÂNCIA ONÍRICA
“Sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só olhamos com uma paixão estética as paisagens que vimos antes em sonho”.
(Gaston Bachelard)
Ainda sob o tom das notas iniciais, vamos meditar5 na canção “Travessuras”,
de Oswaldo Montenegro (2017):
Eu insisto em cantar Diferente do que ouvi Seja como for recomeçar Nada há, mais há de vir Me disseram que sonhar Era ingênuo, e daí? Nossa geração não quer sonhar Pois que sonhe a que há de vir Eu preciso é te provar Que ainda sou o mesmo menino Que não dorme a planejar travessuras E fez do som da tua risada um hino.
Na canção, o sujeito é desmotivado a sonhar, o pensamento hegemônico de
sua geração negligencia ao sonho. Ainda assim, ele segue com uma esperança
onírica, ainda que seja para as futuras gerações. Parto de um princípio: nos nossos
dias, o sonho enquanto potência da imaginação e do irreal está sendo eclipsado
pela razão. Ancorado em Max Weber (2009), é possível afirmar que esse processo
de secularização e racionalização é consequência e provocador do que ele
conceituou “desencantamento do mundo”6 (ideia que retomarei no corpo do texto).
Contudo, o eu poético da canção insiste em provar para seu interlocutor que
ainda é um menino que sonha, planejando travessuras e devaneando
(poeticamente) com o som de sua risada. O devaneio poético em Bachelard (2009,
5 Na esteira de Bachelard, Batista (2016, p. 190) nos relembra que: “Na fenomenologia da imaginação a imagem é meditada, e não contemplada. O indivíduo age e é agido subjetivamente pela imagem.” 6 Para Pierucci (2013, p. 58), que escreveu um livro sobre este conceito weberiano, o desencantamento do mundo “tem tudo a ver com o cálculo”, inerente ao processo de racionalização e secularização do Ocidente. Pierucci comenta que “das dezessete incidências do significante, em nove vem usado para significar desmagificação; em quatro, com o significado de perda do sentido; e nas quatro restantes ele vem com as duas acepções” (2013, p. 58).
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p. 1) é um sonho desperto, é o maravilhamento com uma imagem poética7 que, por
sua vez, “pode ser um germe de um universo imaginado no devaneio de um poeta”.
O devaneio bachelardiano “é uma fuga para fora do real” (BACHELARD, 2009, p. 5),
“um devaneio que a poesia coloca na boa inclinação” (idem, p.6). “Um mundo se
forma no nosso devaneio, um mundo que é o nosso mundo. E esse mundo sonhado
ensina-nos possibilidade de engrandecimento de nosso ser nesse universo que é
nosso” (BACHELARD, 2009, p. 08). É um devaneio cósmico e feliz. No devaneio
poético, “a poesia é fornecedora de uma consciência da imaginação criante”
(EUSTÁQUIO, 2015, p. 100). É o sorriso na canção de Montenegro que se
transmuta, expande e valoriza em um maravilhoso hino.
Entretanto, saliento o mais importante: é em seu sonho desperto que o sujeito
se (re)faz menino, encontrando sua infância onírica que estava repousando nos
jardins de sua alma. Batista (2015, p. 35), na esteira de Bachelard, nos ensina que a
infância sonhada (ou onírica) “é vivenciada mediante o devaneio poético, que se
diferencia da experiência memorialística, a qual possibilita apenas uma
experimentação reprodutiva da imagem”. Pela sua imaginação ativa, essa infância
possibilita uma atualização da infância do ser, de maneira que as lembranças e os
sonhos trabalham mutuamente em favor dos devaneios poéticos do infante dando
um caráter surreal ao sonhado. É essa infância onírica, que pode ser vivida em
qualquer idade e que articula nossa memória e nossa imaginação, bagunçando os
limites entre elas, nos colocando em um estado de alma petiza, aberta ao espanto,
ao fabuloso e teimosa à domesticação imposta pela racionalidade ligada à vida
madura em nossa sociedade, que torna-se a protagonista neste estudo.
Assim, mais adiante, será exposta a emergência de investirmos em um
processo antropológico à contramão ao identificado por Weber: as infâncias
(biológica e onírica) possuem um papel não apenas estratégico, mas imprescindível
7 Em Bachelard (2008, p. 1), “a imagem poética é um súbito realce do psiquismo”, ela “não está sujeita a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso. A imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio” (2008, p. 2). Ela surge numa consciência individual e é essencialmente variacional. É “ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir do nosso ser. Aqui a expressão cria o ser” (2008, p. 8). “A imagem poética atiça memórias da infância, cheiros, sabores, toques. Uma vez que essa sensação é despertada, essas lembranças podem ser concluídas de outras formas, reconstruídas, redescobrindo imagens passadas” (EUSTÁQUIO, 2015, p. 126).
18
para o reencantamento do mundo8, para uma existência mais poetizada e
humanizada.
SEGUINDO A TRILHA INVESTIGATIVA: EM BUSCA DO ENCANTAMENTO
“O saber a gente aprende com os mestre e com os livros. A sabedoria se aprende com a vida e como os humildes”.
(Cora Coralina)
Com base nessas reflexões, apresentarei, a seguir, a trilha investigativa deste
projeto de pesquisa. Todavia, para não correr o risco de reduzir este estudo a mais
um exercício de cisão entre os saberes, torna-se imprescindível lembrar um preceito
moraniano dentre os Princípios do conhecimento pertinente (MORIN, 2005, p. 35-
47), dos quais destaco “o global” (as relações entre o todo e as partes). Para Morin
(2005, p. 37), “o global é mais que o contexto, é o conjunto das diversas partes
ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional”. Para Morin (2005, p. 37),
O global é mais que o contexto, é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional. [...] Daí se tem a virtude cognitiva do princípio de Pascal, no qual a educação do futuro deverá se inspirar: ‘sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas ou ajudantes, mediatas e imediatas, e sustentando-se todas por um elo natural e insensível que une as mais distantes e as mais diferentes, considero ser impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes’9 (MORIN, 2005, p. 37).
Como enfatizou Morin (2005, p. 37), “tanto no ser humano, quanto em outros
seres vivos, ainda existe a presença do todo no interior das partes: cada célula
contém a totalidade do patrimônio genético de um organismo policelular”. O autor
(2005, p. 37) explica ainda mais didaticamente:
A sociedade, como um todo, está presente em cada indivíduo, na sua linguagem, em seu saber, em suas obrigações em suas normas. Há um tecido interdependente e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e o seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si.
8 Mundo aqui também é uma categoria muito plástica. Ora estamos falando do planeta; ora, enquanto realidade cognoscível; por vezes, a compreensão do mundo designará o entendimento de fenômenos inteligíveis; outras vezes, de uma dimensão cósmica, ou mesmo algo que age no ser em devaneio poético; e até, como mundo ocidental afetado pela racionalização moderna. Assim, advertirei ao leitor para que, atento aos contextos da palavra, não simplifique nem uniformize o entendimento, pois o mundo aqui é conceito e imagem (poética). 9 Essa citação de Morin é atribuída a Pascal no livro, Pensées do ano de 1976.
19
O todo também está nas partes, assim como as partes contém o todo, em se
tratando de uma investigação que leva em consideração o paradigma científico
complexo. Lembro-lhes que, em Bachelard (2009), o arquétipo10 da infância pode se
comunicar. Existe sim o que poderíamos chamar de um lençol freático onírico que
abastece, de uma mesma fonte, vários poços da infância. Até porque, “os arquétipos
comandariam imagens dominantes que estão na fonte de toda imaginação”
(GOMES, 2003, p. 50).
Assim, entendo que a infância onírica que nos habita é singular e universal; é
única, mas plural por ser hidratada arquetipicamente. Portanto, as partes ou
experiências das várias infâncias oníricas suscitadas dentre os trabalhos
acadêmicos lidos (teses e dissertações) desaguaram na minha própria infância
sonhada; assim como os “fragmentos”, enquanto experiências singulares vividas por
uma dada infância onírica, desaguam e são fluxo (de maneira retroalimentar) da
fonte de toda imaginação.
Retomando a trilha de investigação, inicio pela questão da pesquisa, que se
constitui como elemento desencadeador e norteador de outras elaborações.
Portanto, compartilha a pergunta que provoca e dá sentido a este estudo: até que
ponto as experiências da infância onírica colaboram para uma educação mais
poética, mais encantada, em consonância com a ideia bachelardiana de educar a
imaginação, na Educação Infantil? Para problematizar a referida questão, a pesquisa
foi ancorada no seguinte objetivo: investigar experiências de infância onírica
(escolares e do próprio autor) voltadas para educar a imaginação especialmente na
Educação Infantil. Assim, fica evidenciado que o objeto de estudo aqui são as
vivências experienciadas da infância onírica.
ESCOLAS E CRIANÇAS COMO CAMPOS/SUJEITOS DA INVESTIGAÇÃO
“Quero ensinar às crianças. Elas ainda têm olhos encantados. Seus olhos são dotados daquela qualidade que, para os gregos, era o início do pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal”.
(Rubem Alves)
10 Gomes, apoiada em Bachelard, nos explica sobre os arquétipos e faz uma sucinta genealogia do termo: “noção que toma de empréstimo a Carl Jung, concebendo-a na acepção que lhe dá Robert Desoille: ‘um arquétipo é antes uma série de imagens’, resumindo a experiência ancestral do homem diante de uma situação típica, isto é, em circunstâncias que não são particulares a um só indivíduo, mas que podem impor-se a qualquer homem” (BACHELARD, 1990 apud GOMES, 2003, p. 50).
20
Esta tese filia-se a abordagens teóricas sintonizadas a uma crítica da
radicalização do processo de racionalização11 instaurado pela Modernidade
Ocidental, tal como postulado por Max Weber. O conceito weberiano de
desencantamento do mundo (WEBER, 2010, 2009, 2004, 1997; PIERUCCI, 2013)
orienta este estudo.
Aqui, faz-se necessário também mostrar a emergência de outra forma de
gerenciamento de nossas vidas que valorize potências humanas que estão sendo
invisibilizadas (SANTOS, 2006), inferiorizadas ou recalcadas em detrimento da
racionalização (GOMES, 2016a; MORIN, 2005; WUNENBURGER, 2003), em que a
imaginação entra como um elemento de saber sensível. O maior exemplo é a
imaginação não domesticada pela razão, a imaginação devaneadora. Sua principal
finalidade é nos dar prazer, felicidade, brincar com o nosso onirismo. Alves (2005,
p.15) nos adverte: “a vida não é justificada pela utilidade. Ela se justifica pelo prazer
e pela alegria – moradores da ordem da fruição”.
Na educação, o caminho percorrido pelo processo de desencantamento só foi
possível ser consolidado porque contou com o profissional pedagogo como tutor
responsável por tornar as práticas educativas, desde a infância, cada vez mais
racionalizadas e eficazes na formação e preparação do futuro adulto potencialmente
bem sucedido12, para dominar ou ser dominado. A escola foi o espaço que permitiu
a consolidação desse projeto que triunfou em principalizar a racionalidade
instrumental.
Althusser (1985, 1970), ao retratar a escola como aparelho ideológico do
Estado, compara o papel da escola na Modernidade como semelhante ao da Igreja
no modo de produção feudal, destacando-a como aparelho a serviço da classe
dominante. Assim, a instituição escolar e a Pedagogia tiveram protagonismo não
apenas na racionalização da vida, na domesticação dos corpos (FOUCAULT, 2012,
2001), mas também na hegemonia do projeto burguês de sociedade.
11 Segundo Johnson (1997), a definição de racionalização encontrada em Weber, preocupa-se com o fato que “à medida que o CAPITALISMO industrial se transformasse em sociedades cada vez mais complexas, a vida social viesse a ser organizada em torno de princípios impessoais de cálculo racional, eficiência técnica e controle. Os sentimentos, a espiritualidade e os valores morais diminuiriam em importância, ao mesmo tempo em que as sociedades construiriam uma ‘jaula de ferro’ cada vez mais restritiva de BUROCRACIA em todas as áreas da vida social, da religião e educação, ao trabalho e à lei. Tudo isso facilitaria o controle da vida diária do indivíduo pelo Estado e pelas empresas (WEBER, 1954 apud JOHNSON, 1997, p 188 -189, grifos do autor). 12 Como podemos ver em CAMBI (1999).
21
Contudo, apesar de parecer contraditório, faz-se necessário reconhecer
também que a escola, em especial as voltadas à Educação Infantil, tem também se
mostrado como campo resiliente no qual ainda resiste o espaço da ludicidade, da
brincadeira, do faz de conta, terreno fecundo para a imaginação. É dessa hipótese
de trabalho que parte essa pesquisa: os profissionais da pedagogia (e artistas em
geral) são os maiores incentivadores da imaginação e do devaneio poético. Nesse
contexto, ainda resiste o espaço e os momentos, nos quais a imaginação é a
companheira descompromissada do prazer e da felicidade.
Assim sendo, destaco a necessidade de vanguardismo dos profissionais de
Pedagogia e professores em geral em traçar um caminho alternativo em direção a
um lugar onde possa se viver de maneira mais equilibrada a unidualidade humana
(conceito de Edgar Morin), na qual razão e imaginação não sejam concorrentes, mas
complementares13 na busca de cumprir com as utilidades exigidas pela nossa
racionalidade, atendendo ao prazer que a imaginação devaneante proporciona.
Para encontrar essa via, o papel da escola e da pedagogia é fundamental,
pois a mudança de paradigma é paulatina e deve ser apreendida. As crianças foram
o principal alvo que permitiu a consolidação paradigmática moderna. São elas e a
partir delas que podemos reencantar o que foi desencantado – mesmo
reconhecendo que não há encanto/desencanto completos, ou totais, pois razão e
imaginação são capacidades inerentes do antropos, ou seja, à condição humana.
Se a nossa saúde, plenitude e equilíbrio dependem de racionalidade e de
imaginação, tem-se que falar num a inteligência sonhadora. “É dos sonhos que
nasce a inteligência. A inteligência é a ferramenta que o corpo usa para transformar
seus sonhos em realidade. É preciso escutar as crianças para que sua inteligência
desabroche” (ALVES, 2005, p. 29).
Neste estudo, as crianças (com a atividade plena das suas infâncias oníricas)
são os principais sujeitos investigados, porque suas práticas ainda são encantadas,
porque não foram e nem precisam ser domesticadas pela racionalidade excludente
dos tempos atuais, mas podem desenvolver uma racionalidade dialógica e
complexa, que una o que foi disjunto e fragmentado (GOMES, 2016a; MORIN, 2005,
2003; WUNEMBURGER, 2003). Elas ainda possuem uma infância onírica fluente,
13 Sobre a unidualidade, Morin (2005) defende que o ser humano é ao mesmo tempo plenamente biológico e cultural, além de ser concomitantemente homo sapiens e homo demens, ou seja, o homem da razão é o mesmo da paixão e da loucura.
22
ativa e encantadora do mundo. Com o chegar da maturidade, “a imaginação
enfraquece, perde as suas cores brilhantes, proporcionalmente ao desenvolvimento
da reflexão” (DUBORGEL, 1992, p. 244). Munido desse referencial, observo as
crianças no campo.
O campo de pesquisa
Inspirado por Bachelard e sonhando em seguir a trilha das suas filosofias
poéticas, da fenomenologia da imaginação14 e arquetípica15, vou ao campo.
Especialmente estudo (as crianças que estão em) instituições que buscam práticas
educativas para além do tradicionalismo e do racionalismo imperativo como via
única. Já o campo onírico são lembranças sonhadas e devaneios poéticos que
conectam o ser à sua infância onírica. Em especial, à minha própria infância onírica
e as crianças da Educação Infantil em latente onirismo por meio de suas
imaginações.
Assim, busco: os encantamentos e os devaneios de infância das crianças
(vividos empiricamente e imaginativamente no ambiente escolar da Educação
Infantil); os meus devaneios sobre a infância (que são provocados pela observação
das crianças na escola); e as minhas memórias-sonho16 (que acessam poeticamente
o núcleo de infância onírica e permanente em mim). Todavia, como estratégia
organizacional do trabalho, começo pela apresentação das escolas por terem uma
importância majoritária nas observações e análises do estudo e posteriormente me
debruço sobre minha própria infância.
A pesquisa em escolas infantis tem como finalidade a maior facilidade de
acesso à infância onírica e, com isso, mostrar como ela se expressa através do
14 “Bachelard passa a tecer seu próprio conceito e própria fenomenologia quando a imagem é também uma deformação” (BADIALI, 2016, p.68). A fenomenologia (da imaginação) bachelardiana pode ser entendida como a “sistemática de investigação da gênese da imagem poética do imaginário literário” (BACHELARD, 1988 apud BADIALI, p. 70). 15 A via arquetípica também é mais conhecida por imaginação dos elementos materiais. “Em várias obras de sua filosofia poética, Bachelard trata dos arquétipos do inconsciente. Em seus textos voltados para a imaginação dos elementos materiais (água, fogo, terra e ar), os arquétipos são as raízes das imagens. Já na parte da obra voltada para a fenomenologia da imaginação (A poética do espaço e A poética do devaneio), as imagens não são mais sublimações dos arquétipos, embora possam ser relacionadas a eles por associações livres do escritor ou do leitor” (BATISTA, 2015, p.33). 16 Ela se diferencia da experiência enquanto lugar da lembrança factual. A memória que tem lugar aqui é memória/imaginação nos termos ne Bachelard (2008), na qual memória é invenção, é ordenamento encadeado a posteriori feito pelo sujeito em relação a um corpo de lembranças falhado e descontinuo (GOMES, 2018a).
23
espaço poético, dos brinquedos, das brincadeiras. Ao vê-las emergir por meio das
crianças, enquanto pesquisador, tenho devaneios poéticos sobre minha infância e
sobre uma infância onírica e permanente que resilientemente ainda é viva em mim.
Assim, é importante identificar as escolas estudadas e dizer que são instituições que
buscam práticas educativas, vivenciais e imaginativas, que vão além do
tradicionalismo e do racionalismo instrumental como via única de ação.
É emergente identificar esperanças, experiências educativas que transbordem
as intencionalidades deste projeto de sociedade, que eduquem o ser na dimensão
racional e imaginativa tal como a educação integral do homem das 24 horas
bachelardiano (GOMES, 2016c). Como defendeu Boaventura Santos (2002, 2000), é
preciso tornar visíveis práticas ocultadas e descredibilizadas pelo paradigma
hegemônico na modernidade Ocidental. A invisibilização da imaginação é uma
dessas práticas.
As preciosidades encontradas no campo, práticas educativas que alimentam
razão e imaginação, e escolas que se deixem encantar com o onirismo das crianças,
creio que são potencialmente germinadoras. É para isso que escrevo: para que seu
alcance vá além do educando que o vivenciou, para que contaminem outros
educadores, outras pessoas, outras vidas. Para que a imaginação e a poesia
alcancem as dimensões merecidas em nossas vidas, nos encantem e isto seja
valorizado desde cedo.
Sendo assim, as experiências aqui narradas não buscam explicar nem
defender Escolas Pedagógicas ou autores, avaliar coerência entre teoria e prática,
tão pouco identificar erros dos educadores que conduzem os processos de ensino-
aprendizagem. Ao contrário disso, as narrativas se concentrarão em trazer
experiências (fragmentos) da infância onírica que se revelam dentro do espaço
escolar que colaboram ou poderiam colaborar na composição de uma educação
mais poética, mais encantada e, consequentemente, em consonância com a ideia
bachelardiana de educar a imaginação (BACHELARD, 2008, 2009;
WUNENBURGER, 2005; GOMES, 2016a, 2016c).
Na busca de uma educação mais encantada, encontrei em meio a muita
reprodução17 (BOURDIEU; PASSERON, 1975) três pedras preciosas. A primeira no
ano de 2015, a segunda em 2016 e a última em 2017.
17 “Todo sistema de ensino institucionalizado (SE) deve as características específicas de sua estrutura e de seu funcionamento ao fato de que lhe é preciso produzir e reproduzir, pelos meios próprios da instituição, as
24
Comecei a pesquisa de campo pela escola de aplicação da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o Núcleo de Educação da Infância (NEI).
Na ocasião ainda estava detendo minhas atenções ao Ensino Fundamental.
Todavia, o NEI entra neste estudo como pesquisa piloto, uma biruta (instrumento de
navegação) imprescindível que me mostrou a direção dos ventos para minhas
reflexões. Porém, em virtude de um impasse jurídico com a UFRN18, precisei
continuar a pesquisas em “outros ares”.
A Escola Freinet (em Natal) foi a segunda escola da pesquisa. Uma escola
cujos espaços são poéticos e provocam nossa imaginação, começando pela
arquitetura externa do prédio, passando pelo interior cheio de verde e transbordando
na vida dos que compõem a escola. Minha passagem pelo Ateliê de Educação
Infantil (com crianças entre 2 anos e 5 anos e onze meses) foi muito fecunda.
Por fim, a escola pública caiçara do município de Parnamirim, o Centro Infantil
Municipal Liquinha Alves. Um espaço no qual a infância onírica pulula nas
brincadeiras, nas canções e na imaginação poética constantemente aflorada nos
pequerruchos do Nível V (entre 4 e 5 anos), sala que tive o prazer de acompanhar.
PERCURSO INVESTIGATIVO
“Se o conhecimento pode criar problemas, não é através da ignorância que podemos solucioná-los”
(Isaac Asimov).
A pesquisa de campo foi realizada em três escolas entre os anos de 2015,
2016 e 2017. Nos três casos, com planejamento de investigar por três meses cada
turma estudada. A intenção inicial era assistir pelo menos duas turmas por semestre,
intercalando em cada ano (2015, 2016, 2017) seis meses de observação e seis
meses de análise de dados e escrita (por este motivo tratei de cumprir os créditos
obrigatórios das disciplinas do PPGCS até o fim do primeiro semestre de 2015).
condições institucionais cuja existência e persistência (autorreprodução) são necessários tanto ao exercício de sua função própria de inculcação quanto à realização de sua função de reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não é o produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das relações entre os grupos ou as classes (reprodução social)” (BOURDIEU; PASSERON, 1975, p. 64, grifo dos autores). 18 Um responsável por um discente do NEI-UFRN ganhou na justiça a causa que impede que novas pesquisas fossem realizadas na instituição a partir de 2016.
25
Com base neste cronograma, iniciaria a pesquisa exploratória no segundo
semestre de 2015. Todavia, neste mesmo período fui convocado para assumir a
vaga de professor de sociologia da educação básica devido a aprovação de
concurso público realizado em 2011 pelo Governo do Estado do Rio Grande do
Norte. Essa oportunidade profissional me fez reorganizar a estratégia de pesquisa
só sendo possível iniciar o campo em setembro de 2015.
Portanto, foi desenvolvida nova estratégia de atuação, nela, faria a pesquisa
de campo ainda em três meses por vez, mas provavelmente teria de reduzir o
número de turmas que iria observar. Escolhi fazer a pesquisa de campo entre os
meses de setembro e novembro, assim, no período de férias da rede estadual do
RN, entre meados de dezembro e até fevereiro, seria possível realizar a escrita do
texto sobre a observação sem concorrer com o calendário da educação básica
estadual. Já de março à agosto, me concentraria no desenvolvimento da tese e
continuidade da pesquisa biográfica que daria suporte ao estudo. O plano adaptado
era passar três meses em cada turma fazendo entre duas e três visitas semanais em
dias alternados, tendo em vista de ter tempo de digerir melhor e meditar sobre o
conteúdo observado nas lacunas entre as idas19.
No ano de 2015, como planejado, entre os meses de setembro e novembro
observei o Núcleo de Educação da Infância (NEI, a escola de aplicação da UFRN).
Na ocasião, fiz uma pesquisa exploratória com intenção de melhorar a minha
compreensão sobre campo. Severino explica que “a pesquisa exploratória busca
apenas levantar informações sobre determinado objeto, delimitando assim o campo
de trabalho, mapeando as condições e manifestações do objeto. Na verdade, ela é
uma preparação para a pesquisa explicativa” (2016, p.132). Chamo a experiência do
NEI de ‘projeto piloto’ em virtude de ter ido ao campo sem um roteiro sistematizado
para a pesquisa, assim como quem faz um questionário piloto tentando identificar
em um grupo de controle as possíveis fragilidades daquele instrumento de pesquisa,
fui observar o campo para a partir dele, criar estratégias de investigação, além de
tentar confirmar algumas hipóteses, é claro. Ou seja, fui ao campo para me preparar
para ir ao campo.
19 Contudo, vale registrar que na implementação prática do novo cronograma, houveram semanas que só consegui ir uma vez ao campo.
26
Dentre as lições importantes que a pesquisa exploratória me trouxe,
destaco: a percepção que brincadeira é o devaneio poético da criança, é quando de
maneira consciente ela imaginativamente vai para fora do real e aumenta e supera
sua realidade.
Chego à Escola Freinet em setembro de 2016, já levo na minha bagagem de
pesquisa (além de maior percepção e melhores posturas e estratégias para observar
o campo), a atenção ao momento mágico e encantatório da brincadeira. Contudo,
fico tão obcecado para entender o poder do devaneio poético na criança que me
sinto um pouco travado para essa percepção. Desenvolvo então a segunda principal
estratégia de observação, inspirado em Bachelard, comecei a perceber a escola
como espaço poético e potencialmente encantador e registrar meus devaneios sobre
ele. Quando me sinto confortável realizando esse exercício de entender a poética
daquele lugar, começaram a fluir também as observações das brincadeiras como
práticas encantadas das crianças e do ser (o que cada vez mais passa a me
provocar as lembranças e devaneios com minhas memórias de infância).
No Centro Infantil Municipal Dona Liquinha Alves, precisei novamente
repensar o plano de pesquisa, caso deixasse para voltar ao campo entre setembro e
novembro, certamente não conseguiria terminar o texto para defesa em tempo hábil
para apresentar ao PPGCS-UFRN. Assim, antecipei a pesquisa para o primeiro
semestre. Porém, só pude iniciar as observações no mês de abril de 2017, pois a
escola aderiu a uma greve no mês anterior. Portanto, a pesquisa foi realizada entre
os meses de abril e junho do referido ano. O trabalho no Liquinha me pareceu mais
fácil, pois já tendo ciência do que procurava no campo (focado nas brincadeiras e no
espaço poético da escola), com novas estratégias para observação e interação, e
com bastante segurança, o estudo sobre a escola fluiu melhor. Essa maturidade na
pesquisa possibilitou cada vez mais eu me sentir à vontade para despertar a minha
infância onírica por meio dos devaneios suscitados pela própria observação dos
pequerruchos.
Contudo, as estratégias da pesquisa se mostraram diferentes de uma
epistemologia Bachelardiana onde, o cientista se aproxima do seu objeto “através da
teoria. Isso significa que o método científico já não é direto, imediato, mas indireto,
mediado pela razão. O vetor epistemológico, segundo Bachelard, segue o percurso
27
do ‘racional para o real’” (MELO, 2006, s/p). No entanto, não fui ao campo de
pesquisa como um especialista teórico da área, como não sou graduado em
pedagogia, iniciei a observação sem os pressupostos teóricos e ferramentas
metodológicas tidos como ideais para uma pesquisa na Educação Infantil.
Vou munido da filosofia estética bachelardiana (a imaginação arquetípica dos
elementos materiais e a fenomenologia da imaginação) bem como, de alguns dos
arcabouços teóricos e metodológicos da formação de cientista social. Como
sabemos, nas Ciências Sociais, podemos considerar as pesquisas sobre a infância
como pouco comuns. Ao meu favor, tinha um olhar aberto ao espanto (e influenciado
por menos variáveis e condicionantes) e a estratégia metodológica de Morin (2008)
inspirado no poeta Antônio Machado, disposto a fazer o caminho ao caminhar.
Assim, fiz um percurso metodológico partindo da experiência empírica e também
poética, para as formulações teóricas. Como uma práxis de pesquisa que me
provocava a ação, reflexão e nova ação. Portanto, busquei a complexidade como
método aberto para produção do conhecimento.
Os estudos da complexidade têm como um dos seus principais expoentes
Edgar Morin. Aqui no Estado do Rio Grande do Norte temos também uma referência
internacional que é a professora Maria da Conceição de Almeida, fundadora e
coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade. Para essa estudiosa, esse foi
o caminho e estratégia de superar o caos (ALMEIDA, 2009), fato que também
ocorreu comigo e me provocou a realizar este estudo. Almeida lembra que a
pesquisa é “atividade de ponta na construção de narrativas científicas sobre os
fenômenos do mundo, emerge da curiosidade e do desejo de ordenar o caos” (2009,
p. 97). “No contexto do pensamento complexo e das ciências da complexidade, a
atividade da pesquisa só poderia ser, então, ‘um diálogo com a natureza’ e ‘nunca a
dissecação de um cadáver, de um fragmento morto, sem vida e inerte’”
(PRIGOGINE, 2001 apud ALMEIDA, 2009, p. 99-100).
Nessa natureza com a qual dialogamos, além ser viva e dinâmica,
Sempre haverá o imprevisto, o inacessível, o desvio e a desordem que impulsionam novas ordens. Conceber a realidade a partir dessa perspectiva pode reduzir a ilusão de que a pesquisa é um raio X da história da matéria, da vida, dos fenômenos, das sociedades, do homem (ALMEIDA, 2009, p.101).
28
Portanto, devemos estar cientes de que em “um universo que fosse apenas
ordem seria um universo sem devir, inovação e criação. Do mesmo modo, um
universo que fosse apenas desordem [...] seria incapaz de conservar a novidade,
evoluir e se desenvolver” (ALMEIDA, 2012, p. 33).
Ainda amparado em Almeida (2012, 2009), Gomes (2016a) e em Morin (2005,
2003), investi na religação dos saberes. Sobre o tema, Gomes (2016b, p. 108),
referindo-se a Morin, explica:
Ele nos fala de uma dupla teoria da cultura em que figuram duas linguagens, dois estados do espírito, a prosaica e a poética, cuja disjunção pelo paradigma cartesiano operou significativos danos para a compreensão do Antropos em sua integralidade, sujeito de razão e de imaginação. A proposta de religação dos saberes é justamente uma estratégia para realizar a rejunção dos saberes que foram cindidos e postos em oposição: os saberes da cultura científica (saberes científicos) e os saberes da cultura humanística (filosofia, artes, literatura, história, mito etc.).
Na esteira de Gomes (2016a, p. 114), “vemos que a religação entre
ciências/cultura científica e imaginário/cultura humanística nos possibilitaria melhor
pensar a condição humana”. Assim como a autora, investi na religação entre
imagens e ideias: “essa religação dos saberes pode, de fato, gerar um pensamento
não mutilante, capaz de compreender o homem em sua complexidade, natural e
cultural” (GOMES, 2016a, p.115).
Gilberto Velho (2013, p. 13), para superar os “estudos lineares e
compartimentados”, afirma que “o conhecimento é, por natureza, complexo, múltiplo
e cheio de incertezas. Quanto mais estudamos, mais surgem informações, ângulos,
experiências e olhares novos e originais”. Sendo assim, endosso que o trabalho
acadêmico, não excluindo este, é datado, situado, parcial e sempre inacabado.
Nesse contexto, opto por realizar uma pesquisa qualitativa atentos aos objeto
de estudo, aos objetivos e à questão de pesquisa. Assim, foram tomados os
seguintes cuidados para o seu desenvolvimento, conforme sugerem Bogdan e
Biklen (1994, p. 20):
• Ocorrer em um contexto natural, havendo um contato direto do pesquisador com a situação analisada;
• Ser rico em dados descritivos, devido à importância de não restringir a pesquisa a apenas uma ou mais variáveis, mas tentar buscar todos os elementos possíveis e necessários para entender o contexto, estudar a inter-relação entre eles, possibilitando, assim, a obtenção de dados em diferentes momentos do processo;
29
• Preocupar-se mais com o processo do que apenas com os resultados.
Para Bogdan e Biklen (1994), a pesquisa qualitativa, assim, se caracteriza: a)
a fonte direta dos dados é o ambiente natural, se constituindo o investigador como o
seu instrumento principal; b) a investigação qualitativa é tendencialmente descritiva,
não se resumindo a números; c) os pesquisadores envolvidos nesta abordagem de
pesquisa se interessam mais pelo processo do que simplesmente pelos resultados
ou produtos; d) a ênfase é dada ao significado atribuído pelos sujeitos aos
fenômenos estudados.
Segundo Chizzotti (2005), são várias as classificações das pesquisas
acadêmicas, e esta se insere na modalidade qualitativa, considerando o seu caráter
subjetivo que será vivenciado pelos pesquisados. Trata-se de um método que
permite descrever e explicar fenômenos e a obtenção do dado mediante o contato
direto do pesquisador com a situação que éobjeto de estudo.
Para Minayo (2001), a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de
significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a
um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não
podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.
Por fim, defino a estratégia investigativa de estudo etnográfico, descrita a
seguir.
O estudo tipo etnográfico
O estudo aproxima-se das ideias de Piorski (2016, p. 24) ao descrever sua
abordagem, conceituando-a:
Etnografia aqui é, portanto, proposição de encontro radical, primeiro com minha própria criança, depois com a do outro, a criança mesma. Muitas vezes a criança, esse outro, esse “objeto” de pesquisa, surgia mais plena, se presenteava pelas percepções de minha própria infância que se descortinava na paisagem do campo etnográfico sem avisar e encontrava com mais luz a intencionalidade dos brinquedos e dos meninos e meninas ali a brincar.
A descrição etnográfica do estudo de Piorski me provoca mais que
concordância, entendimento, aceitação, ela se enraíza em mim. Ela foi vivida nos
campos de minha pesquisa, em termos bachelardianos, repercutiu no meu ser.
30
Geertz (apud DAUSTER; TOSTA; ROCHA, 2012, p. 12) traz uma pontual definição
de etnografia que vejo como oportuna aqui:
O trabalho de etnografia, ou pelo menos um deles, é realmente proporcionar, como a arte e a história, narrativas e enredos para redirecionar nossa atenção, mas não do tipo que nos torne aceitáveis de nós mesmos, representando outros como reunidos em mundos a que não queremos nem podemos chegar, e sim narrativas e enredos que nos tornem visíveis para nós mesmos.
A etnografia é uma descrição do presenciado, vivido, participado, interagido,
sentido e imaginado. Uma forma de capturar narrativas de um mundo que parte é
construção de outros, mas grande parte é (re)construção e (re)significação minhas.
Por isso, mais do que conhecer “os outros”, partimos ao encontro deles, ou tornamo-
nos visíveis para nós mesmos. No contexto da pesquisa qualitativa, a etnografia é:
Entendida como a experiência prática e teórica vivida de modo participativo desde o trabalho de campo até a produção do texto monográfico – mostra uma forma alternativa de construir o objeto educação no contexto da pesquisa qualitativa (DAUSTER; TOSTA; ROCHA, 2012, p. 17).
O estudo do tipo etnográfico se fez aqui como recurso e estratégia de
participação na vida escolar das crianças, em busca de presenciar a manifestação
do seu onirismo e identificar os momentos que, por meio delas, dessem vazão ao
estado poético do espírito humano.
Instrumentos de pesquisa
No intuito de atingir os objetivos desta pesquisa, além da tradicional e
imprescindível pesquisa bibliográfica, foi adotada como procedimento de construção
dos dados a observação participante.
A observação, para Ludke e André (1986), é um dos instrumentos básicos
para a recolha de dados na investigação qualitativa. Na verdade, é uma técnica para
obter informação de determinados aspectos da realidade. Como vantagens para
esta técnica, posso referir o fato de a observação permitir chegar mais perto da
“perspectiva dos sujeitos” e a experiência direta ser melhor para verificar as
ocorrências.
31
Método de pesquisa
A análise dos dados foi sustentada pela leitura imaginativa de imagens,
inspirada na filosofia bachelardiana. Fiz uso tanto da imaginação material dos
elementos quanto da fenomenologia da imaginação, ambas do mesmo autor, pois
entendo que elas não são excludentes. Explica-nos Gomes (2016b, p. 250):
A propósito da filosofia poética bachelardiana, observamos dois momentos de seu pensamento, cada qual configurando distintas abordagens: a primeira voltada à imaginação dos elementos (ou imaginação da matéria); e a segunda à fenomenologia da imaginação.
A via bachelardiana da imaginação dos elementos está associada a noção
junguiana de arquétipo, donde “as imagens são antes sublimações dos arquétipos
do que reproduções da realidade” (BACHELARD, 2013, p. 3).
Ao estudar as sublimações, Bachelard as associa às “imagens dos quatro
elementos da matéria, dos quatro princípios das cosmogonias intuitivas”
(BACHELARD, 2008, p. 3). Os quatro elementos são, portanto, entendidos como
arquétipos, e “correspondem a diferentes formas de valorização da matéria”
(GOMES, 2016b, p. 251). Cito como exemplo uma meditação bachelardiana sobre o
arquétipo da água: “a água é objeto de uma das maiores valorizações do
pensamento humano: a valorização da pureza [...] A água acolhe todas as imagens
da pureza” (BACHELARD, 1989, p. 15).
Já na via bachelardiana da fenomenologia da imaginação não se trabalha
com a noção de arquétipos. O termo fenomenologia não é o herdado de Husserl:
trata-se de uma fenomenologia própria bachelardiana que “mantém a ideia de
estudar as imagens poéticas por si mesmas no momento que emergem na
consciência, porém resiste a qualquer intelectualização das imagens, oriunda da
análise fenomenológica” (RODRIGUES, 1999, p. 51).
Ao contrário dos estudos arquetípicos anteriores, Bachelard (2008) passa a
meditar a imagem na efemeridade de seu aparecimento numa consciência ingênua.
Nos livros A poética do Espaço (2008) e A poética do devaneio (2009), o exercício
dessa fenomenologia própria da qual refere-se Rodrigues (1999) ganha o lugar da
imaginação material dos quatro elementos. Diz-nos Bachelard (2008, p. 2-3):
32
Para esclarecer filosoficamente o problema da imagem poética, é preciso chegar a uma fenomenologia da imaginação. Esta seria um estudo do fenômeno da imagem poética quando a imagem emerge na consciência como produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade. Só a fenomenologia - isto é, a consideração do início da imagem numa consciência individual – pode ajudar-nos a reconstituir a subjetividade das imagens e medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem. Todas essas subjetividades, transubjetivadas, não podem ser determinadas definitivamente. A imagem poética é, com efeito, essencialmente variacional.
Neste estudo, a fenomenologia bachelardiana também é usada para
reconstituir a subjetividade das imagens, que são variacionais, mesmo porque
também fazemos “a leitura das imagens de forma direta [imaginativa], como requer a
fenomenologia da imaginação bachelardiana” (GOMES, 2016c, p. 258-259), e esta,
busca apreender a dimensão subjetiva da imagem e o seu movimento criador como
nos ensina Gomes (2016c) na esteira de Paiva20.
Escolha dos sujeitos da pesquisa
A população da pesquisa é um conjunto de elementos [...] que possuem as
características que serão objetos de estudo” (VERGARA, 1998, p. 50). No caso
deste estudo, a população é composta por crianças entre dois e seis anos
matriculadas na educação infantil na Escola Freinet e no Centro Infantil Municipal
Dona Liquinha Alves.
Para a escolha dos sujeitos, defini os seguintes critérios: a) ser crianças da
Educação Infantil; b) ser de escolas públicas ou de Organização Não
Governamental; c) aderir à pesquisa. Sobre isso, saliento que essa escolha se deu a
partir de conversas com os Gestores escolares, que forneceram nomes de turmas
infantis nas quais eu podia realizar o estudo, conforme os critérios estabelecidos.
Foram em média três meses de acompanhamento em cada escola pesquisada.
Primeiramente, na turma Ateliê de Educação infantil, com crianças entre dois e seis
anos na Escola Freinet no segundo semestre do ano de 2016; posteriormente,
pesquisou-se no primeiro semestre do ano de 2017 a Turma de Nível V do Centro
20 Gomes fundamenta-se na obra de 2005, Gaston Bachelard: A imaginação na ciência, na poética e na sociologia, de Rita Paiva.
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Infantil Municipal de Educação Dona Liquinha Alves, com crianças entre quatro e
cinco anos.
Sobre o lócus da pesquisa: seleção e características
Apesar de acontecer na fase Educação Infantil a maior domesticação do
pensamento e dos corpos, ela expressa mais abertamente a beleza e a esperança
daquilo que tenta-se reprimir. Se infância é lugar da não fala, é também espaço de
predomínio das imagens poéticas. A infância é nascente de imagens, sonhos e
poesia, que pode durar a vida toda, pois ela não se restringe a um tempo, mas a um
estado da alma que sonha, brinca, fantasia e trabalha. Gustavo Barcellos (2012,
p.11), inspirado em Jung, Bachelard e Hillman e na Psicologia Arquetípica, mostra
que nela existe um cultivo da alma, um “trabalho de fazer alma”.
A escola mais rigorosa, mais domesticadora e repressiva, não conseguiria
eliminar a alma que sonha. Talvez, até consiga exilá-la, mas nunca findará. Restará
sempre uma saudade, uma ausência, uma vontade e quanto mais o aluno se distrair
e se perceber encantado com uma música, um sorriso, uma poesia, ou qualquer
outro sonho acordado, pronto! Ainda que brevemente, fez-se o reencontro.
Portanto, em todas as escolas, sem exceção, existirão exemplos dessa “alma
que sonha”, porque ela não está na escola, está nas pessoas e muito especialmente
e com maior fluidez encontra-se nas crianças. Transbordam nas infâncias. Na
dissertação de mestrado intitulada Infância onírica na leitura de Menino de Engenho
e O Ateneu, Batista (2015) demonstrou que não apenas nas brincadeiras e
meninices do Engenho Santa Rosa havia devaneio poético, mas também no
ambiente ascético do Colégio Ateneu.
Ressalto que em qualquer lugar onde exista ou desperte-se infâncias oníricas,
haverá devaneio poético em almas que sonham. Certamente, as escolas são, ou
deveriam ser, lugares muito férteis para os sonhadores, principalmente entre as
crianças na fase de Educação Infantil que facilmente conseguem embaralhar real e
irreal, portanto, as experiências compartilhadas nesse texto se somam a
experiências de outros docentes, de pais, de crianças, que emergem diurnamente
em instituições escolares em todo mundo.
Logo, certamente poderia ter escolhido qualquer colégio, em especial, as
escolinhas de Educação Infantil, mas devido à necessidade de cumprimento de
34
prazos acadêmicos, bem como conveniência da pesquisa, foram selecionadas
escolas indicadas por terem um perfil com maior consonância com o que espera-se
neste trabalho. Escolas que se permitem, ou caminhem em direção a uma educação
plural e aberta, mais sonhadora também.
Para as escolas, os critérios de escolha foram: a) atender crianças da
Educação Infantil em turmas de pré-escola; b) ser acessível ao pesquisador; c)
aderir à proposta da pesquisa.
Os critérios de escolha do campo empírico foram definidos a partir das
questões de ordem política e didático-pedagógicas já colocadas, além da motivação
acadêmica do pesquisador em aprofundar estudos no âmbito do cenário de
pesquisa aqui explicitado.
Igualmente, minhas decisões nesse sentido partiram da compreensão de que
a Universidade é uma instância de produção e socialização do conhecimento que
deve dar uma contribuição efetiva para a elevação progressiva dos patamares de
qualidade da Educação Básica. Assim sendo, como doutorando do Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais, na UFRN, me apraz empreender esforços para
contribuir, ainda que de forma incipiente, para o cumprimento dessa função social de
uma universidade pública, inserida no Nordeste brasileiro, onde o sucesso escolar é
possível, apesar das adversidades e da diversidade que permeiam o cotidiano de
nossas escolas públicas.
Nesse contexto, foram selecionados: o Núcleo de Educação Infantil-
NEI/UFRN, como um piloto da pesquisa; a Escola Freinet, de caráter privado,
mantida por uma Organização Não Governamental, e o Centro Infantil Municipal
Dona Liquinha Alves, os quais serão caracterizadas mais adiante.
ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO (OU BRICOLAGEM TEXTUAL)
“É fácil pensar, Difícil é agir, mas agir segundo o próprio pensamento é o mais difícil”.
(Goethe)
No capítulo primeiro, intitulado “Todo menino é um Rei”, sedimento o lugar da
minha fala me colocando no estudo e declarando seu caráter também
autobiográfico. Portanto, este capítulo inicial é um exercício e tentativa de dar a
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devida transparência às pulsões que colaboraram na composição desta tese. Outra
dimensão do capítulo é de reconhecimento da colaboração imprescindível do grupo
orientado pela professora Ana Laudelina F. Gomes na tessitura do texto e na
compreensão da infância onírica enquanto categoria a ser investigada.
“Desencanto, infância e reencanto” é o segundo capítulo e busca contar
brevemente a história da infância moderna como uma invenção resultada e
resultante de um processo de racionalização e “fabricação” da Modernidade
Ocidental. Para isto, pensa a relação da pedagogia moderna no contexto de
desencantamento do mundo e o papel da Modernidade enquanto proponente do
paradigma societário ainda hegemônico. Na segunda parte do capítulo, almejo
valorizar formas mais poéticas de compreender o mundo e desfrutar dele, mostrando
que a humanidade é capaz de dominar o idioma da razão e também do sonho
(poesia) – defendendo ainda estratégias para equilibrar e desconstruir o domínio da
racionalidade científica sobre formas mais encantadas de viver.
No capitulo três, “Campo escolar: infâncias oníricas e devaneios de escrita”,
compartilho reflexões relacionadas a infância onírica expressa no comportamento
dos discentes, bem como sobre os espaços poéticos e vivências observadas nas
escolas pesquisadas. Considero este o capítulo mais importante da tese, por ser o
lugar onde compartilho os resultados da pesquisa de campo nas escolas.
No quarto capítulo “O campo das minhas infâncias: imaginação, infância
onírica e poesia”, fiz uso das minhas lembranças sonhadas e dos devaneios
poéticos suscitados pelas imagens poéticas que repercutiram em mim e em minha
infância onírica durante a tessitura do texto.
E, por fim, “Dialogando entre escolas e história de vida: o cogito sonhador e
os jardins de infâncias” é o capítulo final da tese. Nele articulo os fios dos dois
capítulos anteriores entre as escolas e minha infância onírica lembrada, sonhada e
imaginada e proponho uma educação experienciada da infância onírica, a qual
colaboram ou poderiam colaborar para uma educação mais poética, mais
encantada, em consonância com a ideia bachelardiana de educar a também
imaginação (BACHELARD, 2009; WUNENBURGER, 2005; GOMES, 2016a, 2016c).
Enfim, desejo ao leitor que acompanha este texto que também (re)encontre sua
infância onírica nas linhas dessa escrita. Passeie (re)sonhando pelas lembranças,
criando novos desfechos e devaneando com as imagens poéticas que nutriram e
nutrem sua infância onírica como potência de vida.
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CAPÍTULO I
TODO MENINO É UM REI
Fig. 2 – Atividade de criança da Escola Freinet
Fonte: Acervo do Autor (2016)
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TODO MENINO É UM REI
“No escrever, o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo, ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras.”
Manoel de Barros
“Todo menino é um rei” (RUFINO; LUIZ, 2017, s/p). Certamente, rei de seus
próprios sonhos, pois a criança que não consolidou em si a impressão de sua
sociedade através da cultura e socialização, tem liberdade para inventar mundos
racionalmente impossíveis, “Menino sonha com coisas que a gente cresce e não vê
jamais” (idem).
Particularmente, nossa sociedade, herdeira do paradigma da civilização
moderna, está tencionada e voltada para racionalização e secularização do mundo,
acentuando a domesticação dos sujeitos. E é na infância que se inicia esse perverso
processo que dura a vida toda. Processo este que radicaliza a fragmentação da
nossa unidualidade, hierarquizando o prosaico sobre o poético na vida ocidental
(MORIN, 2005, 2003; ALMEIDA, 2012, 2009, 2006; GOMES 2016a).
Com todo respeito, me perdoem os partidários de uma produção acadêmica
plenamente ascética e isenta, mas esse estudo não seria possível nesses moldes.
Até porque continuo concordando que “ainda que tenhamos de considerar a
necessidade de pôr em diálogo nossas crenças e visões de mundo, é sempre a
partir de um padrão psico-subjetivo que compreendemos o mundo a nossa volta"
(ALMEIDA, 2006, p. 287). Na esteira de Prigogine, Almeida (2006, p. 287), nos
aponta que “a tríade ciência, razão e paixão é uma contingência do processo criativo
na ciência”.
Ciente que devo buscar um caminho acadêmico com zelo e rigor, confesso
que este estudo é uma caçada aos meus propósitos mais íntimos ligados à
educação, estrada onde escolhi trilhar minha trajetória profissional e de vida, pois
como lembrou Montaigne, “sou eu mesmo a matéria do meu livro” (MONTAIGNE
apud BIRCHAL, 2007, p.123). Essa postura epistemológica é uma das proposições
fundamentais do pensamento complexo, a implicação do sujeito no conhecimento
(ALMEIDA, 2012).
Assim como o poeta e cantor Milton Nascimento, apesar de otimista, me vejo
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Preso a canções Entregue a paixões que nunca chegam ao fim Vou me encontrar longe do meu lugar Eu, caçador de mim (2017, s/p).
Portanto, devo reconhecer o caráter autobiográfico desse estudo na medida
em que resgata um lugar onde memória e imaginação não se deixam dissociar
(BACHELARD, 2008, 2009). Diz nosso filosofo sonhador: “A imaginação é uma
faculdade tão atual que suscita “variações” até nas nossas lembranças de infância”
(BACHELARD, 2009, p.101).
Um projeto autobiográfico ciente de que “partindo do estudo de si mesmo, de
‘um homem’, alcança o ensaísta, o conhecimento ‘do homem’” (MILLIET apud
ALMEIDA, 2012, p. 2221). Faço aqui uso das minhas memórias como estratégia de
meditação de imagens voltadas à minha infância onírica, e também como campo
epistemológico de pesquisa, de autoanálise e reflexão dessas imagens, até porque
compreendo na esteira de Santos (2006, p. 157) que “o conhecimento é
interconhecimento, é reconhecimento, é auto-conhecimento”, levando em conta as
limitações do exercício de reflexão autobiográfica, ainda que se tente ao máximo ser
fiel às memórias, às narrativas e histórias.
“Compartilho a ideia de que as narrativas de experiências pessoais fazem
parte de uma contingência criativa na produção do conhecimento e
consequentemente, transbordam os limites da produção acadêmica de maneira
ocultada ou assumida” (SALES, 2010, p. 1). Na pesquisa de caráter autobiográfico o
sujeito se coloca na pesquisa e assume ônus e bônus, limitações e possibilidades,
pois, como diz Pessanha (1994, p. v), o conhecimento científico não é “jamais
retidão plena”, mas “sempre permanente retificação”.
Contudo, ainda “é fato incomum que intelectuais falem de si. Escondem suas
identidades e seus duplos por meio da suposta assepsia de conceitos e teorias”
(CARVALHO, 2003, p. 99). Portanto, reconhecemos que “todo conhecimento é
parcial e situado” (SANTOS, 2006, p. 153), inclusive o que faz uso de recursos
autobiográficos, até porque “os fatos empíricos por si só são desprovidos de sentido”
(ALMEIDA, 2008, p. 366), este uso faz parte do ofício e tessitura do pesquisador que
usa da biografia, autobiografia e devaneios poéticos que despertam sua infância
onírica, como estratégia de pesquisa, para construir uma narrativa ao mesmo tempo
21 Almeida (2012) cita o prefácio do (Tomo I) da obra Ensaios (1987) de Sérgio Milliet.
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rigorosa e aberta, que possibilite articular o sensível e o racional. Pois cremos, assim
como Gomes (2016a, p. 110), que “é preciso dialogizar as imagens e as ideias
através das expressões do imaginário artístico e literário, pelo romance, pela
dramaturgia, pelo cinema, pela poesia”.
Nesse sentido, deixo como rastro para imersão nessa narrativa que
contaremos a seguir a canção “Todo menino é um rei”, de Nelson Rufino em
parceria com Zé Luiz, que em 1978 chegou ao sucesso na voz de Roberto Ribeiro.
Além deste, a música foi interpretada por uma constelação de grandes nomes da
Música Popular Brasileira, dentre os quais cito: Beth Carvalho, Emílio Santiago e
Diogo Nogueira:
Todo menino é um rei Eu também já fui rei Mas quá... despertei Por cima do mar (da ilusão) Eu naveguei (só em vão) Não encontrei O amor que eu sonhei Nos meus tempos de menino Porém menino sonha demais Menino sonha com coisas Que a gente cresce e não vê jamais Todo menino é um rei Eu também já fui rei Mas quá... despertei A vida que eu sonhei No tempo que eu era só Nada mais do que menino Menino pensando só No reino do amanhã Na deusa do amor maior Nas caminhadas sem pedras No rumo sem ter um nó (RUFINO; LUIZ, 2017, s/p)
A imaginação é caminho sem pedras e sem nó, fluido. É a “terra” de sonho e
poesia onde a infância é comandante em nau onírica. Barros (2010, p. 459) ensina
que “com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”. Por
meio da imaginação, menino/a descobre-se majestade de encanto e onipotência, e
“viu que podia fazer peraltagens com as palavras” (BARROS, 2010, p. 470).
A imaginação na infância onírica por meio do devaneio poético, seja suscitado
pela observação de crianças no espaço escolar por elas poetizado, seja
reencontrada em imagens que se ligam à infância temporal ou atemporal do
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sonhador, são capazes de nos reconectar com uma infância nossa, atual e jamais
antes vivida. Essa infância permanente que continua fluida pelo devaneio poético
pode potencialmente amaciar a rigidez da vida demasiadamente racionalizada e
desencantada (pelo mundo da produção), pois ela potencialmente tem a capacidade
de poetizar o ser, retirando suas durezas, armaduras conceituais, e ao final e ao
cabo, reencantar seu mundo.
Se todo menino é mesmo um rei pela sua imaginação, afirmo assim como o
poeta, “eu também já fui rei”. Saudosa infância, tempo do meu reinado imaginário
sobre a racionalidade, cito versos desencantados pela ciência asceta, que se
autoproclamou como alimento da alma nos últimos séculos: “nem só de pão viverá o
homem” (EVANGELHO, 2009, p. 1287), conforme o Evangelho segundo Mateus
(Mat 4,4), ouso perguntar a minha alma: “Você tem fome de quê? Você tem sede de
quê?”, como perguntou o compositor Arnaldo Antunes em seu poema “Comida”
(2016 s/p).
Certamente nem só de razão vive a humanidade, nem só de sonhos também,
e que assim seja, mas é assim que é? A relação razão versus sonho é oposta e
complementar, contudo, cada vez mais recalcamos22 a segunda em detrimento da
primeira e fragilizamos nossa condição humana por conta disso. Assim nos filiamos
à afirmação de Gomes (2016a, p. 108) apoiada em Wunenburger (2003):
É preciso parar de antagonizar o imaginário e a racionalidade, pois são esferas psíquicas não antagônicas, ao contrário do que nos fez crer a concepção de racionalidade da ciência clássica. Por isso, o filósofo acredita que é preciso que atualizemos nossa concepção de racionalidade incorporando uma “racionalidade aberta e complexa, cujos processos se assemelham de forma paradoxal às leis e às obras do imaginário”.
Para Morin (2005, p. 58), o homem é unidual “o ser humano é complexo e traz
em si, de modo bipolarizado, caracteres antagonistas [...] O homem da racionalidade
é o mesmo da afetividade, do mito e do delírio (demens). [...] O homem empírico é
também o homem imaginário (imaginarius)”. A unidualidade do pensamento humano
de um lado é representada pelo pensamento empírico/técnico/racional, do outro pelo
simbólico/mitológico/mágico (MORIN, 2008); prosaico em oposição e
complementaridade ao poético (MORIN, 2011); e/ou a cultura das humanidades e a 22 Termo utilizado na Psicanálise, desenvolvido por Sigmund Freud, que significa “um processo que obriga as idéias e as representações pulsionais a permanecerem no inconsciente. Esse funcionamento se estabelece para evitar o desprazer que pode ser gerado pelo retorno deste material, bem como o desequilíbrio psicológico do sujeito.” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 647-649).
41
cultura científica (MORIN, 2003). Acreditamos, diante disso, que a nossa sociedade
recalca as potencialidades ligadas ao demens, imaginarius, poeticus, em detrimento
do sapiens, empíricos, prosaicus. Na esteira de Rodrigues, cremos que esse
processo se inicia muito cedo na infância escolar, eles nos aponta que
A “linguagem de escola” opera um esquecimento do caráter imaginário da linguagem, na medida em que não busca perceber o conteúdo (de como a história imaginária brota), mas a forma (gramatical), mostrando o quanto a gramática é a mortalha da linguagem metafórica. [...] A linguagem escolarizada aprende as “lições de coisas”, refere-se a coisas estáticas e não à dinâmica do real, enquanto que a leitura de poetas é uma “lição de imagens”. A linguagem escolarizada tende a matar o talento que a criança tem em produzir imagens e sufoca suas tentativas de criação de uma linguagem própria e onírica, tornando esta situação um hábito. [...] O preço que a criança paga pela escolarização pode vir a ser a perda inconsciente da capacidade de espantar-se com o mundo e com a linguagem
(RODRIGUES, 2013, p. 179).
Todavia, sinto sede e fome de sonho, de infância. Por isso parto ao encontro
do que Bachelard (2009) chama de infância permanente (onírica), uma capacidade
de manter essa infância que é ‘poetizante’ na nossa alma. Portanto, vejo que minha
vida acadêmica e a relação com a educação é a busca por uma humanidade mais
plena, menos desequilibrada. Para isso, precisamos fazer o percurso oposto da
modernidade ocidental e nos reencantarmos, e reencantar o mundo. Mas como?
Precisamos aprender com os maiores especialistas em sonho e poesia, com as
crianças. Como afirmou Rubem Alves (2005, p. 24): “É preciso ter as crianças por
nossas mestras”.
Para situar possíveis leitores, faço uma breve contextualização da trajetória
acadêmica que me trouxe até aqui, o que evidencia, paulatinamente, minha
obsessão cognitiva pela educação, contraditória e esquizofrenicamente, espaço
onde domestica-se o sonho/imaginação e espaço onde através de pulsões da alma
de infante o sonho é resiliente23.
Ainda meditando a canção dos compositores Nelson Rufino e Zé Luiz (2017,
s/p). me pergunto: Mas quá, despertei? A expressão regionalista ‘mas quá’ abre
espaço para dúvida: Ele despertou ou está de brincadeira? É necessário despertar
para escrever um trabalho acadêmico, buscar os elementos racionais estruturados
23 Para Boris Cyrulnik, resiliência é a “aptidão para aguentar e retomar um desenvolvimento em circunstâncias adversas [...]” (2004, p.07), esse conceito inicialmente era aplicado à engenharia naval, e através do autor citado, foi instrumentalizado para uso em outras áreas de conhecimento.
42
metodologicamente, alicerçados em autores que darão credibilidade ao estudo e ser
aceito pela comunidade científica, seus pares.
Para tanto, despertei! Porém, não esqueci meus sonhos. Estou convicto da
necessidade de ‘incentivar o sonho’. Enquanto docente, entendo que se faz
necessário ensinar não apenas a razão, mas também a imaginação. Ensinar a
imaginação é deixar sonhar sonhos despertos, buscar o devaneio e se deleitar com
ele. Acordei para a necessidade do sonho, ‘mas quá... despertei’. Por isso, uma
estratégia metodológica é operar não apenas com o conhecimento sistematizado e
pesquisado sob as demandas deste estudo, mas também me deixar devanear
poeticamente para, a posteriori, trazer contribuições pouco convencionais para a
ciência.
No fim da graduação em Ciências Sociais, em 2009, orientado pela
Professora Dra. Dalcy da Silva Cruz, elaborei uma monografia que evidenciava
minha relação de amor e ódio com a instituição escolar. Nesse navegar monográfico
destaquei alguns espaços de aprendizagem “não escolares” em uma perspectiva
também autobiográfica, demonstrando como a ludicidade, afetividade e sedução se
tornavam condutores para um aprender mais interessante em relação à escola
ascética (SALES, 2009) e ‘bancária’ (FREIRE, 2004).
No Mestrado, orientado pela Professora Dra. Ana Laudelina Ferreira Gomes,
procurei, enquanto profissional da educação, contribuir para a construção de uma
escola mais aberta24, onde a ditadura dos conceitos cedesse um pouco de espaço
para outras formas mais “envolventes” de provocar o desenvolvimento dos
discentes. Daí surgiu a ideia de trabalhar com canções como caminho/estratégia do
ensino-aprendizagem na disciplina de Sociologia, no Nível Médio. (SALES, 2012).
O uso das canções no ensino, que inicialmente apareciam como imagens que
são tomadas como representações imagem/representação e/ou ilustrações de um
24O termo Ciência aberta diz respeito a uma ciência que "não pode ser considerada mais redentora da humanidade, segundo a acepção lhe foi conferida pela Ciência Clássica, que era a detentora do saber absoluto e, não passível de mudanças, mas na concepção de uma Ciência aberta, direcionada para novos caminhos, abarcando a complexidade como realidade para compreensão da natureza, colocando, desse modo, o ser humano como sujeito e objeto no conhecimento de si próprio e, depois, do mundo”(CALUZI; ROSELLA; 2003, p 1-2). Na esteira dessa ciência a escola se pretendia porta voz das verdades científicas, e as práticas educativas modernas, hegemonicamente passam ser sinônimo de redenção para os indivíduos, entendendo que ela é um meio de ascensão sócio-individual (LUCKESI, 1994). Contudo, falar de uma escola aberta, é falar de uma educação complexa (MORIN, 2014), que religue o que foi separado, abrindo espaço para formas de ensino/aprendizagem menos tradicionais.
43
dado conteúdo, passou a ser suscitador de devaneios poéticos25 (BACHELARD,
2008, 2009) e mediado, levando em conta seu potencial imaginativo e de
criação/invenção.
Portanto, a última pesquisa me mostrou um caminho para esta tese que parte
da emergência de reencantar o ser, a educação e o mundo. Mas por onde começar?
Nas leituras bachelardianas vemos que a imagem poética provoca o ser para
devaneios (poéticos) sempre felizes. Dentre os devaneios poéticos, Bachelard
dedica um capítulo do livro A poética do devaneio (2009) aos ‘devaneios voltados à
infância’. Esse capítulo foi grande fonte de inspiração, me fazendo pensar sobre o
processo de ‘invenção’ da infância vivido no ocidente moderno (o que veremos no
próximo capítulo).
Assim, Bachelard (2009) fala sobre a infância permanente (onírica), esse
estado atemporal de alma do humano sempre feliz, onde ele sonha, brinca, imagina,
poetiza e se reinventa. Daí nossos estudos se voltaram a esse estado de infância
sonhada, e cremos que ela tem a capacidade de poetizar a vida e encantar o mundo
do sonhador, além de fazer que o ser tenha uma postura não menos racional diante
da vida, porém, mais encantada e poética.
AS INFÂNCIAS POÉTICAS QUE DESAGUARAM EM MIM
“Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.”
Oscar Wilde
A escola onírica praticada nas orientações coletivas da professora Ana
Laudelina F. Gomes no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFRN,
me proporcionou a emergência de muitas imagens poéticas voltadas à infância
(sonhada, imaginada, lembrada e (re)criada), assim, não poderia deixar de, ainda
que sucintamente, descrever algumas ressonâncias e repercussões de trabalhos
discutidos em nosso grupo. Antes, é importante destacar os termos bachelardianos
‘ressonância’ e ‘repercussão’ que serão muito caros de agora em diante até a
conclusão deste texto.
25 Devaneio poético é uma categoria de Gaston Bachelard (2008, 2009) e diz respeito ao devaneio que emerge no ser provocado por imagens poéticas.
44
Eles dizem respeito a uma relação implícita entre imagem e leitor, “a propósito
disso, na epifania da imagem poética bachelardiana, artista e leitor se dialogizam
duplamente” (GOMES, 2010, p. 86)26. Na ressonância interagimos com as imagens
produzidas pelo emissor sem grande adesão, pretensão, ou filiação; na repercussão,
compartilhamos de um subjetivo sabor de criação, sentimos que somos também
compositores tamanha é a confluência entre a imagem poética o devaneador.
Compartilhamos do sentimento de autoria muitas vezes, criando imagens
completamente novas (BACHELARD, 2008).
Compartilho a ideia de Silva (2008, p. 10)27, quando fala,
Encanto-me que a ideia de escrever e ler são rituais mágicos. Inicialmente, quem escreve transubstancia sua carne e seu sangue em palavras. Posteriormente, quem lê transforma as palavras lidas em sua própria carne e seu próprio sangue. Um ritual antropofágico. O escritor se oferece para ser comido, isto é, apropriado pelo corpo do leitor. Escrever e ler, portanto, são um ritual eucarístico: Comer a carne e beber o sangue. O produto dessa refeição irá circular no corpo daquele que se propõe a ler.
As leituras feitas na nossa escola sonhada, com muito esmero, a propósito,
repercutiram em mim. Tornaram-se mais do que minhas (também), se tornaram ‘eu’.
Mais que a escrita morta, fecundaram-se em vida (nova) e foram muito além das
palavras ditas.
Fernando Pessoa, fala através de seu heterônimo Alberto Caeiro, ou o Alberto
Caeiro (2017, s/p) vivente em Pessoa escreve:
Olá, guardador de rebanhos, Aí à beira da estrada, Que te diz o vento que passa? Que é vento, e que passa, E que já passou antes, E que passará depois. E a ti o que te diz? Muita cousa mais do que isso. Fala-me de muitas outras cousas. De memórias e de saudades E de cousas que nunca foram. Nunca ouviste passar o vento. O vento só fala do vento.
26Gomes na esteira de Bachelard (2013a, p. 192) nos fala: “[...] a imagem poética não se traduz pelo que aparece à nossa percepção. Por um lado, ela é processo e resultado da imaginação do sujeito criador e de seu trabalho demiúrgico sobre as matérias de seu devaneio [...]. Por outro lado, ela é também processo e resultado de uma fruição estética do leitor, estética cocriadora de sua poesia”. 27Anaxuell Fernando Silva foi do PPGCS-UFRN e participou do grupo de orientandos da professora Ana Laudelina nos anos de 2007 e 2008.
45
O que lhe ouviste foi mentira, E a mentira está em ti." (Alberto Caeiro, in O Guardador de Rebanhos - Poema X)
Ao contrário da percepção limitada do que pensa ‘O guardador de rebanhos’
de Caeiro, o que está em mim não é a minha mentira, mas minha verdade.
Concepções mais desencantadas do mundo também se fundamentariam apenas na
experiência empírica e indução que submeteriam ao vento. Não é só o guardador de
rebanhos que se limita à realidade, muitas vezes os guardadores doutos das letras
também.
Sobre as leituras antropofágicas na escola onírica, elas me falaram de ciência
e sabedoria, mas também de memória, de saudades e de “coisas que nunca foram”
(devaneios irreais que encontravam na minha consciência acolhimento). Enfim, sigo
contando e ‘(in)ventando’ esse relato na busca de revelar fragmentos que ajudaram
a suscitar e alimentar minha infância onírica. Assim, parto ao encontro de outras
infâncias oníricas apresentadas em estudos na nossa escola sonhada. Todavia, ao
ler sobre as infâncias oníricas alheias reencontro a minha própria infância onírica.
Contudo, não caberia enumerar e comentar todos os trabalhos de todos os
colegas do grupo, minha escolha se fez por um critério exclusivo de afinidade
temática (infância onírica dentre os trabalhos que li). Porém, certamente as demais
leituras suscitaram em mim, muitos devaneios, contribuições e aprendizagens.
Ressalto que Alecrídes, Analis, Danielle, Gênison, Genilson, Karla, Isabel, Marcelo e
Mirian28, também estão tão vivos nas obras sucintamente comentadas, quanto na
minha escrita, pois participaram do mesmo ritual “antropofágico e eucarístico”
(SILVA, 2008) do grupo, e de retorno, contribuíram com suas palavras
transubstanciadas da sua própria carne e sangue.
A poeta de infâncias e a fuga do asilo
Michelle Ferret Badiali, em Por uma poética na velhice asilar: Escrevendo
casas oníricas (2016), trata de temas cada vez mais importantes na ordem do dia de
28Alecrides Jahne Raquel Castelo Branco de Senna (2012); Analis Lourdes da Costa; Danielle de Medeiros Sousa (2016); Genison Costa de Medeiros (2015); Genilson de Azevedo Farias (2013); Karla Danielle da Silva Souza (2015); Isabel Cristine Machado de Carvalho; Marcelo Silva de Andrade; e Míriam Flávia Medeiros de Araújo (2017). Além dos colegas autores que faço uma releitura nesse estudo: Ana Laudelina Ferreira Gomes (2013b); Daniella Lago Alves Batista de Oliveira Eustáquio (2015); Evaneide Maria de Melo (2012); Michelle Ferret Badiali (2016); Ozaías Antônio Batista (2015).
46
nossa sociedade, dentre os quais a velhice, a morte e a condição asilar, portanto,
temas cheios de tabus, preconceitos e invisibilização. Conta Badiali (2016, p. 48)
sobre as senhoras em situação asilar colaboradoras de sua pesquisa,
Quando elas começam a contar suas histórias, desde a infância até chegar ao Lar, a vida transformou-se completamente e o próprio asilo é a representação desse deslocamento. Um universo paralelo, completamente novo e desconhecido de todas as referências anteriores de vida.
Engenhosa e poeta que é, em meio a histórias de abandono, tristeza e
ilusões, ela, por meio de oficinas oníricas de poesia (algumas inspiradas nos quatro
elementos arquetípicos estudados por Bachelard, outras no espaço poético
suscitado na fenomenologia da imaginação bachelardiana) permitiu a um pequeno
grupo de senhoras que transcendessem a realidade, e encontrassem em seus
devaneios a tão sonhada fuga do asilo. Fugiram provocadas pela
poeta/pesquisadora e mediadora das oficinas e diálogos, pela poesia suscitada
como passaporte ao devaneio, pelas memórias sonhadas das participantes. Foram,
portanto, aos locais mais seguros de sua existência, às suas casas oníricas.
Tornaram-se novamente meninas sonhadoras e retornaram à casa natal. A infância
onírica das senhoras foi restituída como potência de vida feliz. Elas acabaram por
levar muito mais que lembranças para as oficinas.
No Lar da Vovozinha as entrevistas em profundidade, como foi dito antes, serviram não só para conhecer suas histórias de vida e seus anseios e estabelecer confiança, mas as oficinas tiveram como estímulo elementos importantes citados por cada uma delas. [...] Elza trouxe a poesia “A Casa” de Olavo Bilac que remetia à sua adolescência e seu desejo de permanecer na casa da infância, Janete lembrou da Alfazema que sua mãe utilizava e também a banhava antes de dormir, “Socorro” não trouxe elementos, Dona Rosa trouxe a canção Roseira e Francisca lembrou das linhas coloridas de costura (BADIALI, 2016, p. 70).
E como resultado desse achadouro de sonhos de criança, Badiali (2016, p.
78), citando A poética do espaço (2008) de Bachelard, nos explica:
A infância é certamente maior que a realidade. ‘É no plano do devaneio e não no plano dos fatos, que a infância permanece em nós viva e poeticamente útil. Por essa infância permanente, preservamos a poesia do passado’. Para ele, habitar a casa em que nascemos é mais que habitá-la pela lembrança. É viver na casa desaparecida tal como ali sonhamos um dia.
47
Michelle Ferret, como é mais conhecida na UFRN, é uma restauradora de
infâncias oníricas, seu texto, assim como sua intervenção no Lar da Vovozinha, ou
com os poemas inspirados nas discussões de orientação, mostram que não há
prisões que detenham os sonhos voltados à infância, não há abandono que resista à
feliz lembrança sonhada daqueles que nos amaram quando éramos crianças. Badiali
(2016) revela em seu texto que a canção e o cheiro de alfazema meditadas podem
devolver nosso tempo de acalentados. Que os devaneios poéticos são fios coloridos
que tecem com novas linhas a infância (onírica) permanente em nós. E que ela é
desperta em nós pela poesia.
O menino das literaturas
Ozaías e Genilson são os meus colegas mais antigos do grupo de
orientandos da professora Ana Laudelina, estamos juntos, os três, desde o
Mestrado. Em certa medida, Ozaías Batista, dentre os colegas, foi o que mais me
ajudou e ensinou. Sua leitura sempre pontual e sensível; e o seu rigor acadêmico
característico possibilitaram-me muitos aprendizados, algumas discordâncias e uma
profunda admiração. Apesar dele ser mais novo que eu, o sentia como o irmão mais
velho do grupo.
Confesso que sinto que amadureci academicamente nesses 6 anos de
trajetória no PPGCS-UFRN (sei que a caminhada ainda é longa), mas Ozaías
sempre me pareceu maduro, pronto. Contudo, nos últimos anos vejo uma mudança
profunda no meu caro colega. Sem perder seu bom humor, disciplina e rigor, ele
vem cada vez mais se ameninando. Explico! Batista, como as regras da ABNT o
conhecem, pesquisa desde a monografia personagens infantis em livros da literatura
brasileira. Vimos na sua escrita e em suas falas uma infância poética que foi se
nutrindo e se tornando cada vez mais bela. O acadêmico pronto deu lugar (também)
a um lindo menino sonhador, que ora no engenho, ora no Ateneu, outras vezes sob
a sombra de um pé de laranja lima, devaneou, trouxe lições dos espaços poéticos
(literários) e mostrou que é possível encantar a ciência sem cientificizar a literatura.
No Mestrado, Batista estudou Infância onírica na leitura de menino de
engenho e O Ateneu (2015), e mostrou que “através da interlocução razão-
imaginação podemos reconstruir uma vida que esteja para além do cotidiano
prosaico, fazendo do poético uma força propulsora de reinvenção da realidade”
48
(BATISTA, 2016, p.176). Assim como faziam os seus meninos literários. Vejamos:
“Os meninos não eram sujeitos passivos diante da realidade desfrutada. Ao
contrário, reconstruíam o real vivido fazendo uso da imaginação” (BATISTA, 2016, p.
179).
Lendo a escrita de Batista (2015, 2016), aqueles meninos passaram a
também me habitar e me vi por vezes no engenho que remontava aspectos
interioranos da minha própria história, bem como nos meus ateneus cheios de
regras e fugas. Conclui Batista (2015, p. 87):
Através das narrativas de Menino de Engenho e O Ateneu, ensaiei uma interlocução entre os saberes científico e literário na construção do conhecimento, visando uma interpretação ampliada do homem, da cultura e da sociedade – uma vez que o diálogo entre a ciência e a literatura viabiliza uma leitura que extrapola o campo disciplinar imposto pela racionalidade científica moderna hegemônica.
Penso que através de Sérgio do Ateneu e Carlinhos do engenho Santa Rosa,
assim como com Zezé em Meu pé de laranja lima, que é o livro de seu estudo no
doutorado, Batista mostra que a nossa infância onírica ao invés de dormir com a
leitura literária, pode acordar e sair para brincar com os personagens. E no “retorno”,
jamais seremos os mesmos, pois, “quando o sonhador está inteiramente entregue
ao devaneio, não há hesitação, simplesmente ele se lança sem titubeio na
poeticidade da imagem sonhada” (BATISTA, 2018, p. 99).
Recordações sonhadas da cigarra dos trópicos
Daniella Eustáquio também foi uma leitura de grande valor para este estudo.
Para além do fragmento do seu texto que escolho para trazer sua colaboração para
um entendimento (meu) mais amplo da noção bachelardiana infância permanente
(onírica), destaco a didática com que escreve e apresenta suas ideias. Ela desossa
as compreensões possibilitando que se deguste melhor tanto dos conceitos, quanto
as imagens poéticas (literárias) do seu texto. Com uma escrita que me traz uma
compreensão ampliada de textos lidos, encaixando peças soltas e possibilitando o
olhar mais totalizador.
Palmyra Wanderley, a Cigarra dos Trópicos: imaginários culturais e mapa
onírico em “Roseira Brava” (EUSTÁQUIO, 2015) é um estudo que não se resume à
49
compreensão do imaginário sociocultural que a poeta e escritora potiguar Palmyra
Wanderley estava inserida, é um relevante estudo bachelardiano que lê as imagens
(poéticas) literárias da escritora, fazendo/sonhando os lugares poéticos da cidade de
Natal que Palmyra reescrevia em poema, como observado pela própria autora.
Pode-se dizer que a obra “Roseira Brava” nos permite ter outras leituras, além daquelas já estudadas. É um livro que trata de um espaço emocional dentro dos espaços geográficos dos bairros de Natal, como também permite ao seu leitor acessar a infância sonhada. Através dos espaços vividos pela poetisa que me consentiram reviver a imaginação, renovando os meus sonhos, criados dentro de mim; ou, poderão ser concedidos ao seu próximo leitor, espaços que tragam a infância feliz, proteção e segurança. Para isso, deixei-me ser invadida pela obra para perceber essa leitura, tomar consciência do quanto que, a partir da criação poética, consegue-se ver o mundo por outra perspectiva (EUSTÁQUIO, 2015, p. 129).
A autora nos conduz entre as lembranças poetizadas e sonhadas de Palmyra,
provocando à nossa própria infância onírica a ser (re)sonhada e (re)vivida. Diz ela:
“Basta relembrar os sabores ou o(s) lugar(es) onde se passou a infância para
despertar um sentimento melancólico. Quão doces foram as memórias deixadas lá
no passado, como também o quanto é amargo vivê-las apenas pelas recordações”
(EUSTÁQUIO, 2015, p. 124). Com a provocação feita, tem como a memória não nos
transportar para esses lugares? Vejamos o poema de Palmyra Wanderley,
Castelinhos, na areia da Praia do Meio, e em seguida breve comentário de
Eustáquio (2015):
Castelinhos na areia, Na beira da praia. [...] Coisas de meninice, Que a gente faz e não cansa... E agora outra vez, Como se fosse criança. (WANDERLEY apud EUSTÁQUIO, 2015, p. 124).
“E agora outra vez, / Como se fosse criança” remete-se a uma memória que
sempre continuou na lembrança, ou melhor, “que sempre esteve presente comigo”
(EUSTÁQUIO, 2015, p. 124), diz a autora. Essa dissertação traz uma forte lição de
infância onírica, das quais tento levar para o meu texto, é que essas infâncias
sonhadas possuem uma comunicação. O poema que fala da infância da autora é o
mesmo que me despe revelando minha intimidade, mas é uma intimidade tão
ingênua e bela que me traz felicidade e não me envergonha. Essa memória sonhada
pela poesia, não pertence apenas à infância onírica do autor, ela habita a intimidade
50
de quem a lê em devaneio poético. E isso fica muito nítido na leitura/escrita de
Eustáquio (2015).
Alegrias amansadoras de tristezas
O exercício de orientação é também um trabalho de lapidação29. Primeiro se
enxerga numa pessoa (assim como o lapidador vê numa rocha) uma preciosidade
que nem sempre é pública, mas reconhecida pelo seu olhar sensível. Depois
investe, provoca, desafia, excita, para que a beleza interior que só alguns sabem
que existe, seja publicamente reconhecida. Por fim, pedra e orientando conseguem
emanar beleza e competência próprias. A (lapid)ação de orientação é, portanto, um
generoso trabalho de dar brilho (luz) ao outro.
Assim como no exercício de orientação, a professora Ana Laudelina F.
Gomes, também lançou luz à poetisa norteriograndense oitocentista de Macaíba,
Auta de Souza. No livro intitulado Auta de Souza a Noiva do Verso (2013b), a autora
consegue trazer para público facetas pouco reconhecidas da poetisa potiguar,
superando a ideia que Auta de Souza era apenas ligada “a um ideário de santidade
cristã e de sofrimento que foi formulado e perpassado por muitos intelectuais e que
ainda hoje é recorrente no imaginário social do Rio Grande do Norte” (FARIAS,
2013, p. 28).
Diz Gomes (2013b, p. 289) “Com raras exceções, a poeta é registrada pelos
comentadores como emblema de uma feminilidade romântica associada à
angelitude e à santidade da mulher cristã”. Farias, também estudioso da poetisa
macaibense, coloca esse trabalho como divisor de águas mostrando uma Auta
humanizada “que teve que romper com diferentes amarras sociais para poder
aparecer no seleto espaço da literatura oitocentista” (2013, p. 28).
Portanto, Gomes (2013b) lapida facetas da Auta de Souza ainda
hegemonicamente obscurecidas, evidenciando belezas e forças (sociopolíticas) que
deixam a nossa poetisa potiguar ainda mais bela e valorosa. Diante disso, me
detenho a um fragmento do texto de Gomes que dialoga com o universo infantil aqui
estudado. Apesar do tom muitas vezes melancólico imposto socialmente por
convenção à personagem Auta, Gomes em sua leitura, traz uma infância que é
libertadora para a poetisa. Assim como na infância onírica, onde o devaneio não 29Aqui, refiro-me a lapidação não como potência de agressão, mas como efeito de refinar, polir e aperfeiçoar.
51
conhece os limites do sofrimento. Por isso, na meditação da leitura de Gomes
(2013b, p. 274) do poema “Crianças” de Auta dizendo:
As esperanças se clarificam porque as crianças amansam a tristeza, as trevas e à fraqueza. Como as rosas, mostram a beleza e a efemeridade da vida, proporcionando um bálsamo à morte. Um coração feliz é um coração inocente como o de uma criança.
A infância onírica da poeta amansa sua tristeza e reencanta seus sonhos por
imagens na pena da poeta (SOUZA apud GOMES, 2013b, p. 279-280):
[...] Ah! fora Ela que as fizera/ Com a graça de seu sorriso,/ Num dia de Primavera,/ Na glória do Paraíso!// E seus olhos procuraram/ Algum oculto tesouro: / “Para as flores, que faria?”/Quando do Céu a chamaram/ Os Anjos todos, em coro:/ “Maria!” // Ia partir... Que lembrança/ Podia deixar no campo?/ Dera o sorriso à criança,/ Estrelas ao pirilampo!/ Nos meigos olhos perpassa/ Não sei que lampejo doce.../ E a Virgem, cheia de graça,/ Do mundo triste evolou-se.// Mas, Ela, que dera o encanto/ Do riso sagrado à infância,/ Da dobra azul de seu manto/ Deixou cair a fragrância.// Desde esse dia, na terra,/ As flores sabem falar.../ A voz da flor é a ambrosia/ Que tanta doçura encerra/ Quando murmura ao luar:/ “Maria!”
Gomes (2013b, p. 280) continua, “o encanto no riso da criança é sagrado
porque é feliz, porque é livre. Restitui a felicidade simples de fazer com que
reencontremos o potencial permanente de alegria e liberdade, que foram imaginadas
pelos devaneios de infância”. A autora descasca coberturas fossilizadas de
reducionismos sobre Auta e encontra manifestações de sua infância onírica citando
Bachelard, que conclui: “[...] a infância permanece em nós como um princípio de vida
profunda, de vida sempre relacionada à possibilidade de recomeçar” (BACHELARD
apud GOMES, 2013b, p. 280)30.
O que tomamos como herança e inspiração da infância onírica percebida e
suscitada por Gomes (2013b) é a qualidade de amansadora das tristezas tão
comuns na labuta da vida. Também sua potência de liberdade que nos captura, e a
tão necessária vontade/coragem de recomeço.
Brinquedos e flores, retratos do sertão
A tese da colega e autora Evaneide Maria de Melo, Álbuns fotográficos de/por
Enoque Neves: uma poética visual (2012), dentre todas, foi a última a ser lida e a
única que não acompanhei diretamente sua tessitura. Todavia, isso não diminui seu
30 A citação de Gomes (2013b) refere-se a obra bachelardiana A poética do devaneio de 1960.
52
valor, pois me ajudou a confirmar resultados obtidos nos campos de minha
pesquisa.
Portanto, não houve uma lição de infância onírica que “comunguei” e trouxe
para essa tese (por ter um caráter diferenciado, guardei este relato para o final), mas
confluência de imagens poéticas suscitadas em Melo (2012), por meio da fotografia
de Enoque Neves; e emergidas em mim, por meio dos devaneios poéticos
suscitados do(s) meu(s) campo(s) de pesquisa.
Melo (2012) ao estudar uma parte do acervo fotográfico de Enoque Neves,
avaliado em mais de cinquenta mil fotografias, indica a predileção do artista pela
temática infantil. A autora nos conta que é possível uma análise pelo viés mitológico
da associação da infância com a imagem mitológica do putto, que simbolizava além
do cupido, ou anjinho, mas um Eros nu, em oposição à moral judaico-cristã. Ou
mesmo a relação entre as imagens produzidas pelo fotógrafo com crianças em seus
colos maternos, associando-as em sua reflexão/devaneio imagética, a imagem
também mitológica da Madona com a criança em seu colo.
Apesar da grande valia de sua análise e texto, não é sob esse ponto que
pretendo dialogar. Mas sobre as suas imagens poéticas das crianças com flores, e
em ambientes que valorizam o clima paisagístico dos jardins. Além de destacar as
práticas culturais do universo infantil, dentre elas, o brinquedo e a brincadeira.
O sertão caicoense (como de outros municípios do Rio Grande do Norte e
Paraíba, por onde fotografou Enoque Neves) é força ambivalente. É o mesmo da
seca e fartura (quando chove); da carne de sol afamada e das rendas prestigiadas,
idêntico ao do desabastecimento e sequidão do açude Itans em 2017. Da profunda
alegria e resiliência, da fé como âmbito sagrado do culto à Santana, e do festejo
profano relacionado ao mesmo culto.
“Sem água, o que se tem nos sertões é uma dor coletiva que entristece os
viventes, que paralisa a alegria sertaneja, que ameaça o homem e destrói os bichos,
impera ossos de areia [...]” (MELO, 2012, p. 147). Mas na fartura, “a água do sertão
é doce, saborosa porque decanta no leito dos açudes. Uma água sagrada, utilitária a
tudo” (MELO, 2012, p. 145). A cacimba, nos sertões, é fraterna companheira,
providência para abastecer sonhos, esperanças e vida. Para irrigar alegrias infantis
que sonham o açude transbordando.
Bachelard (2009) liga a infância ao poço do ser (veremos isso melhor no
capítulo destinado à pesquisa do campo onírico). Melo (2012) identifica no registro
53
estético e artístico de Enoque uma infância que floreia, hidratada pelo devaneio de
suas lentes. Nessa pesquisa, também chegamos a essa infância que floresce por
meio de seu onirismo, que pode ser cultivada como são lavrados os jardins.
Isso me provoca a pensar na ideia de Bachelard (2009) que defendia uma
comunicabilidade entre as infâncias. Será que somos em maior ou menor grau
hidratados por um mesmo lençol freático onírico que liga a minha cacimba ao poço
de Enoque encontrado por Evaneide? A fala de Melo (2012, p. 214), poderia
também falar do meu estudo: “no conjunto da obra ficou patente a associação da
imagem da infância a temas florais, como jardins.
Para além das flores, poços e jardins, as brincadeiras e narrativas também
possuem um importante papel em animar as imagens poéticas da nossa infância
onírica sendo potências de criação imaginária, inclusive provocando a fabricação de
brinquedos e estórias. Melo (2012, p. 237) lembra: “muitos brinquedos eram feitos
de madeira, sucata, pano, pedra; de outro modo, as histórias das princesas de terras
distantes, numa mistura de personagens narrados pelos contadores de histórias que
frequentavam a casa de meus pais” e completa: “As histórias contadas pelos mais
velhos, serviam como fertilizante de imaginação”.
Fecho a narrativa destes importantes depoimentos na tessitura desse estudo,
ressaltando a relevância dos brinquedos que ativam nossa infância onírica, portanto,
concluo citando Melo (2012, p. 239):
O brinquedo é um corpo de expressões que rompe e transcende o real, comunicando imagens da infância. À maneira bachelardiana, o mundo dos brinquedos é pura imaginação, ele ativa poderes profundos – um carro de lata atravessa longas estradas; a boneca é amiga, prima irmã; miniaturas suavizantes da desgraça e da miséria, um bálsamo para a reinvenção da vida.
Há um moleque
Percorridos os itinerários traçados, sonhados e tecidos no primeiro capítulo
desse texto, meditemos na canção Bola de meia, bola de gude, de Milton
Nascimento (2018, s/p). Uma condensação poética da infância onírica, do menino rei
que fui e sou, que sobrevivi alimentado pela poesia que emana de muitas infâncias,
lembranças e sonhos.
Há um menino Há um moleque
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Morando sempre no meu coração Toda vez que o adulto balança Ele vem pra me dar a mão Há um passado no meu presente Um sol bem quente lá no meu quintal Toda vez que a bruxa me assombra O menino me dá a mão E me fala de coisas bonitas Que eu acredito Que não deixarão de existir Amizade, palavra, respeito Caráter, bondade alegria e amor Pois não posso Não devo Não quero Viver como toda essa gente Insiste em viver E não posso aceitar sossegado Qualquer sacanagem ser coisa normal Bola de meia, bola de gude O solidário não quer solidão Toda vez que a tristeza me alcança O menino me dá a mão Há um menino Há um moleque Morando sempre no meu coração Toda vez que o adulto fraqueja Ele vem pra me dar a mão
Que esse menino peralta que me fala coisas bonitas e me dá a mão para
juntos enfrentarmos e desfrutarmos da vida, que não naturaliza patifarias, e que
supera as tristezas com brincadeiras que poetizam a vida, também seja encontrado
no leitor e encante seus sonhos despertos. Que a infância onírica de Milton
Nascimento ache morada nos corações dando-nos a mão para seguirmos em frente.
55
CAPÍTULO II
DESENCANTO, INFÂNCIA E REENCANTO
Fig. 3 – Atividade de criança da Escola Freinet Fonte: Acervo do Autor (2016)
56
DESENCANTO, INFÂNCIA E REENCANTO
“A infância – essa massa! – é empurrada no espremedor para que a criança siga direitinho o caminho dos outros”.
Gaston Bachelard
O presente capítulo dedica-se a identificar e fundamentar de que infância ou
infâncias esse estudo tenta compreender e explicar detendo-se para além da
infância onírica vista em Bachelard (2009). Partindo daí, demonstrar de maneira
mais atenciosa às relações que essa infância possui com a Modernidade, bem como
com o processo de racionalização e desencantamento ocidental.
Entendidos estes pressupostos iniciais, o passo seguinte será de aprofundar
reflexões sobre infância, escola e pedagogia, identificando os marcos teóricos que
se colocam como alicerces e operadores cognitivos auxiliando na compreensão e
problematização dos três eixos acima apontados.
Ainda no capítulo abordar-se-á a poética da infância como um momento da
vida humana onde a brincadeira e o faz de conta jorram criatividade, onirismo e
linguagem poética que potencialmente têm lições profundas sobre nossa condição
antropológica. Todavia, faz-se necessário, também, entender como a educação
infantil tem manejado essa contingência poético-criativa e em especial, como tem
entendido o brincar e a brincadeira na escola.
INFÂNCIA: INVENÇÃO E DESENCANTO
“Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços A quem procura abrigo e proteção Meu amor, disciplina é liberdade”
Legião Urbana
A infância sempre existiu? Foi diferente em contextos e sociedades diversas,
ou sempre se apresentou tal como a conhecemos?
Entendida como uma invenção moderna [...], de modo que sua existência é atravessada por processos de acumulação de saberes sobre o corpo, o desenvolvimento, as capacidades, as vontades, as tendências, as brincadeiras, as fragilidades, as vulnerabilidades, os instintos, as paixões e as potências infantis que, por sua vez, se acoplam a práticas discursivas em
57
que tais saberes se imbricam em mecanismos de poder, cujo resultado acaba sendo a produção de uma infância governada, segundo normatividades de uma sociedade que se empreende (RESENDE, 2015a, p. 7).
Assim, Resende (2015a, p. 7) busca entender a infância no contexto social
moderno, considerando-a como uma invenção, e, portanto, percebendo-a como uma
construção histórica. E neste contexto, a infância atende a necessidade de ser
conduzida e administrada “segundo um modelo estabelecido cientificamente e
institucionalmente”.
Para essa sociedade, a criança precisa ser preparada para aprender a ser um
adulto “normal”, ancorado na consciência moral socialmente convencionada numa
sociedade tecnocrática, meritocrática, cujo mito da ciência como verdade única é
consolidado como paradigma vigente (ALMEIDA, 2012; RESENDE, 2015a, 2015b;
WUNENBURGER, 2003; SANTOS, 2006, 2002, 2000; MORIN, 2005, 2003a,
2003b). Segundo Gomes (2016a, p. 109):
O processo de racionalização da sociedade técnico-científica contemporânea estaria centrado na separação/disjunção entre esses dois estados, tendo como consequência a dissociação completa entre cultura científica e cultura humanística. O estado poético é relegado ao segundo plano, e o poético restrito a uma mera expressão literária.
Portanto, a socialização de uma lógica valorativa e ideológica, pretensamente
superior, racional, ascética, calculista e desencantada, passa a ser imposta ao
sujeito a partir da primeira infância no Ocidente moderno, destacando a escola como
um dos espaços preponderantemente responsáveis pela sua (de)formação.
(RESENDE, 2015a, 2015b; AUGUSTO, 2015; WEINMANN, 2014).
O que se percebe é que a “ditadura da racionalidade moderna”, mediada pela
cultura colonizadora do Ocidente e pelos profissionais educadores que reproduzem
essa cultura, tenciona para transformar ainda na infância o lúdico em mais um
mecanismo de uma educação exclusiva para a racionalidade, deixando a
imaginação invisibilizada, deformada, ou marginalizada, o que nos demais níveis de
ensino, paulatinamente vai se tornando cada vez mais característico. “A pesada
estrutura educacional favorece a rigidez do pensamento, a ossificação
paradigmática e a burocratização do saber” (ALMEIDA, 2012, p. 79). Lembremos de
Rodrigues (2013) que nos fala que a escola propende a matar o talento da criança
em produzir imagens.
58
O brincar, atividade natural da infância e da criança, nessa perspectiva, limita-
se ao representar, categorizar, identificar, conceituar e reproduzir, ao invés de criar,
fantasiar, imaginar, poetizar, encantar e divertir. Ele passa a ser uma estratégia,
meio de se alcançar uma finalidade sempre justificável, válida e útil.
A ciência moderna pretendeu tornar o homem senhor da natureza e acabou por deixá-lo desencantado num mundo sem sentido. A racionalização do mundo “esfriou” o homem e o mundo, desprovendo-os de imaginação criadora. Para a ciência moderna, o homem não precisa mais de encantamento, porque ela transforma o mundo num objeto meramente útil e servil da razão utilitária e instrumental (RODRIGUES, 2008, p.72).
Quando Fröebel31 desenvolveu o Jardim de Infância, jamais imaginou que ao
invés de ser um lugar de encorajamento e ‘autoeducação’ (ARCE, 2002) como ele
esperava, se tornaria um espaço hegemônico de utilitarismo32 e escolarização, onde
o brincar deixa de ter um papel importante para o autodesenvolvimento e passa a
ser um meio racionalizado para uma finalidade.
Nesse contexto, defendemos esse espaço de encorajamento como propôs
Fröebel, no qual o brincar desempenhe seu papel no desenvolvimento da criança,
tornando-a protagonista das suas vivências, pois ao trabalhar com atividades
lúdicas, creches e pré-escolas ajudam os seus infantes a imaginar, a pensar e a ver
o mundo com um olhar diferente, novo e criativo, o mundo da imaginação, do
encantamento. A criança brinca a todo o momento e é através das brincadeiras que
ela aprende e satisfaz as suas necessidades.
Atentemos para o que diz a autora Kishimoto (2000) quando afirma que o
lúdico através do brincar se apresenta como uma possibilidade privilegiada de
comunicação da criança na qual ela se desenvolve e aprende brincando,
descobrindo e construindo inúmeros conhecimentos. Com efeito, enquanto a criança
está simplesmente brincando, incorpora valores, conceitos e conteúdos, visto que
sua atenção está concentrada na atividade em si e não em seus resultados ou
efeitos.
No entanto, o que se sobrepõe à possibilidade de oferecer à criança um
espaço escolar mais humanizado, mais afetivo, de liberdade, de alegrias, é uma
educação rígida e desumana, que tenta transformar a criança em um sujeito que ele 31 O alemão Friedrich Froebel foi um dos primeiros educadores a considerar a infância como uma fase muito importante na formação do sujeito. Foi considerado o pai do jardim de infância. (ARCE, 2002). 32 O utilitarismo aqui mencionado não diz respeito aos pressupostos filosóficos de Stuart Mills dentre outros, mas entendendo-o simplesmente como relativo ao que tem por meta a utilidade.
59
não quer/precisa ser – passivo, desencantado, infeliz, oprimido. Isso ocorre diante
da nova necessidade em formar o sujeito infantil em um adulto apto para a vida
moderna, ou seja, guiado pelo paradigma do “Império da racionalidade”33,
domesticado pela ciência. Para isto, a escola aparece como a instituição ideal para
adequar esse sujeito infantil e transformá-lo num sujeito sem os sonhos de infância,
sem crenças fantásticas.
É nesse contexto de escola voltada para a consolidação do modelo único de
racionalidade instrumental e ‘monocultura da mente’ (SHIVA, 2003)34 que o
personagem do pedagogo35 se desenvolve, adequando-se perfeitamente às novas
exigências impostas pela Modernidade: de racionalização em detrimento do ludens,
de ‘domesticação dos corpos’ (FOUCAULT, 2001) infantis, de domínio das letras e
da escolarização. Ou seja, no império da racionalidade, o profissional que capacita,
prepara e forma o sujeito (infantil) para a vida moderna é o mesmo que prioriza a
racionalidade domesticada em detrimento das pulsões da imaginação criadora.
Para Weinmann (2014, p. 17), “uma das condições de possibilidade da
emergência da infância na Modernidade é o processo que institui o racionalismo
como imperativo cultural nas sociedades ocidentais”. Apesar deste processo de
racionalização e desencantamento do mundo (WEBER, 2009) mediado pelas
instituições modernas e tendo como fortes protagonistas o pedagogo e a educação
escolar, ainda conseguimos encontrar trincheiras de resistência à total alienação da
potência reprimida, que Morin (2005) chamou de demens e Bachelard (2008, 2009),
apoiado em Jung, de ânima.36
A primeira delas é a própria condição humana, que apesar de ter a
imaginação e a ludicidade eclipsadas pela racionalidade instrumental, permite a
manutenção de zonas de resistência nutridas na alma humana.
33 Partindo da ideia de racionalidade em Weber (2009) vista na introdução, designamos esse termo para defender que a partir da Modernidade a racionalidade instrumental da ciência (cartesiana) é imperativa e coercitiva agindo sobre o sujeito na intenção do controle do que é entendido por verdade. 34 A monocultura da mente é a falta de capacidade para receber as diversidades, reduzindo-as (SHIVA, 2003). 35 Vale salientar, que inspirado em CAMBI (1999), refiro-me a função do pedagogo na construção da Modernidade. Reconheço, todavia, que esses profissionais são aqueles que possuem maior abertura para o lúdico e para a criação de um espaço escolar mais prazeroso e encantado. 36 Gomes nos explica o conceito junguiano usado por Bachelard: “Ânima" é uma categoria junguiana, contraponto completar de ânimus, ambos princípios de polarização de psiquismo, o primeiro associado ao repouso da alma (à imaginação), o último a seu caráter mais objetivo (à razão). Sobre isso, consultar Bachelard (1988), especialmente o capítulo lI: "Devaneios sobre devaneios: ânimus e ânima" (2003, p. 55). O Bachelard (1988) que a autora se refere é da obra Poética do devaneio.
60
Outra trincheira são os espaços informais de formação, ou construção e
reconstrução de saberes, os quais não foram completamente formatados na lógica
imperativa da racionalidade ocidental. Neles prevalecem características tradicionais
e/ou contra hegemônicas. Weinmann (2014), apoiado em Agamben37, demonstra a
pobreza da experiência na Contemporaneidade, evidenciando que “nas sociedades
tradicionais o cotidiano é terreno onde floresce o que deve ser transmitido. Ele é
matéria da bruta experiência e a fonte de onde provem a autoridade”. (AGAMBEN
apud WEINMANN, 2014, p. 48).
Para melhor compreensão, se faz importante esclarecer que as inúmeras
formas de conhecimento, inclusive o conhecimento formal científico, são linguagens
que buscam decodificar o que a ciência convencionou chamar por realidade.
Constantemente, na produção e assimilação de saberes, umas são traduzidas pelas
outras e ressignificadas.
Com isto, os lugares que produzimos saberes e aprendemos são inundados
de visões de mundo, que podem ser mais ou menos próximas do polo psíquico do
logos, ou do mythos. Quanto mais embevecida pelo segundo, mais imerso na
potência do sensível, do poético, aberto ao imaginário; e quanto mais próximo do
primeiro, mais aproximado de uma lógica racional.
Um dos objetivos deste trabalho é demonstrar que a formação que a
Modernidade deu e a Contemporaneidade dá aos nossos infantes, está sendo
parcial e muitas vezes, castradora de potencialidades ligadas a um campo eclipsado
pelo saber do logos que se tornou hegemônico.
É valido ressaltar que o logos não se resume ao pensamento da ciência
moderna, apenas potencialmente o processa e melhor a recebe dentre outros
campos do saber, como os saberes da tradição, teológicos e astrológicos, por
exemplo.
A condição antropológica humana ao longo da história incitou e excitou a
humanidade a compreender os fenômenos a sua volta, o que, quase sempre
possibilitou a melhor adaptação, uso e exploração dos meios disponíveis, fossem
reais ou imaginários. A ciência nem sempre foi o principal ou mais legítimo
instrumento mediador de compreensão, todavia, segundo Santos (2006, p. 137), “o
conhecimento científico é hoje a forma oficialmente privilegiada de conhecimento e a
37 Weinmann (2014) fundamenta-se em Agamben na obra de 2005: Infância e História: destruição da experiência e origem da História.
61
sua importância para vida das sociedades contemporâneas não oferece
contestação”.
Nesse contexto, podemos concluir que o homem moderno, em sua condição
antropológica mediada por instituições e autoridades profissionais, tende a ser hiper
desenvolvido em seu potencial empírico/técnico/racional ligado ao ‘império da
racionalidade do reino instrumental das utilidades. Todavia, o mesmo tende a
recalcar sua faceta mais lúdica, criativa, imaginativa e poética, que consequências
isso pode gerar? Um homem polarizado gera uma sociedade polarizada. A
humanidade carece da construção de um novo sujeito para a criação de um modelo
societário mais pleno.
Modernidade e desencantamento
No latim imperium indica a relação de poder e subordinação que uma
instituição política possui, ou mesmo o seu predomínio, ou autoridade sobre outros.
A história da humanidade foi tecida pelos espíritos de mando e submissão dos quais
falou Anísio Teixeira (1969), e diante das diversidades sociais, culturais,
econômicas, bélicas, alguns povos e culturas conseguiram se sobrepor diante de
outros. Podemos citar dentre tantos: o Império Romano situado hegemonicamente
na Europa, o Império Inca na América do Sul e o Império Persa em partes da Ásia e
África38.
Esses e outros impérios tiveram como característica comum a pulsão pelo
domínio e expansão do seu território, poder, da sua riqueza, ou seja, seu desejo
imperialista. Entre os imperadores facilmente encontramos grandes líderes militares,
muitos totalitários e autoridades divinizadas, alguns reconhecidos como autoridades
supremas, deuses, dentre eles, os Faraós Egípcios39.
Destacando enquanto características imperialistas principais os desejos: de
dominação e sobreposição à diversidade; de expansão nos campos territoriais,
políticos e ideológicos; suas características muitas vezes truculentas e
38Citação indireta de documento eletrônico não paginado, em <<https://www.significados.com.br/imperio/>> 39 Idem.
62
antidemocráticas; sua autoproclamação como divino, comumente legitimada pelos
seus “súditos”; e seu desejo de invisibilizar e aniquilar as resistências e oposições40.
Diante do exposto, podemos dizer que a Modernidade foi um campo propício
para o desenvolvimento de todas as características imperialistas já destacadas.
Possivelmente nela se consolidou como paradigma civilizacional o maior império de
todos os tempos em território, ideologia, e adesão cultural e/ou promotor de
aculturações. A razão domesticada pelos paradigmas da ciência moderna, ou em
outras palavras, a racionalidade científica cartesiana, torna-se imperativa e
imperadora da Modernidade.
Sem pretensão de aprofundar mais do que o necessário no debate
interminável de “O que é a Modernidade?”, ou fazer uma revisão teórica do que vem
se produzindo neste sentido, com inspiração foucaultiana delimitamos, ainda que
parcialmente, o sentido aqui atribuído.
O projeto da Modernidade identifica-se com a ilimitada confiança na razão, capaz de compreender e subjugar a natureza em proveito da humanidade e com a crença no progresso como trajetória humana que, pelo uso da razão, garantiria à sociedade ingressar em um estágio mais desenvolvido no sentido de maior humanização, entendida como liberdade (e, idealmente, também como igualdade e fraternidade). Na busca da concretização deste projeto, houve um admirável crescimento em termos de quantidade e refinamento em todos os campos do conhecimento e de suas aplicações (NONNENMACHEE; PEREIRA, 2005, p. 2).
É importante destacar, “ilimitada confiança na razão”, e esta, aqui identificada
como razão domesticada, pois existem vários tipos de racionalidade como ressaltou
Lévi-Strauss (1976). O pensamento selvagem é um saber sistematicamente
desenvolvido, logo, também dotado de um tipo de racionalidade, todavia, com uma
racionalidade mais concreta e por isso diferente da razão abstrata postulada pela
ciência.
Franco Cambi (1999) compreende a Modernidade como um período de
inúmeras rupturas nos mais diversos âmbitos sociais e humanos, mas, sobretudo,
com a característica do estabelecimento de um novo paradigma de mentalidades
orientado primeiramente pelo movimento renascentista e posteriormente pelo
Iluminismo, ambos tencionando para a laicização do homem. Consequentemente, “A
formação do homem segue novos itinerários sociais, orienta-se segundo novos
40Citação indireta de documento eletrônico não paginado, em << https://www.significados.com.br/imperialismo/>>
63
valores, estabelece novos modelos” (CAMBI, 1999, p.198), produzindo, assim, uma
revolução educativo-pedagógica. Nesse contexto, “A escola passa a se destacar
como instituição formadora que prepara o homem-cidadão para a vida nesses novos
tempos”. (SALES, 2009, p. 25).
Contudo, de forma retroalimentar a Modernidade fundamenta e fundamenta-
se, consolida e consolida-se o/pelo novo paradigma de conhecimento, como
observou Boaventura dos Santos (2006, p.138) “desde o século XVII, as sociedades
ocidentais têm vindo a privilegiar epistemológica e sociologicamente a forma de
conhecimento que designamos por ciência moderna”. Todavia, Santos (2006, p.
139) ressaltou que:
A ciência moderna não é a única explicação da realidade e não há se quer qualquer razão científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. A razão por que privilegiamos hoje uma forma de conhecimento assente na previsão e no controlo dos fenômenos nada tem de científico. É um juízo de valor.
Assim, retomando o raciocínio inicial, na Modernidade, a razão científica (e a
racionalidade domesticada por essa razão) possui todas as características antes
destacadas enquanto imperialistas. Ela dominou e sobrepujou a diversidade de
constelações de saberes que liam o mundo de forma mais encantada (tradicional,
imageticamente, mítica e magicamente); não contente, disseminou sua
autoproclamação enquanto argumento de autoridade em quase todo o planeta
impondo sua episteme, numa postura política e ideológica cartesiana, de
fragmentação e assepsia do saber.
Portanto, o privilégio epistemológico atribuído à ciência pela Modernidade de
forma autoritária, antidemocrática e fragmentada “tendeu a neutralizar ou mesmo
ocultar ao longo dos séculos” (SANTOS, 2006, p.152) outros campos do saber,
buscando a racionalização domesticada pelo saber científico, por vezes,
invisibilizando e outras vezes aniquilando saberes alternativos.
Por fim, ao combater as visões de mundo ancoradas no pensamento
selvagem, sobrenaturais, imaginativas, poéticas, imagéticas, tradicionais, ou
explicadas fora do discurso e do modus operandi da ciência moderna, esta por sua
vez, ocupa o lugar da imaginação e suas explicações encantadas (anteriormente
hegemônicas), e paulatinamente assume o lugar que a igreja tinha na Idade Média
(ALTHUSSER, 1985, 1970), de detentora da verdade e do saber. Esse papel é
64
legitimado pelo sujeito moderno e na sua crença hegemônica no saber científico em
detrimento de outras formas de conhecimento.
Com isto, de um modo ainda que “às avessas”, o desencantamento das
explicações sobrenaturais ratificados pela secularização e racionalização
domesticada, torna o discurso cético em uma nova modalidade de discurso religioso,
onde a ciência moderna ao negar as demais deidades, é estabelecida como
principal “deidade” portadora de toda verdade e conhecimento, concorrendo (no
Ocidente) com o monoteísmo judaico-cristão que foi soberano na Idade Média
(SALES, 2012).
Para Weber (2004), a Modernidade ocidental é caracterizada por um
processo de racionalização. A partir daí, a racionalidade moderna passou a colonizar
tudo ao seu redor, inclusive, o antropo. O tempo deixou de ser o tempo da vida e
passou a ser o tempo do cálculo, da produção, do quantificável. A racionalização do
tempo se torna imperativa de tal maneira que impôs uma mudança na nossa relação
com tempo e espaço. Não se tem tempo para alma, para o sensível quando quem
dita o sucesso da vida é a produção.
A alma, como pensou Bachelard (2008, p. 5), “possui uma luz interior, […]
conhece e expressa no mundo das coisas deslumbrantes, no mundo de luz do sol”
precisa de tempo para contemplação e para contemplá-la urge um tempo não
cronológico, da sensibilidade, um tempo mítico, cósmico, imaginário, atemporal. Ela
habita um mundo que não foi obscurecido pelo desencantamento da racionalização.
O mundo da alma é encantado e iluminado por imagens e poesia e não foi
alcançado pelo desencantamento do mundo desencadeado pela Modernidade.
A Modernidade privilegiou a racionalidade, Logos sobre o Mythos,
sobrepondo o pensamento prosaico e conceitual, pretensamente ascético, sobre o
poético (mais ligado ao campo imaginário), sensível e imagético, radicalizando o
“desencantamento do mundo” pensado por Weber (2004). Tomando por
pressuposto a ideia moraniana, existem dois modos de pensamento, um ligado ao
Mythos nominado simbólico/mitológico/mágico e outro ao Logos, por sua vez,
empírico/técnico/racional.
Ambos os modos coexistem, entretanto, atualmente o segundo detém
convencionalmente o argumento de autoridade para explicar a realidade, tendo
como seu porta-voz a ciência moderna.
65
Max Weber (2004) defende que o Ocidente passou por um processo
inexorável de desencantamento do mundo, no qual a racionalização e o cálculo
tomam espaço das explicações encantadas (magicamente) sobre a realidade. A
hierarquização de um modo de conhecimento sobre outros, supostamente
acentuada na modernidade, especialmente no Ocidente, ocorreu que por meio da
socialização/imposição da cultura científica, que segundo Boaventura dos Santos e
Meneses (2010), provoca epistemicídios de outras formas de saber.
O sujeito moderno
A palavra sujeito carrega consigo uma radical ambivalência, ao mesmo tempo
em que pode ser protagonista e praticar uma ação, pode também ser vítima de uma
ação. O sujeito moderno foi indispensável para a construção de um novo modelo de
sociedade, entretanto, não obstante, ele foi moldado para isto e nesse processo de
adequação, supervaloriza algumas características, o que favorece para que outras
sejam diminuídas ou atrofiadas.
Para a constituição da sociedade moderna, foi necessária a criação de novas
instituições e novos personagens que possibilitassem seu desenvolvimento. Neste
contexto, destaca-se como embrião do sujeito moderno o sujeito infantil. A infância é
uma invenção do mundo moderno e antes dele, a formação da criança ocorria
plenamente no mundo adulto, pois, não se considerava as suas particularidades
(ARIÈS, 1981; CAMBI, 1999).
A partir do momento que a infância é inventada pela Modernidade fazendo-a ocupar esse espaço de sujeito-objeto, a educação passa a ser um imperativo, o que leva, também, à invenção da pedagogia moderna, como um campo científico e como política de conhecimento, constituindo-se de discurso voltado para o estudo e acumulação de saberes sobre a criança e seu corpo, seu desenvolvimento, suas brincadeiras, suas potencialidades, suas fragilidades, suas vulnerabilidades, seus instintos, suas paixões e potências que, por sua vez, se acoplam as práticas discursivas e não discursivas em que tais saberes se imbricam em mecanismos de poder, cujo resultado será a produção de uma criança específica, a produção da subjetividade infantil moderna (RESENDE, 2015b, p. 129 -130).
Particularmente, nossa sociedade herdeira do paradigma da civilização
moderna, como vimos, tenciona em busca da racionalização e da secularização do
mundo, acentuando a domesticação dos sujeitos. E é na infância que o processo é
iniciado de forma que perdura toda a existência do sujeito. Processo este, que
66
radicaliza a fragmentação da unidualidade humana (animus e anima, mythos e
logos, sapiens e demens, prosaico e poético; faber e imaginarius, diurno e noturno)
e hierarquiza o estado ligado à razão domesticada sobre o campo da poiésis.
Portanto, a infância, por ser o momento onde se inicia o exercício da
domesticação, passa a ser alvo da nossa reflexão nesse ponto do estudo. Mas de
que infância estamos falando?
Infância, escola e pedagogia
In-fância etimologicamente é associado a “não fala”, ou fora da linguagem, no
entanto, para Weinmann (2014, p. 51), “tal in-fância não se encontra fora da
linguagem, mas aloja-se no hiato existente entre língua e discurso, o qual
caracteriza a linguagem humana”, portanto é uma fala que ainda não sustenta uma
ideologia, uma visão de mundo condicionante formada anteriormente.
No ciclo humano que convencionamos denominar de infância, os moldes da
moralidade social inerentes a maior parte dos adultos ainda estão muito amolecidos
ou nem se quer existem. São eles que nos amarram à noção de ridículo que nos
impede de dizermos a alguém uma indelicadeza ingênua, ou deitarmos no chão no
meio de um shopping center, bem como, nos mostra como é infantil dar asas à
imaginação, ou vermos o mundo de forma mais poética e encantada. Falta-nos
infantilidade? Que segredos se escondem por trás da infância?
Segundo Weinmann (2014, p. 17), a educação moderna possui o papel de
instalar na criança uma consciência moral que inicialmente parece estranha aos
pequenos, cabe-lhe conduzi-la ao “bom caminho”, como o gostar de estudar.
É a partir do momento em que ser um sujeito racional – tanto do ponto de vista epistêmico, quanto moral- constitui-se em um mandato irrevogável, a infância surge em uma posição de alteridade à razão, e a educação configura-se como instrumento por meio do qual os infantis podem realizar sua virtualidade racional. [...] É nesse contexto que o racionalismo constitui-se em um imperativo nas culturas ocidentais.
Resende (2015a, p. 8), na esteira de Foucault, destaca que existe em
funcionamento um conjunto de parafernálias disciplinares que põem em
funcionamento uma máquina que governa a infância na sociedade em vivemos:
“Essa máquina que regula, dirige, controla, ensina, normaliza, disciplina, pune,
castiga, cura, educa. Essa máquina faz viver e deixa morrer”.
67
Se a escola é o espaço principal de funcionamento e execução dessa
máquina, devemos desconfiar do objetivo final dessa instituição, será mesmo a
emancipação dos futuros cidadãos? Ou será a sua conformação diante de um
sistema que lhe é anterior? Mesmo sem possuir uma resposta definitiva neste
momento, me provoco a pensar se as estratégias lúdicas da educação escolar
voltadas para infância estão realmente a serviço de uma criança mais criativa e
emancipada, ou melhor, domesticada e moralizada?
Assim como Augusto (2015, p. 11), creio que,
Mesmo em um momento que valorize a liberdade e a criatividade dos pequenos entre os muros escolares, não se abre mão do governo dos corpos e das mentes para dar a justa medida da liberdade desse homem a ser formado e formatado. Nesse jogo de liberdades medidas se produz algo diverso da liberdade [...].
A pedagogia atingiu com êxito o papel que lhe foi atribuído com a
Modernidade. Ela possibilitou um amparo formal, técnico e cientifico para uma
infância cada vez mais iluminada à luz da racionalidade utilitarista domesticada pela
ciência; também foi responsável pelo desenvolvimento de uma ludicidade mediada
(onde a brincadeira não é livre, mas tem um objetivo racional a ser alcançado); pelo
estimulo a uma criatividade direcionada; a um brincar formador e compreendido por
sua finalidade (antecipadamente), onde até o que parece encantado, e por isso,
ainda aceitável e permitido na primeira infância, é rigorosamente controlado pelas
parafernálias ideológicas, metodológicas, didáticas, que garantem a eficácia do bem
ensinar e bem aprender. Resende (2015b, p. 129) complementa,
A entrada da criança em cena aberta pelas Ciências Humanas sobre o olhar da pedagogia que, como mecanismo de governo da população infantil, elabora uma analítica capaz de estabelecer a conformação dessa população às estratégias do funcionamento da dinâmica social de maneira dócil e utilitária.
Entretanto, apesar de acreditar que sim, não diria com tanta certeza que a
escola atingiu o êxito almejado. Creio que sim por entender que a finalidade última
da escola não estava em si mesma, ou mesmo numa relação direta de formação do
discente, mas com a estrutura de um sistema que por possuir vários níveis de “bem
sucedidos” precisa de escolas que preparem tanto para o fracasso socioeconômico
e das subjetividades daqueles eleitos à exploração, quanto para as posições de
mando como vimos com Anísio Teixeira (1969).
68
Porém, se a finalidade da escola tivesse em si mesma, e não como instituição
estruturante do modelo societário, ela não teria atingido o seu êxito enquanto
capacitadora de pessoas responsáveis capazes de usufruir, gozar e escolher seu
próprio destino, ou seja, serem felizes e bem resolvidas e comprometidas consigo
mesmas, com a sociedade e o planeta. A educação para o trabalho (no contexto
capitalista)41 e a educação para a felicidade e plenitude das potencialidades
humanas, talvez pouco tenham em comum.
Resende (2015a, 2015b) aponta para uma infância governada pela instituição
escolar e respectivamente pelas ciências da educação onde até o tempo é
disciplinado, sendo isto instrumentalizado por uma série de aparelhos específicos e
aparatos disciplinares que contribuem nesse sentido. Ou seja, a “escola moderna,
como instituição de conformação da infância ao mundo social traçado por essa
racionalidade, funciona como estratégia de governo dos indivíduos” (RESENDE,
2015b, p. 134). Assim,
O que nós, modernos, denominamos educação e, em uma ilusão retrospectiva, projetamos sobre outras culturas – tem como matriz um feixe de práticas discursivas de cunho disciplinar, dotado de grande poder normativo e constituinte do objeto sob o qual opera: a infância. Gradativamente, o núcleo pedagógico-escolar da educação coloniza distintas instituições sociais e estabelece os parâmetros da criação familiar da criança normal e para o tratamento clínico da criança anormal (WEINMANN, 2014, p.131 – 132).
E a criança assim identificada é comumente, aquela que impõe maior
dificuldade de padronização, normatização, e, consequentemente, escolarização.
Por fim, inventamos uma Modernidade, que de forma retroalimentar é
consolidada pelo sujeito moderno, que é formado pela escola, através de estratégias
pedagógicas, as quais moldam as subjetividades dos sujeitos infantis, futuros
cidadãos modernos. É certo que o modelo de sujeito que vem sendo formado nesse
sistema não atende às necessidades de desenvolvimento antropológico à medida
que uma única racionalidade, a domesticada pela ciência, é aceita, reconhecida e
legitimada socialmente, pois, além de existirem outras racionalidades, a
subjetividade e complexidade do humano ultrapassam os saberes acumulados e a
própria razão, contemplando a imaginação, um campo do sensível que predispõe
41Barcellos (2012) ao abordar a ‘Imaginação do trabalho’ distingue o trabalho que tem uma imagem negativa e está ligado a subjulgação, exploração, reificação e o trabalho da imaginação que liga a criação à recreação, cheio de prazer e sonho. Na ocasião do texto acima, falamos do primeiro caso.
69
uma constelação de outras potências que necessitam ser educadas para que sejam
vividas em sua melhor condição.
O IDIOMA ARRUMADO E O IDIOMA ONÍRICO
“Essa reinvenção pede artifícios que só a infância pode guardar. Uma reaprendizagem tão profunda implica uma perda radical do juízo. Isto, é, implica a poesia.”
Mia Couto
Este título de sessão foi inspirado em ensaio intitulado “Línguas que não
sabemos que sabíamos” de Mia Couto (2011), na ocasião o autor argumenta da
necessidade de falarmos dois idiomas, um lógico-formal, que ele intitula de
arrumado e um idioma que dê conta do surreal, do ilógico, do poético. Gomes
(MORIN, 2005 apud GOMES 2016a, p. 109), na esteira de Morin, explica:
Na proposição da necessidade da religação de saberes para a reforma do pensamento e da educação com vistas a um pensamento complexo, Edgar Morin (2005) nos fala de duas linguagens da cultura, dois estados do espírito, dois modos de habitar a Terra: um prosaico, outro poético. No modo prosaico, agimos de forma predominantemente ‘racional, empírica, prática, técnica’ o que ‘tende a precisar, denotar, definir’. Esse modo ‘apoia-se sobre a lógica e ensaia objetivar o que ela mesma expressa’ (MORIN, 2005, p. 35)42. No estado poético, agimos de forma “simbólica, mítica, mágica”. Esta forma “utiliza mais a conotação, a analogia, a metáfora [...] e ensaia traduzir a verdade da subjetividade.
A autora apoiada em Morin, fala também em “duas linguagens da cultura, dois
estados de espírito”, complementando a ideia dos dois idiomas em Couto (2011).
Mas não é apenas na poesia de Couto ou numa perspectiva moriniana que se fala
em uma linguagem (ou idioma) poética. Meditando sobre a obra de Bachelard,
Rodrigues (2008, p. 75) pontua:
As experiências imaginárias com a linguagem poética, conduzem Bachelard a compreender o quanto a linguagem literária trabalha o processo imaginário de uma experiência originária de construção da linguagem, por meio de metáforas e de imagens, como uma viagem de resgate da linguagem imaginária.
42 Aqui, a autora refere-se à obra de Morin, A cabeça bem feita. Repensar a reforma, reformar o pensamento.
70
E mais, o autor bachelardiano mostra que em Bachelard é possível um
resgate da linguagem imaginária, via a poesia que alucina ‘o idioma arrumado’, diz
Rodrigues (2013, p. 181-182):
O poeta utiliza o caráter encantador das palavras para sair por aí a encantar a natureza e o mundo, através do poder assustador e mágico das palavras, juntando em si aquilo que ele pode encontrar com o Cosmos, enquanto portador de significados imprevisíveis. Pela necessidade de descrever, de definir, ele lança mão da imagem tornando consciente o processo de construção da linguagem humana. Também trabalha em sua linguagem um processo sinestésico de ligar imagens do mundo imaginário e percepções (sons, imagens visuais, cores, cheiros e sabores), abrindo-se para as sensações imaginadas, que se entrecruzam, como apontava a poesia simbolista. No processo sinestésico o poeta tenta aguçar ao máximo os sentidos pela palavra, como se tomasse um alucinógeno, em uma alucinação induzida conscientemente [...].
A humanidade possui ambas as linguagens “arrumada e onírica”, são
potências humanas que não podem ser extirpadas, mas existe uma tendência
hegemônica de diminuir a segunda em relação à primeira. Para superar esse
paradigma, faz-se necessária uma abertura para uma ciência mais aberta e
dialógica e, em tese, para uma humanidade mais inteira e feliz.
Todavia, só conseguiremos essa mudança paradigmática passando por uma
emancipação da imaginação, historicamente recalcada e domesticada, educando-a
com poesia e exercitando uma ciência cada vez mais complexa (MORIN, 2005) que
atente para outras linguagens que explicam o mundo sem recalcar o nosso onirismo
próprio. Almeida (2012, p. 78) comenta sobre a obra Pensatempo: textos de opinião:
O biólogo e escritor moçambicano, Mia Couto fala da necessidade de sermos multiplus e reclama de uma instituição escolar que “muitas vezes nos ‘aconselha’ a olhar o mundo através de uma só janela” (COUTO, 2005, p. 49). [...] Sugere um exercício da cidadania que se nutra de nossas potencialidades e sonhos, e não do modelo dos outros para solucionar nossos problemas.
Assim, é importante aprender com o encantamento infantil, pois toda criança
lê poeticamente o mundo até começar a racionalizar mais que sonhar. Assim, somos
capazes de acessar essa infância encantada (onírica) que reside nos nossos
devaneios poéticos. Os devaneios voltados à infância (BACHELARD, 2009) são uma
via para vivermos novamente a infância através do sonho desperto. Uma educação
que contemple novos horizontes, com uma humanidade mais encantada e feliz.
71
As linguagens de nossa humanidade
Para Bachelard (2009, p. 15) “dois vocabulários deveriam ser organizados
para estudar, um o saber, o outro a poesia. Mas esses vocabulários não se
correspondem. Seria vão constituir um dicionário para traduzir de uma língua para
outra”. Longe do entendimento de uma epistemologia bachelardiana que teria uma
ciência apartada da imaginação e saber separado de poesia, Jean-Jacques
Wunenburger43, um dos bachelardianos mundialmente mais reconhecidos do nosso
tempo, no texto Imaginário e Ciências, publicado em 2003 no livro Variações sobre o
imaginário: domínios, teorias e práticas hermenêuticas, analisou a relação
supostamente antagônica entre ciência e imaginação. Inicialmente, na racionalidade
da ciência que ele chamou de clássica, imaginário e imaginação ou eram
invisibilizados ou vistos negativamente enquanto obstáculo frente à produção do
conhecimento, como vislumbrou Bachelard em seu tempo. Gomes (2016c, p. 264)
afirma que
Até o final do século XIX, época de nascimento de Bachelard (1884), o paradigma científico reinante estava associado fundamentalmente a posturas realistas e empiristas, para as quais a observação e a experiência é que resguardavam a cientificidade do pensamento, posturas a partir das quais floresceu o positivismo e nascimento da própria sociologia, entre outras ciências humanas que, na sua origem, tiveram como referência o modelo de cientificidade das ciências naturais.
No início do século XX, inauguram-se teorias abrindo o campo científico para
um novo paradigma (GOMES, 2016c). Amparada em Paiva, a autora44 diz que a
partir da relatividade de Einstein e da mecânica quântica, por exemplo, começaram
a ponderar a
“Comunhão entre a imaginação criadora e os referenciais teóricos engendrar a experiência, a qual rompe com a percepção [positivismo] e o imediatismo [realismo]” passando-se a admitir que o fenômeno não é dado, mas que é criado pelo pensamento, reconhecendo-se, com isso, que “a ciência é inventiva e criadora”. (PAIVA apud GOMES, 2016c, p. 264-265).
43 Para Gomes (2016): “Wunenburger advoga que nas últimas obras de epistemologia, Bachelard já traria outra perspectiva, mais condizente com a de sua poética. Por isso, para Wunenburger, não há esquizomorfia nas duas vias de sua obra, mas complementariedade”.
44 Gomes fundamenta-se na obra de 2005, Gaston Bachelard: A imaginação na ciência, na poética e na sociologia, de Rita Paiva
72
Frente à necessidade de um novo paradigma epistemológico para a ciência,
Bachelard foi de fundamental importância para encontrar os seus novos limites. Para
isto, se fazia necessária a delimitação e fragmentação. Como afirmou Pessanha
(1994, p. v), apoiado em Bachelard, “o conhecimento científico é sempre a reforma
de uma ilusão”, portanto, em consonância com Morin (2005, 2002), entendo o
conhecimento científico como um discurso sobre a realidade, nunca ela mesma.
Morin (2002, p. 80) compreende que “a percepção é uma tradução, mas as próprias
palavras são, igualmente, traduções de traduções e de reconstruções, discursos,
teorias do mesmo. [...] todo conhecimento é tradução e reconstrução”.
Tomando por caminho a visão moraniana, adoto de pleno acordo com Souza
(2015, p. 45), na esteira do pensamento do intelectual moçambicano Mia Couto, “É
preciso estar disponível para acessar outros saberes. Isso requer que acessemos
nossas habilidades de poliglotas”. Assim, o homem (civilizado) deveria falar um
Idioma arrumado, capaz de lidar com o cotidiano visível. Mas dominando também uma outra língua que dê conta daquilo que é da ordem do invisível e do onírico O que advogo é um homem plural. Ao lado de uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir uma outra que nos faça sair do mundo. De um lado, um idioma que nos crie raiz e lugar. Do outro um idioma que nos faça ser asa e viagem. Ao lado de uma língua que nos faça ser humanidade, deve existir uma outra que nos eleve a condição de divindade (COUTO, 2011, p. 24).
Portanto, precisamos de um novo paradigma de ciência e cultura que permita
viver harmonicamente a condição humana de poliglotas, vivendo num mundo de
imagens e de conceitos. Para resolver definitivamente a oposição de Bachelard
entre saber e poesia, racionalidade e imaginário, Gomes (2016a, p. 111) explica que
na avaliação de Wunenburger (2003):
O filósofo Gaston Bachelard é um dos pioneiros de um racionalismo aberto que “ao tomar nota das mudanças da nova ciência, entrelaça racionalidade e imaginário”, principalmente em sua epistemologia a partir da obra A filosofia do não, de 1940, a qual entende não pode ser reduzida ao dualismo da primeira fase bachelardiana. Para o autor, seria Gilbert Durand quem nos faria entender melhor a complementaridade entre razão e imaginação no processo de conhecimento, em que a razão não poderia mais ser pensada de modo autônomo, como possuindo leis próprias.
Antes disso, a razão faz a tradução abstrata daquilo que a imaginação
conjuga em consonância com representações afetivo-simbólicas, nos explica Gomes
(2016a), na esteira de Wunenburger. A autora mostra:
73
Assim, mais do que ferramentas para “traduzir” conceitos e teorias, as imagens são instrumentos de sensibilização estética do mundo e de seus criadores/leitores, capazes de promover mudanças e reorganizações de comportamentos (GOMES, 2016a, p.112).
Assim, aderimos à ideia de que não só o ‘saber’ ou a ‘ciência’ deve ser
ensinado(a), pois o ensino da poesia potencialmente nos torna capazes de
experienciar o mundo de forma mais encantada, além de encantar o que foi
enrijecido.
Por um paradigma aberto e dialógico
Pessanha (1994), dentre outros, categorizam Bachelard como um estudioso
de duas vias, de duas dimensões fundamentais sobre conhecimento humano, o
primeiro o homem da razão e da racionalidade científica, da epistemologia da
ciência, o Bachelard diurno. Ele acrescenta, “existe, com igual força e riqueza,
complementarmente, um Bachelard noturno, inventor da concepção de imaginação,
explorador do devaneio, exímio mergulhador nas profundezas abissais da arte,
amante da poesia” (PESSANHA, 1994, p. vi).45 Duas formas opostas e
complementares de perceber, conceber, traduzir e recriar realidades e
surrealidades. Bachelard entre suas auroras e poentes é um filósofo da dialogia,
apesar do próprio não falar isso.
Atualmente, ainda que de forma contra-hegemônica, mas cada vez mais forte,
a tensão por uma mudança paradigmática do conhecimento, para termos uma
ciência mais aberta (WUNENBURGER, 2003, 2005,), mais complexa (MORIN, 2002,
2003, 2005, 2008, 2011; ALMEIDA, 2006, 2009, 2012), uma ciência com
consciência, politizada (SANTOS, 2006; MORIN, 2014), que dialogue imagem e
conceito, razão e imaginação (GOMES, 2016a), mais encantada, portanto:
A evolução recente das ciências, tanto da natureza como do homem, conduziu a uma melhor identificação de suas interferências, ou mesmo das suas homologias ocultas. Porque a intelegibilidade do mundo não é sem dúvidas alguma redutível a uma pura actividade de conceituação abstracta. Não só as representações científicas têm muito a ganhar com a exploração dos recursos cognitivos dos símbolos e mitos (plurivocidade, analogia) como também não rompem com estruturas intelectuais profundas, cujas as imagens são as primeiras representações. É por esse
45Wunenburger (apud BULCÃO, 2005) aborda essas polaridades: Imaginário e racionalidade: uma teoria geral do imaginário.
74
motivo que a concepção de racionalidade da ciência clássica, é necessário hoje em dia juntar uma racionalidade aberta ou complexa, cujos processos e resultados se assemelhem de forma paradoxal às leis e às obras do imaginário religioso ou poético. Convém então descrever o modo como a teoria da actividade científica se junta, a níveis metodológicos e epistemológicos variados, à problemática do imaginário (WUNENBURGER, 2003, p. 265).
Portanto, Wunenburger destaca a emergência de uma ciência que não mais
invizibiliza ou oculta símbolos, imagem e imaginários, porém, faz uso destes para ter
uma compreensão mais aberta e polifônica dos fenômenos em geral. De uma
ciência que ao contrário, cada vez mais busca entender a poética como uma
racionalidade imaginativa e imagens como respostas para questões antes
obscurecidas, a exemplo das ciências meteorológicas, ou médicas, que encontram
grandes avanços neste caminho tornando pelas imagens representadas nos mais
diversos equipamentos, a realidade mais inteligível.
Contudo, Wunenburger (2013, p. 181-182) ressalta que:
A questão das relações entre imaginário e ciência não se esgota neste uso operatório de imagens, das metáforas, e das analogias, reconhecido pela ciências positivas. A história das ciências contemporâneas permitiu igualmente assistir a uma reorganização da própria racionalidade científica, que inclui doravante, modos de pensamento, lógicas que eram consideradas não científicas e que eram mesmo criadas por conhecimentos poéticos. Tal evolução redistribui as categorias e as fronteiras e dá lugar a uma racionalidade complexa onde imaginário e racionalidade já não são de imediato antinómicos.
Assim, ciência e poesia se servem das imagens como narrativas produzidas
pelos sujeitos, todavia Wunenburger (2003) evidenciou que a ciência busca reduzir a
imagem ao ponto de formular em síntese um conceito, já a poesia em sua atividade,
por outro lado, amplia a imagem em seu potencial de surrealidade.
Nas palavras de Wunenburger (2005, p. 42) “O devaneio ama o grande, o
ilimitado, como a racionalidade tem necessidade de reduzir, de destotalizar, de
mudar a escala, em suma, de se concentrar sobre o pequeno”, por isso mesmo é
que “não há verdadeiramente lugar para uma cosmologia bachelardiana, posto que
a ciência exige uma espécie de descosmologização das representações”.
Nesta encruzilhada me localizo entre os que acreditam que estamos em
processo de transição, apontando para maior abertura paradigmática, mas, como
disputa política e ideológica, nada está consolidado, nem perdido, mas em uma
75
tensão. Dentre os otimistas, podemos considerar essa disputa saudável, visto que
encontram emergências jamais reconhecidas.
O que devemos pensar é que essa tendência de abertura científica, que cada
vez mais ganha força, gera além de novas formas de compreender, interagir com a
materialidade do mundo, debruçando-se sobre razão e imaginação, gera novas
formas de ser, sentir, estar, agir e compreender o mundo/cosmos. Gesta uma nova
sociedade mais encantada, que têm a oportunidade de explorar as pulsões
antropológicas reprimidas pelo modelo civilizacional moderno, onde o império da
racionalidade domesticada pela ciência e pelo consumismo com suas relações
efêmeras tão bem explorado em Bauman (2003) sobrepuseram e invisibilizaram
polaridades essenciais como a imaginação poética.
Educação onírica e complexa
É obvio que a escola moderna promoveu e produz um tipo de sujeito e um
tipo de sociedade incomparavelmente mais capaz de entender e lidar com as
questões acerca do conhecimento, da racionalidade científica, do cálculo, da
tecnologia da informação, biotecnologia, de um maior conhecimento sobre as
sutilezas da biodiversidade, das drogas à serviço do controle do corpo, extração e
uso dos recursos naturais, da economia global e de tudo que somos capazes de
compreender, explorar, produzir, consumir.
Porém, se são incontestáveis os avanços e progresso dentro de uma lógica
moderna é também incontestável que o projeto de Modernidade não atingiu suas
próprias expectativas de emancipação humana e a escola moderna não formou o
sujeito para a vida, felicidade, para a realização de sua plena humanidade. Para o
filósofo da educação estética onírica bachelardiano, Rodrigues (2008, p. 67):
Vivemos em mundos desencantados e tempos sombrios. No começo do século XXI podemos fazer uma retrospectiva do projeto da Modernidade, cujo ideário de liberdade, igualdade e fraternidade foi pulverizado num universo caótico, como um simulacro de um discurso sobre o discurso moderno. Esse ideário foi construído a partir da pretensão de uma razão humana de dominar o mundo e submeter a natureza a fins humanos.
Como já foi dito, o tempo passou a ser o tempo da produção e isso altera
radicalmente as noções de tempo e espaço e para além disso, o uso racionalizado
76
do tempo estreita cada vez mais os instantes de onirismo, hipertrofiando a formação
racional e atrofiando a formação onírica. Em detrimento, sobretudo disso, a
educação infantil passa a atender às necessidades plenas de sua formação
domesticadora, como por exemplo, o próprio ritmo da vida moderna diminui o tempo
e a qualidade do uso temporal entre pais e filhos, construindo uma relação onde, por
vezes, o espaço para afetividade é menos importante que o mérito diante das
habilidades e competências pretensamente quantificáveis. Lógica também vivida
entre escola e alunos; educadores e educandos.
Muitos pais entendem que a melhor demonstração de carinho é o “sim” dito
ao seu filho, como se essa simples palavra apagasse as ausências e sobretudo as
presenças incompletas e fosse capaz de “comprar” a felicidade de seus filhos, ou ao
menos calar seus rumores, delegando muitas vezes a criação das crianças ou a
uma infinita reafirmação de um comportamento egocêntrico, o que gerará futuros
problemas, ou aos canais infantis, aos DVDs de animação e musicais da moda
(educativos e/ou pseudo-educativos), aos jogos virtuais, dentre outros, esses são os
educadores dos nossos filhos no Século XXI, com nossa anuência e conveniência.
Contudo, além do “sim” desmedido associar ‘a felicidade infantil imediata’ a
uma lógica do “possuir” e não de “ser” e constituir-se um desserviço a uma formação
equilibrada, ele reforça dependências, carências e agressividades, gerados pelos
próprios pais. Ensinamos a comprar, não ensinamos a sonhar. Na grande maioria
das vezes simplesmente ou ligamos e delegamos a função formadora à TV, ou
entregamos a história pronta no tablet com áudio, vídeo em HDTV ou 3D (qualquer
dia com cheiros e gostos), não valorizamos a nossa oralidade com timbres, tons,
acalantos, silêncios, deformações da voz, surpresas, sorrisos, sonoplastias,
diálogos, estímulos, como caminho aberto para a fantasia, para o imaginário, não
ensinamos mais a felicidade de um devaneio poético. Não vemos o momento em
que a criança adormeceu, nos dias atuais isso parece perda de tempo, a criança
estava sendo iluminada pelos pixels, todavia, não a fizemos sonhar.
Como o sonho é algo particular, só o sujeito sonha por ele mesmo, não
fazemos sonhar literalmente, mas podemos construir pontes através da linguagem
poética, da fantasia, do onirismo e isso tudo emerge explorando os sentidos do
devaneador, deformando realidades em surrealidades.
Na Poética do Devaneio, Bachelard (2009, p. 9) afirmou que “todos os
sentidos despertam e se harmonizam no devaneio poético. É essa polifonia de
77
sentidos que o devaneio poético escuta e que a consciência poética deve registrar”.
Contudo, o problema crucial de uma formação onírica é como dar o que não se tem.
Como promover uma educação poética imerso na lógica moderna (que se faz
oposta)?
Cabe aos educadores em geral, incluindo aos pais, a missão de poetizar-se,
de se conceber como um “homem das 24 horas”46 (GOMES, 2016c), sem esquecer
que “a poesia constitui ao mesmo tempo, o sonhador e o seu mundo”
(BACHELARD, 2009, p. 16), portanto cabe investir na autoformação onírica através
da imersão em linguagens e imagens poéticas. É imprescindível aprender a parar e
contemplar o mundo a nossa volta, se possível aderir ao conselho de Rubem Alves
(2005) e fazer amor com o mundo, nos tornar mundo, permitir-se, devanear: “o
devaneio ‘poetiza’ o sonhador” (BACHELARD, 2009, p. 16).
Assim: “Um mundo se forma no nosso devaneio, um mundo que é o nosso
mundo. E esse mundo sonhado ensina-nos possibilidades de engrandecimento de
nosso ser nesse universo que é nosso” (BACHELARD, 2009, p. 8).
Como primeira lição aos educadores e aprendentes oníricos, cito Bachelard
(2009, p. 13) “A quem deseja devanear bem, devemos dizer: comece por ser feliz.
Então, o devaneio percorre seu verdadeiro destino: torna-se devaneio poético: tudo,
por ele e nele, se torna belo”.
“Tradicionalmente, a filosofia da educação, querendo preservar a razão,
transformou-a em mito solar, permanecendo invisível à dimensão noturna da
imaginação” (ARAÚJO, 2009b, p, 18). Morin em A Cabeça Bem Feita (2014), retoma
o questionamento de Marx: Quem educará os educadores? Ouso pensar que a luz
da racionalidade esconde perspectivas que só podem ser vistas na sombra, ou
imaginadas no escuro, os educadores precisam ousar sair um pouco das claridades,
no claro, até podemos enxergar o outro, mas é preciso mais: senti-lo, encontrá-lo de
fato e, assim, reconhecermos a nós mesmos.
46 “Para explicar a noção de homem das 24 horas é preciso levar em conta a obra bachelardiana em dois campos (epistemológico e estético), chegando a uma concepção de que há duas vias para o conhecimento: a onírica e a intelectual. Pela via onírica somos educados pela imaginação, pela via intelectual é a razão quem nos educa. Da razão e da imaginação advém duas pedagogias: a pedagogia da razão e a pedagogia da imaginação. O homem das 24 horas é aquele que se deixa educar, ao mesmo tempo, pelas duas vias. Aquele que pensa e imagina. Aquele que é capaz de se mobilizar tanto pelas objetivações do real, expressas nos conceitos e nas ideias, quanto pelas convicções subjetivas, advindas das imagens e do imaginário’ (GOMES, 2016, p. 263-264).
78
A claridade aqui representa as certezas da ciência dominante em um mundo
cego e autodestrutivo. Almeida (2012, p. 29) em Narrativas de uma ciência da
inteireza fez uma colocação que melhor expressa a critica às verdades científicas:
A crise do mundo contemporâneo, a fragilidade democrática, a reorganização do conhecimento científico, além de posições políticas claras e corajosas, fazem parte do cardápio intelectual que nos convida a pensar fora das certezas arrogantes e das verdades totalitárias e dementes.
É emergente que as verdades totalitárias da ciência, os sejam quais forem,
abram caminho para a incerteza como estratégia de conhecimento, como vimos em
Morin (2005), considerando o erro e a ilusão provocados pelas cegueiras do
conhecimento produziremos um conhecimento menos fragilizado, fragmentado,
iludido e mais complexo (MORIN, 2014, 2005).
Rodrigues (2013, p. 179-180) sobre as instituições de ensino atuais comenta:
A escola não trabalha com imagens vivas do imaginário infantil. Pelo contrário, a escola apresenta para a criança - como únicas experiências possíveis com a linguagem - as imagens desgastadas do mundo adulto habitual. Nesse sentido, a socialização escolar trabalha em sentido inverso da formação de possibilidades de imaginar, caracterizando a escola como lugar de anti-onirismo, como lugar consciente da necessidade da perda do sonho.
À contramão da necessidade de uma educação mais aberta ao sonho como
potência para uma humanidade mais plena de inteireza como sugeriu Almeida
(2012), ou capaz de viver harmonicamente nas suas bases antropológicas diurna e
noturna, como defende Gomes (2016c), ou mesmo, apta exercitar a religação dos
saberes (MORIN, 2005) por meio de sua imaginação simbólica (GOMES, 2016a), a
escola ainda têm como prática hegemônica o anti-onirismo (RODRIGUES, 2013), a
fragmentação do saber (MORIN 2005, 2003b), e a sobreposição da cultura científica
sobre a cultura humanística (GOMES, 2016a; WUNENBURGER, 2003) como
programa disciplinar em um sentido de submissão dos estudantes.
Carecemos de uma educação onírica, mas para essa abertura, antes ou
concomitantemente precisamos de uma escola que valorize além da ciência as
outras constelações de saber e formas de experienciar o mundo. Contudo, adiante,
retomaremos esse ponto.
79
A necessidade de retorno à infância
A escola, uma máquina de modelar infâncias, e o educador o condutor do
caminho da maturidade e lucidez. Será?
A Escola moderna promove uma corrida onde o vencedor é o primeiro a se
tornar adulto, que chamamos, por razões já explicitadas, de sujeito moderno. A
preparação para essa corrida é a tentativa de castração dos sentidos, dos
encantamentos e a racionalidade científica é a metodologia utilizada para tal
finalidade, prescrição universalizada independentemente dos por menores da
formação: “A criança se vê, assim, na zona de conflitos familiares, sociais e
psicológicos. Torna-se um homem prematuro, vale dizer, esse homem prematuro
encontra-se em estado de infância recalcada” (BACHELARD, 2009, p. 102).
O sujeito moderno necessita retornar à infância para reencontrar as suas
dimensões enterradas. A escola precisa ser reinventada, para que cultive não
apenas a razão, mas também para que a imaginação brote. E o educador necessita
construir pontes reais para os conhecimentos, assim como, pelo onirismo, ensinar a
voar em devaneio poético. Para isto, ele também precisa reencontrar sua infância,
pois adultos amadurecidos pela razão sabem que não se pode voar, e não se ensina
o que não se sabe, logo, ele inibiria a vontade devaneadora de voar da criança. Ou
seja, só possuídos pela sua própria infância onírica, o educador provocará a
imaginação poética de seus educandos. E assim, brincarão.
Para retomar a infância não se faz necessário nascer de novo? Não, o
objetivo aqui é atentar para uma infância que pode ser alimentada e acessada pelo
onirismo, segundo Mia Couto (2011, p. 104):
A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo. A verdade é que mantemos uma relação com a criança como se ela fosse menoridade, uma falta, um estado precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.
Com isto, o que se faz necessário, é abrir a janela, e se deixar surpreender e
encantar. Bachelard (2009, p. 95) nos fala de uma “infância permanente” ou onírica
(da qual viemos tratando), assim como Couto, ele reconhece “a permanência, na
alma, de um núcleo de infância, uma infância imóvel, mas sempre viva, fora da
80
história [...] mas que só tem um ser real nos instantes de iluminação, ou seja, nos
instantes de sua existência poética” (BACHELARD, 2009, p. 94). Aqui, encanto e
poesia se casam enquanto sinônimos, numa “infância que dura em nós”.
(BACHELARD, 2009, p. 96).
Assim, o educador onírico transborda o mundo conceitual e empírico, resiste
à necessidade de se adequar como sujeito moderno e se joga no devaneio poético
como um brincante. A brincadeira é convidativa e desperta os sentidos e afetos, ela
tem o poder de evocar e envolver as almas infantis presentes. “Nos devaneios da
criança a imagem prevalece acima de tudo. As experiências só vêm depois. [...] A
criança enxerga grande, enxerga belo. O devaneio voltado para a infância nos
restitui à beleza das imagens primeiras” (BACHELARD, 2009, p. 97).
Com isto, abre-se caminho para uma educação para além da realidade
conceitual povoada de ideias mortas, pois, como declarou Bachelard, “O conceito é
um pensamento morto, já que é, por definição, pensamento classificado” (2008,
p.88). O ensino da poesia, o devaneio poético (BACHELARD, 2009, 2008), o
espanto imaginário (RODRIGUES, 1999) fecundam no ser uma dimensão de
surrealidade, aumentando inclusive nossa percepção do real. Degustando de
onirismos e irrealidades, as quais fazem parte da nossa unidualidade antropológica.
“Mutilamos a realidade do amor quando a separamos de toda sua irrealidade”
(BACHELARD, 2009, p. 8), pois “a imaginação aumenta os valores da realidade
(BACHELARD, 2008, p. 23), portanto, a educação não deve ser exclusividade do
campo racional deve estar aberta para a complexidade, saberes que expressam
realidades que não são hegemônicas e para o onirismo através do surreal, do irreal,
das imagens poéticas, ou seja, de abrir as janelas de infância e deixar-se iluminar-se
pela existência poética.
É preciso primeiro cultivar nossa infância permanente para enxergarmos belo,
assim então, contagiarmos de beleza os discentes usando imagens poéticas para
provocar, para sensibilizar, para encantar, para educar a imaginação.
Deve haver um processo retroalimentar. A ciência vai se abrindo,
flexibilizando, construindo novos paradigmas, alargando suas fronteiras e
exercitando o diálogo com outras formas de ler o mundo e de senti-lo. Isso é
resultado e resultante de uma educação também mais aberta que além de
impulsionar novas éticas e saberes mais plurais, investe no cultivo de um novo
gênero humano, mais sensível e atento às diversidades, ciente de sua cosmicidade
81
que está ligada à natureza, à vida, a tudo que existe. Esse ser humano também fica
mais autocentrado, por não ser tão esfacelado no seu processo de formação. Capaz
de viver prosaica e poeticamente, como sugeriu Morin (2011) em Amor, sabedoria e
poesia.
Concomitantemente, produzindo sociedades onde o humano (em relação ao
ambiente e as culturas) possui mais valor que o capital e o consumo. Pois, a
“sociedade mercantilizada gera o homem inconsciente de si mesmo, massificado,
[...] o que nos torna tão comuns e descartáveis. [...] como lixo poluidor de nossos
corações e mentes, que nos impede de sonhar sonhos leves (RODRIGUES, 2008,
p. 71). Para que possamos sonhar urge a necessidade de uma educação sensível
com caminhos pedagógicos racionais, porém abertos, politizados e poetizados. Se
esse novo homem e essa nova sociedade forem possíveis, um modelo de civilização
antropo-ética também o é. Para Morin (2005, p. 106) “A antropo-ética, deve ser
considerada como a ética da cadeia de três termos indivíduo/sociedade/espécie, de
onde emerge nossa consciência e nosso espírito propriamente humano. Essa é a
base para ensinar a ética do futuro. Para o sociólogo, existe uma missão
antropológica no milênio associada a essa antropo-ética, destaco a necessidade de
humanização da humanidade e o compromisso de guiar e obedecer a vida, portanto,
em uma ética para além do humano.
Almeida (2012, p. 36) nos propõe uma
Ciência da inteireza, supõe-se igualmente lançar as bases para uma educação que facilite a inteireza do sujeito. Nesse sentido, é importante redirecionar os horizontes pedagógicos e educacionais, com vistas à autoformação de sujeitos que se sintam autores de suas narrativas.
Portanto, uma educação da inteireza não se resumiria a frações do ser, como
hoje ainda é hegemônico nos espaços de formação, mas além de sua totalidade,
suas pluralidades, suas realidades e irrealidades, suas utilidades e inutilidades,
sensações, sentidos, sentimentos, suscitações, sonhos, cosmicidade, sua
integralidade e contradições.
Assim, é imprescindível que os educadores reencontrem sua inteireza, se
autoformarem como sonhadores, redescubram sua infância, o espanto, o encanto e
isso se dá na via poética.
82
Horizontes de uma educação imaginativa
No prefácio do livro Imaginário Educacional: Figuras e formas, Maria Cecília
Sanchez Teixeira (2009, p. 7), logo em seu segundo parágrafo, localiza bem o
contexto hegemônico atual da discussão do que eu estou chamando de Horizontes
de uma educação imaginativa, ela afirma:
O leitor poderá se perguntar o que significará essa Cultura do imaginário para a educação, quando assistimos a uma racionalização cada vez maior do ensino, quando os objetivos humanísticos da escola foram reduzidos à formação de seres racionais capazes de dominar a tecnologia e ter sucesso no mundo do trabalho, mas incapazes de sonhar.
Muito além, ela faz uma pergunta que inicialmente orienta esse momento
deste estudo: “Haverá lugar para o imaginário na escola formal, com seu exército de
especialistas, de administradores, divisão em classes, unidades, sujeitos, disciplinas,
departamentos, provas, avaliações?” (TEIXEIRA, 2009, p. 7).
Para os autores Araújo e Araújo (2009), sim, há lugar e uma necessidade
vital! E por compartilhar deste entendimento sigo na esteira deles e de outros
intelectuais que assim compreendem. Entendo essa “necessidade vital” da
imaginação como a possibilidade de formar humanos com maior “inteireza”, como
sugeriu Almeida (2012), que consigam desfrutar de uma vertente da nossa condição
humana que historicamente tem sido marginalizada, inferiorizada, invisibilizada.
Portanto, “a compreensão da vida obriga-nos a defender uma autêntica reforma da
cultura que deveria assentar numa pedagogia bipolar do dia e da noite [...] que
permitisse que os indivíduos satisfizessem os dois polos da sua constituição”
(ARAÚJO, 2009a, p. 51).
Na obra, Educação e imaginário: Introdução a uma filosofia do imaginário
educacional, J. J. Wunenburger e Araújo (2006) justificam a educação do imaginário
em diversas perspectivas. Os autores sugerem que as imagens usadas no discurso
educativo criem uma atração e boa impressão nos interlocutores,
As imagens veiculadas têm que possuir simultaneamente um carácter afectico de modo a não deixarem ninguém indiferente e um carácter semântico provocatório: efeito afectivo e efeito semântico provocatório aliados na mesma estratégia, a de provocar cumplicidade, quer a surpresa (WUNENBURGER; ARAÚJO, 2006, p. 31).
83
Podemos dizer que as imagens aplicadas a serviço do ensino causam
empatia. Inspirado em Rubem Alves, digo além disso, as imagens provocam e são
provocadas por uma inteligência emocional onde "o coração dá ordens à
inteligência" (ALVES, 2005, p. 70), facilitando e encantando o aprendizado. Nesse
contexto, é possível falar em religação de saberes (ALMEIDA, 2012; GOMES,
2015a; MORIN, 2005, 2011), ou mesmo de polaridade do psiquismo antes
hierarquizadas, "O amor faz a magia de ligar coisas separadas, até mesmo
contraditórias" (ALVES, 2005, p. 69). Para Morin (2011, p. 28), “O amor contém
justamente esta contradição fundamental, esta co-presença da loucura e sabedoria”
e faço minhas as suas palavras:
Incluo-me entre aqueles que acreditam na profundidade antropossocial do mito, ou seja, sua realidade. Acrescento a isso que entre o homo sapiens e o homo demens, ou entre a loucura e a sabedoria, não existe fronteira nítida. Não se sabe quando se passa de uma para outra, isso porque há sempre reversibilidades; por exemplo, uma vida racional pode ser pura loucura. Uma vida que se ocuparia unicamente e economizar seu tempo, a não sair quando faz mau tempo, a querer viver o máximo possível e, portanto, não cometer excessos alimentares e amorosos. Levar a razão a seus limites máximos conduz ao delírio (MORIN, 2011, p. 27).
O uso das imagens poéticas a serviço da educação está muitíssimo além do
mero entretenimento, ela é capaz de gerar uma ética do sujeito no mundo, “a
realização e o destino do humano cumpre-se assim, por intermédio da faculdade da
imaginação criadora, numa tensão polar conciliatória entre animus-anima [...] são
duas facetas da nossa alma andrógina” (ARAÚJO, 2009a, p. 56). Portanto, ainda em
Araújo (2009a, p. 57):
A atividade imaginativa e criadora se desperta em contato com as forças cósmicas (ar, água, terra e fogo), com as grandes narrativas poético-literárias e nos labirintos do nosso onirismo e não mediante um programa formal, a semelhança daquele que é indispensável à formação científica do espírito. Por outras palavras, o que é, pois, importante, para não dizer mesmo urgente, é colocar a criança, e por extensão o sujeito “em situação de devaneio (rêverie)” sob o signo, como reclama Gaston Bachelard, (1963, p. 53) da anima. É pois aqui que reside, ao nosso ver, o grande desafio a obra de Bachelard para a construção de uma pedagogia do imaginário, porquanto estar ainda longe de ser pacífica a ideia de um dia os programas escolares integrarem uma seção dedicada ao devaneio poético.
Enquanto educador crédulo de que a escola é uma importante instituição na
qual um dos principais papéis é gerar, no sentindo de gestar, a sociedade; e tornar
os sujeitos aptos para viver em um dado tempo e espaço construído sócio/histórico e
84
culturalmente, entendo que cabe a ela protagonizar a ascensão da imaginação
criadora e poética, para além da reprodutora, e estimular a criação de humanos mais
sonhadores, pois, a atividade imaginativa e criadora e os sonhos poderiam nos
impulsionam para novas realidades, para que se possa vivenciar um mundo
reencantado: "Conhecer é construir pontes entre o sonho, a estrela distante, e o
lugar onde me encontro" (ALVES, 2005, p. 85).
85
CAPÍTULO III
CAMPO ESCOLAR: INFÂNCIAS ONÍRICAS E
DEVANEIOS DE ESCRITA
Fig. 4 – Atividade de criança da Escola Freinet Fonte: Acervo do Autor (2016)
86
CAMPO ESCOLAR: INFÂNCIAS ONÍRICAS E DEVANEIOS DE ESCRITA
“Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas. Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.”
Rubem Alves
Talvez se faça necessário lembrar que a intenção deste estudo não é pensar
a infância de um ponto de vista sociológico ou sob o viés da pedagogia tradicional.
Todavia, buscou-se trazer a luz, imagens da infância onírica vistas em Bachelard,
mas que tendem a ser diluídas num contexto adultocêntrico, cheio de razões e
obrigações. Porém, essa infância que ainda não perdeu a capacidade de
maravilhamento é ainda facilmente encontrada nas crianças que ainda não foram
absorvidas pela racionalização e responsabilidades do mundo adulto, e podem
sonhar com maior liberdade. Assim, no ciclo vital denominado infância estamos
muito mais propensos a encontrar a infância onírica, esse núcleo de alma petiza e
alegre que tem como expressão do seu encantamento suas brincadeira e sonhos. É
isso que vou buscar nas escolas.
Todavia, sabemos que infelizmente existem infâncias tristes, acinzentadas por
mazelas pessoais, econômicas e sociais. Mas elas não podem ser chamadas de
infância sonhada, ou onírica. O imprescindível foi retirado, o encantamento, o
maravilhamento, o poético. Pode até existir a idade de criança, mas a infância
sonhadora não mora ali. Mas mesmo sob condições adversas, visitará em seus
devaneios poéticos a infância feliz sequestrada.
Mas no caso das escolas estudadas, nos deparamos com histórias de
infâncias felizes. Vale preparar o leitor, que a escrita dessa seção é antes
manifestação do maravilhamento de meus devaneios poéticos de infante sonhador,
com as crianças (sonhadoras), os espaços, as vivências, as brincadeiras e
brinquedos, do que uma análise racionalizada sob qualquer viés da prática educativa
87
das instituições estudadas. Portanto, fui à(s) escola(s) no mesmo intuito que grande
parte das crianças vão. Fui encontrar as outras crianças, as brincadeiras, o faz-de-
conta, o recreio e coisas que alimentassem à felicidade de ser criança.
NÚCLEO DE EDUCAÇÃO INFANTIL: O PILOTO, AS LIÇÕES E AS LIMITAÇÕES.
“Educar é crescer e crescer é viver. Educação é assim, vida no sentido mais autêntico da palavra”.
Anísio Teixeira
Inicialmente, escolhi estudar os anos iniciais do Ensino Fundamental por
pensar que seria um momento de transição importante entre a Educação infantil e o
Ensino Fundamental, todavia, fui convencido já nas primeiras observações da
necessidade de me dedicar à Educação Infantil.
Diante do exposto, compartilho minha pesquisa exploratória, meus primeiros
contatos com o campo, antecipando as primeiras impressões e como estas
influenciaram na condução do estudo. Entretanto, antes gostaria de situar o que fui
observar e apresentar brevemente a escola na qual comecei o piloto da pesquisa de
campo, bem como relembrar o que me levou a escolhê-lo. De antemão, antecipo
que no campo não encontrei exatamente o que eu esperava, mas posso considerá-
lo um pré-teste que foi imprescindível para a pesquisa.
De maneira sintética, reitero a hipótese inicial que a escola educa
preponderantemente à razão, em especial a racionalidade instrumental, eclipsando o
imaginário e suas potencialidades ao invés de igualmente valorizá-lo. Foi com essa
pré-impressão que saí para o campo.
A pesquisa exploratória teve início numa escola que é considerada piloto, se
destacando no estado do Rio Grande do Norte, possui mais de trinta e cinco anos de
experiência no pré-escolar e desde 2010, gradativamente, iniciou o Ensino
Fundamental. O Núcleo de Educação da Infância (NEI/CAp-UFRN) “historicamente
atendia apenas demandas da UFRN, mas desde 2008 também atende à
comunidade em geral” (NÚCLEO DE EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA, 2016a), sendo
suas vagas definidas por sorteio. A instituição tem por objetivos criar um ambiente
que oportunize a interação entre crianças e entre estas e os adultos, permitindo a
vivência e construção progressiva, em que a criança possa:
88
• Afirmar-se como indivíduo e como ser coletivo, desenvolvendo, mediante as relações afetivas e atitudes de cooperação, a autonomia e a responsabilidade;
• Favorecer o desenvolvimento integral de bebês e crianças em todos os seus aspectos (social, afetivo, cognitivo e motor);
• Desenvolver uma atitude de curiosidade e crítica frente ao mundo;
• Vivenciar situações que possibilitem a construção do conhecimento e da expressão da realidade;
• Construir operações, conceitos e relações integradas nas várias áreas de conhecimento;
• Construir as formas de representação e expressão no mundo exterior e interior: imagens, linguagem, jogo simbólico, desenho e escrita;
• Desenvolver a consciência do corpo e de suas possibilidades de perceber e agir sobre o ambiente (NÚCLEO DE EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA, 2016b).47
Diante dos objetivos expostos, fica claro que não se trata de uma escola
tradicional, e é a partir dessas informações que inicio o relato da pesquisa
exploratória.
Minha primeira visita ao NEI foi realizada no dia 09 de setembro de 2015. Na
ocasião, fui solicitar autorização para acompanhar as salas dos anos iniciais
ofertadas pela escola: primeiro, segundo e terceiro anos. Ao chegar, antes mesmo
de contatar qualquer gestor ou funcionário da escola, já estava observando
atentamente o comportamento das crianças ainda no pátio, antes do início da aula
matinal.
Logo que fui atendido acabei encaminhado à coordenadora Analice Cordeiro
dos Santos Victor. Conversamos sobre minha pesquisa, autores, intenções e
estratégias, recebi boas dicas. Contudo, pelo fato de o NEI ser da UFRN, ele recebe
inúmeras pesquisas, estagiários, acompanhamentos e percebi que a senhora
Analice se preocupou em me conduzir a turmas que não tivessem outros estudos
em andamento.
Com isto, eu estaria autorizado a acompanhar a terceira e a primeira série do
matutino e a segunda do turno vespertino. Como pressuposto a ser verificado, eu
estava considerando que quanto mais inserido e madura a criança está no processo
educativo, menos encantado será seu universo, por isso resolvi começar
acompanhando a terceira série para que por eliminação eu pudesse caminhar de
forma decrescente até a primeira série.
Na segunda-feira, 14 de setembro de 2015 fui recepcionado pelas
professoras da terceira série Daniele e Gildete que me receberam explicando como
47 Documento eletrônico não paginado.
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as coisas ali eram organizadas. Não pude deixar de notar o grau de especialização
dos educadores do NEI em geral, muitos doutores e mestres. Dentre os primeiros, a
professora Daniele.
Não foi difícil perceber ainda na primeira semana que aqueles 23 alunos da
terceira série eram muito avançados diante do que eu queria observar. Já estavam
impregnados de um grau de racionalidade reconhecidamente avançado, inclusive na
percepção da experiente professora “Dani” que me confidenciou que aquela era uma
sala de terceira série atípica, muito desenvolvida.
As crianças entre oito e nove anos, dominavam a leitura e escrita, resolviam
tudo em assembleias mediadas pelas professoras, falavam muito bem, estudavam
programação de computadores, dança, mas o que me deixou mais impressionado
foi o método usado pela escola, que escolheu democraticamente um tema de
pesquisa no início do ano e foram trabalhando de maneira transdisciplinar no
decorrer do ano letivo.
Na ocasião das semanas que os acompanhei, eles estavam concluindo as
atividades dos dois bimestres anteriores que tratavam da temática
democraticamente decidida: Guerras e revoluções. Nas apresentações dos
trabalhos me impressionei muito com a quantidade de informações que eles tinham
conseguido e sobretudo, assimilado.
Ao conversar com a professora “Dani” sobre a eficácia do método do estudo
temático ela me alertou que neste método não existe conhecimento mínimo dado
pelo programa, o limite é alcançado pela turma, e como aquela era uma turma bem
avançada tínhamos aqueles resultados bem positivos. Impressionantes para mim.
E lá as crianças estavam muito adaptadas à linguagem adulta, e já
reconheciam, de modo geral, a ciência como a melhor explicação da realidade. No
meio de suas apresentações, falavam com propriedade do Nazismo, fizeram uma
brincadeira irônica sobre o Tratado de Versalhes, demonstrando que não só
conheciam, mas que eram capazes de fazer referência apontando analogamente a
situações do seu cotidiano.
Diante de tudo isso, após pouco mais de um mês de observação, resolvi
começar imediatamente a acompanhar a turma da primeira série também no turno
matutino, por ser supostamente menos afetada pela racionalização, onde teria
comportamentos menos condicionados por valores estabelecidos socialmente,
90
valores “inocentes”. A professora Suzana me recebe com a mesma atenção e
começo a observar o cotidiano da sala.
Obviamente, em menor grau, mas as crianças também já estavam
condicionadas pela rotina da sala e pouco me dediquei em relação aos espaços de
liberdade e criação dos estudantes, contudo, ao observa-los, pude perceber como
se dava o desenvolvimento na autonomia das crianças, segundo a concepção
piagetiana48, e em relação aos conteúdos estudados associados ao tema de
pesquisa.
Confesso que imaginei que as escolas, inclusive as mais progressistas,
seriam mais racionalizadoras, não havendo espaço para a brincadeira livre e para a
criatividade espontânea, para o cultivo da imaginação sem ser mediada, controlada,
conduzida ou calculada pelo educador.
O NEI me mostrou que apesar da tendência hegemônica à racionalização
formal, ainda existem espaços de cultivo do nosso lado poético, do nosso demens,
apesar da inteireza, como pensou Almeida (2012) do sujeito ser conduzida de
maneira desproporcional. Ou seja, a maioria das atividades, ainda que lúdicas e do
interesse dos discentes, eram conduzidas tendo em vista uma finalidade
programada pedagogicamente, o que vai de encontro com a proposta de valorizar tal
como o planejamento pedagógico, a brincadeira livre e poética devaneante, que é
orientada unicamente para a felicidade e prazer do brincante e seu onirismo.
Assim, o NEI me ajudou a redefinir o campo de pesquisa, mostrando a
necessidade de iniciar o trabalho na Educação Infantil para identificar o momento
que paulatinamente, ou não, existe a hierarquização e elevação do status quo do
sapiens, sobretudo a brincadeira livre daqueles que são ainda menos domesticados
pela linguagem e racionalidade do paradigma em vigor.
Todavia, no ano de 2016, tento retornar ao NEI para mergulhar de fato na
pesquisa, agora acompanhando a Educação Infantil e seus diferentes níveis.
Infelizmente, apesar de ser uma escola de aplicação da UFRN, o NEI encontra-se
impedido judicialmente de permitir trabalhos com pesquisadores externos à escola.
A gestão me esclareceu que em virtude de uma denúncia de ‘um responsável’ que
não estava de acordo com os estudos acadêmicos lá realizados, um juiz proibiu as
pesquisas desde então. Fato é que, ao invés de recorrer as instâncias competentes
48A concepção de Jean Piaget (1993, p. 173-189) sobre o desenvolvimento da autonomia é de que é a “capacidade de coordenação de diferentes perspectivas sociais com o pressuposto do respeito recíproco”.
91
para autorizar a continuação da pesquisa, optei por absorver o dano e partir para
outra escola que facilitasse a minha pesquisa de campo.
Contudo, agradeço imensamente à gestão do NEI, bem como às professoras
que me receberam e estudantes que me encantaram, pois, contribuíram
decisivamente para o desenvolvimento desse estudo em um momento tão
importante da pesquisa. Todo começo é difícil, mas estive muito bem amparado, o
ano de 2015 me presenteou com o acompanhamento a essa escola de aplicação
que cumpriu seu papel sendo farol para essa tese.
Seguindo a caminhada na busca de outros campos, partindo de critérios
previamente elaborados, descritos na introdução desse texto, escolhemos e fomos
aceitos em outros dois espaços: a Escola Freinet Natal, localizada no município de
Natal/RN, e o Centro Infantil Municipal Liquinha Alves, no município de
Parnamirim/RN.
ESCOLA FREINET NATAL: O ATELIÊ DE EDUCAÇÃO INFANTIL
"Lutar pelo advento de uma sociedade na qual a criança possa desenvolver-se integralmente, o mais humana e harmoniosamente possível, criar o clima favorável ao seu desabrochar, que desejamos e preparamos, é um dos primeiros deveres pedagógicos."
Célestin Freinet
Em uma das orientações coletivas realizadas pela professora Ana Laudelina,
compartilhei a minha busca por escolas com perfil interessante para a pesquisa de
campo. A minha colega de grupo Mirian, tinha sido professora de geografia da
Escola Freinet e comentou um pouco de sua experiência obtida lá, das oficinas,
método e da vida na escola. De imediato, me interessei pela escola, mal sabia que
aquele encantamento inicial era apenas o começo.
Num fim de tarde na cidade do Natal no início de setembro, ano 2016, fui à
Escola Freinet com o objetivo de agendar uma reunião com a direção para explicar
minha pesquisa e solicitar autorização para iniciar o meu ciclo de visitas à instituição.
Na ocasião, fui recebido pela professora Antônia, quem me explicou que no contra
turno estudavam as crianças bolsistas da escola que depois das atividades matinais,
permaneciam ali a tarde, no Educandário Oswaldo Cruz, o qual ela é vinculada, que
este, funciona naquele prédio antes mesmo da Escola Freinet e que a última só
92
funciona no turno matutino. Recomendou que eu fosse no outro dia, mesmo sem
agendamento falar com o diretor João Vianney e assim o fiz.
Gostaria de falar mais sobre o tempo que partilhei com a professora Antônia.
Entendo que naquela breve conversa ela me deu uma linda lição sobre uma
educação imaginativa, fui aquecido. Ela sem querer me fez devanear, fiz uma
viagem no tempo e espaço, para uma região longínqua, onde “memória e a
imaginação não se deixam dissociar” (BACHELARD, 2008, p.25). A professora
Antônia, simplesmente me dando informações, com conversas de adulto, me
ensinou as lições do carinho e da atenção. Aquela professora ao mesmo tempo
que me recebeu, atendeu a pais que iam buscar seus filhos e também a algumas
crianças que disputavam sua atenção, com um sorriso, carinho e gentileza
impressionantes. Ela me mostrou que essas características do educador são um
convite a nossa humanidade, que é racional e sonhadora, despertando um bem-
estar infantil, nossa humanidade sonha, “reconfortamo-nos ao reviver lembranças de
proteção” (BACHELARD, 2008, p.25). Também já habitei uma escola como aquela.
Quando sai da presença da ‘professorinha’, não estava mais em terra firme
mas no espaço onírico, o passado já “não é estável, ele não acode a memória nem
com os mesmos traços, nem com a mesma luz. [...] o passado aparece na dupla
potência dos espírito que se lembra e da alma que se alimenta de sua felicidade”,
então, “a Memória e a Imaginação rivalizam para nos devolver as imagens que se
ligam à nossa vida” (BACHELARD, 2009, p. 99). Assim voltei à minha infância, era
novamente um pequerrucho na saída da escola com saudades da professora, as
crianças que brincavam ao meu redor espalhavam minha alegria, sem nenhuma
ordem ou responsabilidade, como é de costume na espontaneidade infantil. Que
hora mágica é a hora da saída, quanta liberdade. Certamente o carinho que recebi
da professora Antônia me conecta a outros que senti outrora por outra professora,
mais importante do que qualquer lição que eu já esqueci ao longo das décadas,
esse ainda mora em mim. Saudades da minha professora Maria, da primeira série
fundamental, “na verdade, os sonhos falam em nós o que nenhuma palavra sabe
dizer” (COUTO, 2011, p. 12).
Ao chegar à calçada, meu devaneio vai se dissipando deixando no meu peito
uma alegria e um bem-estar de sonhador, não resisto, olho para trás buscando algo,
talvez o devaneio, talvez a senhora sorridente quem me atendeu, talvez um último
olhar para as crianças e vejo o prédio compartilhado pelas escolas (Freinet e
93
Educandário Oswaldo Cruz). O que é aquilo? No coração da avenida mais
importante de Natal, que localiza os principais shoppings, atravessa os bairros mais
glamorosos (Petrópolis e Tirol), conecta a zona sul (das classes média e alta) ao
centro (comercial) da cidade aquele prédio resiliente resiste.
Suas janelas brancas voltadas à avenida Hermes da Fonseca parecem não
ouvir os transeuntes e veículos de todos os tamanhos gritando o barulho do transito
da cidade de Natal, não escutam o urro dos ônibus e dos caminhões, estão
concentradas demais no que há dentro do prédio. Guardam uma poesia
arquitetônica que dialoga com a natureza manifestada em um jardim no coração do
seu terreno. Abrigam nele, mais que uma cooperativa de professores, a escola
Freinet diurnamente e o Educandário Oswaldo Cruz em suas tardes, abrigam
espaços constantemente poetizados pelos devaneios daqueles que se prestam a
fitá-lo, olhá-lo, enamorá-lo, sem demora, sem stress, a viagem imaginária é destino
certo. Como seria se pudéssemos vê-lo do céu? Deve ser vê um carro clássico, no
meio dos modernos automotivos que não sabem a beleza de ser atemporal.
O prédio jamais tinha chamado minha atenção, mas naquele momento, talvez
e possivelmente por eu ainda estar sob a embriaguez do último devaneio, ele se
apresentou me convidando a um passado onde a arquitetura não arranhava os céus,
mas adornava os espaços da terra. Parece que ele saiu direto do passado cheio de
janelas, portais, portas. Espaços de fluxos, de trocas, de ascensão e redondezas de
um encantamento que resistiu ao tempo.
No dia seguinte pela manhã, retorno à escola e busco na secretaria o gerente
administrativo49 João Vianney como fui orientado. Explico que meu intuito inicial é
agendar uma reunião com ele, justifico o meu interesse e rapidamente sou
informado que ele está em uma reunião e logo que terminar já iria me atender.
Em instantes fui atendido, ele veio à mim. E iniciamos a conversa, eu com
minhas apresentações quem eu sou, de onde venho, o que faço, “quais minhas
verdadeiras intenções com a escola Freinet?” Minha maior preocupação na ocasião
seria mostrar que a minha busca com relação à escola é dar visibilidade ao que ‘tá
dando certo’, os devaneios poéticos da criançada e as práticas educativas mais
encantadas, e ser aceito, é claro. Aos poucos, fui relaxando, cada intervenção que
49 Como a pedagogia Freinet é de caráter libertário algumas desconstruções partem de nomenclaturas. Por não incentivar lideres nem liderados a personagem do diretor cede lugar ao gerente administrativo, que no caso da Escola Freinet de Natal é um membro da cooperativa de professores eleito democraticamente.
94
ele fazia me deixava mais confortável, seguro, percebi que estava sendo acolhido.
Ambos achávamos que a universidade necessita se abrir mais, que a pedagogia
precisa superar o tradicionalismo, o ouvi, me reconheci em muitas ideias, ouvi sobre
a escola, sobre a organização deles em cooperativa, foi muito valioso.
Mas algo me chamou muito atenção. Perguntei sobre a necessidade de levar
documentos do meu programa de pós-graduação para assegurar minha presença na
escola. O professor Vianney abriu realmente as portas da escola para mim, sem
necessidades de documentos ou grandes formalidades. Ele me tratou como um
igual, de forma colaborativa, respeitando meu trabalho como pesquisador, mas
entendi como um reconhecimento entre educadores que se entreajudam, como se
eu fosse um cooperado, melhor, como eu já fizesse parte da escola. Demonstrou
também, muita segurança e confiança no trabalho que ali é realizado, além de
entender a necessidade da academia e em especial a UFRN se abrir e intercambiar
e receber também o que é produzido fora de seus muros e conhecer mais o trabalho
ali realizado. No fim da reunião, após justificar meu interesse pela Educação Infantil,
fui apresentado a professora Sarah, responsável pela turma, me despedi já ansioso
para voltar repercutindo dentro de mim um bem-estar e uma sensação de ser
acolhido, mais uma vez.
No dia seguinte foi feriado, precisei conter minhas expectativas, mas no outro
dia tive meu primeiro contato com a turma. A primeira grande curiosidade é que a
Educação Infantil na escola não possui subdivisões etárias, os alunos de várias
idades convivem no mesmo ateliê, nome dado à sala de aulas, quando necessário,
separando no mesmo espaço dois principais grupos por idade média. Existiam duas
professoras em sala, a Sarah, à qual já havia sido apresentado e a professora
estagiária Soraia, que se dedica principalmente às crianças menores.
Vale salientar que essa experiência de acompanhar concomitantemente
múltiplas idades se mostrou demasiadamente proveitosa para a pesquisa, pois pude
cambiar entre os grupos e acompanhar as diferenças, semelhanças, pensar um em
relação ao outro, e perceber as características de cada vivência escolar sem
precisar sair de sala, tudo em um só lugar.
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Fig. 5 – Fachada da Escola Freinet
Fonte: Acervo do Autor (2016)
Fig. 6– Espaço interno da Escola Freinet
Fonte: Acervo do Autor (2016)
96
Apesar de nosso foco não ser a escola em si, me parece importante e
necessário compor minimamente nosso itinerário e narrar um pouco da vivência na e
da escola para melhor compreensão do leitor. Em uma síntese da professora Sarah
a turma possui 16 crianças com idades entre dois e seis anos, sendo 11 meninos e 5
meninas. Outro ponto destacado por ela é que muitos são filhos únicos.
Endosso que não vou aqui transcrever a aula, mas assim como Bachelard
que se detia ao fragmento do poema que o interessava, vou me deter aos
experiências (oníricas) e fatos que me provocaram devaneios e/ou reflexões.
A chegada é hora de reencontro e brincadeira, brinquedos em punhos e
crianças cercando a mesa central. Logo se vê que para as crianças ainda não foi
circunscrito os limites da imaginação, elas são personagens, heróis fantásticos, a
imaginação infantil transborda e chega a ser visível no mundo real. Após a chegada
das crianças, dividiu-se a sala entre pequenos e muito pequenos, o primeiro grupo
foi se reunir na “Reunião Inicial50” e conversar já fazendo referência a temas de
interesse da turma de forma dinâmica e lúdica. A professora, na ocasião, usou um
brinquedo nomeado robozinho com múltiplas expressões faciais como “provocador”
da reunião.
Na outra extremidade do Ateliê de Educação Infantil, concomitantemente à
reunião das crianças entre 4 e 6 anos, entre os pequeninos de 2 e 3 anos, a
brincadeira continuou. Agora, numa mesinha menor num canto da sala, com quatro
crianças. Abrindo parêntesis, vale lembrar uma fala de Bachelard sobre os cantos:
“todo espaço reduzido que gostamos de encolher-nos, de recolher-nos em nós
mesmos, é, para imaginação uma solidão (BACHELARD, 2008, p. 145). Não resisto
à brincadeiras, meu olhar foi cativado pelo ‘cantinho’, percebi que aquelas crianças
brincavam numa pequena mesa, ocupando os quatro lugares, mas nenhuma
naquele momento brincava junto com a outra, interagiam vez por outra, mas
estavam imersas demais em seus devaneios de brincantes inundados no seu
próprio onirismo,
Toda a vida é sensibilizada para o devaneio poético, para um devaneio que sabe o preço de solidão. A infância conhece a infelicidade pelos homens. Na solidão, a criança pode acalmar seus sofrimentos. Ali ela se sente filha
50 Técnica Freinetiana que “Acontece todos os dias no momento de chegada dos alunos. Tem o objetivo de abrir o espaço democrático de comunicação de novidades, curiosidades e assuntos pesquisados livremente pelos alunos. Essa reunião poderá desencadear uma discussão rica na sala, na qual todos os alunos terão oportunidade de expor um assunto de seu interesse. Cabe aos professores dar atenção e estimular essa ação pedagógica de livre expressão” (SOARES, 2016, p.55).
97
do cosmos quando o mundo humano deixa-lhe a paz. E é assim nas suas solidões, desde que se torna dona dos seus devaneios, a criança conhece a ventura de sonhar, que será mais tarde a ventura dos poetas (BACHELARD, 2009, p. 94)
Quando nós vamos perdendo a facilidade de acessar esse mundo onírico?
Bachelard (2009, p. 2) também percebeu que o empobrecimento da capacidade
imaginativa com o passar dos anos, destacando o olhar do psicólogo “que ver
nascer a imaginação nas crianças sem nunca, a bem dizer, examinar como ela
morre na generalidade dos homens”. Para aqueles pequerruchos o universo todo
era a brincadeira. Bachelard aponta que através da imagem poética, especialmente
da imagem literária, conseguimos acessar esse onirismo, ele nos provoca, “é no
devaneio que somos seres livres” (BACHELARD, 2009, p. 95). Mas as crianças
possuem acesso permanente ao sonho por meio da brincadeira, que é faz de conta,
jorro de liberdade criativa.
Retomando o olhar sob as crianças na brincadeira livre, não pude deixar de
lembrar Bachelard (2009, p.167) ao perceber que suas mãos infantis sonhavam sem
parar. As mãos que sonham, assim como o ser em Bachelard torna-se universo: “O
Sonhador de mundo habita o mundo que lhe acaba de ser oferecido. De uma
imagem isolada pode nascer o universo”.
Portanto, as mãos também são brinquedo, elas animam matérias e sonhos,
elas dão vida, elas manipulam fantasias, elas modelam realidades em surrealidades.
“É o ser humano que desperta a matéria, é o contato da mão maravilhosa, o contato
dotado de todos os sonhos do tato imaginante que dá vida às qualidades
adormecidas que estão adormecidas nas coisas” (BACHELARD, 2013, p. 21).
Assim, mão, criança, brinquedo, sonho, naquele momento são indissociáveis, são o
devaneio poético da brincadeira.
Contudo, pude perceber observando o grupo de crianças maiores que
estudavam o ‘relógio e as horas’ que as mãos que sonhavam também eram
curiosas, exploravam e assimilavam. As professoras permitiram que as crianças
manipulassem os relógios em sala, notei que aquelas mãozinhas interviam,
investigavam, concentravam: aprendiam. A manipulação do relógio dava sentido ao
aprendizado de forma lúdica. O mesmo corpo/ferramenta, sonha e aprende, e é na
infância que isso se torna mais intenso, antes de os sonhos serem recalcados e
inferiorizados diante da razão.
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Fig. 7 – Crianças brincando dentro da sala de aula Fonte: Acervo do Autor (2016)
Fig. 8– Crianças brincando fora da sala de aula Fonte: Acervo do Autor (2016)
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Por fim, as mãos de algumas crianças me contaram uma última história:
Como pessoa estranha, senti resistência e desconfiança por parte das crianças com
a minha chegada (apesar de usar minha infalível camisa de super-herói geradora de
empatia), mas ao me fazer presente na turma, brincar com alguns em ocasião
propícia, ainda no primeiro dia ganhei uns abraços de aceitação e acolhimento,
primeiro a aproximação, o toque e o abraço, mãos que se tornam ninho, carinho,
segurança e aconchego. Para Bachelard (2008, p. 115), “tanto o ninho, quanto a
casa onírica [...] não conhecem a hostilidade do mundo”. Lição que dispensou
palavras. A principal aprendizagem do primeiro encontro foi que: as mãos ensinam a
imaginação, a razão e o toque de afeto ensina ao coração.
Em outro momento, retomando a narrativa sobre o grupo de crianças maiores
que estudavam na ocasião ‘os alimentos’, a professora Sarah pediu que
desenhassem o que eles comem no almoço. Foi uma experiência interessante e
proveitosa, onde sonho e razão dançavam entre si, ora oscilando e divergindo, ora
se harmonizando, dialogicamente “em luta e acasalamento” (MORIN, 2003, p.66).
Os resultados foram desde pratos mais convencionais, a florestas com personagens
amigos interagindo, algumas pinturas que para olhos treinados pela razão seriam
indecifráveis, só passíveis de serem contempladas em sua beleza pela imaginação.
É oportuno compartilhar as mudanças de algumas concepções que esse
estudo tem me permitido fazer. Inicialmente, eu tinha por hipótese que a pedagogia
racionalizou demasiadamente a educação infantil, que apesar do uso de
brincadeiras, jogos, ludicidade, tudo era feito tendo em vista uma finalidade objetiva
e em alguma medida calculável e isso era negativo. Percebo agora com o campo,
que minha hipótese se mostrou muito radical.
A imaginação criadora é uma potência humana, ela pode até ser inferiorizada,
invisibilizada, mas jamais aniquilada. Se isso não ocorre em outros níveis de ensino,
ou em espaços mais formais e racionalizados de socialização/educação, não
aconteceria na Educação Infantil onde os sujeitos naturalmente transitam melhor
entre imaginação e realidade e a própria estrutura de ensino/aprendizagem é mais
aberta à ludicidade.
Com isto, a atividade do desenho temático convida razão e imaginação a
trabalharem juntas, dialogicamente, de maneira complementar, para além do
importante desenvolvimento da motricidade, mesmo o tema sendo sugerido
100
antecipadamente pode tornar-se via poética, caminho unidual ao não
esquartejamento do antropos.
Na semana seguinte, o primeiro encontro serviu para endossar o que tinha
visto antes. A rotina da sala de aula se manteve, contudo dois momentos me
chamaram muito atenção. No primeiro deles, as crianças menores saíram com a
professora Soraia da sala de aula e foram para o pátio (espaço ao ar livre, sombras
de árvores, muitas plantas ao redor), novamente eram quatro crianças. A professora
tirou a roupa de três delas, ficaram apenas com o short ou fralda, o outro resistiu
para não tirar a roupa e a professora não insistiu. Sentaram-se ao redor de uma
grande folha em branco, que devia ter 1,2m por 0,8m, no chão havia tinta guache de
várias cores, cola, palitos de picolé e as crianças já sabiam o que fazer.
Os pequerruchos, dois meninos e duas meninas se envolveram com
intensidades diferentes na brincadeira/atividade, o menino que ficou vestido me
pareceu mais tímido, mas não deixou de tocar as tintas, experimentar pintar a tela
branca, todavia, não foi tão expansivo quanto os demais.
Duas das outras crianças se deixaram envolver um pouco mais no jogo de
pintar, suas mãos e braços denunciavam a arte criada, e que as suas mãos
devaneavam na pintura, pelas texturas, temperatura, cores, uma delícia.
A última menina, caçulinha do grupo de menores e famosa por ser muito
peralta, foi um caso à parte. Ela literalmente se jogou na brincadeira, inicialmente a
explosão de cores foi lançada contra a tela, parecia que todo universo estava sendo
recriado em cores, encantamento e alegria. Logo, como todo universo em expansão,
o espaço/tela já não dava conta do devaneio da pequenina do grupo e ela se fez
tela, completamente, literalmente dos pés à cabeça.
Presenciar aquela experiência foi muito importante e simbólico, parecia que
eu estava tendo oportunidade de acompanhar in loco e em cores, um devaneio que
é algo particular e intransferível, não pude compartilhar ele em si, mas ele ficou
marcado, pois a menininha transfigurou o seu devaneio por meio das tintas e cores.
No fim, a professora recolhe a tela, as demais crianças seguem para o banheiro
para lavar as mãos, os braços, quando muito o rosto e a ‘tela viva’ com um sorriso
de satisfação irresistível pergunta: - Banho?
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Fig. 9 – Crianças no pátio em atividade de Arte Fonte: Acervo do Autor (2016)
Fig. 10 – Crianças no pátio em atividade de Arte Fonte: Acervo do Autor (2016)
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O segundo momento que me chamou muita a atenção não poderia ser
diferente: o recreio, “a hora do lanche é a hora mais feliz”. Recreio: essa simples
palavra para mim é completa poesia. Quantas brincadeiras, sensações, guloseimas,
quanta correria, claro! Acaba tão rápido. Hora da brincadeira livre! Em muitas
escolas uma das coisas que demarcam fortemente a saída da Educação Infantil e do
Ensino Fundamental I (menor) é o fim do recreio.
Nesse contexto, o ato de brincar acontece em determinados momentos do
cotidiano infantil. Sobre isso, Oliveira (2000) sinaliza que o ato de brincar se dá em
um processo de humanização, no qual a criança aprende a conciliar a brincadeira de
forma afetiva, criando vínculos mais duradouros. É exatamente nesse momento que
a criança desenvolve sua identidade, sua autonomia, atenção, imaginação,
memória, imitação, que experimenta e cria regras, etc.
Quanta diferença ser chamado de intervalo, a dinâmica e a vida do pátio
diminuem, tornam-se mais lentas, sem correria, menos brinquedos, menos jogos,
menos brincadeiras, quando existe oportunidade de brincar de jogos com bola, é
quando a infância do jardim se aproxima um pouco, mas não demais, porque os
discentes já são uns rapazinhos e mocinhas, que tédio.
Retomo o recreio da Escola que ocorre concomitantemente na Educação
Infantil e o Ensino Fundamental aumentando as possibilidades de socialização,
interação e brincadeiras. Tive oportunidade de acompanhar dois tipos de intervalos:
em sala de aula e no pátio.
O primeiro, em sala de aula, ocorreu em virtude de uma das professoras sair
na hora do intervalo para uma consulta médica. Nessa atividade há outras que
ajudam as professoras a olharem as crianças. Assim, aquelas decidiram que seria
mais conveniente e seguro não saírem da sala. As crianças comeram e brincaram
um pouco na sala, mas eu não usaria a palavra recreio para esse intervalo.
No pátio, sim, foram verdadeiros Recreios. Apesar de ser também o momento
de comer, ali a alimentação torna-se secundária, é hora de brincar. Não pude deixar
de perceber a relação das crianças com o meio, a natureza, as árvores do pátio,
duas matriarcas que agregam frutos de todos os tamanhos e sabores ao seu redor.
Em torno das árvores em círculos de cimento que as elevam e a destacam
frente aos demais elementos do pátio. Um dos ‘círculos’ que aos adultos poderiam
sugerir um convidativo banquinho para relaxar aproveitando o ar puro, a sombra e
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outras vantagens vistas por adultos, se tornou magicamente em uma pista de corrida
para carrinhos de muitos tamanhos.
A maioria dos meninos que ali brincavam tinham entre 5 e 6 anos, mas dentre
eles estava um guri também da Educação Infantil de recém completos três anos. Em
suas mãos estava um carro sem as rodas traseiras, mas no devaneio poético, na
brincadeira as rodas são um mero detalhe, o carro também, o que importa é o que
se imagina. A imaginação torna-se fábrica de felicidades, assim como para
Bachelard (2009) e Manoel de Barros (2010), não precisamos de asas para voar, o
sonhador de brincadeiras ao brincar com um carrinho, também não necessita de
rodas. A maior expressão poética da criança advém da imaginação ativa expressa
na brincadeira. Isso precisa se perder para se transformarem em adultos? Se sim,
isso justifica a infância permanente (sonhada) vivida por muitos poetas.
Novamente atraído pelas árvores do pátio, contemplo. Noto que elas não
exercem esse magnetismo apenas em mim. Vem-me novamente a imagem
matriarcal, não é por acaso que os ninhos são feitos de preferência em árvores: dão
credibilidade e segurança. Além disto, elas possuem encantamentos e segredos da
terra e dos céus. “Há objetos que têm força de integração, [...] servem para integrar
as imagens, [...] a árvore é um objeto integrante”. (BACHELARD, 1990b, p. 230).
Todavia, as crianças pareciam captar essa natureza encantadora e subiam no
elevado que dá acesso uma das árvores, tentavam escalar sem sucesso aparente
no mais sincero abraço, como numa fusão cósmica homem/natureza imobilizados,
arvorizados. Certamente, muito além do que pareceu, sei que os pequerruchos
subiram ao topo dessa mãe acolhedora, em suas imaginações eles se elevaram.
Bachelard (2009) nos ensina que sonhamos antes, imaginamos antes tudo que
fazemos. Eles estavam nesse momento que é tão importante quanto realizar.
As duas árvores repousam no pátio exercendo seu magnetismo, assim como
em torno de um núcleo atômico orbitam os elétrons, as crianças seja correndo ou
andando, orbitam em diferentes velocidades, brincadeiras e devaneios ao redor das
guardiãs do recreio.
Na Escola Freinet de Natal, diferente de outros estabelecimentos de ensino
infantil, não percebi na hora do recreio o acesso das crianças a um parque montado.
O pátio já citado, não tem um desses parques pré-moldados, ou encomendados,
com escorrego, gangorra, balanços e o mais incrível, não pareceu fazer falta
alguma.
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Fig. 11 – Árvores com bancos de cimento Fonte: Acervo do Autor (2016)
Fig. 12 – Árvores com bancos de cimento Fonte: Acervo do Autor (2016)
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Fig. 13 – Criança brincando de carrinho na árvore com bancos de cimento
Fonte: Acervo do autor (2016)
Fig. 14 – Crianças brincando sob a árvore
Fonte: Acervo do Autor (2016)
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Observei que as crianças brincam colorindo o espaço com suas imaginações
em devaneio poético. Toda brincadeira imaginativa da infância é deformação do real,
é busca pelo estado de felicidade, é devaneio poético. Entre o verde das plantas e
do chão, os tons imprecisos de salmon da parte externa do prédio e do azul bebê e
branco das paredes internas, no recreio o pátio é acordado, todos falando ao mesmo
tempo dando vazão as suas fantasias, todo o espaço torna-se (mais) poético.
Não poderia deixar de pensar a partir da observação do intervalo na
socialização espontânea das crianças, das brincadeiras em grupo, do corre-corre,
pega-pega, o gira-gira, do ‘autódromo’, da ‘escalada da árvore’ como quem tenta
retornar ao colo materno, no cutucar a terra junto (parece que um faz e o outro é
seduzido a fazer), no partilhar brinquedos, as crianças possuem uma capacidade
bem maior que os adultos de compartilhar sonhos, de se contaminar com a
imaginação do outro, de perceber a poesia no espaço e se apropriar dela de
maneira única, e apesar de cada devaneio ser intransferível, se torna
potencialmente contagiante. As crianças brincam, sonham, imaginam juntas, de
maneira singular e pessoal, e simultaneamente, plural e contagiante, criando
universos novos e diferentes a cada momento, com algum fio invisível que ligam
esses psiquismos.
Com o processo de amadurecimento dos frutos da árvore mãe da vida,
paulatinamente a maioria dos adultos vão atrofiando essa potência poética infantil,
mas nunca definitivamente, porém, uns mais que outros. Creio que nunca
apodrecemos a imaginação e o sonho, mas a racionalidade como via única para o
conhecimento e para a vida nos faz esquecer dos sabores da poesia e isso diminui
nossa humanidade, desarmoniza o antropos. As artes e principalmente a literatura,
que em Bachelard (2008, 2009) teve toda uma atenção especial, são suscitadoras
de devaneios poéticos. Elas podem ressoar e repercutir no ser, resgatar infâncias
perdidas ou ainda nem vividas, infâncias novas, regenerar cosmicidades, expandir
ou retrair o ser, gerar felicidade. A imagem poética é sempre nova, pois o devaneio
do leitor a transforma (BACHELARD, 2008).
Através do encantado do mundo, acessado pelo poético, as expressões
artísticas alimentam o poeticus, imaginarius, ludicus, potências antropológicas que
germinam do que tenta-se atualmente recalcar através das práticas pedagógicas
tradicionais ou pouco progressistas. Assim, tendo em vista como ‘plano final de
trabalho’ o homem racional, adulto, apto para viver na sociedade atual.
107
Necessitamos de infantilidades (oníricas) que nos humanizem. Carecemos de
recreios e não de intervalos.
Uma experiência marcante que tive com as crianças e certamente foi
facilitadora do meu acolhimento por parte delas foi mágica, literalmente. Conheço
três truques extremamente simples e foi me dada a oportunidade pelas tutoras da
sala de apresentar para eles inicialmente dois truques. Enquanto a professora
organizava um cantinho para a turma ver uma animação e guardava o material da
atividade anterior, ela permitiu minha intervenção.
Sentado no chão, próximo a pequena biblioteca infantil existente na própria
sala, lugar essencialmente mágico e imaginativo, convidei a turma para ver um
truque de mágica. Todos se aproximaram (com exceção de uma criança visitante)
uns curiosos com a mágica em si, outros atraídos pelo deslocamento das demais
crianças até aquele cantinho da sala.
A infância é o lugar onde não existe constrangimento ou vergonha de crer no
ilógico ou fabuloso, ao contrário a imaginação poética das crianças é quase sempre
ativa ou pronta para ser ativada, eles têm sede de surrealidades, de inversões da
realidade, de espanto, do inacreditável, do encantamento.
Pego um caroço de feijão cru e coloco na boca, tiro um caroço de feijão para
cada criança da roda (na verdade o caroço nunca saiu da minha boca, finjo tirar os
caroços) dizendo o nome delas uma a uma (sendo ajudado por elas, pois na ocasião
só sabia no máximo meia dúzia de nomes), mas não entrego a eles, guardo (finjo
guardar) todos na minha mão esquerda, na ocasião fechada. Os rostos de
fascinação e surpresa não se contentam: - professor, como apareceu esse montão
de feijões? Acho que fizeram mil perguntas, a imaginação foi provocada a devanear,
mas a racionalidade prática paralelamente, convidada a entender. Complementado a
‘provocações de exercício’ para razão e imaginação, mas não menos importante, a
admiração gerada, incitadora de encantamento e empatia. Quem não quer ser
amigo de um mágico?
Na segunda parte da mágica, visto que retirei um feijão para cada um deles
(“de brincadeirinha”) e os guardei na minha mão, mesmo que só tenha pegado um
feijão inicialmente, peço para contarem quantos feijões eu deveria ter na mão.
Contados e recontados, o grand finale, peço cada um dos que ainda estão presentes
na roda para soprar mão fechada hipoteticamente, ou magicamente cheia de feijões,
com direito a sopradas extras representando os já ausentes, e thamram, no
108
derradeiro sopro que solicitei ser bem forte abro a mão e todos os feijões somem
(pois nunca estiveram lá). Empatia, imaginação e razão associadas a serviço de
provocar o interesse dos discentes, me parece uma estratégia didática interessante
em todos os níveis de ensino.
Não de maneira aprofundada, até porque não era a proposta eu ensinar nada
para turma, apenas distraí-los momentaneamente, mas ludicamente foram
mobilizados conhecimentos matemáticos e linguísticos, bem como estimulado o
exercício cidadão de colaboração e ajuda (eles me ensinando), ou seja,
solidariedade, e também de representatividade das duas crianças ausentes. A
mágica poderia sim virar aulas, senão aulas de mágica, mas aulas mágicas. O
mesmo ilusionismo que espanta, provoca e suscita poetização e racionalização do
ser. “Admira primeiro, depois compreenderás” (BACHELARD, 2009, p.182), o sonho
desperto planta no ser o encantamento, o deslumbramento, o interesse, que
posteriormente pode germinar e se desenvolver em um ou mais tipos de saberes, ou
prazeres.
Ainda sobre o mesmo momento pude perceber que determinadas estratégias
são mais ou menos eficazes nas diferentes idades. Cabe ao educador ser sensível
ao seu público. Na primeira apresentação de ilusionismo aqui relatada, duas
crianças dentre as doze presentes, não tiveram paciência e curiosidade ou não
foram atraídas encantadas pela apresentação. O que é absolutamente normal
considerando as diversidades e particularidades de cada um, mas observação
trouxe uma lição para além do exposto.
As crianças que optaram por se afastar faziam parte da turma dos
menorezinhos, um deles sequer se aproximou, mesmo eu o chamando pelo nome, a
outra veio ao grupo passou uns instantes, averiguou e achou melhor procurar algo
mais legal para fazer. O devaneio com a mágica e sua compreensão requeria um
grau de subjetividade e reconhecimento simbólico ainda não alcançado pelos
menores. Os exercícios de leitura das imagens e dos símbolos (poética e racional)
permitem tanto a identificação objetiva e convenção necessárias para compreensão
(como, por exemplo, o entendimento do significado das palavras) como a libertação
e transcendência do seu significado em devaneio poético.
Dentre os outros dois menorezinhos que permaneceram no grupo, creio que
para além da apresentação, o interesse maior e o encantamento que permitiu que
continuassem foi relativo ao prazer de estar no grupo, de socializar. O relato da
109
segunda mágica feita logo que a primeira acabou e da terceira realizada em um
outro encontro no momento não parecem oportunos, caso se faça necessário mais
adiante, retomo o tema.
Uma característica marcante na pedagogia freinetiana é a conservação de
uma pequena biblioteca em cada ‘ateliê’ (nome dado ao que corresponde a sala de
aula na pedagogia tradicional) nos diversos níveis de ensino. Na escola Freinet de
Natal o ateliê de Educação Infantil não poderia ser diferente, conservando um
encantador cantinho da leitura com livros infantis disponíveis na altura das crianças
e ao seu livre acesso.
À primeira vista, ao meu entendimento de adulto pareceu insano colocar os
livros ao dispor de crianças que poderiam rasgá-los. De fato, ao manipular muitas
das obras infantis que lá estavam é evidente a ausência de algumas, capas e
páginas. Todavia, foi fascinante observar a naturalidade como as crianças das
menores às maiores se apropriam dos livros, os manipulam e se transformam a
partir deles.
Em muitas histórias, em seu devaneio, as crianças se identificam e admiram
tanto os personagens que se declaram eles, assim como na repercussão51
bachelardiana o leitor se identifica a tal ponto com a poesia, que é como ele mesmo
tivesse a escrito (BACHELARD, 2008). Aqui não existe mais limite entre obra de arte
e leitor (devaneador), bem como, fundem-se criança e história seja do livro, narrada,
ou de uma animação. Transmórficas, as crianças se transformam por meio do sonho
e da brincadeira em qualquer outro ser ou coisa, vivem em estado latente de
devaneio poético.
Ao longo dos dias percebi que de vez em quando, algumas crianças com
mais de quatro anos, sem nenhum comando ou obrigação ocupam o cantinho da
leitura, sentam ou deitam-se na presença de um livro escolhido e mergulham nele.
Comem antropofagicamente as suas figuras, as palavras e se tornam a história. Na
contação, ocupam seus lugares no espaço onírico num tempo onde se é o que se
sonha.
Ao contar histórias para os pequerruchos menores de quatro anos percebi
que sabiam o nome dos animais, dos números, havia alguma intimidade com cada
51Lembremos: Bachelard trata das categorias analíticas ressonância e repercussão. A primeira está ligada à capacidade de dispersar o sujeito em diferentes planos da vida, já na repercussão Bachelard diz: ela “convida-nos a um aprofundamento da nossa própria existência”. (BACHELARD, 2008, p. 7).
110
um daqueles livros, os quais eles mesmos pegavam e me traziam. O contato que
inicialmente me pareceu precoce trouxe uma relação de intimidade, na medida
deles, também se apropriaram e imaginaram cada livro.
Em outro momento de observação dias depois, ocorre um fato curioso: a
transferência dos livros. O menino de pouco mais de dois anos resolve tirar os livros
de um canto da sala e empilhá-los numa cadeira do outro lado. Sem demora todas
as quatro crianças pequenas estavam colaborando na tarefa inventada pelo
coleguinha. Como é bom transferir coisas de lugar, levá-las para passear, dar-lhes
novas moradas.
Tudo parecia muito divertido até que a caçulinha dos menores derruba a pilha
de livros. O encanto se quebrou, o idealista parou de transferir os livros e pouco a
pouco os demais também, até que a professora Soraia orienta que todos devem
devolver os livros para a estante.
O idealista indignado se nega e denuncia a derrubadora dos livros, ela por
sua vez já não quer saber dos livros, as outras duas crianças com a mesma
brincadeira e aparente satisfação devolvem um a um os livros à estante. A
professora conduz o idealista a repor os livros no local adequado, com alguma
resistência e chorando, vagarosamente ele vai também levando um a um. A caçula
precisa ser trazida pela mão e reorientada. Esta resiste bastante, leva um livro e
foge, dispersa-se, é reconduzida e explicada a importância de manter aquele lugar
tão legal, organizado. Os outros trabalham cooperativamente, mesmo com
resistência a professora agora ajudando orienta a pequena até terminar a tarefa.
Sistematizando sucintamente o ocorrido, primeiramente uma criança foi
motivada por uma vontade que pareceu divertida, em seguida outras foram
cativadas a se juntarem à primeira. Posteriormente, devido a um imprevisto,
aparentemente perdeu-se a motivação na ação/brincadeira e por fim, obtiveram uma
orientação para reorganização.
A brincadeira livre em si é convidativa, contudo, pode-se dela tirar
ensinamentos e lições muito importantes. Destaco esse fato que o que percebe-se
hegemônico na Educação Infantil - acentuado no Ensino Fundamental (menor e
maior) e paulatinamente extirpado (em maior ou menor grau) dos Ensinos Médio e
Superior – é o uso da brincadeira mediada pelos educadores a serviço de uma
finalidade premeditada, no caso narrado acima não foi o que ocorreu. Primeiro se
111
permitiu a brincadeira que não foi planejada, mas observada pelo educador,
posteriormente houve a intervenção para orientação.
O uso da ludicidade com finalidade premeditada possui seu grande valor
didático e metodológico, análogo ao valor da imagem como representação, todavia,
a alternativa de o educador intervir na brincadeira livre também tem seu valor. Neste
caso, é o interesse/sonho suscitado pelo discente que se torna proposta a ser
explorada. Apesar de sair da sua zona de conforto, o educador traz assim, lições
mais significativas. Claro que esta estratégia não pode ser via única e se
complementa com as demais, mas se mostra muito valida diante das expectativas
de uma educação mais imaginativa.
Passadas algumas semanas de observação, compareço apenas na sexta-
feira e no sábado, dia da feira de ciências e cultura da escola. Ao chegar na sala na
sexta, observo na janela alguns copos descartáveis que não estavam ali na semana
anterior, em cada copo um nome que identificava a quem pertencia, sigo para ver
dentro dos copos e vejo feijões brotando em algodão. Pergunto sobre aquela
atividade a professora Sarah, então ela me conta que naquela semana - ainda
estudando o tema dos alimentos saudáveis – eles tinham plantado os feijõezinhos,
relatou que estão acompanhando o desenvolvimento diariamente e estavam muito
felizes, pois alguns feijões já estavam brotando.
A professora me contou de um aluno de seis anos que foi a primeira coisa
que foi olhar quando chegou à sala naquela manhã. Infelizmente não pude
acompanhar o início da atividade, mas naquele dia, flagrei por várias vezes uma ou
outra visitinha aos feijões. Tão arrependido quanto eu, estava um menino que faltou
também no dia da atividade, todavia, a professora Sarah prometeu que ele também
plantaria um feijão.
Destaco a ideia de cultivo, os alunos são cultivados para que cresçam
enquanto ser, como antropo. Não pude deixar de perceber ao caminhar pela escola
o cultivo da horta. Fazem desde a compostagem de matéria orgânica à colheita, e
dividem os espaços e canteiros da horta por turmas. Semanalmente discentes de
vários níveis de ensino se dedicam à aprender e cultivar-se e a esse lugar.
Agora, gostaria de compartilhar uma observação e uma atividade que se
mostrou muito especial em relação ao incentivo a infância onírica das crianças
manifestada no extravasar do corpo. A observação foi relacionada a um menino de
dois anos com o seu dinossauro. A atividade foi a dança livre em sala de aula.
112
O menino do dinossauro, no dia que as crianças levam seus brinquedos de
casa, levou seu amigo pré-histórico para passear na escola. Logicamente o
dinossauro chamou bastante atenção dos colegas de sala, todos queriam brincar
com o dinossauro, mas o menino resistia emprestá-lo. “Brincar é o vínculo originário
que a criança estabelece entre o mundo objetivo (até mesmo seu próprio corpo) e o
mundo imaginal” (PIORSKI, p. 61-62). Seu olhar de fascinação e maravilhamento
para aquele ser incrível gerava nas outras crianças grande admiração pelo amigo
verde do menino. Bachelard já tinha falado desse “olhar engrandecedor da criança”
(2008, p. 163), um olhar imaginativo que valora e engrandece o pequenino
dinossauro, a miniatura admirada. “É preciso compreender que na miniatura os
valores se condensam e se enriquecem” (BACHELARD, 2008, p. 159).
As crianças por seu onirismo ativo têm esse potencial de transformar a
miniatura do brinquedo num germe de universo. Em todas as escolas observadas,
nos contatos com as crianças nos mais diversos ambientes não é difícil perceber
que assim como o menino do dinossauro, existe uma (re)invenção e miniaturização
de um universo para que a criança sonhadora tenha o mundo sonhado na escala do
seu brinquedo.
No meu convívio familiar, Pedro Henrique, uma criança de oito anos,
demonstra habitualmente tal fascínio pelo minúsculo no brinquedo. Todos na família
sabem sua preferência por bonecos, em especial bem pequenos, os maiores
normalmente não podem entrar no mundo criado em miniatura. “Assim, o minúsculo,
porta estreita por excelência, abre um mundo. [...] A miniatura é uma das moradas
da grandeza (BACHELARD, 2008, p. 164). “A miniatura estende-se até as
dimensões do universo. O grande, mais uma vez, está contido no pequeno”
(BACHELARD, 2008, p. 165).
Voltando a história do dinossauro, o menino maravilhado com seu pequeno
amigo de brincadeirinha, devaneava em seu sonho poético aventuras com seu
brinquedo. Quando algum colega insistia em pega-lo, o dinossauro tomava a
proporção de um tiranossauro e urrava com o seu temível grito pela boca do menino.
Num som quase ameaçador recheado de sua mais graciosa careta o menino
conseguia ao invés de espantar os colegas, gerar maior interesse em ingressar
naquele mundo imaginado onde a imagem do dinossauro condensava fascinação
por meio do devaneio poético do menino expresso na sua brincadeira. “Essa é a
natureza do imaginar: sondar a vida pelo encantamento” (PIORSKI, 2016, p. 64).
113
Aos olhos de um adulto desencantado isso pode ser uma meninice apenas, mas
para Bachelard (2008, p.160), “a imaginação não quer chegar a um diagrama que
resuma conhecimentos. Procura um pretexto para multiplicar as imagens; e quando
se interessa por uma imagem, a imaginação lhe majora valor”.
Brevemente vou contar também sobre o dia que se abriu espaço para dança
livre. O início da atividade me chamou a atenção porque a professora permitiu que
os alunos escolhessem as canções democraticamente, isso certamente favoreceu
na identificação da turma com a atividade. Os meninos, desorganizados, pediram
aleatoriamente canções de suas preferências individuais, já as meninas, chefiadas
por uma liderança, conseguiram emplacar seus hits mais dançantes, sob
desconfiança de alguns que passavam pelos corredores.
Gostaria de destacar uma das crianças no meio salão dançante. O menino
mais animado dentre todos, perceptivelmente se deixou levar na brincadeira de
dançar. Sua livre expressão e contagiante alegria contrastavam com a postura
cotidiana de uma criança que não se relacionava tão bem quanto os outros colegas,
e devido sua “agressividade”, por vezes ficava menos integrado às brincadeiras
coletivas.
Ele, o mais gordinho da turma era o grande pé de valsa. No seu sonho
dançarino o menino se libertava. Como disse Bachelard (1990a, p. 4), “o sonhador
deixa-se ir à deriva”. A dança, não apenas para o menino dançarino, possibilitou
alegrias aéreas, dinamismo, movimento, ascensão. Bachelard (1990a, p. 136), na
esteira de Nietzsche conta:
Com efeito, o ar é a substância mesma de nossa liberdade, a substância da alegria sobre-humana. O ar é uma espécie de matéria superada, da mesma forma que a alegria nietzschiana é uma alegria humana superada. A alegria terrestre é riqueza e peso – a alegria aquática é moleza e repouso – a alegria ígnea é amor e desejo – a alegria aérea é liberdade.
Livrando-se do peso das imposições, dança e dançarino flutuam livremente,
“parece que o ser voante ultrapassa a própria atmosfera em que voa; que um éter se
oferece sempre para transcender o ar; que um absoluto completa a nossa
consciência de nossa liberdade” (BACHELARD, 1990a, p. 8). “Pela imaginação
dinâmica com os fenômenos aéreos, tomaremos consciência de um alívio, de uma
alegria, de uma ligeireza. A vida ascensional será então uma realidade íntima”
(BACHELARD, 1990a, p.10).
114
A escola que se permite ser salão de dança livre é germinadora da liberdade
de expressão, também de sonhos dinâmicos. O caso do menino dançarino mostra,
que além da vigorosa alegria produzida pelo devaneio dançante, a dança livre e não
planejada em passos orquestrados, permite ao sonhador expressar belezas muitas
vezes íntimas e escamoteadas pela socialização. As escolas dançantes, também
são aéreas e libertadoras.
Extravasamento semelhante ao dia da dança só presenciei no dia em que as
professoras do ateliê de educação infantil levaram as crianças para um banho de
mangueira na grama. Em ambos os casos, o psiquismo dinâmico levou alegria,
movimento e extroversão; apaziguando uma manhã de calor, a água da mangueira
enchia de futuras recordações alegres (sonhadas) o poço/infância daquelas
crianças. Além de me inundar de lembranças dos meus banhos de mangueira
atiçando minha infância onírica a sonhar.
Concluo o relato sobre a escola Freinet ciente de que ele é composto por
camadas de lembranças escolhidas, de devaneios poéticos suscitados pelas
imagens poéticas presenciadas e vividas, identificação de práticas educativas que
alimentam a unidualidade antropológica, experiências e brincadeiras infantis
recheadas de lições para o nosso ser que desde outrora vem aprendendo a
desencantar-se. Por fim, o relato se deu inspirado em fragmentos observados
identificados como via poética, que é composta por todos os elementos de
poetização do ser (brincadeira, faz de conta, criação, devaneio poético), os quais
contribuem para o reencantamento do ser, da escola e do mundo. Resta-me
agradecer imensamente a generosidade, a cumplicidade e o apoio incondicional
recebido por gestão, funcionários, professores e discentes da instituição.
CENTRO INFANTIL MUNICIPAL DONA LIQUINHA ALVES: O NÍVEL V
“Educar é encharcar de sentido o prazer.”
Paulo Freire
Na busca pela terceira escola, tive um modus operandi diferente. Fui à
secretaria de educação do município de Parnamirim-RN, onde resido, e na
Coordenadoria de Educação Infantil apresentei meu projeto de pesquisa a
responsável pelo setor, Graça Santos, e solicitei autorização para que
115
acompanhasse uma das suas escolas. Na ocasião, indicaram duas escolas que,
segundo eles, se enquadravam no perfil de meu trabalho, a primeira na região
litorânea do município a 15 km do centro da cidade. A segunda, no próprio centro da
cidade.
Prometi visitar ambas as escolas antes de decidir em qual ficaria. Mas estava
completamente tendencioso a ficar no centro pela grande facilidade de acesso.
Então, faço minha primeira visita a escola no centro da cidade de Parnamirim,
inicialmente sou recebido com certa desconfiança, totalmente justificada pela
insegurança que assola nosso Estado, em consonância com a grande
responsabilidade que os funcionários da escola possuem com as crianças. Logo,
depois da devida apresentação, sou convidado a conhecer a escola pela diretora,
que me apresenta algumas de suas turmas, funcionários, espaços e projetos da
escola. Saio muito contente, sentindo que aquela escola seria ideal para dar
continuidade ao meu trabalho. Mesmo sem ir à outra escola, indico que
provavelmente elegeria aquela escola para pesquisa.
Parto ao litoral apenas para cumprir com o trato junto à Secretaria Municipal
de Educação de visitar ambas as escolas, simples protocolo. Quando enfim chego a
segunda visita, ainda contrariado por ter me perdido no caminho, começo
paulatinamente a desconstruir a ideia de excluir a escola da pesquisa em virtude da
distância. Ao entrar na instituição, difícil não reparar os muros que contornam e
abraçam a escola. Azuis como o mar, mas isso não foi apenas uma coincidência
casual da escola praieira, neles havia um trabalho educativo que me falou
simbolicamente sobre quem eles eram, de onde falavam, quais identidades eram
valorizadas. Diziam sobre a participação ativa das crianças na escola, a importância
da criatividade e construção coletiva da escola.
O muro era a pintura do próprio oceano, que de maré em maré, alcançava as
vidas caiçaras daquelas famílias com tamanha intimidade com o mar. Muitos obtêm
sua subsistência da pesca ou do turismo que banha a região de verão em verão.
Geralmente os muros são feitos apenas para separar e proteger, mas não
aquele, ele também tinha o poder de nos fazer imergir na intimidade daquela
comunidade, uma intimidade com o ciclo das marés, luas, peixes, com a ida na praia
e banho de mar como diversão cotidiana daqueles que ali moravam. Ele nos
provocava uma sensação de proteção que não se limitava à segurança patrimonial,
mas ao reconhecimento das identidades.
116
O muro era um muro, mas também uma bandeira, um poema, uma conexão,
um aprofundamento imaginativo da superfície marítima para suas profundezas, para
o conhecimento de seus habitantes, da vida que muitas vezes oculta. O muro é
imagem poética. Faz-se necessário explicar melhor o muro, além do azul o muro é
uma grande tela pintada por adultos e crianças, cheia de animais marinhos. Entre os
desenhos caprichados dos adultos, estão as figuras produzidas pelas crianças.
Apesar de não estar presente, consigo me sensibilizar pelo momento pedagógico
incrível de pintura do muro, um aprofundamento na realidade e na intimidade da
comunidade, nas curiosidades infantis sobre o mar e na liberdade de criação
artística, sem dúvida, via poética de produção de conhecimento e caminho para
saberes significativos (AUZUBEL, 2003).
Ainda devaneando sobre o muro, entro em uma sala para falar com a diretora
Rosângela, lá começamos uma conversa informal sobre a minha pesquisa e a
educação infantil. Falo sobre uma crença pessoal que os demais níveis de ensino
formal (Fundamental, Médio, Superior e Pós-graduação) tinham muito a aprender
com a Educação Infantil (justamente porque nela há maior abertura à imaginação,
brincadeira e uma visão mais poética do mundo), mas o que vemos
hegemonicamente é o oposto.
Noto que durante a minha fala a diretora Rosângela fica visivelmente
sensibilizada e logo justifica-se dizendo o quanto ela se sente triste imaginando suas
crianças saindo daquela escola infantil, que tem toda uma preocupação e respeito à
infância, chegando ao Ensino Fundamental e tendo que se adaptar à nova realidade
radicalmente diferente, com cadeiras em fileiras, onde boa parte das crianças nem
conseguem tocar os pés no chão, e um método de ensino cada vez mais objetivo,
impessoal e endurecido. Ao comentar isso, ela se emociona chegando as lágrimas.
Eu, do outro lado da mesa, vendo o compromisso daquela gestora com uma
educação infantil que não fosse castradora, respeitando a condição infantil e
humana daqueles pequeninos, sou completamente fisgado pelo Centro Infantil
Municipal Dona Liquinha Alves. E apesar das distâncias, reconheço que aquela
escola seria a próxima etapa do meu estudo.
117
Fig. 15 – Muro interno do Centro Infantil Municipal Dona Liquinha Alves Fonte: Acervo do Autor (2017)
Fig. 16 – Pátio que acolhe as crianças em suas brincadeiras Fonte: Acervo do Autor (2017)
118
Imediatamente informo a diretora que adoraria acompanhar o cotidiano do
Dona Liquinha. Ela me recebe com imenso carinho, levantando-se e me dando um
abraço acolhedor. Continuamos a conversa, e ela me relata sobre o quadro de
professores competentes ali existente, com professora premiada e tudo mais.
Mostra-me a escola, salas, espaços de convivência e brincadeira e me fala de uma
professora do turno matutino, a mesma que no turno vespertino era a coordenadora
da escola, mas na ocasião estava ausente, Sarah. Acerto que minhas visitas seriam
no vespertino, e ela me encaminha para uma visita em outra ocasião com a
professora/coordenadora. Sarah foi bastante elogiada e percebi uma expectativa por
parte da diretora que nosso encontro fosse muito frutífero, pois ela tinha terminado o
mestrado em educação, também estudava educação infantil e recentemente foi
selecionada para o doutorado no Programa de Pós-graduação em Educação na
UFRN.
É relevante informar que esta visita ocorreu na segunda quinzena do mês de
março de 2017, momento em que parte dos trabalhadores em educação das redes
públicas (municipais e estadual) do estado do Rio Grande do Norte se encontravam
em greve, dentre outros motivos, principalmente em virtude da Reforma da
Previdência do governo Michel Temer. Com isto, só retorno à escola para conversar
com a coordenadora na semana que sucede o fim da greve em 03 de abril do
mesmo ano.
Como na primeira visita observei o espaço escola sem a dinâmica e a vida
que as crianças o agregam. Na segunda visita fui ao encontro da coordenadora mais
atento ao espaço, contudo, pretendo fazer o relato adiante no decorrer do texto.
Volto à professora/coordenadora. Sarah me recebeu na sala dos professores, ela já
me esperava e também me acolheu com muita empatia. A coordenadora contou que
defendera seu mestrado no ano de 2015 estudando sobre o modelo de educação do
jardim de infância natalense, seu recorte histórico temporal foi de 1916 até 1953. No
doutorado, ainda continuaria estudando a história da educação52. Novamente falo
52 Em virtude do tema pesquisado pela coordenadora no programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte tive bastante interesse na pesquisa. Na ocasião pensei que seria relevante, inclusive, usar seu trabalho para fazer um percurso histórico da educação infantil no estado do RN, em particular, em Natal. Solicitei a Sarah que disponibilizasse o trabalho para eu conhecê-lo e ela prometeu enviar por e-mail, mas na época, chegou um arquivo errado e solicitei novamente o envio. Depois disso, houve o recesso escolar do meio do ano e a professora/coordenadora precisou se afastar por motivo de doença. Assim, não consegui estudar sua dissertação. Depois, ainda busquei pelo nome seu nome (Sarah Lima Mendes) no repositório de teses e dissertações da UFRN, mas infelizmente sua dissertação não foi achada.
119
sobre a pesquisa e solicito o acompanhamento de pelo menos uma de suas turmas
vespertinas.
Ela apresentou cada uma das turmas e algumas de suas particularidades, e
avisa sobre o método que ela, juntamente com a escola, vem implantando desde a
sua chegada. Comentou que foi estagiária do NEI/UFRN, e dentro das limitações da
instituição, eles vêm também trabalhando com temáticas geradoras, escolhidas de
acordo com o interesse dos alunos, inspiradas na escola de aplicação da UFRN. Os
professores, no geral, encararam o desafio e vêm obtendo, na sua avaliação (e
também da Secretaria Municipal de Educação do Município de Parnamirim, prova
disso a indicação para meu acompanhamento) resultado satisfatório.
Explicado o método, conversamos um pouco sobre o universo da pesquisa de
mestrado da coordenadora que buscou compreender numa perspectiva histórica a
implantação da Educação Infantil no Rio Grande do Norte. Além disso, conversamos
também sobre qual turma eu poderia acompanhar. Comento que minha intenção é
fazer em média duas ou até três visitas por semana, em dias alternados, durante no
mínimo três meses. Se possível, depois desse período, acompanhar mais uma
turma no segundo semestre. Ela se mostrou bastante receptiva a minha proposta e
partimos à escolha da turma.
Sugeri começar pelos menores da escola, o Nível III, de idade média de dois
anos. Ela explicou que essa turma estava começando na escola, em processo de
adaptação e não seria ideal a presença de um pesquisador naquele momento, em
virtude de prováveis interferências nas atividades e progressos já obtidos. Por eles
serem muito pequenos, o estranhamento seria maior. Sarah propõe que eu comece
pela turma de Nível V, de quatro anos deidade em média, e justifica que essa turma
ainda iria realizar a escolha temática e seria uma excelente oportunidade para eu
acompanhar esse processo, além do mais, supostamente eles também aceitariam
melhor minha presença tendo em vista que já possuem um professor do sexo
masculino em sala.
Aceito a proposta imediatamente e ela chama a Mariana, uma das
professoras do Nível V, para fazer a nossa apresentação e eu explicar brevemente
meu estudo. Em seguida, me apresenta ao outro professor da salinha, o Isaac. Peço
para começar o acompanhamento imediatamente, mas justificaram que o ideal eu
chegar à sala antes das crianças, para não atrapalhar as atividades em curso, e
sugeriram que iniciasse no dia seguinte. Concordo, encerramos a reunião. Ainda
120
assim, gentilmente a coordenadora me acompanha até a sala do nível V, dou uma
rápida observada pela janela antes de sair da escola e vejo que a sala possuía
muitos alunos e três adultos educadores. A terceira a qual não fui apresentado na
ocasião é a professora estagiária Hélida, ela acompanha uma criança com
necessidades educacionais especiais e não poderia deixá-lo sozinho, por isso só
pude conhecê-la na primeira visita à sala.
No dia seguinte chego antes das crianças, os professores já me aguardavam.
A sala era composta por vinte e três estudantes, sendo treze meninas e 10 meninos.
Paulatinamente os pequerruchos vão entrando na sala, a chegada das crianças é
percebida mais uma vez como momento de reencontro e brincadeira. Logo
começam a explorar os espaços da sala e seus brinquedos, as brincadeiras em
pequenos grupos também são fáceis de ser identificadas. O espaço deixa de ser
apenas físico e passa ser o palco das fantasias vividas nos devaneios dos
pequenos. Lá onde as bonecas se reencontram, a presença simultânea de duas
crianças não impede de criarem uma distância imaginária que justifique o uso dos
dois aparelhos telefônicos aparentemente ‘quebrados’ mas em perfeito estado para
o faz de conta.
Duas colunas maiores são feitas com as pequenas mesas em duas
extremidades opostas da sala, as crianças vão chegando e ocupando o espaço com
suas brincadeiras. No canto da sala, sobre uma grande esteira colorida, quatro
crianças espalham uns poucos brinquedos e se divertem. Aproxima-se um menino,
que aparentemente é menor que todos os outros, e senta ao meu lado meio
desconfiado. Posteriormente descobri que esse menino é bem falante. Com a
mesma atenção que observo a sala, ele me observa, rompo o silêncio e digo
tentando ser simpático:
- Boa tarde, tudo bem?
Logo ouço como resposta e desconfiança:
- Você é pai de quem?
Na ocasião, ainda não tinha sido apresentado aos estudantes, eu era o objeto
que não combinava com aquele espaço, mas aquele estranhamento inicial foi como
uma permissão para que uma menina se aproximasse para sanar suas curiosidades.
- Não sou pai de ninguém, vim acompanhar vocês por um tempo. Como são
os nomes de vocês?
121
Ambos se apresentaram e em seguida perguntei se eles gostavam da escola,
mas fomos interrompidos, pois logo os professores começaram a dinâmica inicial, e
fui convidado a me apresentar. Nesse momento, me senti um pouco confuso ao
dizer o que fui fazer naquela sala e tratei de sentar no chão como todos os
presentes e observar a roda de conversa inicial.
A dinâmica da sala era bem interessante. Todos os dias ao chegar, os alunos
identificavam o dia da semana, o dia do mês, o mês e o ano. Havia um calendário
bem lúdico e colorido que diariamente era atualizado. Também quase sempre havia
uma dinâmica, e a chamada era o momento onde as crianças identificavam a letra
inicial do seu nome e dos seus colegas. Contabilizavam os meninos presentes, as
meninas e depois somando o número total de crianças, tudo isso mediado por uma
brincadeira diária.
Ainda na roda de conversa inicial, logo após o acolhimento, em que os
pequerruchos ficavam bem à vontade, falavam sobre as atividades da aula anterior.
A segunda-feira também era um dia muito especial, onde na roda de conversa, cada
criança tinha oportunidade de falar o que fez de legal no seu fim de semana. A praia,
televisão (DVD) e o celular eram as principais atividades relatadas.
O espaço dedicado ao exercício da fala sobre o fim de semana muitas vezes
se mostrou como um lugar de fronteira entre o real e o imaginário, onde o real é
deformado, aumentado, invertido e transbordado. Cenário onde aparecem os heróis
de cada criança agigantados pela admiração e imaginação. Um diz: “Fui ficar na
casa do meu pai. Ele é o mais forte de todos”, logo a competição do pai mais forte
está lançada e começam a disputar quem pode fazer maior proeza.
Sempre, nas conversas sobre o fim de semana na roda, algum dos
pequerruchos contava alguma coisa relativa à socialização com outra criança,
muitas vezes transbordava a admiração. Isto me chamou a atenção, o encanto que
as crianças, especialmente as menores, possuem sobre as outras crianças,
principalmente as mais velhas. A figura do irmão mais velho que brinca junto, do
primo reencontrado na casa da tia ou dos avós, a amiguinha que visitou ou foi
visitada, são grandes reservas de sonhos onde aventura e cumplicidade vão sendo
agigantados pela admiração.
Após as primeiras visitas, comecei a interagir sendo bem aceito pela turma,
apesar dos professores da sala me chamarem de professor Rodrigo e ser
disseminada a mensagem que eu também era professor. Logo as crianças
122
perceberam que havia diferenças, que além das brincadeiras que os outros
professores participavam, das músicas e dança, por exemplo, eu também não perdia
oportunidade de brincar sempre que possível.
Observando, aprendi com as crianças a me enturmar. Na brincadeira não se
pede licença, autorização, não se pede para brincar. Elas não se apresentam uma
para outra, na brincadeira o nome do outro não importa, nem nada além de
alimentar o onirismo infantil do brincante e compartilhar dele. Entra-se no jogo, no
faz de conta, na fantasia. Isto tudo quando aceito, alimenta o devaneio poético dos
brincantes partícipes, e também gera uma empatia por algo tão importante que foi
vivido em consonância com o outro. Segundo Rubem Alves (2005), algo sem
nenhuma serventia como a brincadeira é essencial para nossa alegria de viver. Por
isso que Manoel de Barros (2010) se interessa por insignificâncias, desimportâncias.
Ainda sobre a rotina da sala havia uma distinção na atividade recreativa
principal no decorrer da semana. Depois do acolhimento e roda inicial, todos os dias
as crianças eram levadas a espaços lúdicos da escola, que eram visitados,
explorados e compostos como cenário para as brincadeiras. Na segunda iam à
Brinquedoteca, na terça ao Parque Externo (com escorrego, balanço, gangorra e
uma casinha), quarta era a vez do Tanque de Areia, quinta voltava-se ao Parque
Externo e quinzenalmente no último dia útil da semana havia a sexta cultural.
As crianças ficavam muito contentes com a brincadeira fora da sala de aula.
No geral, na maioria destes ambientes a brincadeira era livre, apenas observada
pelos educadores que só intervinham caso houvesse algum problema como uma
briga entre os discentes por exemplo. Após esse momento de brincadeira fora da
sala, os professores organizavam a ida ao refeitório da escola para que a turma
fizesse a primeira refeição escolar. Sempre em fila, passando pelo lavatório para
lavar as mãos e seguindo ao refeitório. No retorno do lanche, era o momento que os
professores desenvolviam alguma atividade relacionada ao seu planejamento,
sempre com aulas bem dinâmicas e atividades lúdicas mediando o ensino e
aprendizagem iniciadas após uma segunda roda de conversa, e normalmente outro
momento com canções.
Em seguida, ao momento que se caracterizava como o mais longo dentre os
vividos na escola, voltava-se ao refeitório, para a segunda refeição com o mesmo
modus operandi da primeira ida, e escovavam os dentes antes do retorno à sala. Ao
retornar, não era incomum a leitura de historinhas infantis, com uma contação
123
entonada, caprichada e encantada por parte dos professores. O que na maioria dos
casos, despertava muita atenção da turma, além disso, também havia momentos
onde as próprias crianças exploravam os livros infantis, expostos nas mesas usadas
para o trabalho. Ao fim da tarde, chegavam os pais e responsáveis para buscá-las.
Ficou claro na observação de campo que, na maior parte do tempo, as
crianças entre 48 e 59 meses de idade (do Liquinha e do Freinet) não se importam
em distinguir o real e o imaginário, uma coisa é imbricada na outra. Não estou
afirmando que eles não possuem níveis ou capacidade de discernimento, mas que
ficam mais confortáveis na realidade inventada do sonho, da imaginação que na
objetividade e irredutibilidade que chamamos de realidade. No corriqueiro discurso
“é de brincadeirinha”, atestam a percepção do irreal, mas não por isso deixam de
mergulhar nele.
Na busca por observar o devaneio poético das crianças, entendendo que este
se manifesta por meio do brincar, da fantasia presente no universo infantil, nas
diversas formas da criança se expressar e compreender o mundo, compartilho
fragmentos do campo onde ficou latente o onirismo dessa turma de Nível V.
As canções mediadas pelos professores foram observadas como brincadeiras
cantadas, ricas em imagens poéticas, em narrativas encantadas, convite a um
mergulho no universo da criança. Não pôde deixar de ser observada tamanha a
interação da turma. Os corpos dos infantes eram arrebatados pelos comandos das
canções, nesse entendimento, o corpo é brinquedo, que se desafia a seguir a
brincadeira chamada coreografia e a transborda, com suas caras expressivas, com
os ritmos que se tornam extensão do corpo, com a euforia no ápice das canções. A
dança não se limita aos comandos das canções e a felicidade impera no corpo, no
coletivo, no espaço, naquele cosmos individualmente compartilhado e ressignificado.
Os educadores do Nível V, segundo o professor Isaac, vinham trabalhando o
repertório da cantora e compositora infantil Bia Bedran e fui testemunha deste
trabalho. Antes da referida artista, disse o professor, eles tinham explorado o disco
infantil “A arca de Noé” do poeta Vinícius de Moraes. Quando iniciei o
acompanhamento, as crianças já conheciam, cantavam e dançavam todo o
repertório estudado. Quando o professor avisava que iam cantar as músicas de Bia
Bedran os pequerruchos já se agitavam e pediam uma ou outra música de sua
preferência: “Professor, canta a do anel”, “a boneca de lata”, exclamava outro, “a da
árvore, professor”.
124
Fig. 17 – Crianças na hora do lanche Fonte: Acervo do Autor (2017)
Fig. 18 – Ensaio para a festa junina Fonte: Acervo do Autor (2017)
125
Inicio compartilhando a canção da “Dona Árvore”: “Tronco, folhas galhos tem
Fruto e flores e raiz, Dona árvore vai bem é muito feliz, Subir, subir, vamos subir,
Sou macaquinho e eu não vou cair” (BEDRAN, 2017, s/p).
Todos sentados em roda, as crianças cantavam gesticulando buscando mais
que representar as partes da árvore, praticavam o exercício de ser árvore, fincadas
no chão enraizadas ao solo e compartilhando a felicidade de ser a Dona Árvore.
Paulatinamente, passam a se levantar escalando a árvore imaginária agora fincada
em frente de cada criança e como o macaquinho da música sorrateiramente sobe e
sobe até ser dita a palavra “cair” que comanda a ida repentina ao chão e recomeçam
a escalada com a repetição da canção.
A grande maioria das crianças se integra ao devaneio e com satisfação
evidente são árvore/macaquinho, são dança/escalada, são corpo/brinquedo
transformado em brincadeira cantada. Corpo, imaginação, devaneio poético,
surrealidade.
A canção intitulada “Boneca de Lata”, uma das prediletas de grande parte das
crianças, também evidencia o corpo/brinquedo e a emergência de devaneios
poéticos provocados pela canção. É o corpo que se quebra para se refazer, é um
corpo fábrica/oficina da brincadeira, é reinvenção Ensina-nos, Bachelard,
O ferreiro e o oleiro comandam dois mundos diferentes. Pela própria matéria de seu trabalho, na proeza de suas forças, eles têm visões de universo, as visões contemporâneas de uma Criação. O trabalho é – no próprio fundo das substâncias – uma Gênese. Recria imaginativamente, mediante as imagens matérias que o animam, a própria matéria que opõe a seus esforços (BACHELARD, 2013, p. 26)
Ao mesmo tempo o brincante se faz boneca e em seu sonho metalúrgico e
telúrico, reconstrói o metal poeticamente. Manuel de Barros já dizia sobre as latas,
que “Elas ficam muito orgulhosas quando passam do estágio de chutadas nas ruas
para o estágio de poesia. Acho esse orgulho das latas muito justificável e até
louvável” (BARROS, 2010, p. 63). Na canção de Bedran (2017, s/p):
Minha boneca de lata Bateu com a cabeça no chão Levou mais de uma hora Pra fazer a arrumação Desamassa aqui pra ficar boa Minha boneca de lata Bateu com o nariz lá no chão Levou mais de duas horas
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Pra fazer a arrumação Desamassa aqui Desamassa aqui Pra ficar boa [...]
Sucessivamente ombro, cotovelo, mão, barriga, costas, joelho, pé, bumbum
são amassados por novas batidas no chão e reinventados. As crianças por sua vez,
dançando, identificam-se com a boneca mostrando o local machucado ‘de
brincadeirinha’ e desamassam oniricamente o machucado, sendo
concomitantemente sujeito e objeto, boneca e artesão e cheios de orgulho em
transformar latas sonhadas em brincadeira, assim como o poeta, as transformando
em poesia e para além disso, transformando-se a si mesmo em poesia.
A última canção que compartilho dentre as tantas observadas, intitulada “O
Anel” (BEDRAN, 2017, s/p), ao escutá-la sem o acompanhamento da turma, em
especial do Nível V da escola praieira Dona Liquinha Alves, certamente não terá a
dimensão da tamanha repercussão entre as crianças da sala. A canção trata da
perda de um anel e de possibilidades do paradeiro do artefato:
Perdi meu anel no mar Não pude mais encontrar E o mar me trouxe a concha De presente pra me dar Será que foi parar na güela da baleia Ou será que foi parar no dedo da sereia Ou quem sabe, o pescador Pescou o anel e deu pro seu amor.
Além da perda do anel os símbolos marinhos mobilizados são muito caros às
populações que tem o mar como fronteira, como sustento e como cúmplice. Ao
observar pela primeira vez esta música cantada na sala do Nível V tive a impressão
que as crianças apenas imitavam a coreografia encenada pelos professores, sem
tomá-la para si. Elas gesticulavam simultaneamente representando cada passagem
da canção. Com a mão sobre as sobrancelhas com um olhar de procura cantavam:
“Perdi meu anel no mar”, “Não pude mais encontrar”, colocando as duas palmas das
mãos voltadas para cima na altura dos seus troncos como quem se interroga diante
de algo, em seguida, a mão ondulava para o mar trazer a concha, e assim por
diante. Pensei, isso não é uma “imagem poética”, é uma reprodução, todavia, a
oportunidade de observar os pequerruchos cantando outras vezes, pedindo a
canção, me fez mudar de ideia.
127
Mais que os gestos treinados, quem me falou sobre o encantamento das
crianças na canção do anel foram seus olhares cantantes. Enquanto cantavam, as
sobrancelhas e a abertura total e fechamento parcial de seus olhos me falavam
sobre o aprofundamento da sala na canção, as expressões faciais também
cantarolavam com empolgação. Mas o que esperar de um conjunto de crianças com
tamanha intimidade com a praia e as coisas do mar? Sintetizo em uma palavra:
imersão.
Mais que o significado da narrativa enquanto uma história, as palavras
suscitavam a imersão nas profundezas de um mar grandioso sonhado, maravilhado
pelas baleias, encantado por sereias, e compartilhado com tamanha intimidade pelo
pescador que do mar pode tirar muito além de sua subsistência, mas por ele garante
sua existência, pois sua compreensão de mundo flui dali, de onde também emerge
seus sonhos mais encantados e profundos, de onde repercute sua imensidão.
Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio.
Sem dúvida, o devaneio alimenta-se de espetáculos variados; mas por uma espécie
de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza
determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular que o
devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante do mundo que traz
consigo o infinito.
“Pela simples lembrança das imensidões do mar e da planície, podemos, na
meditação, renovar em nós mesmos ressonâncias dessa contemplação de
grandeza”. (BACHELARD, 2008, p.189).
O parque externo das terças e quintas, onde ficavam o escorrego, as
gangorras e a casinha, também foi um espaço muito rico para observação dos
devaneios poéticos dos infantes. Além das brincadeiras de corre-corre de alguns, e
a reserva de um grupo que não descia para areia e preferia ficar brincando com as
bonecas, outros tinham comportamentos muito particulares e interessantes.
Mais que os adultos, as crianças por meio da brincadeira tem a capacidade
de compartilhar os elementos primordiais que suscitam seu devaneio poético. A
matéria prima da imaginação sonhadora é o faz de conta, a “brincadeirinha”. O
caminho de imbricação entre real e irreal está para a criança, assim como o poeta
favorito está para o leitor apaixonado por poemas. Condutores de transcendência.
128
Fig. 19 – Crianças brincando de casinha no pátio Fonte: Acervo do Autor (2017)
Fig. 20 – Crianças brincando no parque Fonte: Acervo do Autor (2017)
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Retomando as brincadeiras no parque externo comecemos pela pequenina
casinha de madeira, Bachelard (2008, p. 24) fala “Porque a casa é nosso canto no
mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo”
A casa do parque externo provoca as crianças mais do que a maioria dos
brinquedos, ela desperta ou aciona arquétipos guardados nas profundezas do Ser
das crianças. A casinha de compensado convida ao desejo de habitar e abrigar-se,
nessa brincadeira, no devaneio abriga-se a alma.
Assim, a casa de brincadeirinha ganha imensidão e conecta-se, fundindo-se a casa
do sonho de habitar e proteger-se, o Ser e a casa já não são mais os mesmos. “Em
suma, na mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites do
abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento
e dos sonhos” (BACHELARD, 2008, p.25).
Sempre atento ao vai e vem para a casinha do parque (como se eu tivesse
sido advertido pelo próprio Bachelard por meio da “Poética do Espaço”: preste mais
atenção aí!), percebi certo dia que além do entra e sai de uns, corre-corre de outros,
e brincadeira permanecendo dentro da casinha de uns poucos (até mesmo por não
haver espaço para muitos), certa vez, uma menininha da turma, uma das que mais
conversavam comigo, falante e simpática, apropriou-se do lugar de forma diferente.
Em virtude de ter encontrado em algum lugar um galho com algumas folhas
na ponta enxergou uma vassoura, começou limpando o “terreiro”, logo estava na
casinha, a casa de brinquedo foi cenário perfeito para a vivência de seu sonho. E
naquele instante, o lugar da menininha no mundo. A habitante iniciou a sua tentativa
sem êxito de varrer o chão.
O entra e sai dos coleguinhas não permitiu efetuar a limpeza. Logo a pequena
‘dona de/a casa’ estava reclamando seriamente com as demais meninas que
invadiam o espaço. Num instante a proprietária da vassoura de galho foi legitimada
como proprietária da casa. Ao se perceber como tal, emerge em si por meio de seu
devaneio/brincadeira outra figura arquetípica53, a grande mãe. As meninas que
sofreram a sua represália, imediatamente reconheceram sua maternidade e
entraram na brincadeira.
53Em Bachelard ” (2009, p. 119), os arquétipos são: “reservas de entusiasmos que nos ajudam a acreditar no mundo, a amar o mundo [...]. Cada arquétipo é uma abertura para o mundo”.
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Fig. 21 – Crianças vivendo o faz de conta de “Mãe e filhas” Fonte: Acervo do Autor (2017)
Fig. 22 – Crianças felizes Fonte: Acervo do Autor (2017)
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Ao ser chamada de mãe por uma das meninas, a dona da casinha agregou
ao seu sonho de habitar e cuidar do seu lugar no mundo, a responsabilidade
materna. E enquanto as suas filhas foram brincar com outras crianças, ela intervém
‘protegendo-as’, logo estava mandando as meninas expulsas da casa que
entrassem de volta. As filhas, já tomadas pelo faz de conta, assim o fazem, sorrindo
e cada vez mais legitimando a brincadeira sempre que possível a chamando de
mãe.
Eu me aproximo e pergunto a mãezinha, torcendo que ela me falasse algo
que reforçasse a imagem arquetípica da grande mãe: Por que você está falando
assim com elas duas? E a resposta é imediata e me alcança longe da expectativa de
resposta, num tom doce e com o sorriso desconcertado, bem diferente do tom
imperativo que ordenava as filhas: “não é de verdade, é de brincadeirinha”, e as
filhas endossam apontando para mim e caindo na risada pela minha falta de
percepção aparente em relação à brincadeira.
Certamente, eu fui ingênuo. Não por não perceber a brincadeira, mas por
tentar endossar algo que já se expressava diante dos meus olhos. A expressão de
maternidade que orienta, que acolhe, protege e ensina. Obviamente o uso do
parâmetro para isso é o exercício da maternidade que a criança conhece de casa,
mas para além do claro reforço ao arquétipo ou não, presente na situação, existiu
arquetipicamente a energia do cuidado materno, expresso no comportamento das
crianças.
Ao retornarmos para sala de aula, uma das filhas de brincadeirinha da dona
do cabo de vassoura, provavelmente ressonando elementos guardados em sua
intimidade de habitar sua casa real, sem que eu pergunte nada, se aproxima e me
confessa algo que a incomodava e se confrontava entre o seu espaço de intimidade
e o mundo exterior: “O nome da minha irmã mais velha é Neném, mas todo mundo
chama ela de Jeniffer”. Não resisti às risadas, comentei a situação imediatamente
com os professores da sala que também riram e um deles me disse: “Isso tem que ir
para o seu trabalho!”
Ele estava correto, o devaneio da casa e da mãe de brincadeirinha levou a
irmã de Neném reanimar as contradições que ela vivia na vida real. O devaneio
muitas vezes é a oportunidade de opor as contradições em segurança, e assim
harmonizar problemáticas que extrapolam o mundo da imaginação. Por isso é tão
humano e saudável trilhar a via poética que além de dar prazer no sonho, agrega a
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realidade, pois, “atrás das cortinas escuras parece que a neve é mais branca. Tudo
se ativa quando se acumulam as contradições” (BACHELARD, 2008, p.56).
Todos que não compartilhavam de tamanha intimidade entre as irmãs, não
sabiam da natureza do que é real para irmã mais nova. O nome Jeniffer, para ela,
não é verdadeiro. A verdade encontrada não se estabelece pelo que é, mas pelo
que se sente, pois “há histórias tão verdadeiras que parecem que são inventadas”
(BARROS, 2010, p.347), até porque, como ensinou Manoel de Barros (2010, p.
345), ainda no poema O livro sobre o nada, “tudo que não invento, é falso”.
Não eram apenas as meninas da sala que se apropriavam do espaço da
casinha, apesar de na maioria das vezes ele ser hegemonicamente das meninas.
Certa vez vi um menino, um dos mais peraltas da sala, depois de uma tensão com
um coleguinha de sala, foi chateado sentar-se e reservar-se no cantinho da casa.
Por outras vezes, vi o mesmo depois de reclamações da professora, buscar ‘o
cantinho’ ou um canto da sala e até mesmo esconder-se embaixo das mesinhas.
Certo que ‘o ir para o cantinho’ pode ser condicionado pelo fato dos
professores por vezes mandarem as crianças que se comportavam mal
reiteradamente para um canto onde havia um tapete muito colorido, como um lugar
de refletir sobre o comportamento. Também há de ser considerado o comentário dos
professores e, certa vez da própria diretora comigo, sobre esse comportamento ser
uma forma de chamar atenção54. Admitindo a visão dos educadores, não poderia
deixar de considerar que concomitantemente além do comportamento egocêntrico,
há dialogicamente, uma busca íntima pelo consolo e proteção encontrados
oniricamente no exercício de aninhar-se num canto, na casinha, num vão entre as
pernas da mesa. Percebi com outra criança comportamento semelhante, o
microuniverso ‘de baixo da mesa’ acolhe a criança das contradições e tensões
encontradas no mundo.
Os meses de maio e junho de 2017, que antecediam a festa junina (e também
seria o momento de encerramento do primeiro semestre, marcando o recesso do
meio do ano), foram caracterizados pela busca dos professores por encontrarem
uma temática que fosse do interesse das crianças e que orientasse o sentido, ou
contexto das atividades em sala. Nessa busca, tendo em vista o período junino que
54Na ocasião, todos os alunos saíram da brinquedoteca e ele ficou lá sozinho muito chateado, pois não queira ir embora, e ao tentar retira-lo de lá sob grande resistência, fui orientado a deixar ele para que voltasse sozinho. Depois de uns quinze a vinte minutos, ele volta como se nada tivesse acontecido, tentando se enturmar na brincadeira, daí os professores o chamaram para conversar.
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se aproximava e a preparação da escola para o mesmo, os professores da sala,
Mariana e Isaac, depois de algumas discussões, estudos e planejamento,
resolveram que a literatura de cordel seria um excelente provocador lúdico para as
crianças. Eles permitiram que eu acompanhasse todo esse processo de escolha e
implementação da temática escolhida para as aulas.
Na semana que se começou a trabalhar os cordéis, os professores deixaram
as crianças explorarem cordéis reais em duplas e partindo da dúvida deles
expuseram do que se tratava, como era legal, falaram sobre as xilogravuras e
começaram a ler alguns cordéis. Passaram pouco mais de uma semana na tentativa
de provocar a empatia no grupo sobre o tema. A turma de Nível V, com exceção de
uma aluna, não demonstrou muito interesse nos cordéis, ou interesse suficiente na
visão dos professores para que aquela fosse a temática central das atividades na
turminha.
Como observadores sensíveis e professores democráticos, logo chegaram à
conclusão que seria melhor encontrar outra temática provocadora, desta vez não
acompanhei diretamente o processo que coadunou na escolha. Mas sei que tiveram
uma inspiração majestosa e contaram com a ajuda de um rei para conseguir a
empatia do Nível V: O rei do Baião, Luiz Gonzaga. Acertaram plenamente na
escolha, e logo as crianças já estavam seduzidas pelo seu aboio, cantarolando as
canções apresentadas pelos docentes da turma e remexendo-se bastante também.
Assim, unindo a temática e a relação com a festividade que se aproximava,
brincadeiras, cantigas, danças e trabalhos foram conduzidos sob o compasso real
do xote, xaxado e baião.
Neste contexto conheci a brinquedoteca. Um espaço cuidadosamente
encantado, paredes cobertas por um tipo de tecido chamado de TNT e nele
desenhos e colagens, borboletas feitas em EVA em pleno voo, vegetação, os quatro
cantos ornamentados. A sala era dividida em dois ambientes, um deles com
televisão e DVD, tatame no chão, muitas almofadas e alguns livros e brinquedos no
canto da parede. No outro lado, havia mais brinquedos em mesas pequenas ao
alcance das crianças.
O professor Isaac neste dia só contava com a minha ajuda, a professora
Mariana estava de licença aquela semana em virtude de seu casamento e a
professora Hélida por motivo de doença não pôde comparecer. A brinquedoteca foi
um ambiente inicialmente de brincadeira livre. Algumas crianças encantadas com o
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glitter usado nas borboletas de EVA e outros desenhos do material começam a
arrancar o EVA que enfeita a parede.
As crianças com os pedaços dos desenhos com glitter alternavam entre
guardar e exibir o material uns aos outros como se portassem um valioso tesouro,
despertando interesse alheio. O brilho do glitter denuncia as mãos de seus
possuidores e provocam os demais. O professor coloca um DVD com as canções de
Luiz Gonzaga e pede para que assistam enquanto ele desenhava um boneco do
artista do tamanho de uma pessoa adulta para que pintassem e o colorissem.
Algumas crianças, imagino que já condicionadas a deitarem naquele espaço
para assistir vídeos, ocupam o tatame e as almofadas preparando-se para assistir
sob o comando do professor. As possuidoras do tesouro de glitter continuam
encantadas com o brilho e as cores nas palmas de suas mãos, nada mais parece
interessar, pois suas imaginações foram atraídas e irradiadas pela luminosidade dos
micro-cristais.
Bachelard (2013, p. 249), fala em relação ao leitor literário que se permite
aceitar “vivenciar o ativismo imaginário do verbo brilhar” relaciono aqui com a leitura
de mundo muitas vezes encantada da criança, que assim como o leitor de poemas,
encontra o devaneio poético pela imaginação sobre o mundo. Tanto a criança como
o leitor literário: “Ao dar ao brilhante seu verbo ativo, ele se encarregará da função
de brilhar, sentirá essa felicidade, esse tônico ardor de todo ser que distende as
suas forças. O brilhante brilha e faz brilhar o olhar” (BACHELARD, 2013, p. 249).
Assim, as crianças portadoras do tesouro e do encantamento suscitado pelo micro-
cristais de glitter pareciam se sentir, brilhantes, de felicidade reluzente e capazes de
cativar olhares com seu brilho.
A relevância deste depoimento se faz ao endossar que em uma pedagogia
inspirada em Bachelard, ensinar a imaginação não se reduz ao acesso a imagens
literárias, mas a todo repertório imagético que pode provocar o Ser imaginante,
suscitando nele o devaneio poético. Assim, sabores, cheiros, sons, toques e
imagens visuais também podem suscitar devaneios poéticos. A criança que não
resistiu ao brilho e às cores de glitter exercitou o sonho de brilhar e de fazer brilhar o
olhar. Não estou tentando justificar moralmente o erro de ter retirado os desenhos da
parede, mas mostrando que se o devaneio pode ser provocado por uma situação
como essa, poderia um professor desenvolver atividades com material semelhante
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que trabalhasse o mesmo psiquismo, suscitasse a o brilhantismo e a felicidade do
sonhador de cristais.
Por fim, ainda na brinquedoteca, as crianças são postas para dançar canções
de Luiz Gonzaga. Foi ‘danado de bom’ como diria o rei do baião. As crianças
puderam dançar livremente, expressando-se diante da provocação deliciosa que é a
música. Algumas já ensaiavam a dança em dupla, popularizada pela socialização,
mais a maioria deixava-se embalar na liberdade de suas expressões corporais.
Uma pedagogia da imaginação necessita perceber que a mesma matéria
onírica da literatura e da poesia, existe na brincadeira, na dança e nas artes em
geral, essa matéria é a linguagem. E esta incrivelmente pode servir para a
expressão concatenada, clara e coerente das ideias, como para o devaneio poético
sem compromisso algum com antologias e continuidades. Portanto, as expressões
da linguagem sempre serão validas mesmo que não comuniquem a algum
interlocutor.
Ainda no contexto dos preparativos para a festa junina da escola, a Sexta
Cultural, atividade quinzenal que foi usada como ensaio de dança de cada turma. Na
ocasião, as turmas sentavam-se em uma área de convivência ao lado do Parque
Interno, onde havia um brinquedo de um mini parque para as crianças menores. Lá,
as turmas realizavam seus ensaios começando pelo Nível III, até o VI.
Os professores se entreajudavam, ora no cuidado com as diversas turmas,
ora se solidarizando no ensaio das coreografias. Estas últimas, para olhos adultos
eram de provocar um ataque de fofura, mas vendo o processo de ensaio da sexta
que se intensificou por todos os dias na semana que antecedeu o evento, é válido
considerar que nem todas as crianças demonstravam o mesmo interesse pela dança
e, consequentemente, o que era para ser uma grande diversão, para alguns, por
vezes pareceu enfadonho.
Voltando às Sextas Culturais e seus ensaios juninos, a animação no pátio
para ver as demais turmas se apresentando era muito evidente, mais não durou
mais que trinta minutos. Centrei minha atenção no nível V, crianças sentadas
enfileiradas, paulatinamente, esqueciam de observar o ensaio de seus coleguinhas e
interagiam uns com os outros, sejam em conversas paralelas, ou brincadeira de
empurra-empurra. Além do jogo fascinante de buscar o olhar do outro e desviá-lo
rapidamente na intenção de demonstrar a tentativa de esconder-se, por trás de uma
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pilastra, o aparecimento das cabecinhas de um lado e de outro num eterno esconde
e acha, parecia animar bem mais a turma que o próprio ensaio.
A brincadeira na/da criança é resiliente. Move não apenas seus interesses,
mas apreende sua alma, cativa a empatia e liberta a imaginação. A presença infantil
está no brincar/sonhar, no corpo/linguagem, nas suas presenças ausentes:
fisicamente visíveis, mas oniricamente inalcançáveis, habitando dois mundos
concomitantemente. A imaginação da criança foge e leva consigo a própria criança
inundada de imagens. A imagem que não é reprodução do real por ser em si
brincadeira, que transfigura a realidade entre a miniatura e a grandeza, que faz de
conta, que transforma o Ser em brincante desprendendo das amarras da razão é
sim imagem poética. É barco de devaneio.
No ensaio do Nível V, a coreografia era dividida entre a parte dos meninos e a
parte das meninas. Algumas meninas adoraram o jogo coreográfico, mas a turma
em geral estava com bastante dificuldade de apreender o passo a passo. Muitas
repetições até a coreografia ganhar forma, para a maioria não parecia um jogo, não
parecia brincadeira. As tentativas foram frutificando crescentemente, mas mesmo
faltando muitos ajustes os professores resolvem ensaiar em outro momento, tendo
em vista o desgaste da maior parte da turma.
O ensaio para a festa junina era de suma importância, pois a festividade era o
ápice da relação entre escola e comunidade no primeiro semestre. Momento no qual
toda a comunidade vem cortejar a escola, que se enfeita toda prosa e ensaia seus
passos mais bonitos para seduzir sua pretendente (a comunidade).
A narração de todo o ensaio teve a intenção de descrever o momento
posterior de retorno a sala, onde testemunhei o inacreditável. A turma já estava toda
na sala, os professores sabiam que aquela tinha sido uma tarde muito desgastante
para as crianças e propõem uma atividade de relaxamento. Jamais tinha imaginado
que isso seria possível acontecer simultaneamente com mais de vinte crianças entre
quatro anos e quatro anos e onze meses, sobretudo próximo a hora sempre ansiosa
do fim da aula e chegada dos responsáveis. Mas os professores além de sensíveis
eram muito competentes em sua atividade.
Solicitaram que todas as crianças deitassem no chão, ainda tomadas pela
euforia deitam. A professora Mariana com uma voz tranquila orienta o relaxamento,
sugere que fechem os olhinhos e que respirem. Propõe um exercício respiratório,
cheirem bem forte a florzinha e soprem a velinha, cheira florzinha e sopra a velinha,
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repetindo calmamente como um mantra. Por sua vez, não demorou para que a
grande maioria do Nível V estivesse completamente relaxada. Os semblantes
apaziguados e a intercalação de bocejos foram contaminando um a um. A
professora continua e fala do barulho do mar, do vai e vem das ondas, da calmaria
da praia estimulando que cada um sentisse no seu corpo aquela imagem/ambiente
tão peculiar.
Em algum lugar entre a calmaria e o devaneio eles alcançaram mesmo em
meio aos colegas, profundas solidões, ao mesmo tempo que a sintonia da turma
parecia uniforme, jamais imaginei que pudessem ficar tanto tempo sem recorrer ao
coleguinha do lado. Entre as flores cheiradas, sopraram velas praieiras de uma
embarcação de si, levada em meio ao vai e vem das ondas até a calmaria intima
que um sonhador só encontra na sua própria solidão. Lá onde
Um sonhador de devaneios afastou todas as ‘preocupações’ que atravancavam a vida cotidiana, quando se apartou da inquietação alheia, quando é realmente autor da sua solidão, quando enfim pode contemplar sem contar as horas, um belo aspecto do universo, sente, esse sonhador um ser que se abre nele (BACHELARD, 2009, p.165).
Em devaneio poético tornaram-se o próprio mar, o próprio mundo, o próprio
cosmos, em toda sua calmaria e profundidade, num lugar que
O tempo é submergido na dupla profundeza do sonhador e do mundo. O mundo é tão majestoso que nele não ocorre mais nada: O Mundo repousa em sua tranquilidade. O sonhador está tranquilo diante de uma água tranquila. O devaneio só pode aprofundar-se quando se sonha diante de um mundo tranquilo. A Tranquilidade é o próprio ser do Mundo e do seu Sonhador [...]. A Tranquilidade é o vínculo que une o Sonhador ao seu Mundo (BACHELARD, 2009, p. 166).
Por fim, na semana seguinte também numa sexta-feira, houve o grand finale a
festa junina, que de tão grande não coube dentro da escola. Localizou-se em um
amplo espaço entre a escola e a Igreja Católica. A decoração ficou incrível, tamanha
a dedicação dos funcionários da escola, incluindo corpo docente e gestão. Um
corredor de barracas vendendo comidas típicas, um painel temático de uns 5x2 m,
bonecos de Lampião e Maria Bonita na entrada, pescaria para as crianças, muitas
ornamentações de palha de coqueiros e um céu de bandeirinhas coloridas.
A comunidade toda presente, realmente um acontecimento na Praia de
Pirangi. Famílias a postos, a apresentação das respectivas salas com as crianças
caracterizadas foi muito bonita. Contudo, destaco que o próprio ambiente criado,
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favorecia ao encantamento e o sonho. Especialmente das crianças que possuem
encanto no olhar.
Concluído o momento de apresentação dos espaços de brincadeira e
convivência no ambiente escolar, antes de terminar o relato sobre o Dona Liquinha
Alves, ainda julgo importante compartilhar uma experiência que observei e outra
que me envolvi diretamente. A primeira delas diz respeito ao brincar com algo
atípico.
Dentre os brinquedos de montar, bonecos e bonecas, carros e panelinhas, os
lápis de colorir, pelúcias, havia um brinquedo que se multifacetava nas mãos
sonhadoras de algumas meninas. As flores das icsórias presentes próximo ao portão
de entrada da escola foram muitas vezes encontradas em variadas brincadeiras.
Seja no parque externo, ou na sala de aula elas eram catalizadoras de sonhos,
sempre do mesmo grupo de meninas. Colhidas e colocadas sobre a madeira da
gangorra, replantadas no chão como o pequeno jardim particular, sendo
‘preparadas’ nas panelinhas de plástico, ou atrás de uma orelha, sempre floresciam
o devaneio das brincantes.
Sobre isso, Piorski (2016, p. 72) mostra: “Os brinquedos feitos da flora
refletem a vida delicada de frutos e pétalas. Já a flora, feita de brinquedo e
transmutada no imaginar, retrata na alma o vasto campo de beleza”. Perguntei-me:
“Qual o odor dessas flores que parecem ser tão cheirosas para aquelas meninas?”
Imagino o cheiro doce da flor tão pequena que se encanta na brincadeira infantil. O
cheiro suave da flor tão frágil manipulada com tanto cuidado. O cheiro apetitoso da
florzinha que se transforma em comida de brincadeirinha nas panelinhas de plástico.
Que cheiro tem? Sabe-se que “o odor nos dá os universos da infância em expansão”
(BACHELARD, 2009, p. 134).
Ao exemplo das crianças pego uma flor de icsória na frente da escola. Penso
nas rosas do compositor Cartola: “Volto ao jardim [...]. Queixo-me as rosas. Mas que
bobagem! As rosas não falam. Simplesmente a rosas exalam o perfume que roubam
de ti, ai” (CARTOLA, 2017), em seguida, cheiro com intensidade, ‘ai’. Não havia
cheiro algum, quem exalava nas brincadeiras era o aroma dos seus devaneios, pois
“o devaneio é uma consciência de bem-estar” (BACHELARD, 2009, p.170) e “nos
devaneios da criança, a imagem prevalece acima de tudo. As experiências só vêm
depois” (BACHELARD, 2009, p. 97).
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Fig. 23 – A professora com voz tranquila orienta o relaxamento. Fonte: Acervo do Autor (2017)
Fig. 24 – Comidinhas com flores icsórias ‘preparadas’ nas panelas de plástico. Fonte: Acervo do Autor (2017)
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Semelhante ao jardim do poeta do Morro de Mangueira, o jardim e o cheiro
das flores vinham do sonhador e das brincantes. Contam que a canção “As rosas
não falam” foi inspirada numa jardineira que ficava na janela do barraco do Mestre
Cartola. Bachelard (2008, p. 23-24) já tinha apontado que “a imaginação aumenta os
valores da realidade” a ausência de cheiro torna-se aroma e a pequena jardineira
faz-se jardim, pois “a miniatura é uma das moradas da grandeza”.
A experiência das meninas floridas endossou a necessidade da educação que
respeita a imaginação, em especial na educação infantil, de semear a nossa
capacidade de sonhar. Como vimos, o devaneio é um exercício de felicidade e “a
infância aparece [...] como um verdadeiro arquétipo, o arquétipo da felicidade
simples” (BACHELARD, 2009, p. 118 grifo do autor). “Que nos deixem, portanto,
sonhar sem algoritmos nossa juventude, nossa infância” (BACHELARD, 2009, p.
108). Precisamos arar, adubar e encantar a terra educadora para que as crianças
sejam encorajadas a sempre cultivarem seus sonhos, os transformarem em jardins.
Como nos ensina Alves (2003, p.75):
Todo jardim começa com um sonho de amor. Antes que qualquer árvore seja plantada ou qualquer lago seja construído, é preciso que as árvores e os lagos tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardins por dentro não planta jardins por fora. E nem passeia por eles.
A outra experiência que prometi relatar, na qual tive maior participação, foi
realizada dentro da sala de aula, no momento de brincadeira livre após o retorno do
segundo lanche e antes da volta para casa. Ocasião que me provocou o olhar.
Diante de tantas crianças espalhadas pelo ambiente brincando, por vezes,
ficava difícil escolher o que observar, quem ver, como agir. Tudo era potencialmente
interessante. Sentei-me e vi um aparelho telefônico quebrado, lembrei-me de
Matéria de Poesia de Manoel de Barros, “o que é bom para o lixo é bom para
poesia” (Gramática Expositiva do Chão). Peguei o telefone: - Alô, quem tá falando?
Rapidamente um menino pega o outro telefone quebrado e responde iniciando a
conversa. Não lembro agora da natureza da conversa, mas ela prossegue por uns
poucos minutos. A alegria de meu interlocutor é ululante. Em seguida, outro menino
desperta o interesse pela brincadeira, dou meu telefone. Apesar de um pouco
contrariado, com minha ‘falta de consideração’, o primeiro menino continua o
falatório. Uma terceira criança quer participar da brincadeira. Na ocasião, a menina
tenta tomar os telefones dos demais, mas não consegue. Os outros dois fogem, riem
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e conversam. A menina encontra um brinquedo feito de peças de tijolinhos de
montar, seu aparelho telefônico. Para Bachelard (2013, p. 22), “a imaginação quer
sempre comandar, ela não poderia se submeter ao ser das coisas” e ela reinventou
o brinquedo para participar da brincadeira.
A menina vem conversar comigo, finjo que meu celular tocou e a atendo, a
imaginação vai sendo animada pelas palavras, “sim, de fato, as palavras sonham”
(BACHELARD, 2009, p. 18), a tagarela não me deixa falar e monossilabicamente
interajo: sim, hum, tá. Muito além do sentido das falas dos outros três interlocutores
conectados, a centralidade deles é brincar, é poetizar sua vida, encantar seu mundo.
Poderíamos dizer que para o poeta José Paulo Paes, que tinha tamanha intimidade
com o universo da criança, isso é poesia. No seu poema ‘Convite’ ele dizia:
Poesia é... brincar com as palavras como se brinca com bola, papagaio, pião. Só que bola, papagaio, pião de tanto brincar se gastam. As palavras não: Quanto mais se brinca com elas, mais novas ficam. Como a água do rio que é água sempre nova. Como cada dia que é sempre um novo dia (PAES, 2000, p 2)
Em Bachelard (2008, p.13), “a consciência poética é tão totalmente absorvida
pela imagem que aparece na linguagem, acima da linguagem, fala com a imagem
poética tão nova que não se pode mais considerar com proveito correlações entra
passado e presente”. No caso das crianças em seus telefonemas imaginários a
ligação não era via fibra ótica, nem por sinal de torre, mas feita por uma poética da
palavra falada que deseja anunciar-se. Ou seja, a palavra brincada é poesia, mas
digamos que não fosse. A criança em si, já seria poética.
A linguagem da criança é um rio que corre até o mar da linguagem adulta. No
caminho embaralhado pela correnteza, muitas palavras se refazem provocando o
riso maduro dos homens. Perdem-se letras, acham-se sílabas e a bola se torna boia,
a lagartixa uma larga-ficha. Coisas são renominadas, objetos ganham vida própria,
os neologismos são escancarados, a palavra é reinventada, ela torna-se maior do
que o entendimento do saber adulto, é potencialmente imagem poética.
Bachelard (2008, p. 4) nos diz que “em sua simplicidade, a imagem não tem
necessidade de um saber. Ela é dádiva de uma consciência ingênua”, já Manoel de
Barros fala que a “poesia é a infância da língua” (2010, p 9), nesse rio, que a
linguagem é constantemente e dialeticamente saber conceitual velho e congelado,
142
ele é aquecido e derretido pela imagem nova, ambas as coisas não se contradizem:
se aumentam. Diante disso, o poeta dentre os adultos é aquele que navega contra a
correnteza, já na criança é aquela que se deixa flutuar. Alô, voltamos à ligação.
Agora ela é uma conferência, os três falam comigo ao mesmo tempo, cada um seu
assunto. Outras crianças não resistem aquela confusão e inventaram novos
aparelhos telefônicos para juntarem-se à conferência. Forma-se uma nova Babel,
ninguém se entende nas palavras, mas estavam em perfeita harmonia com a
brincadeira. Será mesmo que todos falavam comigo?
Não, não falavam comigo. Assim como a pena em Bachelard (2009, p. 17) “é
a página em branco que dá o direito de devanear”, eu era apenas a pálida página,
ele continua o texto, “se ao menos fosse possível escrever só para si”. No devaneio
das crianças, diferente do escritor de livros, não é preciso “dar sequência as ideias”
fala-se devaneando e sem reparos ou retornos. O telefone, como a pena do escritor
em Bachelard (2009), é um órgão do sonhador.
Assim, podemos dizer dessa experiência, fazendo analogia com a Torre de
Babel bíblica, que por mais que pareça existir uma busca coletiva e semelhante por
meio dos devaneios, cada Ser procura seu próprio caminho de ascensão, porque a
sua linguagem poética é peculiar e, assim, vivenciada individualmente. Não há
coletividade no ato de devanear por mais que se devaneie junto. O educador deve
provocar além da racionalidade linear do conceito, situações que sejam capazes de
permitir à turma o exercício do encontro de cada um consigo mesmo por meio da
poesia. Pois,
As imagens em seu esplendor realizam uma comunhão muito simples das almas. Dois vocabulários deveriam ser organizados para estudar, um o saber, outro a poesia. Seria vão construir dicionários para traduzir de uma língua para outra. E a língua dos poetas deve ser aprendida diretamente, precisamente com linguagem das almas (BACHELARD, 2009, p.15).
Até porque o ato de devanear é uma condição humana, não apenas
intrínseca, mesmo que muitas vezes recalcada, mas necessária e saudável: “O
devaneio é um fenômeno espiritual – demasiado útil para o equilíbrio psíquico”
(BACHELARD, 2009, p.11). Ele permite a repercussão da tranquilidade no sonhador
e um exercício de cosmicidade. Ou seja, o sonhador onírico, sente-se parte da
natureza do mundo. O que certamente provoca um novo olhar sobre o mundo, não o
reduzindo a coisas. Logo, desenvolver a ‘linguagem das almas’ alcançada pelos
143
poetas, não apenas germina pessoas mais saudáveis psiquicamente, tranquilas, em
maior harmonia com o mundo, se faz emergente para a sociedade de nosso tempo,
tão carente de leveza.
Ainda encantado, encerro o relato sobre o Liquinha Alves, ciente que é
impossível expressar em palavras tamanha honra e gratidão de poder conviver com
aquela comunidade escolar com crianças e adultos incríveis. Nomino o
agradecimento a diretora Rosângela, a coordenadora Sarah, e aos professores
Isaac e Mariana, para que representem todos os funcionários, do porteiro à cozinha,
todos os pais e responsáveis e em especial às crianças do Nível V da turma de
2017.
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CAPÍTULO IV
O CAMPO DAS MINHAS INFÂNCIAS: IMAGINAÇÃO,
INFÂNCIA ONÍRICA E POESIA
Fig. 25 – Atividade de criança do CEM Dona Liquinha Alves
Fonte: Acervo do Autor (2017)
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O CAMPO DAS MINHAS INFÂNCIAS: IMAGINAÇÃO, INFÂNCIA E POESIA
“Roda mundo, roda gigante, roda moinho roda peão. O tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração”.
Chico Buarque de Holanda
“Agora eu era herói” diz a música “João e Maria” de Chico Buarque de
Holanda, expressão que só pode ser aceita poeticamente. A poesia dá licença à
concordância do devaneio e não à gramática, história, lembrança, ou linguística.
Paradoxo entre a presentificação do agora e a conjugação passada do que era. Aqui
não devemos exigir linearidade do tempo nem coerência sem variação do sonhador:
“Agora eu era um rei, era um bedel e era também juiz”, trecho da música.
(HOLANDA, 2017, s/p).
Em uma meditação e reflexão sobre a própria infância devemos também ter
os mesmos cuidados, pois “o calendário de nossa vida só pode ser estabelecido em
seu processo produtor de imagens” (BACHELARD, 2008, p. 28). Bachelard também
nos diz que “o passado rememorado não é simplesmente o da percepção. Já é
devaneio, uma vez que nos lembramos, o passado é designado com o valor de
imagem. A imaginação matiza desde a origem, os quadros que gostará de rever”
(BACHELARD, 2009, p. 98). Portanto, “o passado não é estável; ele não acode a
memória nem com os mesmos traços, nem com a mesma luz” (BACHELARD, 2009,
p. 99). Sabendo disso, que sentido teria fazer uso da própria infância como campo
de estudo e parte do trabalho?
Primeiramente, é necessário reconhecer que “a infância, no seu valor de
arquétipo é comunicável. Uma alma nunca é surda a um valor de infância”
(BACHELARD, 2009, p.121. Grifos do autor). Assim, a importância não se limita ao
uso de minhas memórias na constituição e base para meus argumentos, mais que
isso, potencialmente pode acessar elementos arquetípicos encontrados não apenas
na minha infância, como em todas. Ou seja, podemos comunicar-nos através das
infâncias e imagens. Portanto, é uma estratégia metodológica que busca
transcender a objetividade do discurso formal almejando repercutir as imagens aqui
revisitadas e sonhadas nas infâncias oníricas dos leitores.
O segundo motivo é a compreensão a partir de Bachelard (2009, p.109), que
“a infância é o poço do ser”, o arquétipo do poço aqui torna-se um convite a emergir
nas profundezas da própria humanidade associado à condição também arquetípica
146
da infância, na busca de si mesmo. É um poço/infância. Que lugar sombreado por
incertezas, mas ao mesmo tempo de fruição; aquífero de condução universal da
comunicação profunda entre infâncias. A busca no poço e na própria infância é um
mergulho na memória e na imaginação entre o arquétipo e o ser. E ao mesmo
tempo, ascensão verticalizada poeticamente que o coloca em devaneio, “Chega tem
hora que ri de dentro pra fora / Não fica nem vai embora / É o estado de poesia”
(CÉSAR, 2017).
Como uma terceira razão desse tipo de campo, para além de observar,
analisar e devanear sobre o devaneio de terceiros (seja das crianças envolvidas
nesse estudo, seja de uma poética da infância permanente que o estudo tenta
apreender), não minimizando essa dimensão, agora tenho a possibilidade de
meditar, explorar e devanear sobre minhas próprias memórias, imagens sonhadas.
Ou seja, parece-me legítimo não apenas elucubrar sobre a produção de imagem de
crianças, de poetas que sonham infância, mas fazer uma meditação das minhas
próprias imagens de infante, rememoradas e poetizadas.
E por fim, o derradeiro motivo de estudar a própria infância, seja ela revisitada
pela memória que sonha, seja visitada oniricamente por um adulto que por meio de
seu devaneio acessa em si mesmo um núcleo permanente de infância, é porque
isso é um exercício importante de autoconhecimento que permite que fale com mais
propriedade das infâncias vividas por mim e por outros. Pois, como falar dos poços
do mundo sem intimidade com o meu próprio? Quando volto ao meu poço, bebo de
uma água que poderia matar muitas sedes, não só minhas.
Contudo, parto ao encontro de imagens da minha história, percorrendo em
meio às memórias fabricadas pelas narrativas daqueles que conviveram comigo, e
entre minhas imagens de infância que são memória e invenção; reprodução
narrativa e imagem poética; sólidas como as paredes de um poço na pretensão de
passado e líquidas como a sua água na fluidez do devaneio; são história e estória.
“Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar. Ambas
trabalham para o seu aprofundamento mútuo. Ambas constituem, na ordem dos
valores, uma união da lembrança com a imagem”. (BACHELARD, 2008, p. 25).
Lembrando que “nunca somos verdadeiros historiadores; somos sempre um
pouco poetas, e nossa emoção não expressa mais que a poesia perdida”
(BACHELARD, 2008, p. 26). Portanto, na esteira de Bachelard (2009, p.119),
147
corroboro que “analisamos melhor uma infância por meio de poemas que por meios
de lembranças. Por meio de devaneios que por meio de fatos”.
Diante do exposto, isto não é uma narrativa linear da minha infância, não
poderia fazer com precisão a relação entre a memória suscitada, a precisão dos
fatos e a minha idade na ocasião, a não ser com o auxílio também dubitável de
memórias alheias, como a dos meus pais, por exemplo. Assim, não poderia me
comprometer em fornecer mais que imagens particulares dessa infância, por vezes
narradas por terceiros, com narrativas que compuseram meu imaginário trazendo
um sentimento de pertence antropofágico, outras vezes, resgatadas por mim, de um
lugar onde memória, infância e poesia não se dissociam. Portanto, como estratégia
de submersão no meu poço/infância, caminharei por lares que compuseram a minha
casa natal onírica.
Apesar de não se tratar aqui da história da minha infância, faço brevíssima
contextualização. Meus pais se mantiveram casados até meus cinco anos de idade,
nesse período, apesar de morar com eles, os meus dias se dividiam entre a casa
dos meus pais e a casa dos meus avós paternos, ambas no bairro natalense do
conjunto habitacional Soledade II. Com a separação dos meus genitores,
inicialmente, a casa da minha mãe tornou a ser a dos meus avós maternos, no
município de Taipu, também no Rio Grande do Norte. Com o tempo, meu pai e
minha mãe formaram novos lares, mas a minha morada de infância, para além das
casas do casal (enquanto casados ou separados), sempre é rememorada e sentida
como a casa dos meus avós. Especialmente os paternos, que me criaram até os
quinze anos de idade.
Entre o conjunto Soledade II e a cidade de Taipu faço um paralelo inspirado
em Bachelard sobre meus devaneios de introversão e os devaneios de extroversão,
para ele “todas as imagens se desenvolvem entre os dois pólos, vivem
dialeticamente seduções do universo e certezas da intimidade” (2013, p. 07). Faço
esse exercício, longe de tentar tornar absolutas as imagens de um lugar ou outro,
mas tentando resgatar o psiquismo majoritário exercido em cada espaço. Contudo,
para evitar a dúvida também vivida pelo autor (de por onde começar?), expressa no
prefácio “A Imaginação Material e a Imaginação Falada” (2013), sigo o caminho do
autor iniciando pelos devaneios da extroversão.
Sobre os devaneios de extroversão Bachelard nos fala:
148
Para manter o sentido das alegrias do vigor, cumpriria reencontrar a recordação de nossas lutas contra o mundo resistente. O trabalho, ao nos obrigar a essas lutas, oferece-nos uma espécie de psicanálise natural. Essa psicanálise leva seus poderes de liberação a todas as camadas do ser (BACHELARD, 2013, p. 39).
TAIPU DAS MINHAS VONTADES
“Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.”
Manoel de Barros
Taipu era o lugar de reencontro com meus irmãos Rafael e Maiara, que por
muito tempo lá residiram. O menino dois anos e nove meses mais novo que eu, a
menina quatro anos e onze meses mais nova. Também era a morada de um casal
de primos pouco mais velhos, Ariston Bruno, um ano e nove meses, e Vanessa, dois
anos e dois meses, bem como uns tantos outros primos que, assim como eu,
passavam férias, fins de semana, feriados e datas comemorativas na casa dos
nossos avós. Além, é claro, dos meus avós maternos e minha mãe.
Com tanta criança junta não poderia ser diferente, era praticamente um
playground a céu aberto, não necessariamente por causa dos brinquedos que lá
haviam, mas por conta do ambiente de brincadeira que fazíamos. Devo confessar
que este exercício de meditar sobre esse lugar da minha infância por si só acalentou
e harmonizou distâncias que nutri por toda uma vida, porque paradoxalmente, esse
lugar de brincadeiras que até então estavam esquecidas era o mesmo que me
afastava fisicamente da minha casa/ninho sob a proteção dos meus avós paternos,
em Bachelard (2008, p.116), o ninho é “o centro da nossa intimidade”. Então,
sempre tive um bem querer por Taipu que pretensamente concorria com o meu lugar
no mundo, que era no Soledade II.
Dentre as imagens que tenho de Taipu e das brincadeiras que lá eram
vivificadas certamente alguns lugares suscitam mais lembranças, imagens e
devaneios, dentre os quais destaco: a cascata artificial inventada por meu avô, a
piscina, o parquinho com escorrego e balanço (situados no bar e restaurante da
minha avó, a Cascata Mordomia, que dividia a mesma área da casa e que
usufruíamos livremente). Os pés de limão, goiaba e a bananeira, onde sempre nos
espalhávamos em brincadeira. A oficina de carros do meu avô (também no mesmo
terreno), os alpendres que circundavam toda a casa e o chiqueiro dos porcos.
149
Apesar de eu e meus irmãos termos muitos brinquedos, só brincávamos com
uns poucos. Minha mãe tentava conter o nosso espírito destruidor fornecendo
apenas os brinquedos mais difíceis de quebrar, portanto, a maioria deles era
emprateleirado e ainda encaixotado, tão bonitos, quanto distantes. Vez por outra que
conseguíamos burlar o sistema de segurança e brincar com algum antes de devolvê-
lo ao seu devido lugar, nem sempre em perfeito estado. Inspirado em Bachelard,
ouso associar a vontade infantil de quebrar o brinquedo, parti-lo, vê como é por
dentro, é a mesma vontade de superar a dureza da matéria na imaginação material,
A imaginação material e dinâmica nos faz viver uma adversidade provocada, uma psicologia do contra que não se contenta com a pancada, com o choque, mas que se promete a dominação sobre a própria intimidade da matéria. Assim a dureza sonhada é uma dureza atacada incessantemente, e uma dureza que renova sem cessar as suas excitações (BACHELARD, 2013, p. 18)
Nunca imaginei que aquela atitude da minha mãe fosse de algum modo vista
por mim como positiva, mas foi. Meu primo mais velho tinha mais acesso aos
brinquedos dele e compartilhava-os nas brincadeiras, mas o que nos encantava
mesmo era o desejo de criar nossos próprios brinquedos. Algumas vezes
misturando nas brincadeiras com nossos brinquedos fabricados, outras não.
Bruno, Rafael e eu fazíamos um pouco de tudo: carros, barcos, arco e
flechas, robôs, armaduras, espadas e armas de todos os tipos. Usávamos os mais
diversos materiais: palitos de picolé que viravam cercadinho para o gado; caixas de
papelão viravam robôs, isopor normalmente era embarcação, rolimã eram rodas de
carros, além de uma infinidade de materiais e ferramentas como: porcas de
parafuso, arames, câmara de ar de pneus velhos, goiabas verdes, garrafas pet,
potes de margarina, latas, papel, dentre tantos outros. Portanto, a negação dos
brinquedos fabricados serviu para cultivar a vontade de transformar uns tantos
materiais em brinquedos.
Os três meninos, especialmente, apreciavam o gosto de recriar o mundo
reinventando os materiais disponíveis no espaço casa/bar/oficina, buscando
aproximar o mundo vivido do sonhado, numa poética infantil do labor encantado, das
mãos que animam, transformam e conjugam esses mundos. O cabo de vassoura
nessas mãos sonhava ser espada; a lata imóvel, carrinho; o tronco de árvore queria
ser imortalizado por um desenho; o saco plástico de supermercado era pipa. “De
fato, a mão que trabalha põe o objeto em uma ordem nova, na emergência de sua
150
existência dinamizada. Nesse reino, tudo é aquisição, toda imagem é uma
aceleração, ou seja, a imaginação é o “acelerador do psiquismo”. (BACHELARD,
2013, p. 21).
Para conjugar esses mundos, certamente foi necessário burlar algumas
regras para obter as ferramentas e matéria prima necessárias para a fabricação dos
brinquedos. Pode-se dizer que as estratégias de obtenção de ferramentas e
matérias se dividiam entre coleta e caça.
Na coleta, a busca era feita hegemonicamente no espaço do bar entre as
mesas de cimento e madeira sob os coqueiros, se procurava tampas e latas de
cerveja e refrigerante, palitos de picolé, carteiras vazias de cigarros (dinheiro de
brincadeira), garrafas PET, pedras e quaisquer objetos que pudessem servir para
criação, qualquer coisa que provocasse nossa imaginação. Também eram coletados
pegadores no quintal e frutos, na maioria das vezes ainda verdes das árvores que
sempre eram úteis nas invenções.
Como caça, buscava-se outros objetos e ferramentas superprotegidos para o
trabalho de fazer brinquedo, que por si só já era prazerosa brincadeira. Aqui a busca
era por aventura. Na cozinha, a guardiã dos materiais e das ferramentas que
ficavam no armário era Antônia, que além de ter sido babá dos filhos dos meus avós
e segunda mãe deles, colaborava e muito com o cuidado de todos nós.
Especialmente, com a proteção titânica da cozinha. Como todo bom guardião,
Toinha era implacável, nunca estava receptiva a visitas à cozinha, muito pelo
contrário. Além da brabeza perene, ela sempre falava reclamando. Uma delícia de
desafio que apenas estimulava a caça dos importantes artefatos do armário.
Pela manhã a cozinha era intransponível e todos sabiam disso, o fogão
aceso, entra e sai das pessoas que auxiliavam Toinha, mas ela, como um sentinela
sempre de prontidão, grunhia: – Menino, saia já daí! Mas à tarde, enquanto ela
cochilava o sono dos justos (no seu quarto com porta de frente para cozinha, não
poderia ser diferente), com cuidado era possível pegar os talheres, tesoura, velas,
fósforos, palitos de dentes, palha de aço “Bombril” e tudo mais que fosse possível.
Ao contrário de Antônia, minha avó Ilza era bem mais maleável e permissiva
em relação à aproximação infantil na hora de preparação da comida. É bem verdade
que ela cozinhava apenas em datas comemorativas e fora da cozinha, em uma
mesa enorme, especialmente fabricada com essa finalidade. Sentada lá, minha avó
preparava seus pratos e doces. Entre a observação de seu trabalho culinário e a
151
cautelosa aproximação da mesa não era difícil experimentar um brigadeiro, beijinho,
um salgado, colocados diretamente na boca do neto, ou neta. Mas logo se fazia um
enxame de netos impossibilitando seu trabalho e ela expulsava todos de uma vez.
Bachelard (2013, p.69) adverte que “afastar a criança da cozinha é condená-la a um
exílio que a aparta de sonhos que nunca conhecerá. Os valores oníricos dos
alimentos ativam-se ao se acompanhar a preparação” de certo que concordo
plenamente, muito pela lembrança de ser adocicado pela minha avó.
Retomo o tema das caçadas, já falando das mais difíceis e desafiadoras,
sempre na oficina enorme do meu avô José. Um galpão com mais de vinte metros
de comprimento com fachada para a rua e porta de acesso a casa. Jamais a oficina
poderia ser invadida pela frente, pois o complexo era fortemente vigiado. Contudo, a
entrada pela outra porta nem sempre era facilitada. Era uma porta dupla, enquanto a
oficina funcionava, a porta de cima sempre estava aberta, porém a porta de baixo
era fechada por um ferrolho na parte de dentro e o braço de nenhum dos primos
conseguia alcançar. O que aumentava a fascinação, de longe dava para ver dentro,
pelo pedaço superior da porta, avistava-se uma escuridão convidativa.
Meu avô José era o perigo maior, muito bravo não admitia que pegassem
suas ferramentas, nem o trânsito de crianças ali. Os seus funcionários eram como
guardas do exército, sempre camuflados pela graxa e prontos para o combate, com
direito a nos entregar para nossa mãe, pior, para o nosso avô. Mas às vezes em um
descuido atípico, meu avô deixava a portinha aberta e saía de carro. Se a porta de
cima aberta por si só era convidativa, a de baixo aberta na ausência de Seu José
era um imperativo à exploração e caça de objetos inimagináveis.
As rodinhas de rolimã e as esferas de metal, sem dúvidas, eram as favoritas,
hand-spiners pré-históricos, mas lá também se encontravam hastes de metal,
porcas, pregos e parafusos, fios, cordas, graxa, pedaços de câmaras de ar e
ferramentas de verdade de meu avô. “A ferramenta desperta a necessidade de agir
contra uma coisa dura” (BACHELARD, 2013, p. 29), e provocados pelas
ferramentas, tomávamo-las de empréstimo, para agir contra os materiais coletados.
As caçadas ali eram sempre rápidas e sorrateiras e os achados surpreendentes.
Despertava vontades musculares da nossa imaginação material e, sobre isso, diz
Bachelard (2013, p. 43): “Essa força interna, ao privilegiar vontades musculares, dá
uma estrutura ao nosso ser íntimo”.
152
Compartilhado o método de aquisição de materiais, começo o relato das
construções. Apesar do momento da caça e da coleta normalmente ser uma
brincadeira coletiva (até porque ninguém queria ser pego sozinho) no momento de
transformar as matérias, o mais comum era cada um centrar-se na sua obra, numa
solidão ativa, dividíamos os materiais, mas o foco era ‘solitário’ até apresentar o
brinquedo inventado numa espécie de competição velada, jamais anunciada. – Vou
fazer melhor. “Na solidão ativa, o homem quer cavar a terra, furar a pedra, talhar a
madeira. Quer trabalhar a matéria, transformar a matéria” (BACHELARD, 2013, p.
24). O autor (2013, p. 16) ainda lembra que:
O mundo resistente nos impulsiona para fora do ser estático, para fora do ser. E começamos os mistérios de energia. Somos desde então seres despertos. Com o martelo ou a colher de pedreiro na mão, já não estamos sozinhos, temos um adversário, temos algo a fazer.
Lembro que gostava especialmente de criar barcos para boiarem na piscina.
Era uma grande festa quando se comprava algum equipamento novo para casa que
viesse encaixotado e protegido por isopor, material muito valioso para invencionices,
no que se refere aos barcos, especialmente o isopor. Este era cortado à faca para
fazer a estrutura do barco, sobreposto em um ou dois andares, recordo que
dependendo do pedaço do isopor que escolhia, o material já me contava segredos
de suas formas, já aproveitava contornos para melhor construção. Palitos de picolé
eram usados para aprimorar a estrutura, até mesmo para colocação de velas feitas
de sacos de supermercado; tampinhas de refrigerante se tornam janelas redondas;
parafusos eram tripulantes; um palito de churrasco um belo mastro para uma
bandeira, certamente pirata; metais por vezes eram presos ao chão da embarcação
para melhor sustentação; e porcas amarradas na ponta de um barbante viravam
âncora. Com tudo isso, até os bonecos de brinquedo eram trazidos para brincadeira.
A matéria convida o sonhador, o provoca, o desafia, desperta energia e
devaneios da vontade. A criança que sonha construir seus brinquedos inventa suas
ferramentas, assim como pedra vira martelo, a matéria se transforma e o que foi
sonho vira brinquedo. O que existia apenas no íntimo do Ser é extrovertido. O labor
onírico junto com o trabalho criativo recria a matéria, o sonho, o brinquedo, a
brincadeira e o Ser. “Os devaneios da vontade operária amam os meios tanto
quanto os fins. Por meio, deles a imaginação dinâmica tem uma história, conta
história a si mesma” (BACHELARD, 2013, p. 30). Em Barcellos (2012, p. 11),
153
A função do trabalho é ser um fim em si mesmo. A partir disso, podemos rever a nossa imaginação do trabalho não mais apenas com as lentes econômico-sociais que o enquadram na perspectiva depreciativa da alienação, de exploração, do enfado e da fadiga (a perspectiva, por assim dizer, “marxista”); nem com as lentes morais monoteístas que o enquadram, por outro lado, na perspectiva virtuosa da obrigação ética, aquela perspectiva que serve à fantasia espiritual do crescimento ilimitado e esforçado, e da nobreza de conduta socialmente útil (a perspectiva, por assim dizer, “protestante”).
Assim, aproximamo-nos de Barcellos (2012, p. 11), no seu entendimento de
trabalho como ‘cultivo da alma’, entendendo que esse é o trabalho onírico que cativa
a criança e cultiva sua alma e porque não dizer, sua infância onírica. Ainda Barcellos
(2012, p.15-16) nos ensina,
No meu entender, as considerações da psicologia arquetípica tentam reconciliar homo fabere homo ludens, aquele que faz com aquele que brinca, trabalho e jogo abrindo na imaginação novamente a possibilidade de uma ponte entre o criativo e o recreativo. O peso cultural que normalmente os separa está, quero insistir, antes nas fantasias que sustentam nossa noção de trabalho, na imaginação do trabalho. É lá que se encontra a raiz e a possível solução do problema. A mentalidade que os separa, que não entendeu serem eles a mesma coisa, é a mentalidade que está por trás do adoecimento da ideia de trabalho em cada um de nós. Mas o trabalho na imaginação mostra que não há separação.
Outra lembrança suscitada é o de brincar com areia de baixo do pé de limão,
lugar perfeito para devanear com motivos rurais, tinha até uma torneira que sempre
era usada para melhorar a manipulação da terra. Assim era mais fácil construir os
cercados para o gado de plástico comprado na feira. A fazendinha era modelada a
mão, apalpada entre a mistura da terra e da água, o barro assim como em
mitologias de criação, também dava vida a personagens e contornos ao espaço
inventado.
Tinham também as construções ora feitas com tijolos martelados por pedras,
ora por estacas de palitos de picolé e outros materiais. Os montes de terra que os
carrinhos subiam eram feitos com a areia excedente do lago cavado. Buracos eram
feitos também como armadilha para os brinquedos desavisados. Assim, foram
criadas raízes afetivas, imaginárias e poéticas naquele lugar. Manipulando a terra e
os pedregulhos foi dada a ciência dos chãos que até hoje são pisados. Bachelard
(2013, p. 38) mostra a importância desse cavar, de brincar na terra, na areia:
O buraco feito na areia, depois a terra movediça, corresponde a uma necessidade psíquica da alma infantil. A criança precisa viver a idade da
154
areia. Vivê-la é a melhor maneira de superá-la. É preciso muito pouco espaço, muito pouca terra para que a imaginação crie raízes. Mas que educação mais estranha é essa que impede uma criança, quando já tem força para isso, quando as suas forças reclamam essa façanha, de fazer buracos na terra, com o pretexto de que a terra é suja.
Muito próximo ao limoeiro estavam as bananeiras, amontoadas como pinos
de boliche, certamente a principal vítima dos desejos das facas roubadas na
cozinha. Ali eram vividos os sonhos circenses de ser o atirador de facas, ou a
energia extravasada do herói que apunhala o vilão com sua espada samurai. É
também verdade que sem ferramentas perfuro-cortantes as bananeiras, pareciam
pouco atrativas e até inofensivas, “mas se temos uma faca na mão, entendemos
imediatamente a provocação das coisas” (BACHELARD, 2013, p. 30). Mais uma vez
a ferramenta e a matéria animam o Ser, que extrovertido se impõe e reage
sadicamente contra a resistência da matéria. A criança extravasa sua energia na luta
contra a matéria, ela se empodera tendo a ferramenta como extensão da sua
potência. A vontade de dominar a matéria ajuda a decifrar as materialidades do
mundo.
De fato, que quietude vamos encontrar nesse sadismo “contrito” voltado contra um objeto sem defesa humana. Não só na exuberância de nosso extravasamento de energia, mas também no próprio exercício de nossa vontade incisiva, de nossa vontade acumulada sobre o gume de uma ferramenta (BACHELARD, 2013, p. 31).
Não apenas as bananeiras atiçavam esses desejos de perfuração. Lembro da
dificuldade de furar uma lata de leite em pó, dedos doloridos de pressionar o prego
contra a dura lata, mas era necessário para fazer um robô, a lata despertava uma ira
que só aumentava a vontade de trabalho e de perfuração. Daí a necessidade das
ferramentas, superar a dureza das matérias e dominá-las.
O prego e a pedra/martelo são indispensáveis. São a minha força de
submeter à lata, o meio de me realizar enquanto trabalhador lapidando a matéria em
sonho. “Então o trabalho cria imagens de suas forças, anima o trabalhador por meio
das imagens materiais. O trabalho põe o trabalhador no centro do universo e não
mais no centro da sociedade” (BACHELARD, 2013, p. 25), oniricamente, a criança
artesã trabalha o próprio cosmos dando-lhe as suas próprias cores, texturas e
formas com sua imaginação criadora.
155
Por ora queríamos mostrar que a provocação da matéria é direta e acarreta uma cólera, uma cólera imediata contra o objeto. Resistência e cólera estão vinculadas objetivamente. E as matérias duras são suscetíveis de nos fornecer, segundo a sua resistência, uma grande variedade de metáforas que participam de uma psicologia da cólera (BACHELARD, 2013, p. 48).
Taipu era terra de desafios, suas matérias atentavam contra toda docilidade
infantil, convidavam a uma curiosidade ativa. Carecia de exploração, de amassar, de
perfurar, de ativar as energias de cada criança para se apropriar e vivenciar em seus
devaneios de ação e trabalho a dialética entre o duro e o mole, assim como no
primeiro livro telúrico de Bachelard (2013, p. 26), “as intimidades do sujeito e objeto
se trocam entre si; nasce assim na alma do trabalhador um ritmo salutar de
introversão e extroversão”.
Diante de tanta vida vivida e revivida, de tanta memória revisitada e
reformada pelas imagens poéticas suscitadas, repito a inquisição bachelardiana:
“Éramos, sonhávamos ser, e agora sonhando nossa infância, somos nós mesmos?”
(BACHELARD, 2009, p. 103). Sim, sou eu ampliado pelos devaneios, “a imagem é
sempre uma promoção do ser”. (BACHELARD, 2013, p. 16). Ao meditar sobre minha
infância ressoo vibrando como metal agredido, sou metal, e repercuto como as
ondulações cadenciadas e expansivas rumo ao infinito da pedra jogada no lago.
Alma que se inunda, poço que transborda.
Metal e pedra são aqui ferramentas oníricas das categorias analíticas
bachelardianas, ressonância e repercussão, e também imagens que suscitam
memórias sonhadas. Enquanto ferramenta, “ela desperta necessariamente um
mundo de imagens materiais. E é em função da matéria, de sua resistência, de sua
dureza que se forma na alma do trabalhador, ao lado de uma consciência de
destreza, uma consciência de poder” (BACHELARD, 2013, p. 42).
Portanto, agora é possível reconhecer a tamanha importância da infância
ativa, criativa, inquieta, extrovertida pelas resistências das matérias. Que não se
limita ao desenvolvimento das motricidades, mas que possibilitou um saudável
desenvolvimento psíquico que me dá vontade de trabalhar, consciência do poder de
criação, inspirado em Bachelard (2013), afirmo que o trabalho com a dureza e
moleza nos materiais na infância também lapidaram e moldaram o meu Ser, mas,
além disso, os elementos citados nutriram o poço do meu ser de imagens que me
humanizam e permitem que consiga ter outro olhar para a vida, para além de suas
razões, um olhar de maravilhamento diante da materialidade do mundo. Em um
156
Onirismo ativo, isto é, de devaneios do trabalho fascinante, de trabalho que abre perspectivas à vontade. Nesse onirismo ativo estão as duas grandes funções psíquicas: imaginação e vontade. Todo o ser é mobilizado pela imaginação, como reconheceu Baudelaire: “Todas as faculdades da alma humana devem ser subordinadas à imaginação que as requisita todas ao mesmo tempo” (BACHELARD, 2013, p. 40).
Para Duborgel (2003, p. 282-283), “a razão é vista como uma atividade
regional, restrita, do espírito, da qual a imaginação seria a forma amplificada,
generalizada. Afinal, o imaginário engloba muito mais a razão do que esta o
imaginário”. Tanto Bachelard quanto Duborgel investem numa imaginação como
algo maior que conecta o ser com o mundo. A imaginação material de Taipu me
mobilizou todo meu ser em ação e criação, “tais impressões aprofundam-se na
criança, alimentando novas imagens, novos sonhos” (PIORSKI, 2016, p.64). Assim,
fui conectado ao mundo e reinventei o mesmo por meio da imaginação que era
provocada a todo tempo em Taipu, fosse pelas ferramentas da oficina, ou pelas
coisas protegidas na cozinha, mas principalmente pela vontade de transformar o
mundo.
O REPOUSO DO SOLEDADE II
“A memória sonha, o devaneio lembra”.
Gaston Bachelard
Agora pego a primeira rua da lembrança à esquerda, do lado onde o
compasso cardíaco dita o ritmo dos meus passos. Não sou apenas eu quem me
aproximo, as imagens vêm em minha direção, a materialidade do espaço se desfaz
na minúcia do meu sonho. Apequeno-me como infante maravilhado, sigo descendo
à casa natal. Apesar de ter tido muitas moradas, foi lá onde criei raízes, é lá que o
meu sonho de habitar encontra aconchego.
Uso a imagem da árvore para meditar sobre a minha casa de infante, “a
árvore é assim uma direção de sonhos” (BACHELARD, 1990b, p. 226). Dirijo meus
sonhos à casa dos meus avós paternos, dona Francisca e seu Jerônimo, lá onde
brotaram minhas raízes, era uma casa simples de conjunto, primeiro dois
dormitórios, depois três. Um lar simples e acolhedor para todos os familiares que
careciam por algum motivo de abrigo em uma ou outra estação. Na minha infância,
morávamos eu, meus avós, meu tio e uma prima de terceiro ou quarto grau, filha da
157
sobrinha-neta da minha avó. Depois, foi construída uma casa conjugada onde foi
morar minha tia, marido, filho e enteadas, já na minha pré-adolescência.
Foi lá no Soledade II que floresci para a vida, em Bachelard (1990b, p. 224),
“florescer bem é então uma maneira segura de enraizar-se”. Sobre a palavra raiz,
Bachelard (1990b, p. 226) nos revela que “trata-se de uma palavra indutora, uma
palavra que faz sonhar, uma palavra que vem sonhar em nós. Experimente-se
pronunciá-la docemente, não importa o motivo, e ela fará o sonhador descer ao seu
passado mais profundo”. Ainda no exercício de rebuscar as raízes, busco a
etimologia da palavra Soledade, nome do meu bairro natal, minha primeira morada.
Descubro que soledade vem do latim solita que é a mesma raiz das palavras
portuguesas saudade e solidão.
É com saudades e com a solidão de devaneador que busco as imagens
desse lugar, a raiz das palavras se enraízam em mim e se tornam eu. Saudades da
intimidade da minha morada que eram meus avós. Eles eram meu abrigo e
proteção, como o ninho. “O ninho, como toda imagem de repouso, de tranquilidade,
associa-se imediatamente a casa simples” (BACHELARD, 2008, p.110), “assim,
contemplando o ninho, estamos na origem de uma confiança no mundo [...], um
apelo à confiança cósmica (BACHELARD, 2008, p.115). Lá foi possível que eu
brotasse, que tivesse a confiança que a maturidade nos traz de alçar os meus
próprios voos.
Os devaneios de segurança e repouso e os arquétipos que os mobilizam dão
alicerces e raízes psíquicas que devem ser bem nutridas especialmente na infância
do Ser, deste modo, a criança vai se desenvolver e arvorizar de forma mais
saudável e plena. Sobre isso Bachelard (1990b, p. 230) fala:
Assim, quando conseguimos dar ao psiquismo aéreo da árvore o interesse complementar das raízes, uma vida nova animava o sonhador; o verso produzia uma estrofe, a estrofe produzia um poema [...]. A imaginação captava todas as forças da vida vegetal. Viver como árvore! Que crescimento! Que profundidade! Que retidão! Que verdade! No mesmo instante, dentro de nós, sentimos as raízes trabalharem, sentimos que o passado não está morto, que temos algo a fazer, hoje, em nossa vida obscura, em nossa vida subterrânea, em nossa vida solitária, em nossa vida aérea. A velha raiz – na imaginação não existem raízes jovens – vai produzir uma flor nova. A imaginação é uma árvore. Tem as virtudes integrantes da árvore. Vive entre o céu e a terra. Vive na terra e no vento. A árvore imaginada é insensivelmente a árvore cosmológica, a árvore que resume um universo. Que faz um universo.
158
Debruçando-me sobre imagens da minha infância no Soledade II, ouço
reiteradamente pancadas metálicas fortes que chegam a ecoar propagando-se no
ar. Na minha pequenez de menino, ainda mais miniaturizado pelo meu devaneio
sobre o som reincidente, lembro-me por várias vezes associar as pancadas aos
passos de um gigante. Chego a olhar para o céu buscando-o no quintal. Por maior
que ele fosse o que me motivava não era o medo, talvez um suspense, na certeza
de avistá-lo a qualquer momento. O que temer ali? Eu estava no meu abrigo, na
minha fortaleza sob a mais absoluta proteção.
No meu devaneio pela reverberação dos passos agigantados, eu e meu bairro
éramos surpreendentemente pequenos, ou o gigante era incrivelmente grande e seu
tamanco de ferro maior que toda a área da minha casa, mas por demorar tanto a
chegar imaginei que apesar da proximidade do som, ele ainda estava distante.
Quase três décadas se passaram e o devaneio do gigante ficou adormecido
em mim sem jamais eu ter entendido o barulho, agora imagino o que reproduzia o
som dos passos do gigante de tamancos de metal. Exatamente atrás do meu quintal
havia uma oficina de carros, imagino que o som estridente devia ser de um
trabalhador com uma ferramenta desamassando uma possível calota de pneu ou
algo do tipo. Imagino que vez por outra ele pegava esse tipo de serviço, até porque,
vez por outra, o gigante circundava o Soledade II.
A casa, depois de uma reforma, passou a ter também dois guarda-roupas de
alvenaria embutidos nas paredes, um em cada um dos quartos no fundo da casa.
Esconderijo perfeito para qualquer criança. Os guarda-roupas eram muito altos e
iam até o teto de gesso, grandes, tomavam quase toda parede, profundos na minha
imaginação infantil. Não consigo me recordar das portas, talvez nem existissem e
isso era um convite permanente à imaginação. Despertava-me uma vontade de
adentrar, de me recolher e me esconder.
No quarto dos meus avós, haviam muitas ombreiras com blusas, blazers,
calças, vestidos, camisas que cortinavam e dividiam o fora do dentro. Foram
inúmeras as ocasiões que sonhei por detrás daquelas roupas, que construí minha
fortaleza imaginária com aquele campo de força de pano, linha e algodão. Assim
como o interior do armário descrito por Bachelard (2008, p. 91 - grifo do autor), o
interior do guarda-roupas é um “espaço de intimidade, um espaço que não se abre
para qualquer um”. Guarda-roupas é um excelente nome para uma fortaleza, não
concorda? No seu primeiro nome é manifestada a intencionalidade de segurança e
159
proteção, de acolhimento. Já as roupas, guardam em si as histórias dos caminhos
que passamos, as datas comemorativas e suas roupas especiais, o cheiro
amaciante do carinho relativo a lavagem, a memória do ferro quente que a
desamassou assim como o metal em brasa esculpindo armaduras. O que protege o
interior de um guarda-roupas que é esconderijo de um sonhador não são suas
portas, mas toda poesia emerge das palavras, dos cheiros, das histórias de cada
peça, do carinho da lavagem e da cortina de roupas que se faz um campo de forças
do ser/criança.
No meu quarto o guarda-roupas de alvenaria era bem mais espaçoso, mais
vazio. Ele também era atraente como esconderijo, mas não tanto quanto o dos meus
avós, lhe faltava algo, provavelmente a densa cortina de roupas que dividiam os dois
universos de habitar, um em evidência, o outro em recolhimento. Todavia, meu
guarda-roupas tinha outras provocações. Ele era perfeito para escaladas. A
intimidade do recolhimento do quarto de porta fechada permitia que eu acatasse
esse desafio. Guardar as coisas nos lugares mais altos, isso é só para os grandes.
Lá na minha casa onírica ainda tem o ‘boi da cara preta’, nome dado a
cadeira de balanço dos meus avós, onde fui ninado desde os meus primeiros dias. A
cadeira de metal e trançada de fios de plástico, dona de eterno vai e vem para frente
e para trás, acomodava perfeitamente a pessoa da qual usufruiria daquele balanço e
mais ainda a criança que desfrutava do colo/balanço. O fio que a entrançava em
linhas paralelas bem ordenadas recebiam o ‘balançador ou a balançadora’
anatomicamente, se moldando ao corpo, ao peso a estrutura de maneira que
tornavam-se um. Recordo muito bem de ficar impressionado com as linhas
vermelhas marcadas nas costas nuas de Seu Jerônimo depois que levantava do boi
da cara preta.
No embalar da criança, balanço e balançador eram um: repouso de
acolhimento e aconchego, ninho de carinho, a bolsa canguru onde movimento,
intimidade, segurança e cumplicidade se fundem. Não existe melhor, nem mais
protegido lugar no universo para sonhar, acordado ou adormecido. “Boi, boi, boi / Boi
da cara preta / Pega esse menino que tem medo de careta” (CAYMMI, 2017, s. n.),
mais que a canção, a música ninava, a melodia era acalanto. A letra que falava do
boi perseguidor de cara preta não repassava essa mensagem assustadora, mas ao
contrário, em devaneios suscitava imagens de amparo, proteção, infalibilidade. Ao
ponto de, ainda muito pequeno, eu ter batizado a cadeira como boi da cara preta.
160
A árvore de Natal da minha avó Francisca também tem um lugar especial
nessa casa. Era montada em frente a porta do seu quarto, com visão panorâmica da
sala e da entrada da casa. Para um infante maravilhado, a árvore natalina mais linda
dentre todas já montadas. Muitas luzes, muitas bolas de variadas cores e tamanhos,
símbolos natalinos se espalhavam de dentro para fora em seus galhos, lacinhos,
estrelas, cordões enfeitados prateados e dourados a envolviam.
Essa ainda é minha árvore natalina, ela era uma metáfora dos sentimentos
que povoavam aquela casa. Quanto carinho e amor ornamentavam e se fundiam a
cada pedacinho de vida, cada galho, das extremidades até as profundezas daquele
pinheirinho! Durante todo o ano todos os apetrechos e adereços necessários eram
cuidadosamente guardados, encaixotados e certamente colocados em um dos
guarda-roupas embutidos, para que no momento certo, animassem todo
encantamento metafórico, simbólico e, além disso, aguçavam a vontade de
contemplação, despertavam a imaginação e o devaneio.
Não era apenas o pinheirinho natalino que avivava e atiçava o silencioso e
solitário desejo de contemplação. Do lado oposto da televisão, em frente à mesa de
seis cadeiras que dividia a sala, um aquário de mais de um metro de cumprimento
convidava a submergir naquele micro nicho de vida. Minha avó diariamente era
enfeitiçada e assistia o aquário com o tempo suspenso, dizia ela que era relaxante.
Muitas vezes me encontrei ali, entre os dourados japoneses e os alvinegros acarás,
distanciados por uma lâmina de vidro dos beijos incessantes dos beijadores e do
trabalho interminável do limpa-vidros.
O aquário não era apenas exibição, assim como a casa, também tinha seus
recantos, suas tocas, troncos ocos, pedras perfuradas, esconderijos na quenga de
coco e lodo, não era difícil também em estado de contemplação se miniaturizar e
esconder por ali. Devaneando, por vezes, já fiz esses caminhos, esses percursos,
tenho intimidade com essas locas, já me escondi ali de predadores externos que
tentavam me sequestrar da intimidade do meu ser, já fiquei ali longos dias, como
nos cantos do meu quarto ou na intimidade do meu guarda-roupa. Bachelard
(1990b, p. 9) nos lembra que “esconder é uma função primária da vida”.
Sempre que ameaçado de ser retirado daquela casa, morada dos meus avós
paternos, lugar de proteção, nesses recantos eu me escondia. Cursei a
alfabetização em Taipu, entre seis e sete anos, morando por um ano letivo lá. Já na
primeira série, voltei para o Soledade II. Com lembranças muito nubladas, recordo
161
que o motivo da transferência na ocasião foi porque minha mãe não foi autorizada a
me retirar da escola no Soledade II, não a reconheceram. Ela, muito sentida, quis
tomar a frente da minha criação e me transferiu para Taipu, mas não levou em
consideração meu desejo na época.
A minha solidão no Soledade II era diferente da taipuense. No último caso,
muitas vezes cercado de crianças, mergulhava em mim, na minha solidão ativa,
inquieta, que reagia a provocação das matérias e ferramentas para desmontar o
mundo, remontar, recriar, dar vazão a minha imaginação criadora. Trabalhar
submetendo a matéria à domesticação de suas molezas e durezas,
concomitantemente, domesticando num espelho energético, as minhas próprias. Já
no bairro natalense, cujo nome evoca uma dupla solidão, a solidão é da criança que
brinca sozinha, ela não precisa se recolher em si na multidão para depois se
extrapolar, ela recolhe para sua intimidade o próprio mundo. O lugar me faz acessar
meus sonhos de tranquilidade, daí os devaneios surgem nos espaços que tornam-se
catalizadores de imensidões. Em Bachelard (2008, p. 191),
A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características do devaneio tranquilo.
Curvado no chão, num canto da sala, desenhava sonhando minhas secretas
fábulas, “é no seu próprio devaneio que a criança encontra as suas fábulas, fábulas
que ela não conta a ninguém. Então, a fábula é a própria vida” (BACHELARD, 2009,
p.113). Passava tanto tempo assim, que me lembro ter dores nas costas de estar
curvado, sonhando em meio as cores, traços e garranchos. O desenho aqui não se
separa da vida, é uma força de síntese da existência da criança, assim como “a
poesia é uma força de síntese para a existência humana!” (BACHELARD, 2009,
p.119). No desenho feito no lugar de proteção e intimidade, a criança inscreve-se no
mundo, não no mundo real, mas num mundo bem maior, que acolhe todas suas
fabulações e todo o encantamento, é a coloração de um estado de felicidade do
sonhador solitário.
162
INFÂNCIA PERMANENTE
“Lutei para escapar da infância o mais cedo possível. E assim que consegui, voltei correndo pra ela.”
Orson Welles
As duas crianças, tanto a da vontade extrovertida, quanto a do repouso
introspectivo, são partes múltiplas e complementares de uma mesma infância
onírica, que se reabastece e se refaz constantemente no homem adulto que em
memória, sonho e devaneio, reencontra a permanência da infância nos recantos
mais felizes e poéticos de sua alma. “Seja como for, quando mantemos em nós esse
fundo de infância, lemos com mais adesão tudo que concerne ao arquétipo da
infância e ao mitologema da infância. Parece que tomamos parte nessa restituição
de potência dos sonhos abolidos” (BACHELARD, 2009, p.129). Por isso, insisto na
necessidade de seguir falando da experiência onírica do infante que vos fala.
O cantor e poeta brasileiro Gonzaguinha, fala com tristeza do peso da vida
adulta, mas também reconhece a potência de beleza e felicidade que é a infância.
Sobre o fardo da maturidade ele desabafa: “É triste ver esse homem, guerreiro
menino, com a barra de seu tempo por sobre seus ombros. Eu vejo que ele sangra,
eu vejo que ele berra, a dor que traz no peito, pois ama e ama. O homem se
humilha, se castram seus sonhos” (GONZAGUINHA, 2017, s. n.).
Ele percebe o desmoronamento dos sonhos roubados do menino ainda jovem
que necessita assumir a responsabilidade adulta, e o poeta sabe que assim “não dá
pra ser feliz” (GONZAGUINHA, 2017, s. n.). Todavia, assim como ele, recorro a
infância que resiste à degradação humana. Busco e proclamo uma vida feliz, assim
como o artista “Eu fico com a pureza das respostas das crianças: É a vida, e é
bonita, é bonita. Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar a beleza de ser um
eterno aprendiz” (GONZAGUINHA, 2018, s. n.). A infância como espanto para
beleza, felicidade e esperança, transforma o psiquismo endurecido do adulto. Como
revela Rubem Alves (2012, p. 67) “Crianças têm um olhar encantado” Para ratificar
isso, basta lembrar do ‘amigo do dinossauro’ ou a menina transfigurada em quadro
do Freinet, ou da mãe da casinha de brinquedo do Liquinha.
As imagens poéticas são passaporte para o estado onírico de infância, sejam
elas encontradas nas lembranças, na memória-sonho, nos devaneios e espaços
poéticos, sejam suscitadas por cheiros, sons, texturas, sabores, imagens visuais,
163
cenas, objetos, ou palavras, elas têm condições de alimentar nossa alma petiza.
Sigo na busca de imagens poéticas que extravasem minha infância
permanente. Bachelard (1989, p. 20) nos ensina que “é preciso seguir essas
imagens que nascem em nós mesmos, que vivem em nossos sonhos, essas
imagens carregadas de matéria onírica rica e densa que é alimento inesgotável para
a imaginação material”. Em consonância com o que nos mostrou Quintana (2003, p.
18), indicando que o alimento do poema já estava em nós:
Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês. Quando fechas o livro, eles alçam vôo como de um alçapão. Eles não têm pouso nem porto alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias, no maravilhado espanto de saberes que o alimento deles já estava em ti…
Dentre as principais imagens poéticas com essa potência de ser, parte do
meu ser e alimento da minha alma, está a do saboroso aroma dominical do feijão
preto da minha avó Francisca. Ela o preparava para receber a família no Soledade II
aos fins de semana. Um cheiro de infância temperada com um retoque de cheiro
verde55, uma delícia. Se a infância é tida por alguns como lugar sem fala,
ironicamente, parece-me que o cheiro exalado tem um poder de capturar a fala e
nos alçar a voo exalando como o feijão/poema, o que imediatamente provoca meus
sonhos mais saborosos.
Para além do cheiro, por meio da lembrança imaginada sou capaz de
degustar o tempero maternal do feijão, o gosto familiar, o sabor do carinho no
preparo. Como agradecimento dos presentes: a recompensa satisfeita dos elogios.
O paladar logo se umedece em reação à ausência presentificada pelo devaneio
poético do feijão lembrado e sonhado.
A boca d’água rega o sonho num mundo de cheiros e sabores, lembrança e
onirismo, “a água assim dinamizada é um embrião; dá à vida um impulso
inesgotável” (BACHELARD, 1989, p.10), o feijão germinou minha própria vida,
eclodiu hidratado pelo sonho que relembra e devaneia. Aumentou a minha infância
permanente com seu maravilhamento. Ele expandiu meu ser para além das
realidades vividas, ampliadas em surrealidades. Aderiu-me ao invisível do instante
55 Mistura de coentro com cebolinha que geralmente é usada para temperos ou servidos picotados.
164
poético antes que eu me apercebesse, por meio dessas imagens poéticas
potencialmente cheias de cheiros e sabores. Para Bachelard (1989, p. 18),
Essa adesão ao invisível, eis a poesia primordial, eis a poesia que nos permite tomar gosto por nosso destino íntimo. Ela nos dá uma impressão de juventude ou de rejuvenescimento ao nos restituir initerruptamente a faculdade de nos maravilharmos. A verdadeira poesia é uma função de despertar.
Sou maior do que eu mesmo quando minha memória-sonho pulula os rastros
e germes desse instante poético aqui provocado pelo devaneio do feijão de minha
avó agora sonhado, que já não é apenas lembrança, é imagem nova, renovada e
reencantada, é um encontro entre a lembrança e os meus novos devaneios poéticos
que me maravilham e alimentam minha infância onírica.
Quando fui morar com meu pai aos quinze anos de idade, percebi que
quando ele cozinhava feijão preto seu tempero lembrava ainda que timidamente o
do feijão da minha avó. A parti daí, comecei a cozinhar feijão, sempre perseguindo
esse cheiro, esse gosto, esse sonho, esse germe que me apequena como infante e
me expande como ser. Mesmo sem acertar jamais o tempero, sou transportado para
aquele lugar do carinho da minha avó, com cheiro e gosto de um feijão preto
inigualável. Ao devanear sobre a imagem poética que mobiliza meu núcleo de
infância, revivo a infância, mas a atualizo dando-lhe continuidade atemporal pela
imaginação, como fazemos na leitura dos poetas, transcendemos nossa infância.
Para Bachelard, seria o caso de despertar em nós “uma infância que vai mais longe
do que as lembranças da nossa infância, como se o poeta nos fizesse continuar,
concluir uma infância que ficou inconclusa e que, no entanto, era nossa e que, sem
dúvida, por diversas vezes temos sonhado” (BACHELARD, 2009, p.100).
O poeta Caetano Veloso nos revela: “Eu vi um menino correndo. Eu vi o
tempo, brincando ao redor do caminho daquele menino” (VELOSO, 2017, s.n.), o
tempo da poesia não obedece linearidade, ou consecutividade, mas ele desperta
num lugar que devaneio e brincadeira não se deixam dissociar. Ali, nem infância,
nem o tempo podem se deixar confinar em cronologismos. Crianças tendem a
‘andar’ correndo, não para ganhar tempo, mas para aproveitar intensamente o
instante. No Liquinha, assim como no Freinet, a corrida das crianças normalmente
não era uma disputa, era o brincar. “O brincar tem inúmeras brincadeiras e
brinquedos, os brinquedos são diversas formas de brincar e de fazer brincadeiras,
165
as brincadeiras são brinquedos, são modos, gestos de brincar” (PIORSKI, 2016, p.
62). O correr na criança é brinquedo. Também tive minha fase de só andar correndo.
Assim, na canção de Caetano Veloso poderia se dizer que o menino, o tempo
e brincadeira, são da ordem do instante poético e este pode ocorrer em qualquer
idade que se sonhe acordado. Assim, inspirado em Caetano nos filiamos ao
pensamento de Quintana (1989), “porque o tempo é uma invenção da morte: não
conhece a vida – a verdadeira – em que basta um momento de Poesia para nos dar
a eternidade inteira”, como num devaneio poético em Bachelard (2008, 2009).
Esses sonhos acordados que nos encantam e nos transformam,
desobedecem completamente os limites físicos de tempo e grandeza da realidade.
Prova disso são as provocações que os brinquedos fazem às crianças pequenas e
as nossas infâncias sonhadas. Diz Bachelard (2008, p.160), “a miniatura faz sonhar”
assim, de boneco ou boneca em punho, a mão onírica anima e provoca o brinquedo
que logo vai além e se transforma. Provocado, o ser se transmuta no brinquedo, e
pelo devaneio poético da brincadeira suscitado pela infância onírica, o brinquedo é o
próprio ser. Eu também me transmutei em heróis da ficção e travei batalhas nunca
antes vistas, mas por mim solitariamente sonhadas. Por mais que sejamos
miniaturalizados a aventura é sempre grande e sempre nova.
Mesmo que o brinquedo seja um personagem de uma história em quadrinhos,
ou um desenho animado, até mesmo de uma historinha, conto, ou fábula, a criança
em seu devaneio poético de brincante, normalmente inventa uma nova história e
mesmo que os personagens sejam pré-existentes, é tecida uma nova trama, existe
uma fabulação que lhe é própria, animada pelo seu onirismo. O conto, a contação de
histórias e os desenhos animados possuem seu grandioso valor de divertir, mas não
necessariamente perdem por isso, sua capacidade de suscitar devaneios. Assim diz
Bachelard (2008, p. 171):
O conto é uma imagem que raciocina. Tende a associar-se com imagens extraordinárias como se pudessem ser coerentes. O conto traz assim um conjunto de imagens derivadas a uma convicção de imagem primordial. Mas o vínculo é tão fácil, o raciocínio é tão fluido que em pouco tempo já não sabemos onde está o germe do conto.
Contudo, além das narrativas alheias que provocam o sonhador, este é
alcançado por suas próprias estórias, “é no seu próprio devaneio que a criança
encontra as suas fabulas, fabulas que ela não conta a ninguém. Então, a fábula é a
166
própria vida” (BACHELARD, 2009, p.113). Ou seja, ao contrário das histórias
prontas narradas aos infantes, a fabulação da criança não tem por destino entreter,
ou tornar o ser apenas espectador, mas inaugura um caráter de maravilhamento
autoral. Para nosso filósofo sonhador, “a função fabuladora adquire toda a sua
extensão pela palavra” (BACHELARD, 1990c, p.53), a criança se encanta com a
própria narrativa que produz. Portanto, diz Bachelard (2009, p.113), “a fábula não
diverte – encanta”.
Para o adulto, o reencantamento do ser e do seu mundo passa por
reaprender essa capacidade infantil de encantar-se com suas próprias fábulas, e
nesse caminho reavivar sua infância onírica. “Seria então o caso, se pudéssemos
aprofundar nosso esboço, de despertar em nós, pela leitura dos poetas, não raro
graças a uma única imagem, um estado de nova infância” (BACHELARD, 2009,
p.100). Acrescentaríamos ao texto acima, para além da leitura dos poetas, mas
também pelas imagens poéticas muitas vezes oriundas de brincadeiras e devaneios.
Devemos como adultos reencantarmo-nos por meio de nossa infância onírica, pois,
“toda infância é fabulosa, naturalmente fabulosa” (BACHELARD, 2009, p.112).
Na busca desses rastros que me devolvem minha infância, medito. Sou
provocado por uma imagem/palavra que emergiu das profundezas do poço/infância.
Olho para o poço na busca de mergulhar nele, mas a palavra ‘acalanto’ emerge e
me alcança ainda fora do poço. Imediatamente, não sou eu quem mergulha no poço,
mas o poço/infância mergulha em mim. Inunda-me!
A própria infância encontra seus portos de tranquilidade. Difícil não ser
embalado num aconchego de abraço e delirar nas melodias entoadas para
tranquilizar nossa alma. As canções coadunam neste exercício de ninar chamado
acalanto. Bachelard (2008, p.184), nos lembra, “na miniatura de uma única palavra,
como há histórias”. Acalanto é uma palavra que só cabe numa infância. É um feitiço
lançado, um acolhimento que convida o ser acalentado a um estado de serenidade
pueril que os adultos não são capazes de alcançar. Todo aquele que se sente
acalentado se abre para a tranquilidade de uma felicidade infantil, num descolar das
preocupações maduras.
Aqui no Nordeste brasileiro não é raro nem difícil encontrar, geralmente
mulheres com experiência de maternidade, com bebês aconchegados em seus
colos numa dança mágica, passo à frente e passo atrás, entoando as canções que
enfeitiçam as crianças. Claro que homens também se dedicam a essa arte e alguns
167
o fazem também com muita competência, mas as mães estão geralmente à frente
quando falamos do laço de cumplicidade e intimidade que reforçam o ato de
acalentar, possivelmente por acionar o arquétipo da maternidade. Esse arquétipo de
acolhimento materno possivelmente foi um dos responsáveis pela mulher ser
hegemônica no espaço de educação infantil.
Os acalantos primevos me trouxeram as canções, especialmente no colo de
meu pai, elas são fonte inesgotável de imagens e devaneios poéticos. Em mim, elas
se tornaram um operador cognitivo para entender o mundo, e um caminho para o
devaneio poético e expansão do meu ser, ou seja, é também um operador de
imaginação e cosmicidade. Em Bachelard: “a imaginação não é, como sugere a
etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade deformar
imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de
sobrehumanidade” (1989, p.18 grifo do autor).
A realidade cantada e, portanto, imaginada por meio das minhas audições do
mundo, dialeticamente ajudaram a moldurar os significados da linguagem e
paralelamente ser fonte para imagens novas. Mesmo porque as linguagens
desenvolvidas desde a infância não se limitam a comunicação social, ou seja, para
além de comunicar e explicar, passam a provocar o ser, a tornar-se campo fértil para
devaneios. A linguagem solidificada pelo entendimento é a mesma contorcida e
transformada pela poesia. Na infância, como os limites da realidade parecem não ter
sido acabados, o campo surreal do poético torna-se mais próximo do olhar da
criança sobre o mundo, daí é mais fácil inverter e transcender a realidade.
Assim, estabelece-se o confronto entre o idioma arrumado e o onírico, o
idioma adulto e o infantil. As literalidades de expressões linguísticas por vezes são
desafios e propulsores para imaginação dos pequerruchos, que deformam o real na
busca de harmonizar o entendido, o sonhado e o falado. Outras vezes, as palavras
se desconectam mais facilmente de seus pretensos sentidos e pousam em outros
significados.
Chico Buarque de Holanda na canção “Vai passar” em sua narrativa atiça a
imaginação da nossa infância onírica, quando afirma que “cada paralelepípedo da
velha cidade essa noite vai se arrepiar” (2017, s. p.), só com a imaginação e
devaneio poético é possível sentir a emoção apoteótica dos paralelepípedos. A
imaginação literaliza frases e harmoniza sentidos que pareciam absurdos, em Tom
Jobim a felicidade “é como a gota de orvalho em uma pétala de flor”, ou “é como a
168
pluma que o vento vai levando pelo ar” (1984), a imaginação infantil não entenderá
essa passagem como algo ligado ao efêmero, pois ela não requer interpretações,
ela pode ser o dito, mesmo que pareça improvável.
Zé Ramalho (2017, s. n.) inflama o entendimento do ouvinte quando afirma
que possuía em seu “cérebro coágulos de sol” e junto com Geraldo Azevedo e Alceu
Valença (2017, s. n.) pegavam um “taxi para estação lunar”, convidando a nossa
alma petiza, acessada pela infância onírica desperta, para esse passeio. Assim,
desde pequeno, muitas vezes já parti em direção a estação lunar. A imaginação
infantil não vê incoerência no que parece absurdo. A prisão das palavras é desafiada
e escancarada para a fruição do devaneio poético. Perde-se a intenção da
expressão e acha-se um campo surreal aberto para o novo, que convida à
imaginação a novos absurdos. Diz Bachelard: “em caso de necessidade, o absurdo,
por si só liberta.” (BACHELARD, 2008, p. 159).
Outras vezes não é apenas a literalidade de expressões idiomáticas que
provocam o devaneio poético na criança, ou no nosso estado de infância onírica,
mas o devaneio dar-se pelo maravilhamento infantil sobre a narrativa. As palavras
desconhecidas do vocabulário da criança, vão ganhando significados novos para
aproximar as imagens oníricas do infante as narrativas que ele busca entender, e
não o contrário. A criança, assim como o poeta, porta uma linguagem poética.
Gomes (2013a, p.195) nos ensina que “a linguagem poética através das imagens
oníricas expressa o mundo interior do Poeta, senão o mundo que sua sensibilidade
traz à tona, o mundo que ele gostaria de viver”. Então, o mundo da criança e do
poeta são trazidos para seus devaneios de linguagem. Assim, “o mundo vem
imaginar-se no devaneio humano” (BACHELARD, 1990b, p.14).
Os devaneios que se expressam numa infância onírica se desprendem das
normatividades da sociedade racionalizada. Elas impõem ao corpo os devaneios
provocados pelas brincadeiras, que são poetizadoras nas infâncias. Isto é fácil de
encontrar, especialmente crianças pequenas, possuídas pela sua imaginação de
brincante. O corpo é via fluente de expressão das ‘lutas’ contra o espaço
aparentemente vazio, mas cheio pela sonoplastia dos movimentos e das falas que
brotam no ato da brincadeira e do corpo ativo em devaneio. Logo vemos a criança
numa aventura solitária que é expressada no seu mundo imaginado e no mundo
real.
169
Gosto de admirar esses momentos que sempre me geram espanto. É como
se faltasse pouco para eu tropeçar e cair dentro de seu devaneio, e pudesse ver seu
mundo por dentro, enquanto isso, admiro por fora. Convivo com uma criança de
cinco anos que no meio de suas brincadeiras corporificadas, corria balançando as
duas mãos atrás do corpo na altura do quadril. Não conseguia entender aquele jeito
estranho de correr, até que um dia perguntei: - Davi, porque você corre com as
mãos assim? - É minha capa voando, respondeu. Nunca mais observei igual àquela
situação, sempre meu olhar flutua atrás do menino voador com sua capa oscilante.
Além das inúmeras vezes que brinquei atuando sobre o que sonhava, quando
criança, tive a fase irresistível da capoeira. Por volta dos oito anos, fui matriculado
no grupo infantil de capoeira da minha escola. Habitualmente, praticávamos
capoeira de Angola, modalidade onde a estética é mais importante que a velocidade,
ou agressividade dos golpes, e os movimentos são feitos como se estivéssemos
perpetuamente em câmera lenta. Por si só, isso já era uma provocação a nossa
imaginação de sonhador.
Mas não bastavam os encontros nas aulas de capoeira, ouvia
constantemente as ladainhas da capoeira de Angola com seus ritmos arrastados,
como que soletrados paulatinamente pelo berimbau, com a calma precisa de sua
percussão e o choro/exaltação de suas canções. Meu corpo de criança não se
comportava. Em casa, na rua, onde estivesse, eu gingava e chutava o vento. A
pressão social de já ser ‘um rapazinho’ por muito tempo não foi suficiente para
conter meu mundo de capoeirista que se expressava por meio do meu corpo, que
devaneava em harmonia com meus sonhos.
Essa pulsão do sonho que transborda (pela brincadeira e pelo devaneio
poético) o corpo, emergindo o desejo de movimentar-se, é facilmente observada nas
crianças. Daí as brincadeiras de tica, esconde-esconde, polícia e ladrão, dentre
tantas que ativam o corpo. Porém, se manifesta também com fluência nas infâncias
oníricas que são acionadas pelas canções. A dança espontânea é manifestada nos
corpos daqueles que se fascinam e se maravilham pela música e suas
possibilidades de arrebatamento, como o menino dançarino do Freinet. A
imaginação se ativa e não deixa o corpo se aquietar, muitas vezes desafiando as
convenções sociais de controle dos sujeitos, o corpo devaneia e expressa sua
magnitude.
170
Confesso que a dança não tem um apelo grande a minha vontade de
expressar fisicamente meus devaneios, mas quando a canção agrada, difícil não
roubar minha atenção e me colocar em estado de contemplação. Logo o corpo
garante um jeito de acompanhar o compasso, seja na batida solitária e cadenciada
de um pé no chão, ou a cabeça em movimento de infindas afirmações, ou num
estralar de dedos, o corpo não resiste ao repouso absoluto e é convocado a
participar. Em devaneio poético sou canção, assim como não se separa a criança e
a brincadeira, ambos estão alimentando a infância onírica que se faz permanente
em face dos devaneios poéticos daquele que sonha.
Por fim, a última imagem escolhida para demonstrar acessos a minha infância
onírica não é tão cheirosa e saborosa como o feijão da minha avó Francisca, nem
são ouvidas para acalmar nossas inquietações como um acalanto, nem para
poetizar nossa imaginação e agitar nosso corpo como as canções. Tampouco, ela
se expressa na brincadeira solitária onde o devaneio provoca o corpo a harmonizar-
se com o mundo dos sonhos. Todas essas imagens repercutem nos meus sonhos
de infância atualizados, assim também como a imagem do cafuné. “Todas essas
variações poéticas que recebemos numa exaltação são outras tantas provas da
permanência em nós de um núcleo de infância” (BACHELARD, 2009, p.101)
Cafuné é um carinho feito com os dedos na cabeça de alguém, simulando a
catação de piolhos, bem como, fingindo matar esses parasitas com estalos
provocados pelas unhas. Cafuné é um acalanto tátil. Também provoca um
relaxamento no personagem acariciado devido ao tamanho acolhimento que é
sentido.
O cafuné é uma ocupação deleitosa de horas de folga, perícia em serviço da preguiça repousada, ávida das pequenas volúpias sem maldades, limpas de intenção erótica prefigurada. Aqui em Luanda, como na cidade do Natal, pelos bairros do Alecrim e do Areal, no sueto dominical, o cafuné comprova sua contemporaneidade positiva. Estende o domínio do hábito secular em ambas as margens do Atlântico (CASCUDO, 2002, p. 67-68).
Levar um cafuné me leva ao colo de minha terceira avó, Dona Marlene, mãe
de minha segunda mãe e segunda esposa do meu pai, Magna, também perita na
arte do cafuné. Os dedos buliçosos e seus estalidos devolvem um estado de infância
imemorável e confortável. A brincadeira de tirar piolhos certamente remonta os
tempos mais primitivos de nossa ancestralidade primata.
171
O ato de catar os filhotes ainda é um fenômeno comum entre várias espécies
de primatas. Esse ato nos coloca em estado de ser cuidado, ninado, massageado,
cultivado. O cafuné me apequena e restitui uma infância onírica evocada pelo toque,
um tato que é poético e que provoca devaneios tranquilos, seguros, cheios de
carinho. Fechar os olhos e se deixar levar por um cafuné é permitir-se sentir-se em
permanente estado de infância.
172
CAPÍTULO V
DIALOGANDO ENTRE ESCOLAS E HISTÓRIA DE VIDA: O COGITO SONHADOR E OS JARDINS DE
INFÂNCIAS
Fig. 26 – Atividade de criança do CEM Dona Liquinha Alves
Fonte: Acervo do Autor (2017)
173
DIALOGANDO ENTRE ESCOLAS E HISTÓRIA DE VIDA: O COGITO SONHADOR
E OS JARDINS DE INFÂNCIAS
“Podrán cortar todas las flores, pero no podrán tener la primavera”.
Pablo Neruda
Meus campos nesse estudo podem parecer descontínuos, pluricultura onde
cultivei e pulularam infâncias observadas hegemonicamente nas escolas estudadas,
na história, na poesia meditada e em infâncias que se ramificam em mim, cheias de
lembranças, invenções e memórias sonhadas. Esse capítulo dedica-se a harmonizar
o que pode ter parecido descontinuo.
Seguindo as fugidias migalhas de pão deixadas por muitos ‘Joãos e Marias’,
foi impossível não encontrar minha própria criança. Nas escolas pesquisadas, o
rastro efêmero perseguido foi principalmente a imaginação poética vivida na infância
onírica (um estado de alma que germina na criança e perdura em maior ou menor
grau em toda vida do ser), manifesta nos devaneios poéticos expressos no espaço
escolar, nos fatos ocorridos e especialmente nas brincadeiras das crianças.
Assim como os irmãos da história infantil acima, adentro em uma densa
floresta, sem trilhas ou caminhos acabados e também encontro um lugar de encanto
e fascinação. Porém, diferente deles, não era uma casa feita de guloseimas
habitada por uma bruxa má, mas, uma infância encantada e maravilhosa que me
habita apesar dos dias de maturidade. Confesso que inicialmente o planejamento
desse estudo era apenas cultivar o campo escolar, mas o cultivo deste me
promoveu um encontro avassalador com o meu ‘eu pequerrucho’ e sonhador,
bachelardianamente, minha infância permanente. Como eu poderia continuar
criticando a condição de ‘não-fala’ da infância, amordaçando a infância onírica que a
cada observação no campo escolar gritava dentro de mim?
Agora sei que apesar de o NEI-UFRN não ter sido meu campo definitivo, a
experiência vivida lá no ano de 2015 germinou analiticamente, mas também
poeticamente e polinizou a vivência do ano de 2016 na Escola Freinet. E esta última,
por sua vez, com seu pátio vivo (atípico, sem brinquedos pré-moldados, mas cheio
de vida) de crianças, plantas e poesia, com suas arvores majestosas (e matriarcais)
polinizou o pesquisador que em 2017 chegou à escola praieira do município de
174
Parnamirim, Liquinha Alves, e esta floriu em um jardim repleto de maravilhamento,
de icsórias fabulosas, devaneios poéticos e de reiteração da necessidade e
emergência de uma educação mais imaginativa e poética, numa perspectiva
bachelardiana. NEI, Freinet e Liquinha, os meus jardins suspensos, me alçam para o
sonho, pois, “toda valorização é verticalização”. (BACHELARD, 1990a, p.11).
No contato com as crianças nas escolas, contagiado pelos seus
encantamentos e pelos devaneios poéticos que emergiam em mim suscitados pela
minha contemplação, associados a leitura dos textos de Bachelard é claro,
primaverei. Precisava anunciar os jardins da minha infância onírica relembrados,
reinventados, reencantados e ‘ressonhados’, pois, novamente estavam sendo
adubados, regados, cuidados e amados. Contudo, qual seria o ponto de intercessão,
ou melhor, o nascedouro que liga todas essas infâncias?
Antes de nos determos à resposta mais objetivamente, observemos as
imagens da canção de Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo (2018, s/p) intitulada,
A Moça do Sonho:
Súbito me encantou A moça em contraluz Arrisquei perguntar: quem és? Mas fraquejou a voz Sem jeito eu lhe pegava as mãos Como quem desatasse um nó Soprei seu rosto sem pensar E o rosto se desfez em pó.
A canção de acordo com o pensamento bachelardiano, assim “como todos os
sonhos noturnos, tem um começo abrupto” (BACHELARD, 2009, p. 145). Ao compor
a canção, os autores meditavam numa situação onde o personagem principal da
trama dormia e sonhava com sua musa. Ele encantado, sem vê-la precisamente,
toca-lhe as mãos e sopra-lhe o rosto e subitamente a perde. Bachelard (2009, p.
144), diferencia o sonho relativo ao sono, o qual o nomeia sonho noturno, e o
devaneio que está associado ao sonho desperto “uma atividade onírica na qual
subsiste a clareza da consciência”. Sobre o sonho noturno, como o relativo a canção
acima, diz-nos Bachelard (2009, p.139) que ele “não nos pertence. Não é um bem
nosso”, ou seja, “o sujeito perde neles o seu ser – são sonhos sem sujeito
(BACHELARD, 2009, p. 141). Holanda e Lobo (2018, s/p) continuam,
175
Por encanto voltou Cantando a meia voz Súbito perguntei: quem és? Mas oscilou a luz Fugia devagar de mim E quando a segurei, gemeu O seu vestido se partiu E o rosto já não era o seu
Aqui existe uma certeza do sonhador noturno da trama dos autores da
canção, que o rosto da moça do sonho se transforma em outro rosto, de uma
terceira pessoa. Mas será que o sonhador noturno caso fosse real, e não o
personagem de uma canção, seria ele mesmo durante o seu sonho sonhado?
Bachelard (2009, p.143) pergunta: “onde colocar o eu nessa substância que sonha?”
E responde em seguida ambas as questões, “Nela o eu se dissolve, se perde... Nela
o eu se presta a sustentar acidentes caducos. No sonho noturno, o cogito do
sonhador balbucia” (BACHELARD, 2009, p.143). A canção prossegue:
Há de haver algum lugar Um confuso casarão Onde os sonhos serão reais E a vida não Por ali reinaria meu bem Com seus risos, seus ais, sua tez E uma cama onde à noite Sonhasse comigo
Talvez (HOLANDA; LOBO, 2018, s/p)
Contudo, na esperança de encontrar sonhos reais o personagem da canção
sonha sonambulamente (portanto, sem a lucidez da consciência) um lugar onde os
sonhos são reais mais do que a exatidão dura da vida. Na poética do devaneio de
Bachelard encontramos mais que um lugar onde os sonhos são reais, mas uma
condição do ser em seu sonho desperto que transforma o irreal na sua realidade, em
seu devaneio: o cogito sonhador. “O cogito é conquistado por um objeto do mundo,
um objeto que, por si só representa o mundo. [...] Seu ser é por a um tempo o ser da
imagem e o ser da adesão à imagem que provoca admiração” (BACHELARD, 2009,
p. 147), “o sonhador é dupla consciência do bem-estar e do mundo feliz. Seu cogito
não se divide na dialética do sujeito e do objeto” (BACHELARD, 2009, p. 152).
Portanto, para Bachelard (2009), o mundo existe tal como é sonhado, assim
poderíamos dizer que os sonhos são reais, e mesmo que eles tenham a impressão
de fuga do real, ainda teriam sido sonhados por alguém que em sonho tornou aquilo
uma realidade efêmera do sonhador. Diz Bachelard (2009, p. 152): “o cogito do
176
devaneio há de enunciar-se assim: eu sonho o mundo; logo, o mundo existe tal
como eu sonho”.
Vale ressaltar, que numa outra perspectiva, a canção de Chico e Edu é um
poema que nos provoca a devanear (tornar real para nós) sobre uma situação
(irreal) de sonho noturno. O sonhador devaneia sobre um sonho que teve, e nesse
devaneio, pelo sonho (pela moça do sonho) o sonhador seria sonhado. Sendo isto,
ao devanear sobre a poesia da canção, o ‘sonho noturno’ devaneado pelo ser torna-
se possível poeticamente. Então, quem (ou o que) seria o ‘não ser’ (sem sujeito) se
sonhasse um sonho noturno, torna-se sujeito do verbo ser no seu devaneio poético.
Considerando esta outra possibilidade de leitura, no devaneio poético, A Moça do
Sonho, à noite, em sua cama, talvez sonhasse comigo. Logo para ela, eu seria feito
de matéria onírica e seria seu sonho, ela se torna real no devaneio e eu é quem me
torno um sonho dela. Em Bachelard (2008, p. 33), “para além das lembranças, a
casa natal está fisicamente em nós”. Nesse casarão que é a alma sonhadora os
sonhos são reais, e a vida pode ser apenas um sonho. E a canção segue ao seu
final:
Um lugar deve existir Uma espécie de bazar Onde os sonhos extraviados Vão parar Entre escadas que fogem dos pés E relógios que rodam pra trás Se eu pudesse encontrar meu amor Não voltava
Jamais (HOLANDA; LOBO, 2018, s/p)
Agora, o ser que devaneia na canção encontra-se tão maravilhado pela
possibilidade de encontrar o seu amor sonhado, que conscientemente abriria mão
de viver em sua própria em realidade para viver em um lugar de sonhos
(extraviados, talvez) para sempre. Diante do seu sonho romântico a realidade não é
mais que uma prisão, e “para sair da prisão, todos os meios são bons”
(BACHELARD, 2008, p. 159).
Portanto, o que condiciona o ser em Bachelard não é apenas redutível ao
racional como no cogito ergo sum (penso logo existo) cartesiano56, mas num cogito
que devaneia. “Pois o ser é antes de tudo um despertar, e ele desperta na
56 “A postura que coloca a mente como fiscal do corpo e de toda a intenção prazerosa é inibidora do canto vital da cigarra, da criança e do artista” (KIRINUS, 2008, p. 52).
177
consciência de uma impressão extraordinária” (BACHELARD, 1989, p. 8). Assim o
nascedouro que liga todas as infâncias aqui estudadas e sonhadas é o cogito
sonhador. Podemos na esteira de Bachelard “destacar a relevância dos devaneios
da infância, aqueles das imagens primeiras, da ação de admirar-se, de sonhar
acordado” (MARCHI, 2015, p.16) de viver uma existência poética por meio do
devaneio que emerge da brincadeira, do faz de conta, da expressão libertária da
infância.
Na ramificação das infâncias das crianças observadas e na poesia voltada à
infância meditada, o meu poço infância onírica foi olheiro d’água, nascente maternal
de fertilidade e criação. Lembremos, “a água é também um símbolo maternal”
(BACHELARD, 1989, p. 75), ela é a seiva da primavera. Sobre minhas repercussões
primaveris cito: “A flor nascida no devaneio poético é então o próprio ser do
sonhador, seu ser florescente. [...] As imagens do devaneio do poeta cavam a vida,
engrandecem as profundezas da vida” (BACHELARD, 2009, p. 149).
A via poética enquanto proposta para reencantamento do mundo não é uma
trilha apenas para a educação infantil, é um convite à infância onírica. Um caminho
ao nosso cogito sonhador, vereda onde o devaneio poético encanta o ser. Por sua
vez, esse ser sonhador é/habita/vive/vê o seu próprio mundo encantado.
Lembremos: “em todo sonhador vive uma criança, uma criança que o devaneio
magnifica, estabiliza. Ele a arranca da história, coloca-a fora do tempo, torna-a
estranha ao tempo.” (BACHELARD, 2009, p.129). “E em qualquer idade podemos
ter esse encontro com a infância, se estivermos dispostos a senti-la e percebê-la
nesse fluir em nós mesmos e nas crianças. Por isso, posso perceber a imaginação
nas crianças naquilo que permitir fluir em mim” (MARCHI, 2015, p. 45).
Dito isto, não corremos o risco de reduzir a nossa discussão, apesar de
reconhecermos possíveis analogias, como mais uma ratificação simplificada ao mito
da infância, que segundo Cambi (1999, p.392), “dominou a educação
contemporânea”, afirmando que é o menino, como disse Montessori, “o pai do
homem” (CAMBI, 1999, p. 387). Todavia, endossamos a existência de uma infância
que não é mestra do adulto, mas é onírica e permanente no homem do cogito
sonhador. Afirma-nos Bachelard (2009, p.101): “Todas essas variações poéticas que
recebemos numa exaltação são outras tantas provas da permanência em nós de um
núcleo de infância”. Para Cambi (1999, p. 32), o mito da infância na educação
contemporânea,
178
Ligado à espontaneidade/naturalidade da infância e sua posição como um dos modelos daquele homem novo, mais livre e mais genuíno, não-repressivo e não-autoritário, que é o projeto a que visa a educação nas sociedades atuais, democráticas e libertárias. O menino é o modelo desse homem livre e liberado, subtraído às manipulações da sociedade, restituído às suas verdadeiras necessidades e assumido em toda gama das possibilidades (da fantasia ao riso, da aventura ao erotismo polimorfo). Este mito da infância foi muito forte, constante e articulado, até mesmo invasivo, no âmbito da contemporaneidade. Nascido no século XVIII em concomitância/alternativa ao do “bom selvagem”, dilatou-se com Rousseau e o seu naturalismo educativo, com o seu puericentrismo pedagógico, tornando-se um mito cultural com um romantismo e seu apelo à experiência originária [...]
Apesar de reconhecermos que existem muitas e grandes lições a serem
aprendidas com as crianças, e esse trabalho pontua algumas delas, não podemos
comprar e acreditar em teorias pedagógicas (ou quaisquer que sejam) conclusivas,
simplificadas e acabadas. Enquanto não desembaralhamos o mundo social,
econômico, ético e político, contamos com as imagens poéticas e os devaneios
voltados à infância como oásis, não como redenção da sociedade educativa. Oásis
importantes não para que vivamos exilados sob sua sombra e água fresca, mas para
seja possível partindo de lá, alimentar a nossa alma sonhadora e a conta-gotas
hidratar outros mundos fronteiriços e diluir as tensões de nosso tempo. Sejam esses
mundos pessoas, culturas, ou sociedades. Pois, “uma gota de água poderosa basta
para criar um mundo e para dissolver a noite. Para sonhar o poder necessita-se
apenas de uma gota imaginada em profundidade” (BACHELARD, 1989, p.10).
Não nos basta viver num mundo desencantado armado de teorias, concreto,
instituições, normas, técnicas e parafernálias. Nem ser um sonhador que não
consegue viver de maneira autônoma fora do sonho, “o que pedimos ao leitor é que
não apenas viva essa dialética, esses estados alternados, mas que os reúna numa
ambivalência em que se compreende ser a realidade um poder de sonho e o sonho
uma realidade” (BACHELARD, 1990a, p.13). Portanto, inspirados em Bachelard
vemos uma complementaridade e dialogia entre o homem da tecnociência e o
sonhador de imagens poéticas (nutrido por sua infância onírica), ambos devem
concomitantemente contribuir em favor de vida mais plena, grandiosa, feliz e
profunda. Daí seríamos capazes de reconectar a infância onírica e a felicidade
perdida na vida desencantada.
179
OBSTÁCULOS DO COGITO SONHADOR
“Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.”
Fernando Pessoa
Para Cambi (1999, p. 387), “o século XX em particular, foi realmente – como
profetizava Ellen Key – o “século da criança”, do seu conhecimento, do seu resgate”,
esse novo ser que passa a ser considerado e provoca uma grande mudança no
paradigma educacional. Santos (2012, p.11), por sua vez, defende que “o século XX
foi, não o século do renascimento da educação, o “século da criança”, como tantos
ingenuamente chegaram a vaticinar, mas o século da agonia da educação, da sua
canonização instrumental”. Para tanto, sem dúvidas, nele o cogito ergo sum foi
consolidado e o cogito sonhador, por oposição ao primeiro, reprimido e recalcado
pela racionalidade dominante. Santos (2012, p. 11-12) argumenta:
Uma miríada de microssaberes sobre os trajetos possíveis dos educáveis na escola e na sociedade abateu-se como um espeço e quase impenetrável nevoeiro de racionalidade, sob o campo de visão dos práticos e profissionais da educação, turvando e hipertrofiando seus olhares e levando-os a agir, não como promotores inteligentes e solidários de percursos de aprendizagens e de desenvolvimento pessoal diferenciados e humanamente qualificados, mas como peças menores e oscilantes de uma complexa, gigantesca e tantas vezes estúpida engrenagem de adestramento cognitivo.
Piorski (2016, p. 37) acrescenta, “mesmo quando se colocam as crianças em
suas prioridades de desenvolvimento [...], o resultado parece reproduzir um
permanente ciclo de distanciamento da criança” e complementa “Cada época e
povo, com suas próprias concepções acerca do que é a criança, impuseram-lhe um
padrão, quase sempre racionalista, de comportamento e instrução”. (PIORSKI, 2016,
p. 40).
Hoje, em pleno século XXI com todo desenvolvimento pedagógico,
sociológico, científico, nós, docentes e discentes, ainda não superamos o paradigma
do ‘adestramento cognitivo’ e ensino bancário, nem tão pouco de uma sociedade
racionalista, individualista e utilitarista, ao invés de investir em educar outras
capacidades do antropos que vem sendo sistematicamente inferiorizadas pelo
paradigma que vigora, como o cogito sonhador. Cruz (2003, p. 2) nos endossa,
180
A escola [...] se transformou. De lugar de produção de conhecimento e de
difusão da cultura, passou, com as novas diretrizes e metodologias, a um
local de preparação profissional, com gestão da qualidade total. Como tudo
no capitalismo, a educação também passou a ser uma mercadoria.
Ainda sobre escolas e infâncias, confluências e dissidências com a infância
onírica e sonhadora em Bachelard, é importante relacionarmos o campo objetivo da
experiência da pesquisa, as escolas, em um contexto mais amplo. Conjuntamente,
fazer a ponte de retorno do campo de pesquisa subjetivo (acessado pelos
devaneios, reflexões e diálogos provocados a partir de imagens poéticas) suscitado
pela infância onírica do pesquisador, para indicar uma via de reencantamento da
educação, consequentemente do ser e de seu mundo e superar o adestramento
cognitivo mencionado por Santos (2012). Em outras palavras, trazer uma lição desse
campo subjetivo que possa contribuir objetivamente para uma pedagogia cada vez
mais capaz de contemplar horizontalmente o idioma arrumado, formal e racional; e o
idioma onírico que alimenta e é alimentado pela nossa alma sonhadora.
Uma postura mais dialógica de abertura ao cogito sonhador no espaço
escolar implicaria em estratégias pedagógicas que certamente contribuiriam
significativamente para o a superação do ensino bancário que ainda persiste em
muitas escolas. Freire (2004, p. 58) nos explica a concepção bancária da educação:
A narração de que o educador é sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem enchidos pelo educador. Quanto mais vai “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor o educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão. Desta maneira a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são depositários e o educador o depositante. Eis aí a concepção bancária da educação em que a única margem de ação que se refere aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.
O educando sonhador, criança ou não, não pode ter sucesso em um modelo
educativo empobrecido por esse tipo de ensino que pode contribuir para uma
tentativa de transformar os discentes em autômatos. Exclusão e marginalização
ainda são o prêmio dos não adaptados e a “injustiça social assenta na injustiça
cognitiva” (SANTOS, 2006, p. 157). Ou seja, “a educação assume o caráter de
mercadoria negociável no mercado de trocas. O cidadão se transforma em
consumidor. Quem tem mais, compra mais, pode mais, ampliando-se assim o arco
da desigualdade social” (GERMANO, 2001, p. 6), isto sem adentrar no problema da
181
dominação ideológica57. A educação exclusivamente mercadológica com seu
discurso ideológico sugere uma falsa transformação no modelo de sociedade vivido,
entretanto sua estrutura mantém se com um caráter hierárquico, antidemocrático,
contraditório e perpetua na nossa sociedade profundas fragmentações do antropos,
dentre as quais, o racional e o imaginário.
A imagem ilustrativa de vasilha que Freire atribui ao discente do ensino
bancário corresponde inexoravelmente a condição passiva, apática, alienada,
superficial e irreflexiva do estudante submetido. Este, não possui nenhuma pro-
atividade na condição de ser aprendente no mundo. Diz Freire (1996, p. 22-23),
Se, na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo a aceitar que o formador em relação a quem me considero objeto, que ele é sujeito que me forma e eu, o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe e que são a mim transferidos.
Mas como a valorização do cogito sonhador enfrentaria o paradigma da
educação bancária? Ao contrário do estudante vasilha, no devaneio de um sonho
lúcido o ser é sempre sujeito ativo. Não existe separação entre corpo e mente, não
há uma ruptura entre o sonhador, o mundo e o cosmos, pois um age sobre o outro,
com provocações mútuas. Com isto, caso a concepção pedagógica seja mais
progressista, não excluindo a necessidade de ensinar razão e imaginação, terá um
discente que aprendeu a aprender muito além da sua experiência perceptiva vivida.
Mas capaz o conhecer de maneira ativa e criativa. “O olho que sonha não vê, ou
pelo menos, vê numa outra visão. […] O devaneio cósmico nos leva a viver num
estado que bem se pode designar como anteperceptivo” (BACHELARD, 2009,
p.167).
JARDINS ARTIFICIALIS
“O que é um jardineiro? Uma pessoa cujo os sonhos estão cheios de jardins. O que faz um jardim são os sonhos do jardineiro”.
Rubem Alves
57 Para Freire, “como professor, devo estar advertido do poder do discurso ideológico, [...] No fundo, a
ideologia tem um poder de persuasão indiscutível. O discurso ideológico ameaça anestesiar a mente,
de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, da coisa, dos acontecimentos. Não
podemos escutar, sem um mínimo de reação crítica” (FREIRE, 1996, p. 132).
182
Por devaneio e analogia, associo às escolas mais ligadas ao idioma arrumado
aos jardins de plástico. Estes são fábricas que cultivam/produzem sujeitos mais
engajados ao paradigma do cogito ergo sum cartesiano. Aqui “o lazer e ócio
necessário à meditação, ao devaneio e ao tempo mínimo para poder surpreender-se
e encantar-se com o mundo, são momentos proibidos” (KIRINUS, 2008, p.55). Eles,
reproduzem a monocultura da mente (SHIVA, 2003), fabricando em série escolas e
indivíduos prontos cumprir a função social racionalizada que lhes foram imputados.
Para Piorski, o problema maior não é a ausência educativa, diz ele: “Não me refiro,
aqui, à ausência de escola, mas à presença esmagadora da escola que escraviza a
infância. Quanto mais eficientes as escolas, menos as crianças contatam suas
intuições mais profundas e recriadoras” (PIORSKI, 2016, p. 41). Como jardins com
flores de plástico, são montadas prezando pela eficiência e finalidade.
Sabemos que “as flores de plástico não morrem” (TITÃS, 2018), assim
cumprem seus papéis econômico (comercial) e sociocultural (simbólico), pois
atendem a necessidade cerimonial das aparências e da produção. Os jardins de
plástico cultivam estudantes sem valorizar seu mundo onírico. No fim da fabricação,
eles também estão supostamente prontos a cumprir seu papel econômico e
sociocultural, atendendo a demanda da sociedade do consumo.
Mas complementando a expressão imortalizada pelos Titãs, urge a
necessidade de relembrar: as flores de plástico não vivem! Sentenciadas ao patamar
superficial das aparências elas não criam, não devaneiam, não se espantam, não se
encantam, e passam seu tempo a se preocupar com a hora fatal de seu descarte
pelo mercado. Jardins anticépticos, com flores que não se permitem desabrochar
para os ciclos de devir impostos pelos complexos sistemas da vida, do real e do
surreal. Preparados apenas para responder a necessidade de uma cultura da
acumulação, os jardins de flores de plástico são mais criadouros que libertários, isso
sob as justificativas da ciência, da técnica, da estatística, do currículo, das
ideologias, da racionalidade e da economia.
Todavia para propor um jardim que não se resuma ao artificial do plástico,
recorremos à etimologia da palavra latina artificialis (ORIGEM DA PALAVRA, 2018,
s/n), relativa à “arte, ou ofício”. Como que encantadas num devaneio, as duas
palavras, arte e ofício, abrem-se ao encontro de outros tipos de escolas/jardins,
como as visitadas na fase de pesquisa de campo deste estudo. Elas mostraram que
183
é mais que possível conjugar numa mesma prática pedagógica a arte dos poetas,
que é o devaneio; e ao oficio que é a capacitação do sujeito para se especializar as
ferramentas intelectuais necessárias para viver num mundo que também é da
produção, ou seja, para cumprir com competência seus “destinos”, sociocultural e
econômico; e poético e cosmológico. Essas escolas, longe da artificialidade estéril
que se perde na generalidade, são promovidas à poéticas, como jardins artificialis.
Jardins por continuarem se dedicando ao cultivo do indivíduo e do ser, cheio
de singularidades. Em Bachelard (1989, p. 8), “o indivíduo não é a soma de suas
impressões gerais, é a soma de suas singularidades”. Artificialis porque na aventura
pedagógica fronteiriça entre o ofício e a arte, prosaicamente questionam a natureza,
e poeticamente a reinventam. Com suas lentes e réguas conhecem a realidade; e
com seu devaneio a superam. O discente aqui não se limita a ser escravo da
realidade. Assim, Kirinus (2008, p. 44) diz,
A criança, à maneira do poeta, cria seu mundo próprio, um mundo supra-real onde investe energia criativa na construção, extensão e realização dos seus desejos. Ela tem consciência do seu “faz-de-conta”, sabe diferenciar o real do imaginário, mas transita naturalmente entre os dois [...].
No jardim arte-ofício, o ar imaginário poliniza-nos permanentemente, “o ar
imaginário é o hormônio que nos faz crescer psiquicamente” (BACHELARD, 1990a,
p.12 grifo do autor). A abertura ao campo poético como estratégia pedagógica
também poliniza a escola como todo, pois tira a imaginação de uma zona de
marginalidade e o sonhador imaginante pode aqui se reinventar e ser educado com
devaneios e experiências. Portanto, para Bachelard (1989, p. 18 – grifo do autor):
A imaginação inventa mais que coisas e dramas; inventa vida nova, inventa mente nova; abre olhos que têm novos tipos de visão. “Verá se tiver visões”. Terá visões se se educar com devaneios antes de educar-se com experiências, se as experiências vierem depois como prova de seus devaneios [...]
Numa proposta educativa à luz deste preceito há uma valorização
antropológica na figura daquele que quer aprender o mundo: “De repente ele se faz
sonhador do mundo. Abre-se para o mundo e o mundo se abre para ele. Nunca
teremos visto bem o mundo se não tivermos sonhado aquilo que víamos”
(BACHELARD, 2009, p.165).
O sonhador de mundo não se interessa inicialmente por avaliações
institucionais, pela finalidade imediata e objetiva do conteúdo, ele não vê o
184
professor/mediador como proprietário absoluto do saber; ele se encanta pelo mundo.
Ao encantar-se, ele imagina não só como o mundo é, mas como ele torna-se em seu
devaneio. Assim, degusta da intimidade daquele mundo imaginado, cheio de valores
que aumentam sua realidade (BACHELARD, 2008), pois poetiza as imagens do
mundo (do fenômeno) sonhado. Contemplando as imagens por ele produzidas ele
flutua imaginativamente, “o tempo é submergido na dupla profundeza do sonhador e
do mundo” (BACHELARD, 2009, p. 166). “O mundo é constituído pelo conjunto das
nossas admirações. [...] Admira primeiro, depois compreenderás”. (BACHELARD,
2009, p. 182). Nesse sentido, destaco Freinet que inaugurou a ideia de aula de
campo, tornando a admiração dos discentes um fator favorável para a relação de
ensino/aprendizagem. Sobre isso, Trevisano e Forsberg (2014, p. 143) comentam
que:
Freinet (1975)58, em sua pedagogia, associa as aulas de campo enfatiza quatro eixos que fazem parte do processo educativo: i) a cooperação, para construir o conhecimento comunitariamente; ii) a comunicação, para formalizar, transmitir e divulgar, iii) a documentação, para registro diário dos fatos históricos e, iv) a afetividade, como vínculo entre as pessoas e delas com o conhecimento. Os eixos criados e defendidos pelo educador francês visaram despertar no educando uma consciência de seu meio, incluindo os aspectos sociais e de sua história, estimulando o processo educativo participativo, desenvolvido em contextos variados tais como locais de trabalho, de lazer, ambientes naturais e construídos, pois protagoniza uma interação de maneira dialógica.
Portanto, destacamos o quarto (IV) ponto salientado pelas autoras, a
afetividade como vínculo não apenas entre as pessoas, mas delas com o
conhecimento. Esse vínculo só é possível em virtude da admiração que afeta, que
gera espanto, encanto, curiosidade, fascinação. Assim, havendo essa admiração
como um laço atado entre o aprendente e o mundo, pode haver os demais pontos
mostrados pelas autoras: cooperação, comunicação e documentação do
‘objeto’/fenômeno estudado. Assim, o mundo há de ser ressignificado e
compreendido como pensou Bachelard (2009), da admiração para compreensão.
O discente dos jardins artificialis há de ser como um vivo, belo e útil galho de
madeira. A mesma madeira que conduz seiva e vida é esculpida, adornada, ou
encantada em arte. Em móveis, ou jardins, pode ser reconhecida por sua utilidade e
beleza. Potencialmente, pode ser uma coisa ou outra. Mas nos jardins, com
58 A obra de Freinet consultada pelas autoras foi As técnicas Freinet da escola moderna de 1975.
185
sensibilidade paisagística, pode ser uma coisa e outra, harmonizar-se. Carecemos
de escolas com sensibilidade paisagística.
O DEVANEIO ENSINA?
“Façamos da interrupção um caminho novo. Da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sonho uma ponte, da procura um encontro!”
Fernando Sabino
Meditemos na canção composta pelo grupo paraibano Cabruêra:
A perseguição dos desejos é algo interminável Pois a única lei fixa no universo é o movimento Fatores externos exercem coerção sobre o ser. Mas jamais tente mobiliar vosso espírito com concreto. Pois o concreto, em contato com as barras de ferro retorcidas da estrutura de nossos aleijos educacionais, chegará a um momento do tempo em que não haverá mais tempo para removê-los (...) Imaginar, não dá dor de cabeça (CABRUÊRA, 2018, s. p.)
Se a “única lei fixa no universo é o movimento” ratifica-se a ideia que a
realidade é objetivamente inapreensível, pois ela está em constante transformação.
Talvez por isto mesmo nunca alcancemos a plenitude de nossos desejos e anseios
por conhecer. Olhamos sempre através de reflexos, escalas de aproximação,
espelhos, fotografias que quase sempre remetem ao que já passou (assim como
quando observamos as estrelas), pois não conseguimos acompanhar racionalmente
o movimento do cosmos (mas pelo devaneio, podemos dissolvermo-nos nele).
O concreto se tomado como verdade se torna dogmático e, por conseguinte,
acaba petrificando o dogma no processo formativo do ser que lhe adere, a exemplo
disso, podemos lembrar da “educação bancária” (FREIRE, 1996). A busca pela
univocidade na educação que busca apenas à objetividade acaba por atrofiar a
capacidade de imaginar, de querer ‘pegar para si’ e transcender a partir de uma
auto-organização reflexiva a coerção pela reprodução dos paradigmas sócio-
educacionais ainda hegemônicos.
Enquanto a educação tomar como concreto as pseudo-verdades sempre
parciais que se manifestam quase sempre tomando como base a oposição e
negação e nunca a dialógica entre razão e imaginação, continuaremos crendo que
186
“o reflexo da lua é a própria lua”, ou seja, que as verdades parciais são inteiras
verdades.
No último capítulo da “Poética do Devaneio” o nosso filósofo onírico faz um
questionamento matricial e vital não somente para a conclusão deste capítulo, mas
para a relevância desse estudo enquanto uma proposição de “ensino educativo”59.
Ele indaga e reponde imediatamente: “Contemplar sonhando é conhecer? É
compreender? Não é, decerto é perceber” (BACHELARD, 2009, p. 167).
A palavra perceber na Língua Portuguesa está ligada ao “adquirir
conhecimento pelos sentidos” (FERREIRA, 2001, p. 526), poderíamos associar ao
ato de explorar com os sentidos, dar atenção; certamente se comparamos ao rigor
do conhecimento científico isso nada mais é do que uma fina camada de aparências,
como a casca de uma fruta; mas, convenhamos, uma casca de fruta pode ser
deliciosa e nos provocar a degustá-la até os caroços. Etimologicamente, perceber
(ORIGEM DA PALAVRA, 2018, s/n) vem do latim, percipere, “pegar, agarrar com a
mente”.
Assim, numa perspectiva bachelardiana, não conhecemos, nem
compreendemos contemplando e devaneando, mas percebemos o
mundo/coisa/fenômeno/ser/imagem e o pegamos com a mente; flertamos, nos
deliciamos com o que poderia ser, inventamo-lo para nós ao nosso sonho e, assim,
potencializamos nossa sensibilidade. Nossos sonhos por sua vez despertam-nos os
sentidos por meio da imaginação60. Carvalho (2008, p. 302), que também foi leitor de
Bachelard, ensina-nos:
A sensibilidade não se opõe à inteligibilidade, ou aos ditames da razão. Caminham juntas, penetrando corpo, estabelecem conexões, reorganizam o real por meio dos cinco sentidos. Um sexto sentido, a imaginação criadora, se junta a eles para colocar ordem na casa, nutrir a vida, produzir uma harmonia interior, essa sim à verdadeira condição de sabedoria.
59 Sobre o termo ensino educativo, Morin pondera: “A bem dizer, a palavra “ensino” não me basta, mas a palavra “educação” comporta um excesso e uma carência [...] tendo em mente um ensino educativo. [...] A missão desse ensino é transmitir não o mero saber, mas uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre. [...] a educação pode ajudar a nos tornarmos melhores, se não mais felizes, e nos ensinar a assumir a parte prosaica e viver a parte poética de nossas vidas” (MORIN, 2014, p.11). 60Aqui se torna válido ressaltar a percepção que essas leituras imagéticas são subjetivizadas exclusivamente pelo sujeito sonhador, e, portanto, são, sobretudo intimamente particularizadas, (re)significadas por este; dialogicamente podem também ser universais, representando estruturas gerais do inconsciente coletivo; e potencialmente ser motor de experimentações incontáveis devaneios, resistências e práticas de liberdade.
187
O devaneio em seu caráter contemplativo estabelece pontes que ligam o
sonhado à vontade de pegá-lo (capturá-lo, apreendê-lo), daí, a posteriori, realmente
conhecê-lo. Desejamos antes, tudo o que amaremos, ou conheceremos, o simples
flerte suscita devaneios, e estes, provocam os sentidos.
O estudo pela imagem é um catalisador emocional e cognitivo que pode ser considerado, em sua essência, prudente e atento às dissimulações que parasitam a mente humana, tentando estabelecer verdades absolutas. O ensino que se apropria desse catalisador, necessariamente é cauteloso, podendo ponderar em sua mediação e/ou superar as cegueiras do conhecimento, o inesperado e a incerteza do conhecimento, como advertiu Morin. [...] Defendo que as sensações, encantamentos e devaneios emergidos da imagem poética são, ou podem ser, também catalisadores (e ponto de partida) para se chegar, em um novo momento, com novas operações cognitivas na busca ao conhecimento conceitual. O papel do educador por imagens é ajudar no trânsito desse percurso, possibilitando ao aprendiz o conhecimento de suas paisagens oníricas interiores, o conhecimento de si, e a partir disso, o conhecimento do universo exterior (cultura, sociedade, economia, dentre outros) (SALES, 2012, p. 49).
Como enfatizou Silmara Marton (2008, p. 57), “exercitando permanentemente
a construção de suas próprias paisagens, o sujeito é capaz de resistir à
massificação dos sentidos impostos pela cultura”, e diríamos, também capaz de,
exercendo a dialogia entre imaginação e razão, viver poeticamente no mundo sem
deixar de exercitar de maneira crítica e autônoma sua compreensão sobre o mundo.
A construção dos sujeitos e das identidades passa pela criação de imagens e
releituras destas realizadas no decorrer da sua vida. Precisamos educar nossos
sentidos e sentimentos para que não sejam empobrecidos por uma educação que
ensina-nos a recalcá-los.
Educar os sentidos é permitir-se degustar, cheirar, tocar, ouvir e ver, partindo
disso, encorajar o devaneio e a comunhão onírica com o mundo, o que pode
provocar uma excitação ao conhecimento de si e do mundo. “Imaginação e
excitação estão ligadas. Por certo – infelizmente! – há excitações sem imagens, mas
– mesmo assim – não há imagens sem excitação” (BACHELARD, 2013, p. 16).
Educar para os sentidos é compreender a relevância imprescindível do sensível, do
afeto, no caminho do saber dos significados e experienciar as coisas do mundo; ou
seja, é por meio deles, se deixar admirar pelo mundo. Segundo Alves (2005), os
sentidos se educam ao serem tocados pela poesia, pois tornam-se portadores de
uma felicidade ausente.
188
UM BACHELARD COMPLEXO?
“Os eixos da ciência e da poesia são a princípio inversos. Tudo o que a filosofia pode esperar é tornar a poesia e a ciência complementares, uni-las como dois contrários bem feitos.”
Gaston Bachelard
Já no primeiro capítulo de sua tese Por uma filosofia do espanto imaginário,
Rodrigues (1999, p. 8) nos apresenta um Bachelard “pedagogo à procura de si
mesmo”. É esse Bachelard, muitas vezes escondido sob páginas e páginas no
imenso volume de suas obras que Rodrigues conseguiu descortinar. Como lição do
Bachelard pedagogo, Rodrigues (1999, p. 7) mostra que “educar é alimentar sonhos.
[...] Mais que perguntar-se sobre o que ensinar, quer saber “como” ensinar. Sem
deixar de pergunta-se “por que”, “para que” e “para quem” ensinar”. Tomemos
esse, como o primeiro ponto para uma pedagogia bachelardiana. Cremos que a
ideia de adotarmos o modelo de Jardins artificialis atenderia o “como” ensinar aqui
inquirido e consecutivamente os demais questionamentos. Ensinando a arte dos
poetas e ofício do intelectual.
Em outro ponto, nos ensina Rodrigues (1999, p. 9) sobre Bachelard que,
“suas aulas e seus livros nos fornecem sua experiência pedagógica a procura de si
mesmo, num modo de fazer filosofia que tenta conciliar a ciência e a poesia, razão e
imaginação, o real e o sonho”. Portanto, Rodrigues aponta Bachelard como um
filósofo que “compreende que a ciência não se esgota em si mesma e nem é a única
via de acesso ao mundo” (RODRIGUES, 1999, p. 8). Tendo essa compreensão, nós
o consideramos um filósofo da religação; e este, é um conceito muito caro às
ciências da complexidade que tentam religar o que foi fragmentado (MORIN, 2003,
2005), e também, para o reencantamento do mundo desencantado pela ciência do
cogito ergo sum.
Almeida (2012, p. 52) traz um dado importante para localizar Bachelard na
construção do pensamento e da ciência complexa morinianos, diz ela: “Para Edgar
Morin, é Gaston Bachelard (1884 – 1962) em O novo espírito científico quem usa
pela primeira vez a palavra complexidade na acepção de um modo de conceber da
ciência”. Bachelard apesar de ser também um filósofo epistemólogo, que contribuiu
muito para reencontrar os novos limites da ciência pós a relatividade em Einstein,
nunca deixou de se encantar e valorizar a o vocabulário onírico só encontrado na
189
poesia. Isto mostra que muito além dele ser um filósofo da ciência, ele foi um filósofo
sonhador, concomitantemente, harmonizava, reorganizava e religava esses dois
vocabulários. Ele não os traduzia, mas se alimentava de um e do outro de maneira
complementar numa dieta bastante onívora. Isto, por si só, já nos faz constatar que
nesse contexto, Bachelard foi um complexo que brotou e floresceu antes da
formalização da complexidade. Um temporão. Gomes (2018b, p. 121) pensando a
possibilidade de haver “uma proposta de religação dos saberes implícita no
pensamento de Gaston Bachelard”, reponde que sim, e complementa,
Ela está centrada na compreensão do imaginário em sua dimensão simbólica. Isso significa que as imagens capazes de nos suscitar o estado poético não podem ser reduzidas à mera ilustração de conceitos e teorias já que elas não podem ser tomadas numa perspectiva mimética/reprodutora, pois são imagens criadoras de novas realidades, são instauradoras de inventividades [...]. Ou seja, o devaneio poético bachelardiano opera com a imaginação simbolizante, sendo a imagem simbólica dotada de uma informação imanente, que não se reduz ao empírico, os conteúdos evocados desdobram-se em sentido figurado.
Gomes (2018b, 2016a, 2013) investe na ideia de que se em Morin o homem é
compreendido em sua dimensão (prosaico/poético) mitopoética, do homo-sapiens-
demens, Bachelard quando refere-se a imagem poética, fala também da capacidade
da imaginação simbolizante que pode ser associada à condição poética no
pensamento moriniano. Diz a autora (2013a, p. 195):
A linguagem poética, através das imagens poéticas, expressa o mundo interior do Poeta, senão o mundo que sua sensibilidade traz à tona, o mundo que ele gostaria de viver, o mundo que ele eticamente respalda. Seja ele um literato/artista ou um “homem comum”, pois a capacidade estética não é reserva dos que tem por ofício a invenção (artistas, cientistas, escritores), mas faz parte da condição humana, do homem compreendido em sua dimensão mito-poética, do homo-sapiens-demens, como diz Edgar Morin.
Como vimos, para Bachelard (2009, p.15), “dois vocabulários deveriam ser
organizados para estudar, um o saber, o outro a poesia. Mas esses vocabulários
não se correspondem. Seria vão constituir um dicionário para traduzir de uma língua
para outra”. Apesar de nosso filósofo sonhador advertir sobre a importância de
estudar o saber (vocabulário formal do sapiens) e a poesia (vocabulário onírico do
demens), a ideia de disjunção deles pode parecer resistir contra a proposição do
Bachelard complexo, pois ao invés de religar o Bachelard epistemólogo aparenta
190
promover “a cisão entre ciência e poesia, sendo essa subordinada àquela, porque a
poesia está presa a imagens [...] que seduzem a razão”. (RODRIGUES, 1999, p.21).
Mas Rodrigues (1999, p. 49) também entende que Bachelard foi
posteriormente “marcado profunda e decisivamente pelo onirismo das imagens dos
poetas e pela força sedutora da poesia de suas imagens materiais e dinâmicas”, diz
ele:
Nosso filósofo continua e amplia a investigação iniciada pela via epistemológica, agora sendo permeada pelas ligações entre poesia e ciência, razão e devaneio, consciência e onirismo, elaborando o conceito de experiência (científica e poética), no que as une, enquanto dois contrários bem feitos e complementares.
Wunenburger (2003, p. 272-273), também pensando sobre a
ruptura/religamento entre imagem e conceito, logo, ciência e imaginação,
acrescenta:
O pensamento nem sempre progride por sequências de razões, por consecuções e deduções bem ordenadas. O progresso do saber passa em primeiro lugar por novas intuições onde imagens incontroladas ou involuntárias desempenham frequentemente, um papel criador. [...] Noutras circunstâncias, o avanço científico passa pela criação livre de comparações, de metáforas e de analogias [...]. A imagem pode surgir na estratégia de justificação de um saber [...].
Concordo com Bachelard ao demarcar a importância dos dois vocabulários, e
também que eles não são traduzíveis entre si, pois possuem naturezas distintas, por
isso mesmo Rodrigues (1999) está correto ao entendê-lo como a união de contrários
complementares. O que em Morin é entendido por dialógica, ou seja, a “associação
de instâncias, ao mesmo tempo, complementares e antagônicas” (MORIN, 2003a, p.
62). A exemplo disso é a nossa existência conflituosa, aguardando a manifestação
do oposto/complementar para perpetuar a constante busca pelo princípio da
autonomia/dependência em seu processo auto-eco-organizacional do qual se referia
Morin (SALES, 2012, p. 19). Barbosa (2004, p. 63-64) complementa:
A problemática da educação em Bachelard se desenvolve sobre dos eixos distintos presentes em sua obra, considerados como opostos e contraditórios: o eixo da razão e o eixo da imaginação. Estes eixos, apesar de opostos, são complementares, não comprometendo a unidade de sua obra, pois todos os dois especificamente ontogênicos ultrapassam e renovam o mundo, substituindo-o por uma surrealidade, e o que é mais primordial, contribuem, assim, para o desenvolvimento pleno do espirito humano.
191
A autora então dialoga no mesmo sentido de um Bachelard da “religação” na
em medida que fala de opostos/complementares, em um termo moriniano, dialógica.
Wunenburger entende que Bachelard (após a Filosofia do não) “é pioneiro em um
racionalismo aberto que “ao tomar nota da nova ciência, entrelaça racionalidade e
imaginário” (WUNEMBURGER, 2003, p. 279).
Voltando à clareira aberta, Rodrigues (1999, p. 51) comenta que a Poética do
Espaço e a Poética do Devaneio, “apresentam de forma sistêmica, suas elaborações
imaginárias, onde a razão e a imaginação devem ser trabalhadas alternadamente,
na constituição de uma consciência sonhadora”. Assim devem ser os jardins
artificialis, neles a imaginação dará vida ao cogito sonhador recalcado, que por sua
vez, trará a nossa infância onírica para brincar e aprender com o mundo, mas
também terá a atividade de pesquisa como ofício de compreensão da realidade por
meio do método complexo que é por princípio, religador.
EDUCAÇÃO BACHELARDIANA
“Para ensinarmos um aluno a inventar precisamos mostrar-lhe que ele já possui a capacidade de descobrir”
Gaston Bachelard
Não poderia de iniciar essa seção, sem pontuar um dos pensamentos da
bachelardiana Barbosa, do qual faço-me cúmplice. Por sua vez, ela localiza
precisamente e sinteticamente uma educação bachelardiana:
Ao ler os textos epistemológicos e poéticos de Bachelard, constatamos sua profunda vocação pedagógica. Somos, então, persuadidos do vigor de um pensamento que impõe o refazer do espírito humano que, numa busca permanente de ultrapassamento de si mesmo, se renova pela criação inesgotável de mundos surreais, expressão de sua atividade intensa e visceral (BARBOSA, 2004, p. 79).
Passemos na busca de nos ultrapassarmos ao Poeminha em língua de
brincar, Manoel de Barros (2010, p. 485) que escreve:
Ele tinha no rosto um sonho de ave extraviada. Falava em língua de ave e de criança. Sentia mais prazer de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Dispensava pensar. Quando ia em progresso para árvore queria florear.
192
Gostava mais de fazer floreios com as palavras do que de fazer ideias com elas. Aprendera no Circo, há idos, que a palavra tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria de rir. Contou para a turma da roda que certa rã saltara sobre uma frase dele E que a frase nem arriou. Decerto não arriou porque tinha nenhuma palavra podre nela. Nisso que o menino contava a estória da rã na frase Entrou uma Dona de nome Lógica da Razão. A Dona usava bengala e salto alto. De ouvir o conto da rã na frase a Dona falou: Isso é Língua de brincar e é idiotice de criança Pois frases são letras sonhadas, não têm peso, nem consistência de corda para aguentar uma rã em cima dela Isso é língua de raiz – continuou É língua de Faz-de-conta É língua de brincar! Mas o garoto que tinha no rosto um sonho de ave extraviada Também tinha por sestro jogar pedrinhas no bom senso. E jogava pedrinhas: Disse que ainda hoje vira a nossa Tarde sentada sobre uma lata ao modo que um bemtevi sentado na telha. Logo entrou a Dona Lógica da Razão e bosteou: Mas lata não aguenta uma Tarde em cima dela, e ademais a lata não tem espaço para caber uma Tarde nela! Isso é língua de brincar É coisa-nada. O menino sentenciou: Se o Nada desaparecer a poesia acaba.
E se internou na própria casca ao jeito que o jabuti se interna.
Com esse poema retomamos alguns dos pontos mais matriciais desse
estudo: a Infância e a relação entre a Dona Lógica da Razão e a língua de brincar.
Como já vimos anteriormente, na linguagem infantil o idioma ainda não foi
esterilizado pela razão, ao contrário, é fecundo e é aí que suscita à poesia. A língua
de brincar das crianças nos convida ao devaneio, ela “joga pedrinhas no bom
senso”.
Alves (2005), possivelmente adjetivaria a língua de brincar de inútil. Para ele,
na ordem das coisas úteis estão aquelas que possuem uma utilidade prática na vida
da gente, como uma ferramenta por exemplo. Já o que é inútil, como um poema,
tem por função nos trazer felicidade. Bachelard na sua obra epistemológica, chegou
a um entendimento aproximado ao de Alves, dizendo: “O esforço do saber parece
maculado pelo utilitarismo; os conceitos científicos, todavia tão bem harmonizados,
são considerados apenas com o valor de utensílios” (BACHELARD, 2006, p. 21).
Ainda na trilha de Alves (2012, p 68) sobre as crianças, ele nos mostra: Elas
“ainda têm olhos encantados [...] Tudo é espantoso [...]. Desse espanto, a
193
curiosidade; da curiosidade, a fuçação (esta palavra não está no Aurélio) chamada
pesquisa; dessa fuçação, o conhecimento; e do conhecimento, a alegria”.
Para concluir esse capítulo, gostaríamos de pensar uma pedagogia61,
associada a uma proposta de uma condução da nossa infância onírica (que se
perpetua aberta ao espanto e maravilhamento, cheia de curiosidade) como
estratégia de fruição da inutilidade que nos traz alegria e felicidade numa
perspectiva de Alves (2005), mas também como caminho de admiração, espanto e
curiosidade sobre o mundo que nos permite conhecê-lo mais profundamente como
em Rodrigues (1999) e Bachelard (2008, 2009).
Nesse sentido, “Bachelard mostra-nos uma possibilidade de espanto
imaginário para despertar a nossa atenção diante de nós mesmos e do mundo em
que vivemos” (RODRIGUES, 1999, p. 62). Essa é uma lição pedagógica, que
somada a ideia de que “educar é alimentar sonhos”, e “conciliar a ciência e a poesia”
(vistas no tópico anterior) mostram os indícios de uma pedagogia bachelardiana.
Marchi, citando Richter, complementa outro ponto importante, onde para “Bachelard
a ação de conhecer na infância é baseada no fazer” (RICHTER apud MARCHI,
2015, p.69)62.
Daí a importância da imaginação material e a luta/trabalho/fusão cósmica do
nosso cogito sonhador com as resistências das matérias. “Uma coisa é certa, em
todo caso: o devaneio da criança é um devaneio materialista. A criança é um
materialista nato. Seus primeiros sonhos são sonhos de substância orgânica”
(BACHELARD, 1989, p.09). “A criança extrai da matéria as qualidades sensíveis, de
uma maneira lúdica, com a curiosidade que lhe faz investigar o mundo” (MARCHI,
2015, p.69). Essa prática educativa que valoriza o trabalho e o fazer também pode
ser vista na pedagogia freinetiana, sendo um dos seus sustentáculos.
Também não podemos nos esquecer de uma postura epistemológica
bachelardiana que está em plena consonância com a pedagogia crítica (talvez fosse
mais prudente dizer que a pedagogia crítica, está em consonância com a ideia
bachelardiana), “ressaltando o quanto o erro constitui o diálogo” (RODRIGUES,
1999, p.36). “Contrapondo-se ao cotidiano do ensino repetitivo e habitual que não
61 Como nos lembrou Duborgel, “significa etimologicamente <<conduzir a criança>>” (2003, p. 203). 62 Citação da obra A dimensão ficcional da arte na educação da infância de Sandra R.S. Richte, publicada no ano de 2005.
194
admite o erro, a experiência do erro é a experiência dos começos de quem cria seu
próprio mundo” (RODRIGUES, 1999, p. 35-37), acrescentando,
Relativizando a verdade e o erro, Bachelard pode compreender que a pedagogia científica visa ao “como” ensinar, muito mais que sobre o objeto ou matéria ensinados. Esse procedimento contraria a concepção pedagógica de que a matéria ensinada contenha sua verdade, independentemente do modo que é ensinada. O professor Bachelard tende a compreender a verdade dos conteúdos científicos ensinados, inseridos nas estratégias pedagógicas para ensiná-los.
Morin (2003, p.10) adverte, “ninguém está imune a mentira de si mesmo”
estando de acordo, cremos que uma pedagogia progressista e interessada em
ensinar os ‘dois vocabulários’ dos quais Bachelard falou (saber e poesia) deve
“mostrar que não há conhecimento que não esteja, em algum grau, ameaçado pelo
erro e pela ilusão” (MORIN, 2005, p.19). Pois,
O erro é canal de possíveis reflexões, bem como o acerto. Assim como a desordem complementa a ordem, o equívoco, a imprecisão é um oposto complementar do acerto e da exatidão. Na suscitação e leitura de imagens não existe o pensar errado, existe uma leitura particular incitada pelo devaneio do leitor. O leitor de imagens sempre caminha ciente que seu processo de abstração é singular (SALES, 2012, p.78).
“A escola é, pois, um lugar de formação, mas principalmente um lugar de
deformação e de reforma, no qual o sujeito, em construção permanente, renasce a
cada instante como ser renovado” (BARBOSA, 2004, p. 74). Bachelard (2004, p. 85)
conclui aqui essa questão dizendo: “A primeira e a mais essencial das funções das
atividades do sujeito é a de se enganar. Quanto mais complexo for seu erro, mais
rica será sua experiência”.
O poeminha em língua de brincar (BARROS, 2010, p 485) mostra
poeticamente que a Dona Lógica da Razão (ligada ao cogito ergo sum) não admite o
entendimento do menino que falava em “língua de ave e de criança” (idem). A língua
de ave é a língua do próprio mundo, no devaneio cósmico de Manoel de Barros não
bastava o menino admirar o canto das aves, mas ele (o menino Manuel), em seu
devaneio compartilhava de seu idioma, traço que marca a sua compreensão das
coisas, por isso ele preferia brincar com as palavras ao invés de racionalizá-las (“de
pensar com elas”); também, ele falava língua de crianças, assim era parte e
substância desse mundo que o “nada” tem importância vital para poesia, como a
importância lépida da inutilidade em Rubem Alves (2005). A Dona Lógica da Razão
195
do poema compartilha da mesma aversão que Reynaldo Jardim (2017, s/p)
percebeu que havia sobre os índios, ele escreveu:
[...] O que se odeia no índio é o sol. A árvore se odeia no índio. O rio se odeia no índio. O corpo a corpo com a vida se odeia no índio. O que se odeia no índio é a permanência da infância E a liberdade aberta se odeia no índio.
Tanto o índio como o menino não se adequavam a percepção escolar
tradicional hegemônica, fazem parte da natureza de um mundo sonhado, como o
sonhador de mundo bachelardiano (BACHELARD, 2009), mais que isso, neles
habitam uma infância onírica que bagunça os valores da realidade da dita lógica da
razão. Eles sonham, logo existem.
“Bachelard entende que para se estudar a imaginação poética, é preciso uma
ruptura com a razão, que liberte as imagens do nexo causal que as reduz a sintomas
de traumas e recalcamentos” (RODRIGUES, 1999, p. 53). Uma escola onírica que
se preze, precisa permitir que o sujeito ‘seja mundo sonhado’, antes de conhecer o
mundo da experiência. E assim como o índio de Jardim, ser sol, ser árvore, ser rio;
como o menino em Barros (2010), poder ver uma tarde sentada numa lata.
O ponto da pesquisa como estratégia de aprendizado (igualmente como na
educação freinetiana) é do mesmo modo marcante numa educação bachelardiana.
Ainda Rodrigues (1999, p.30), na esteira de Bachelard, critica a visão reprodutivista
do processo de ensino e aprendizagem, no qual as aulas tomam o lugar das
descobertas. Aqui, o processo cognitivo deveria ter como ponto de partida “as
inquietações que levam às invenções e aos descobrimentos”.
Outro quesito reprovado por eles é a verticalidade nefasta da autoridade do
professor (RODRIGUES, 1999, p. 27). Sobre a relação professor-aluno, Rodrigues
(1999, p. 10) comenta: “O professor Bachelard deixava-se encantar com seus
alunos, antes e depois de seus cursos. Fazia uma filosofia da interlocução buscada
na reciprocidade interpessoal, flexibilizando a relação professor aluno”. Essa é mais
uma bela lição da pedagogia bachelardiana que não é apenas onírica e cientifica, é
interpessoal.
Pode-se, então, concluir que, para Bachelard, a verdadeira escola, aquela que tem como objetivo primordial a formação do homem, deve ser uma escola que substitui o instinto conservador pelo instinto e a passividade e a
196
ociosidade pelo dinamismo espiritual. A verdadeira escola faz reviver, em cada um, a dialógica do racionalismo docente discente, ao mesmo tempo em que eleva o espírito, através da imaginação criadora num vôo ascensional profundo e verticalizante. Conforme mostra Bachelard, esta escola é imanente ao espirito mesmo do homem, e é justamente isto que nos torna capazes de formação e de educação (BARBOSA, 2004, p.78 - 79).
Ciente que não seria possível tentar iluminar todas as contribuições de uma
pedagogia bachelardiana, me arvorei em Rodrigues (1999) porque ele fez uma
verdadeira arqueologia sobre “o pedagogo Bachelard”, contemplando aspectos
ligados ao filósofo da ciência e da imaginação. Contudo, sabemos que a abertura ao
cogito sonhador permite nos irrigarmos de devaneios e lições das imagens. São
essas lições, que estão associadas a uma educação atenta aos princípios
bachelardianos pontuados, que constantemente nos ajudam a ver além do real, para
a posteriori voltar a ele e tecer novas contribuições. Dito isto, fica claro que os
subsídios dessas lições podem ser inesgotáveis, além de possibilitar uma
degustação muito mais saborosa da poesia, do saber e do mundo.
Contudo reforçamos a necessidade de reencantar o mundo, poetizar a
educação, encantar o ser. Pela poesia, educar a imaginação, pois esta, “transforma
o ser num sentido de acrescentamento de potência, de elevação de si, que ensejam
metamorfoses interiores benéficas” (WUNENBURGER, 2003, p. 67). Antônio ensina:
“para poetizar a educação como atividade de criação de sentido, precisamos da
convivência poética” (ANTONIO, 2009, p. 120) e complementa:
A poesia não separa, mas religa o pensar e o sentir; o perceber e o imaginar; a criatividade e a comunhão. Assim, desperta e desenvolve a capacidade de interpretar. Revela-se imprescindível para o educar a capacidade de interpretação: mais do que as linhas, as entrelinhas. Ensina-nos a reconhecer a multiplicidade de sentidos, nos textos e no mundo, assim como nas nossas existências.
Precisamos fazer um elo da poesia com o mundo, e podemos aprender isso
com a infância onírica que de quando em vez toma a frente do homem e se abre ao
maravilhamento poético, numa verdadeira religação entre o imaginação-homem-
mundo. Quando voltarmos à razão, já fomos metamorfoseados pela poesia. Urge a
aprender reencantar o mundo com a infância, pois, “o religare da criança é o enlace
imaginário com o mundo. A imaginação deposita, em quase tudo, porções de
transcendência” (PIORSKI, 2016, p. 99).
197
EPÍLOGO
Fig. 27 – Atividade de criança da Escola Freinet
Fonte: Acervo do Autor (2016)
198
EPÍLOGO
“Se fosse ensinar a uma criança a beleza da música não começaria com partituras, notas e pautas. Ouviríamos juntos as melodias mais gostosas e lhe contaria sobre os instrumentos que fazem a música. Aí, encantada com a beleza da música, ela mesma me pediria que lhe ensinasse o mistério daquelas bolinhas pretas escritas sobre cinco linhas. Porque as bolinhas pretas e as cinco linhas são apenas ferramentas para a produção da beleza musical. A experiência da beleza tem de vir antes.”
Rubem Alves
A educação infantil, infância onírica e o reencantamento do mundo é uma
tese com um marcante posicionamento político contra-hegemônico no que se refere
ao processo de racionalização que recalcou estratégias encantadas de compreender
e vivenciar o mundo. Max Weber (2009, 2004, 1997) nomeou esse processo
histórico iniciado na Modernidade de “desencantamento do mundo”. Numa lógica
binária de inclusão/exclusão, o ocidente moderno fragmentou opostos
complementares de instâncias específicas da condição do antropos, privilegiando a
primeira em relação à segunda dentre as quais cito: razão/imaginação
(WUNENBURGER, 2003), ideias/imagens (GOMES, 2018b, 2016a)
prosaico/poético, sapiens/demens, (MORIN, 2005, 2003), ordem/desordem
(ALMEIDA, 2012), faber/ludens (MORIN, 2005). Entre as quais, as formas mais
próximas ao paradigma da ciência cartesiana foram eleitas e valorizadas, e as mais
encantadas, inferiorizadas.
Na estratégia de deter esse processo com dimensões planetárias,
compreendemos que a mudança paradigmática começa no ser que pode romper, ou
não, o paradigma ainda vigente e não reproduzir o saber, a ciência, a educação e o
mundo de maneira binária, preconceituosa, fragmentada e excludente. “Como
sabemos, sendo um produto da cultura, a ciência também é um tipo de
conhecimento tornado hegemônico numa sociedade capitalista, utilitária e tem, na
padronização, uma base importante de sua consolidação” (ALMEIDA, 2012, p.16).
Todavia, amparados nas ciências da complexidade, que tem como um dos seus
propósitos ligar o que foi disjunto (ALMEIDA, 2012; MORIN, 2005, 2003),
199
encontramos no filósofo onírico Gaston Bachelard, estratégias do pensamento que
colaboram e coadunam numa religação dos saberes em perspectiva moriniana63.
Daí a importância de sabermos, neste contexto, que o processo de
desencantamento do mundo aqui referido, tornou-se possível dentro de um projeto
de sociedade onde escola e pedagogia se aliaram no intuito de preparar as crianças
para serem adultos aptos a viver numa sociedade onde impera a racionalidade
instrumental sob o julgo da ciência cartesiana. Ou seja, as crianças a partir do
paradigma moderno, foram sujeitadas a uma escola que recalcou cada vez mais o
demens, o poético, o ludens, a desordem e a imaginação. Contudo, ao mesmo
tempo em que a educação infantil é o princípio da domesticação do ser para a
racionalidade instrumental, com seus objetivos, atividades planejadas e
racionalização e assepsia minuciosa para o controle infantil, ela também figura como
espaço de resiliência de tudo que as outras instâncias educacionais tentam recalcar.
É um campo estratégico para a harmonização do antropos por meio de práticas mais
poéticas/sensíveis/encantadas.
A importância e relevância do nosso estudo associado ao pensamento
(onírico) bachelardiano se faz na emergência de uma série de concepções e
conceitos do autor que tencionam para a superar a lógica racionalizante que impera
no nosso tempo. A dimensão poética da sua obra, favorece uma educação que
contemple não apenas o saber, mas também a imaginação. Isto porque, a
sensibilização do poético em Bachelard, para além da dimensão contemplativa, ela
liga-se felicidade oriunda da meditação de imagens poéticas. O que, para nós, é
uma possibilidade de (re)conectar e harmonizar dimensões inferiorizadas do
antropos, promovendo uma humanização de um sujeito que a educação tentar
formal tenta (hegemonicamente) transformar em autômatos. Além disso, como
apontou Gomes, podendo gerar “um pensamento não mutilante, capaz de
compreender o homem em sua complexidade, natural e cultural”.
Dentre os conceitos bachelardianos ‘humanizadores’, ou seja, que operam em
um sentido de poetizar a vida do ser e reencantar o que a lógica imperativa da
sociedade vem desencantando, temos destacado a ideia de devaneio poético, que
permite ao ser uma fuga do real por meio de um devaneio suscitado à consciência
63 Gomes (2016a, p. 108), apresenta “alguns fundamentos da proposta de religação dos saberes de Edgar Morin para a reforma do pensamento” e relaciona-as “a concepções de imaginário e imaginação simbólica presentes na obra do filósofo da imaginação Gaston Bachelard”.
200
do sonhador (BACHELARD, 2009); e os arquétipos, que vinculam uma vida própria
as imagens (poéticas) sublimadas, ou numa perspectiva dos quatros elementos
estudados pelo autor, são raízes da imagem, que estão no nosso inconsciente
coletivo (BACHELARD, 2013; BADIALI, 2016).
Todavia, o conceito do nosso filosofo sonhador que dá vida a esse estudo é o
de infância permanente (onírica). Que é um estado de alma que ultrapassa os ciclos
de vida, e, por meio dos devaneios poéticos voltados à infância, ou sobre as
lembranças da infância vivida, imaginada, devaneada, podemos retomar
oniricamente o estado de alma infantil e atualizar uma (re)sonhada infância
poeticamente. Para o nosso autor, “em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo
comprimido” (BACHELARD, 2008, p.28), com isto, poetizando o espaço por meio da
imagem poética, o devaneio do sonhador descompacta um tempo de uma infância
imperecível e atemporal que o acompanha por toda vida, sempre suscitada pelos
devaneios voltados a infância.
Dito isto, é importante lembrar que esse trabalho foi motivado por reflexões
oriundas nos seguintes contextos: a) desencantamento do mundo; b) emergência de
reencantamento do ser para reavermos uma harmonização do antropos (e
pretensiosamente, sonhando com uma mudança paradigmática de reencantamento
do mundo); c) educação como um campo estratégico para fragmentação ou
religação dos saberes e do recalque ou valorização das potências humanas
antagonizadas com o desencantamento; d) educação bachelardiana e complexa
como um importante método de superação da racionalização instrumental ainda
hegemônica.
Feitas estas considerações retomamos a trilha do estudo e refazemos uma
importante pergunta: Que (ou como) experiências da infância onírica colaboram ou
poderiam colaborar para uma educação mais poética, mais encantada, em
consonância com a ideia bachelardiana de educar a imaginação, na Educação
Infantil?
Para nós, a infância onírica, especialmente quando incentivada desde cedo
nos primeiros anos escolares, potencialmente pode provocar os discentes a não
perderem o encantamento nutrido pela infância, aprendendo a acessar o estado
poético devaneante, sem ser constrangido, como estratégia de poetizar o seu
mundo; de libertar a criatividade e imaginação tantas vezes eclipsadas pelo ‘dever
ser’; de compreender de outras formas os mesmos problemas impostos pelo
201
cotidiano; e porque não, de encontrar felicidade nas suas imagens poéticas
suscitadas; além de poder harmonizar não apenas o seu ser (por vezes fragmentado
e recalcado pelas instituições por meio da socialização), mas com o cosmos, com a
natureza, pois o mesmo, ao invés de se sentir subordinador do mundo (com sua
autoridade e pericia de único ser racional), exercitaria a comunhão sensível e
poética com o mundo, pois ambos habitam um ao outro.
Assim, uma educação bachelardiana principiando na educação infantil,
trataria de maneira harmônica razão e imaginação, o saber e a poesia. E a
imaginação e a poesia que têm sido inferiorizadas por boa parte das escolas,
passaria a fornecer uma base poética ao ser através da sua valorização da sua
infância onírica, degustada nas experiências e vivências no próprio campo escolar. A
própria infância onírica não sendo recalcada (“não pode pintar porque você já uma
mocinha...”) trará uma vida mais poética e encantada ao ser, que por sua vez verá o
mundo mais poeticamente (e com as mesmas tintas que seriam ocultadas, talvez, se
torne uma pintora, ou melhor, uma devaneadora de quadros).
Com base nesses pressupostos colhidos nos textos bachelardianos e os
vislumbrados como possíveis numa perspectiva de religação dos saberes,
investigamos escolas infantis incentivadoras de infâncias, que ao contrário do que se
mostra ainda majoritário em relação ao pensamento educativo associado a
produção64, encontram na poesia da vida uma educação que harmoniza o prosaico e
o poético. Portanto, na nossa busca pelo encantamento (do mundo) oriundo da
infância sonhadora, ancorados nas experiências da infância onírica observadas no
NEI-UFRN (piloto da pesquisa), e especialmente na Escola Freinet e no Centro
Infantil Municipal Dona Liquinha Alves, para além do planejamento do estudo, me
provocaram profundas repercussões que possibilitaram o despertar consciente da
minha infância onírica. E certamente um encantamento do meu mundo. Por isso,
não foi possível conter a vontade de anunciar os meus devaneios voltados à minha
infância, na maioria das vezes suscitados pelas observações no campo escolar,
pois, “as lembranças de uma infância feliz são ditas com a sinceridade de poeta”.
(BACHELARD, 2009, p. 20).
Obtivemos no campo o que fomos encontrar, onirismo infantil transbordando
de visões de mundo poetizadas por meio das brincadeiras, e da imersão poética nas
64 Alfabetizando cada vez mais precocemente no mundo das letras e extirpando o mundo dos sonhos. Não que entre essas práticas haja relação, mas a priorização de uma muitas vezes é o esquecimento da outra.
202
práticas das crianças. As experiências escolares investigadas e seus resultados
confirmaram a tese que a infância onírica, bem como outras categorias
bachelardianas como as acima citadas, são eficazes em promover uma educação
religadora e capazes de poetizar a forma que o educando
sonha/ver/vive/compreende/medita o mundo. E mais que isso, são eficazes no
despertar em outras pessoas, o mesmo encantamento. As vivências experienciadas
da infância onírica não apenas promovem uma educação mais poética e encantada,
potencialmente pode encantar a vida de todos os envolvidos no processo de ensino
e aprendizagem.
Parafraseando Vinícius de Moraes65, lembremos “a educação é a arte do
encanto, mesmo que haja tanto desencanto na educação”, portanto, a importância
deste trabalho está para além de promover a religação dos saberes proposta pela
complexidade, ou de indicar as possibilidades e benefícios de uma educação
bachelardiana, mas disseminar entre os educadores e sociedade a importância de
“pequenas” posturas/ações/aberturas educativas que reforçam a mudança do
paradigma da produção, do cálculo, da racionalização instrumental, que promove
uma humanidade fragmentada e consequentemente eternamente insatisfeita e
infeliz. O reencantamento do mundo só é possível no mundo do ser, isto é bem
verdade, mas o conjunto de uma humanidade reencantada, encanta todo o planeta.
Enfim, se em algum momento entre as experiências do campo nas escolas,
entre os poemas e canções meditados, ou nas minhas memórias sonhadas, você
leitor, reencontrou sua infância (re)lembrada, (re)sonhada, (re)vivida, se também
devaneou poetizando imagens de uma infância feliz (você assim como eu, ficou
grávido de uma infância que a toda hora pode (re)nascer do estado de poesia),
portanto, isso só ocorreu porque é possível o reencantar o mundo. Então aproveite
porque “o mundo do devaneio da infância é grande, maior que o mundo oferecido ao
devaneio hoje. Do devaneio poético diante do grande espetáculo do mundo ao
devaneio da infância há um comércio de grandeza” (BACHELARD, 2009, p. 96).
Não poderia encerrar esse texto de outro modo senão com mais um grande
poeta brasileiro, falando das coisas que sonhei dizer, sonhando com uma educação
que vi florescer. Porém, não ousarei comentar, pois, Oswaldo Montenegro no seu
álbum Letras Brasileiras (1997) me ensinou que poeta é aquele que disse tudo que a
65 “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida” (MORAES, 2018, s/n).
203
gente queria dizer, mas nunca encontrou palavras pra falar, assim terminamos com
Carlos Drummond de Andrade:
[...] O que eu pediria à escola, se não me faltassem luzes pedagógicas, era considerar a poesia como primeira visão direta das coisas e, depois, como veículo de informação prática e teórica, preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo, que se identifica basicamente com a sensibilidade poética. Não seria talvez despropositado cuidar de uma extensão poética das escolinhas de arte, esta ideia maravilhosa que Augusto Rodrigues tirou de sua formação humana de artista para a realidade brasileira. Longe de ser uma fábrica alarmante de versejadores infantis, essa extensão, curso ou atividade autônoma, ou que nome lhe coubesse, daria à criança condições de expressar sua maneira de ver e curtir a relação poética entre o ser e as coisas. Projeto de educação para a poesia (fala-se hoje em educação artística no ensino médio, quando o mais razoável seria dizer educação pela arte). A vocação poética teria aí uma largada franca, as experiências criativas gozariam de clima favorável sem que tal importasse na obrigação de alcançar resultados concretos mensuráveis em nível escolar. Sei de casos em que um engenheiro, por exemplo, aos 30, 40 anos, descobre a existência da poesia… Não poderia tê-la descoberto mais cedo, encontrando-a em si mesmo, quando ela se manifestava em brinquedos, improvisações aparentemente absurdas, rabiscos, achados verbais, exclamações, gestos gratuitos? Alguma coisa que se bolasse nesse sentido, no campo da Educação, valeria como corretivo prévio da aridez com que se costuma transcrever os destinos profissionais, murados na especialização, na ignorância do prazer estético, na tristeza de encarar a vida como dever pontilhado de tédio. E a arte, como a educação e tudo o mais, que fim mais alto pode ter em mira senão este, de contribuir para a educação do ser humano à vida, o que, numa palavra, se chama felicidade?66 (ANDRADE, 2018, s/n).
66 Transcrito do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro – RJ, 20.07.74.
204
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APÊNDICE OUTRAS ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
O smartphone foi uma importante ferramenta facilitadora da pesquisa de
campo, pois possibilitou o arquivamento in loco dos acontecimentos e espaços do
campo. Assim, seria menos provável que esquecesse de informações relevantes
entre o momento de observação e o registro posterior. A exemplo disso, destaco o
registro de fotografias e pequenas notas textuais organizadas em tópicos, das
situações, impressões e observações vividas no campo.
Todavia, vale ressaltar dois detalhes que são fundamentais em relação a esta
ferramenta escolhida: o uso da câmera de celular foi informado e autorizado nas três
instituições; contudo, me comprometi em não publicar sem autorização dos
respectivos responsáveis qualquer imagem que expusesse os rostos das crianças
com o objetivo respectivo de preservação das suas imagens. É necessário dizer
que, mais do que a importância da publicação das imagens, o uso das fotografias
serviu como diário de campo imagético que me auxiliou a rememorar e analisar as
experiências da pesquisa. Ademais, isso possibilitou uma organização cronológica,
facilitando melhor à sistematização sobre o conteúdo fotografado na medida em que
a câmera digital do smartphone nos dá a possibilidade de verificação de data e hora
do registro.
Ainda sobre o referido uso, destaco que em todas as escolas acompanhadas
os professores das turmas estudadas já usavam smartphone ou câmera digital.
Além da realização do registro imagético, trata-se de uma oportunidade de pensar
sobre a práxis educativa partindo dessas imagens, facilitando inclusive o
planejamento de novas atividades. Dito isto, é mister ressaltar que tanto a
professora Daniele (do NEI), quanto o gerente administrativo João Vianney (do
Freinet) e a coordenadora Sarah (do Dona Liquinha) possibilitaram os registros
porque as respectivas escolas possuíam um termo de autorização coletiva para o
registro fotográfico das crianças, como é comum nas instituições de Educação
Infantil, autorizado pelos país e responsáveis no início do ano letivo. Por fim,
reconhecendo a importância de assegurar o direito das crianças e protegê-las de
exploração de suas imagens ou de qualquer outro tipo, estabeleci um segundo
compromisso: caso houvesse a intenção de uso de alguma imagem qualquer
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fotografada no ambiente escolar, eu submeteria a aprovação de cada instituição
antes da publicação da versão final da tese.
Outra questão imprescindível dentre as estratégias metodológicas do trabalho
diz respeito ao uso ou não do nome das crianças no texto final. Muito vem se
discutindo quanto a isso, em especial com trabalho com crianças e adolescentes.
Apesar de considerar mais do que legítima a identificação dos personagens da
pesquisa, inclusiva para dar o respectivo crédito as suas falas e demais
contribuições, optei por resguardar mais uma vez as crianças da pesquisa. O motivo
é simples: por respeito à decisão de fazer uso das imagens exclusivamente como
fonte da pesquisa, por analogia e na busca de maior coerência, resolvi preservar as
crianças da sua identificação.
Ao contrário de outros pesquisadores de infância, optei por não criar nomes
fictícios. Não que entendo que essa prática é equivocada, mas, em virtude da
natureza do meu estudo, preferi identificá-los por adjetivos relacionados às suas
características, à ação desenvolvida, ou a algo por eles dito, assim tentando
contribuir para a compreensão de quem são esses personagens no decorrer da
narrativa. Ou mesmo chamar de menino ou menina, tendo em vista lembrar que as
crianças são sujeitos nesta pesquisa. Desse modo, a intenção jamais foi de reduzir o
sujeito ao fato, ou ao dito, à condição de criança desse ou daquele gênero, mas
preservar algo de sua vivência, expressão e identidade, sendo fiel a sua
característica, intenção e/ou energia naquele momento da observação. Portanto,
quando falo o idealista, a caçulinha, a mãezinha, o menino isso, a menina aquilo,
digo em relação exclusivamente aquela ocasião protagonizada pelo personagem.